Sebentas                                                            

 

Ano Académico 2023-24

Primeira Lição: 11 de Outubro


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Os viajantes

 

Os viajantes dos séculos XVI e XVII coletavam ” curiosidades”. Fspíritos curiosos reuniam coleções que iam formar os famosos ’’gabinetes de curiosidades”, ancestrais dos nossos museus contemporâneos. No século XVIII, a questão é: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a História Geral das Viagens, do padre Prévost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a coleção das coletas. Não basta mais observar, é preciso processar a observação. Não basta mais interpretar o que é observado, é preciso interpretar interpretações. E é desse desdobramento, isto é, desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de organização e elaboração. Em 1789, Gravane, o primeiro, dará a essa atividade um nome. Ele a chamará: a etnologia.

 

Em 1885, recordando o progresso secular da ciência do homem, Paul Topinard afirmava que 'os viajantes desempenham um papel considerável na história da antropologia como na de todas as ciências naturais' (1885, p. 2). De facto, ao contrário da botânica, cujos herbários representam uma espécie de capital móvel (Bourguet 1997), a antropologia pertence ao registro das disciplinas de campo desde o Iluminismo. No concreto, seu laboratório profissional é parcialmente exótico. O investigador não se limita ao perímetro de um gabinete e, menos ainda que a do geólogo, sua competência não parece depender de uma reprodução do experimento. As circunstâncias variam conforme os interesses associados e os relatos de viagem 'impressionam o mundo' proporcionalmente ao afastamento de seu teatro de ação (Duviols , 2011).

A legitimidade dos factos etnográficos, portanto, deriva da equação pessoal do observador ou de seu crédito acadêmico (ver McCook 1996). Nesses assuntos, porém, a crítica geral dos viajantes é antiga e duradoura. A busca do outro e de si mesmo conduz, diz-se, à fabricação e encenação de uma experiência de composição. Topinard nos alerta sobre isso algumas linhas após seu elogio aos viajantes: 'nenhuma ciência exige tanto calma e razão quanto a antropologia, nenhuma se presta mais ao treinamento pessoal. Assim, a questão da confiança é aberta, iterativa: como canalizar a paixão pelas viagens para converter a alegria de descobrir outros homens, estranhos e improváveis, na linguagem do conhecimento útil?

A partir do século XVIII, a confiabilidade dos testemunhos e, portanto, as condições concretas do conhecimento foram constantemente discutidas (Broc 1994, p. 140 e seguintes; Duchet 1971, p. 95 e seguintes; Laissus 1981, p. 283 e seguintes). As causas dos erros, especialmente os psicológicos, são introspectivas enquanto as recomendações se multiplicam. Nesse contexto, as instruções aos viajantes aparecem como um instrumento para diagnosticar as dificuldades do terreno ou as inadequações dos observadores, sejam eles marinheiros, missionários ou naturalistas. Os antropólogos de gabinete estão quase todos convencidos de que são abusados pela massa de relacionamentos. Mas de outro ponto de vista, eles concordam, a atração de narrativas na mente do público é a principal causa de erro. A dramatização de perigos reais ou supostos desperta a admiração dos exploradores que os enfrentaram. Mesmo que raramente o admitam, os estudiosos, por sua vez, sacrificam-se a ele. Michel-Hyacinthe Deschamps , por exemplo, relata:

 

«É preciso ser dotado de temperamento inusitado para se defender sempre de um movimento de credulidade em favor dos homens valentes e esclarecidos que, com risco de vida, furtaram fatos científicos de praias distantes e perigosas, entre populações vagabundas, fanáticas, sanguinários, canibais. Como permanecer insensível ao estilo ardente do naturalista que escreve suas anotações sob o equador ardente?» (Deschamps 1857-1859, p. XIII-XIV)

Mais frequentemente, no entanto, uma negação irrestrita é dirigida apenas aos viajantes, como diz o ditado: 'Uma bela mentira que vem de longe'. Os viajantes enganam seus leitores porque primeiro enganam a si mesmos. A acusação é dupla e combina seus efeitos negativos.

Retomando o conteúdo das críticas, bem como os conselhos urgentes dirigidos aos operadores, o historiador acede a uma concepção metódica do percurso científico que visa menos uma lista de objectos a descrever do que uma educação do olhar. Este protocolo de observação “sob controlo”, rigoroso e definido, foi-se apurando ao longo dos séculos XVIII e XIX. Ele destaca a crescente divisão do trabalho intelectual entre produtores de 'fatos' e teóricos de gabinete. Também o vemos implementado em obras gerais de antropologia e no corpo de instruções de outra forma díspar

 

Esses guias de pesquisa têm um propósito prático. É necessário reduzir, de forma quase cúmplice, a distância que separa o investigador do seu objecto. Linnaeus escreve que o viajante deve descrever as coisas com tal precisão que 'a mente as compreenda tão bem que o olho pense que as vê'. No entanto, a lacuna é considerada intransponível. Daí as inúmeras dificuldades, das quais o estilo dos manuais de viagem - por vezes encorajador, autoritário ou proibitivo - revela a tensão essencial.

As instruções antropológicas são apresentadas como um esforço consciente e de longo prazo destinado a dissipar as dúvidas fundadas suscitadas por relatos dos quatro cantos do mundo. Cristalizam uma insatisfação e testemunham uma desconfiança que, curiosamente, dificilmente será dissipada durante o século XIX. Nesse sentido, o tom académico, mesmo imperativo, das instruções não pode ser dissociado de seu peso crítico. Eles valem mais por esses métodos do que pelas conquistas que eles teriam facilitado. Em muitos casos, estes últimos são ignorados pelo historiador e, sem dúvida, permanecem de pouca relevância. Os manuais de campo devem, portanto, ser considerados como um fato de organização disciplinar que caracteriza as instituições, particularmente geográficas e etnográficas, e garante a uma categoria de pessoal não viajante o monopólio da autoridade científica. É neste sentido, e na aplicação do princípio da heteronomia do viajante comum, que a polémica fomentada contra os observadores se encontra ligada aos ideais técnicos e cognitivos da antropologia clássica e depois positivista.

Os precursores da antropologia

 

Desde a sua publicação em 1883 por Paul Topinard, as Considerações sobre os diversos métodos a seguir na observação dos povos selvagens, escritas no ano III pelo filósofo Joseph-Marie Degérando , adquiriram valor emblemático. Os princípios que Degerando afirma são os seguintes

1- ir lá onde eles vivem

2- residir entre eles demoradamente

3 - comparar seus costumes para conhecer melhor o Homem

Há método diferente por filósofos que refletem sobre sistemas de pensamento mas o antropólogo viaja e pensa. Moderna metodologia da observação participante. Esta forma de trabalhar no campo recusou um certo estilo de investigação onde os antropologos, convocam, os "informantes" para falar da cultura numa tenda ou na varanda, as pessoas saiam para fora, para pesquisar "fazer da aldeia"(Degerando 1883, p. 156). O campo é também um conjunto de práticas discursivas. A residência implica uma verdadeira competência de comunicação: não se depende dos demais interpretes, mas se fala e escuta em primeira pessoa. Após a geração de Malinowski, a profissão tem imposto "aprender a língua", ou, pelo menos, " trabalhar no idioma local”. Segue-se que um etnógrafo para trabalhar, aprende pelo menos, uma parte da língua. A observação participante intensiva é, provavelmente, a mais duradoura contribuição da antropologia para as ciências humanas

 

 

 

Os historiadores da antropologia dos séculos XVIII e XIX raramente questionaram a relação tensa e conflituosa que os estudiosos das metrópoles mantinham com sua rede de informantes. À primeira vista, como observou Deschamps (1857-1859, p. XIII), “cada um tira à vontade, segundo suas forças” de um tesouro documental, “o fruto dessas longas peregrinações”. Em 1791, Déodat de Dolomieu já lançava com entusiasmo:

nossa gratidão deve ser infinita pelos viajantes que vão buscar instrução nos confins do globo e que sacrificam todos os confortos da vida, todas as comodidades da civilização, para ir entre povos selvagens, em países desabitados, coletar fatos, fazer observações, para descobrir verdades físicas que, ao retornarem, nos pertencerão como a si mesmas, embora não compartilhemos nenhum dos perigos, nenhuma das fadigas inerentes à sua pesquisa. (Dolomieu 1791, p. 2)

 

Pertencendo ao género missionário, anedótico ou mesmo mercenário, as coleções de viagens são suspeitas, até mesmo desacreditadas, como tantos 'romances de físicos' . Citando Estrabão no artigo Voyageur da Encyclopédie, o Chevalier de Jaucourt despachou esta literatura extrapolada em poucas palavras: 'Vejo claramente que qualquer homem que descreve suas viagens é um mentiroso' (Encyclopédie, 1765, t. XVII, p. .477 ). Muitos autores opõem assim a 'luz' dos fatos autênticos à 'escuridão' do erro, da improbabilidade, das mentiras interesseiras.

 

Antes de Degérando, Buffon não foi o único a criticar os “exageros, contos e histórias bizarras com que tantos viajantes mancharam seus escritos acreditando que os adornam” (1971, p. 321). Rousseau também lamenta que a filosofia viaje tão mal, Cornelius de Pauw que os preconceitos viajem tão bem. Desde o 'Discurso Preliminar' de suas Pesquisas Filosóficas sobre os Americanos, este adverte o leitor:

Finalmente, era preciso armar-se de teimosia para abrir caminho através das contradições e das observações viciosas dos Viajantes, para quem as extravagâncias custavam menos [sic] do que para o resto dos homens, e eram sem comparação, mais perniciosas. (Pauw 1770, vol. I, p. IX-X)

 

Daí o paradoxo que atravessa o século: filósofos e naturalistas beneficiam, em primeira linha, de um somatório de experiências alimentadas pelos mesmos autores cujo testemunho, mesmo entendimento, contestam categoricamente. Sua bolsa de estudos é considerada 'necessária' e indiscutivelmente insubstituível. Além disso, o antropólogo de gabinete despeja seu ressentimento e afirma ser o árbitro da veracidade dos fatos. 'Temos que corrigir o que eles veem mal', garante Jean-Nicholas Demeunier de todos os viajantes. E se a questão da confiança se estende a outros setores da pesquisa naturalista desde a revolução científica (Carey 1997), é no estudo do homem, do caráter de seus costumes, que essas considerações são realizadas, em sua maior intensidade:

 

Leva tempo, pesquisa, discernimento, uma mente observadora, constância e teimosia para julgar as maneiras, leis e costumes das nações, e como eles uniriam todas essas qualidades? (Demeunier 1785, t. I, p. IX)

 

Toda uma economia de curiosidade legítima é decepcionada. Falhando em compreender o espírito das cerimônias e costumes dos povos selvagens, os mesmos viajantes 'transmitiram-nos descrições bizarras que divertem a curiosidade ociosa do vulgo, mas que não fornecem nenhuma instrução útil à mente do filósofo' (Degérando 1883, pág. 159). Certamente, reconhece Volney, eles formam uma 'classe essencialmente questionadora'. Esta é a vantagem deles. 'A arte de questionar é a arte de aprender.' No entanto, acrescenta restritivamente, “é preciso já ter uma ideia dos objetos para os quais as questões tendem”. Raciocinando por analogia, as crianças também são “grandes questionadoras; e por serem ignorantes, suas perguntas são mal colocadas ou mal direcionadas” (Volney 1989, p. 663). A divergência é tanto mais profunda aqui quanto é pronunciada por um investigador vigilante, um grande viajante. Forster também condenará a 'caça aos fatos ao ponto do absurdo', onde a jornada enciclopédica da tradição lineana foi, no entanto, realizada.

O negativo revela o arquétipo do viajante apressado, superficial, incapaz de concentrar sua atenção, rápido para decidir sem nuances sobre os assuntos mais delicados, desprendido no espírito de sistema na abordagem dos fenómenos. O viajante está finalmente 'apaixonado'. No entanto, a verdade de uma relação com outros homens cujas maneiras não conhecemos depende do autocontrole, de um olhar distante. As recomendações logo afirmarão que impressões muito vivas, repulsa, espanto, susto são fontes de ilusão: “O etnógrafo dotado de talento e bom gosto permanece calmo diante dos esplendores das descobertas; ele não permite que seu espírito viaje. Quando a imaginação é acesa, é raro a pintura ser fiel” (Deschamps 1857-1859, p. XIV). Em suma, o erro é primeiro, a observação exata procede sempre de uma reflexão colocada e, portanto, posterior ao fato. Rousseau indica isso em conexão com o mito dos gigantes: um homem selvagem solitário encontra seus congéneres? Ele tem medo deles, os vê maiores do que são. Com o tempo e a experiência, o gigante é reconduzido às suas próprias dimensões ou à sua verdade humana. E assim o conhecimento viaja: a paixão “fascina nossos olhos”, adverte Rousseau (1974, p. 98). Além disso, “a primeira ideia que nos oferece não é a da verdade”. Por meio dessa ficção, Rousseau apenas mostrou que a primeira linguagem era figurativa e poética, portanto concedida aos transportes da imaginação. Mas o viajante autossuficiente não estava reduzido à mesma condição do selvagem aterrorizado com sua própria imagem?

Reproduzida por viajantes de Pigafetta a John Byron e geralmente negada pelos naturalistas, a fábula dos gigantes 'patagônicos', para guardar este exemplo, parecia atestar a atração irresistível do maravilhoso e do exótico, apesar das exigências contrárias da Razão. Isso parecia provar o caráter constante e uniforme dos afetos individuais, além do tempo, do lugar e das circunstâncias. Conforme descrito, comentou Buffon (1971, p. 308), o volume corporal dos gigantes seria oito vezes maior que o de um homem comum! Se existissem, acrescentou de Pauw (1770, t. I, p. 326), indivíduos vivos ou esqueletos teriam chegado à Europa: “Este argumento é irrespondível para pessoas razoáveis. »

 

O exemplo é atual e, além disso, conheceu reviravoltas (Boon 1980, p. 81 e segs.). Ele se destaca para o historiador por outros motivos. Em particular, vemos que por meio dessa troca crítica, a credibilidade dos viajantes e, portanto, o progresso do conhecimento são constantemente questionados. A retidão de julgamento comanda outras práticas. No absoluto, a melhor forma de compreender os selvagens seria, nas palavras do filósofo Degérando (1883, p. 159), 'tornar-se de alguma forma como um deles'. Esta frase, que é um tanto única no corpus das instruções, sofre de irrealismo e não foi retomada por muito tempo.

 

A equação do bom gosto e da verdade atrai outros comentários, clássicos da arte apodêmica. O viajante é primeiro convidado a deixar de lado seus preconceitos de homem civilizado: “Desconfia-se da primeira impressão causada por um costume estrangeiro; porque refletindo sobre aqueles que tratamos antes de tudo como extravagantes e loucos, somos mais moderados” (Demeunier 1785, t. I, p. VIII). Em sua Carta a um jovem naturalista que parte para uma volta ao mundo, René-Primevère Lesson também adverte seu interlocutor:

 

Que uma sátira mordaz nunca suje sua pena. O primeiro dever do historiador viajante é a verdade imparcial. Ele deve tratar com indulgência modos que não são seus, e que esses preconceitos muitas vezes o fazem considerar ridículos, para dizer o mínimo. (Lição, 1826, p. 104)

 

Tal liminar será executado através do século positivo. Ainda em 1875, Armand de Quatrefages escreveu a parte antropológica das Instruções Gerais da Sociedade de Geografia de Paris, lembrando que, custe o que custar, o europeu deve despojar-se das certezas da sua educação 'sob pena de ver mal e de cometer muitos erros julgamentos'. O respeito pelos hábitos mais chocantes inspira a confiança dos informantes .

Em comparação com a visão antecipada de Degérando do que se tornaria 'observação participante', as falas de Lesson ou Quatrefages apresentam um 'perfil baixo'. Eles ganham em realismo com o contato o que perdem em empatia. Mas se suas soluções divergem, a atitude recomendada responde ao mesmo problema no terreno. O viajante, diz Fernand Delisle ([1889], p. 615) sobre as práticas religiosas, 'deve fazer uma varredura em sua mente e, assim, colocar-se em posição de compreender plenamente o que está acontecendo ao seu redor'. Degérando favorece a imersão de um viajante filosófico na comunidade selvagem, os autores de manuais valorizam sua retrospectiva. Em um caso, um se rende ao outro; no segundo caso, nos afastamos de nós mesmos. Mas é sempre importante desafiar a independência do observador. O argumento é simples, banalizado: quando obedece às suas inclinações, este se mostra capaz de comentários incisivos como as mais planas repetições de coisas conhecidas. Sem referências, ele ignora as exigências da ciência. Em breve, os guias gerais que preparam a exploração serão considerados insuficientes. A evolução das instruções etnológicas para a forma concisa do memento e do questionário especializado confirma as tendências centralizadoras e sistemáticas das sociedades eruditas dedicadas ao estudo do homem.

A manobra dos filósofos

 

A partir de finais do século XVIII, a colaboração do viajante era adquirida à custa da sua tutela. Enquanto a recomendação deixa livre acesso à iniciativa do observador, o questionário direciona sua abordagem e prioriza antecipadamente as classes de objetos oferecidos para seu estudo. Por promover a exaustividade sem levar em conta a coleta de singularidades, o questionário será o preferido das instituições. Como disse Charles Letourneau , prefaciando um desses muitos guias etnográficos em 1883:

 

Graças a este auxiliar de memória, a observação poderá ser seguida, metódica, completa, e não veremos mais, o que até agora tem sido tão frequente, exploradores atravessando as regiões menos conhecidas, quase sem se preocupar com a indústria, costumes, organização, religião dos povos entre os quais viajam. (Letourneau 1883, p. 579)

 

O argumento, deve-se notar, é em grande parte retórico. Interessados ​​mais nos costumes do que na descrição física das raças, os etnógrafos lamentavam que se tivesse dado demasiada atenção à zoologia em detrimento da vida humana. Eles exigiam sua parcela de atenção. Anatomistas e médicos, por outro lado, lamentavam que viajantes inteligentes tivessem 'desperdiçado' um luxo de ilustrações relativas a trajes, armas, ornamentos, habitações, etc., ao 'descuidar inteiramente' do ser, sem o qual nenhum desses objetos faria sentido. (ver Lawrence 1819, pp. 121-122). De ambos os pontos de vista, a expectativa é frustrada. As especificações dos estudiosos sacrificam cada vez mais a especialização, o centralismo acadêmico e o internacionalismo da pesquisa. Por empréstimo, plágio ou convergência de objetivos, a lista de desideratos tende à uniformidade. O questionário de Florença sobre a psicologia comparada dos povos de 1873 foi, por exemplo, adaptado ao capítulo etnológico das instruções para viajantes compilados por Arturo Issel em 1881 (Giglioli, Zanetti 1881, p. 348) e inspirou a encomenda do questionário de sociologia da Sociedade Antropológica de Paris de 1882-1883.

 

A ampla circulação de instrumentos apodêmicos, assim como sua padronização, responde também à emulação patriótica. Quando Topinard reproduziu em 1883 as Considerations of Degérando, como um 'documento curioso' e aliás totalmente esquecido, procurou manifestar prioridade nacional sobre as famosas Notes and Queries on Anthropology publicadas em 1874 na Inglaterra. Ele mostra, diz no preâmbulo, que “já então [em 1800] as pessoas lidavam ativamente na França com questões que a antropologia considera com razão como sua propriedade”. E, da mesma forma, os editores de Queries Respecting the Human Race argumentam que, em sua vantajosa posição colonial e comercial, a Inglaterra possui facilidades incomparáveis ​​para inventariar o mundo: '... este quadro de inquérito, a ser precedido por outras nações” (Queries 1839, p. 4).

 

As pressões que pesam sobre os viajantes aumentam à medida que as exigências dos patrocinadores e sua reconhecida capacidade de detalhar antecipadamente o que deve ser visto, registrado, relatado. No século XVIII, o estilo lacônico de muitas instruções deu rédea solta ao imprevisível

 

Construção  do conceito de “homem”

 

A a construção de um certo número de conceitos, começando pelo próprio conceito de homem, não apenas enquanto sujeito, mas enquanto objecto do saber; abordagem totalmente inédita, já que consiste em introduzir dualidade característica das ciências exatas (o sujeito observante e o objeto observado) no coração do próprio homem. Tudo isto irá tomar sua devida importância com o trabalho de campo onde emerge o observador enquanto sujeito e o observado em quanto objecto,

O conceito de homem tal como é utilizado no ’’século das luzes” permanece ainda muito abstrato, isto é, rigorosamente filosófico. Estamos na impossibilidade de imaginar o que consideramos hoje como as próprias condições epistemológicas da pesquisa antropológica. De fato, para esta, o objeto de observação não é o ’’homem”, e sim indivíduos que pertencem a uma época e a uma cultura, e o sujeito que observa não é de forma alguma o sujeito da antropologia filosófica, e sim um outro indivíduo que pertence ele próprio a uma época e a uma cultura.

 

Nascem as Ciências Sociais

Se constitui um saber que não é apenas de reflexão, mas sim de observação, isto é,  um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser considerado na sua existência concreta, envolvida nas determinações de seu organismo, de suas relações de produção, de sua linguagem, de suas instituições, de seus comportamentos. Assim começa a constituição dessa positividade de um saber empírico (e não mais transcendental) sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e fala (lingüística).

A Alteridade cultural

 

A problemática essencial é a da diferença cultural. Coloca-se pela primeira vez no século XVIII a questão da relação ao impensado, bem como a dos possíveis processos de reapropriação dos nossos condicionamentos fisiológicos, das nossas relações de produção, dos nossos sistema de organização social. Assim, inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constituição da idéia de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais reflexões sobre os limites do saber, assim como sobre as relações de sentido e poder (que anunciam o fim da metafísica) eram inimagináveis antes. A sociedade do século XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da consciência européia. Parte de suas elites busca suas referências em um confronto com o distante.

Método indutivo

 

O método de observação e análise da antropologia nascente é o método indutivo. Os grupos sociais (que começam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados como sistemas ’’naturais” que devem ser estudados empiricamente, a partir da observação de factos, a fim de extrair princípios gerais, que hoje chamaríamos de leis.

 

Esse naturalismo, que consiste numa emancipação definitiva em relação ao pensamento filosófico, impõe-se em especial na Inglaterra, com Adam Smith e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo título completo é: ’’Tratado sobre a natureza Humana: tentativa de introdução de um método experimental de raciocínio para o estudo de assuntos de moral”. Os filósofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas que procurarão fundar, no século XVIII, uma moral natural”, um ” direito natural”, ou ainda uma ” religião natural”.

Société des observateurs de l'homme

Foram os estudiosos do Iluminismo tardio da Société des observateurs de l'homme, associação fundada em Paris em 1799, os primeiros a lançar um programa de pesquisa que continha alguns dos pontos fundamentais da antropologia que se desenvolveria mais tarde. A Sociedade dos Observadores do Homem foi fundada por um grupo de estudiosos, artistas e cientistas com o objetivo de promover pesquisas sobre instituições sociais, políticas e morais, bem como sobre as línguas e artes de diferentes povos. Os “vigilantes do homem”, como se autodenominavam, eram os herdeiros do universalismo e do racionalismo iluminista e os seus inspiradores foram os mestres da Enciclopédie Française: Diderot, D'Alembert, Rousseau... Conceberam um plano de investigação que nunca foi executado (Napoleão mandou fechar a Sociedade em 1805 por considerá-la «inútil»).

A Societè constitui contudo a primeira tentativa real de pensar a uma ciência da raça humana baseada na observação directa e no estudo comparativo das instituições e costumes dos povos da Terra, e não mais na especulação filosófica. Estes “observadores” foram os primeiros a compreender seriamente que para estudar o género humano do ponto de vista científico era necessário viajar, ou seja, entrar em contacto direto com povos que viviam longe da Europa, ideia já expressa indiretamente pelo filósofo Jean-Jacques Rousseau quando escreveu: «O grande defeito dos europeus é filosofar sempre sobre a origem das coisas a partir do que acontece à sua volta».

Fundação

A Société des Observateurs de l’Homme nasceu na noite de 24 de agosto,

1800, quando ofereceu a um ilustre grupo de cientistas e exploradores um brinde “ao progresso da antropologia”: «Que um dia a nossa sociedade seja homenageada pelas suas úteis pesquisas e pelos seus ilustres correspondentes!» E, de facto, a primeira sociedade antropológica do mundo que nos manifesta  os desenvolvimentos subsequentes no pensamento antropológico do século XIX.

A Sociedade foi fundada no final de 1799 por Louis François Jauffret (1770-1850), uma pequena figura literária francesa cuja inclinação romântica, 

Os Participantes

                                Aqui está a lista completa dos membros

O problema das raças

Mas se o século 19 pensava mais em termos de “raça”, a própria “raça” ainda precisava ser explicada. Aqui, os impulsos diversificados e anti-igualitários se chocaram de frente com a ortodoxia religiosa ressurgente e a unidade bíblica da humanidade. O conservador religioso poderia aceitar a “raça” como uma força causal na história; mas ao mesmo tempo era forçado a explicá-lo como o produto de processos ambientais históricos. Todas as raças humanas tiveram que ser reduzidas a uma única raiz Adâmica.

Poligenismo

Os mais ousadamente heterodoxos defensores da 'raça' abraçaram uma doutrina que mais tarde veio a ser chamada de 'poligenismo': as diferenças físicas entre os homens eram grandes demais para serem explicadas como o produto do ambiente dentro do limitado período bíblico da existência do homem na terra ou para ser englobado em uma única espécie; portanto, Deus deve ter criado outras espécies de homem além de Adão. Prenunciado em especulações clássicas, avançado em 1655 no Prae-Adamitae de Isaac de la Peyrere, a posição poligênica foi delineada - embora em termos qualificados - por Lord Kames em seus Esboços da História do Homem em 1774, e defendida nas últimas duas décadas do século 18 por um um punhado de outros estudiosos.

Mas se teve seus precursores do século 18, o poligenismo foi mais difundido no meio social e científico mais adequado do século 19. De fato, dado o ponto de vista estático, não evolutivo e classificatório da anatomia comparativa de Cuvier, o poligenismo seguiu facilmente para aqueles suficientemente desinibidos pela ortodoxia religiosa. Em um nível, o debate entre monogenistas e poligenistas pode ser interpretado como um entre “protuberantes” e “divisores” do gênero homo. Ambos tomaram a definição de espécie de Cuvier como seu ponto de partida, e se a própria ortodoxia de Cuvier o impediu de abraçar o poligenismo, pode-se argumentar que, em aspectos importantes, o ponto de vista anatômico comparativo que ele desenvolveu era compatível com o poligenismo. Como Cuvier, os poligênicos colocaram limites estreitos na eficácia das forças ambientais na modificação das formas vivas; como Cuvier, alguns deles buscaram basear sua classificação na medição precisa da estrutura esquelética e, especialmente, craniana; como Cuvier, todos eles viam as diferenças cranianas como os correlatos das diferenças mentais que determinavam o desempenho racial.37

Em 1859, o poligenismo, apesar de sua heterodoxia, era talvez a corrente dominante no pensamento antropológico físico na França, Inglaterra e Estados Unidos. Se nunca foi capaz de reivindicar a lealdade de figuras importantes como Blumenbach e Prichard, ainda assim definiu amplamente o escopo de seu pensamento antropológico, que foi uma tentativa longa e frequentemente defensiva de provar a unidade da humanidade. Nesse sentido, o poligenismo - ou, mais amplamente, o problema da raça - era uma preocupação central da antropologia pré-darwiniana.

Estruturado pelas categorias de anatomia comparativa pré-evolutiva e ortodoxia bíblica, o debate entre monogenistas e poligenistas não sobreviveu por muito tempo em um ambiente darwiniano. Mas a antropologia não passou pelas águas turvas do pensamento racial pré-darwiniano sem passar por mudanças profundas do caráter mais profundo. Na França, essas mudanças foram tais que Paul Broca, herdeiro das tradições francesa e americana do pensamento poligênico e fundador da Sociétè d’Anthropologie de Paris>

não podiam mais aceitar a Socié té des Observateurs de Γ Homme em seus próprios termos ecléticos “históricos naturais”. Em 1859, a “antropologia” na França havia sido amplamente remodelada ao longo de linhas anatômicas comparativas: era em primeira instância antropologia física e, acima de tudo, craniologia.

Evolucionismo

Mas, em 1860, o impacto do pensamento racial foi ainda mais longe, afetando também a tradição da etnologia evolucionista. Por serem semelhantes em método e teoria aos escritores do final do século 18, os etnólogos vitorianos diferiam em aspectos importantes. Na época em que a expansão europeia entrou em seu período culminante no final do século 19, o evolucionismo social havia sido amplamente expurgado de seus elementos primitivistas. Como disse Sir John Lubbock: “o verdadeiro selvagem não é livre nem nobre; ele é um escravo de suas próprias necessidades, de suas próprias paixões; . . . ignorante em agricultura, vivendo da caça e imprudente no sucesso, a fome sempre o encara de frente e muitas vezes o leva à terrível alternativa do canibalismo ou da morte ”. Para Degérando, a extensão da capacidade do selvagem de conceber ideias abstratas era uma questão em aberto. Para Herbert Spencer, a questão não estava mais em dúvida: “Condicionado como está, o selvagem carece de ideias abstratas”. A mente selvagem foi “investigada” e considerada deficiente; as diferenças mentais humanas eram agora concebidas em termos raciais. Se os evolucionistas vitorianos ainda propunham uma escala mais ou menos unilinear de evolução social, não se presumia mais que todos os homens a ascenderiam ao topo. Os tasmanianos de Péron haviam desaparecido da face da terra, e muitos escritores previram um destino semelhante para outras 'raças selvagens'. Como disse o sociólogo americano spenceriano Franklin Giddings: “Não há evidências de que os agora extintos tasmanianos tenham a capacidade de ascensão. Eles foram exterminados tão facilmente que evidentemente não tinham poder de resistência nem adaptabilidade ”. Mesmo E. B. Tylor, cuja obra tem sido interpretada como um esforço para reabilitar o “método comparativo” do século XVIII após meio século de “período de dúvida”, diferia em aspectos importantes de Degérando. Para ambos, a ciência da antropologia era 'essencialmente uma ciência reformadora'. Mas o objetivo de sua reforma não era o mesmo. Para Degérando foi a elevação dos povos selvagens; para Tylor, foi a erradicação dos últimos vestígios de selvageria e barbárie da sociedade civilizada europeia.

Programa da Sociedade

Como sugeria o seu lema (“conhece-te a ti mesmo”), a Sociedade era animada por um espírito semelhante. Apelou ao “profundo metafísico e ao médico praticante, ao historiador e ao viajante, aquele que estuda o espírito das línguas, e aquele que guia e protege os primeiros desenvolvimentos da infância” a libertarem-se de “toda paixão, todo preconceito e acima de tudo, de todo espírito de sistema” e participar de um estudo comparativo do homem em todas as diferentes cenas de sua vida”.

Jauffret comunica vários projetos a serem realizados: 'Topografia antropológica da França',

Antropografia de diferentes regiões (do mundo): 'vários alimentos afetam a economia animal de maneira diferente... os povos pescadores devem oferecer particularidades que os distinguem daqueles que não vivem apenas de sua caça”. (Esta iniciativa vem de Jussieu.)

“Dicionário comparativo de todas as línguas conhecidas”. Assistência prestada à publicação do “Dicionário de Sinais”, realizado pelo Abade Sicard para correspondência com surdos-mudos, mas “meio útil” de correspondência com selvagens. Finalmente, um encontro num “Museu especial” de todos os objetos de comparação capazes de fornecer informações sobre as variedades da espécie humana e sua moral. A ideia partiu de Jauffret e foi parcialmente concretizada (em 1803, a Sociedade recebeu diversas doações). «Que esta Sociedade”, concluiu o seu Secretário, “cumpra os destinos gloriosos que parecem aguardá-la e mereça que um dia se diga dela que a sua fundação foi útil tanto para o avanço da Ciência como para a felicidade dos Homens.. »

Tema do fundo da Sociedade

O tema, como emerge de uma série de palestras duas vezes por semana oferecida por Jauffret no inverno de 1803, era “A História Natural do Homem”: “as diferentes raças do gênero humano, a origem e as migrações dos povos. . . [e] os personagens físicos e morais que os distinguem, ”ilustrados,“ tão frequentemente quanto possível ”, com“ suas armas, suas ferramentas, suas roupas e outros produtos de sua indústria ”.

Que os Observadores seguiam a tradição da ciência social newtoniana e da escola psicológica materialista de Condillac, Cabanis e Destutt de Tracy, a quem Napoleão estigmatizaria como “ideólogos”, é evidente tanto pelos nomes dos seus membros como pelo conteúdo relatado das suas comunicações públicas. Encontros. A antropologia deles era ainda indiferenciada e de âmbito mais amplo. Incluía observações sobre governo, religião, língua, costumes, cultura material e psicologia social e individual. Os Observadores estavam apenas a começar a interessar-se pela “raça”, mas a tradição da “história natural” que alimentou a “etnologia” do século XIX é claramente evidente. O tema, como o de uma série de palestras duas vezes por semana oferecidas por Jauffret no inverno de 1803, era “A História Natural do Homem”: “as diferentes raças do gênero humano, a origem e as migrações dos povos. . . [e] os caracteres físicos e morais que os distinguem”, ilustrados, “tão frequentemente quanto possível”, com “as suas armas, as suas ferramentas, as suas roupas e outros produtos da sua indústria”.

 

A Survey do  capitão Nicholas Baudin (1754-1803)

Embora o subsequente desaparecimento da Société sugira um destino malfadado, os seus primeiros meses foram favorecidos por uma conjunção de acontecimentos quase providencial. No início de março de 1800, o capitão Nicholas Baudin (1754-1803) apresentou ao Institut national, a instituição focal da ciência francesa, um plano para uma expedição de descoberta científica e geográfica. Conforme revisado por um comitê do Institut e aprovado por Napoleão, o objetivo principal era explorar a costa sudoeste da Nova Holanda para resolver de uma vez por todas a questão ainda debatida da unidade do continente australiano; mas também foi prevista toda uma série de investigações científicas, incluindo estudos sobre o homem australiano. Não surpreende que o comité de planeamento tenha recorrido à sociedade antropológica à qual vários deles pertenciam para obter ajuda no planeamento mais detalhado deste aspecto do trabalho da expedição. Quando questionado se a Société prepararia instruções para estudar os aspectos “físicos, intelectuais e morais” do homem selvagem, Louis Jauffret respondeu com exortações extasiadas. Os Observadores, aproveitando esta magnífica “ocasião para aperfeiçoar a antropologia”, produziram duas memórias para orientar as atividades antropológicas da expedição: uma do cidadão Degérando, “Considerações sobre os métodos a seguir na observação de povos selvagens”; um do cidadão Cuvier, “Uma nota instrutiva sobre as pesquisas a serem realizadas em relação às diferenças anatômicas entre as diversas raças do homem”. Apesar deste início auspicioso, a boa sorte logo abandonou tanto a Société quanto a expedição à Austrália. Em 19 de outubro de 1800, os navios de Baudin zarparam para os antípodas – e para a decepção. Embora fosse um capitão competente, Baudin encontrava-se em constante conflito com o contingente invulgarmente grande de cientistas. Quando os navios chegaram à Ile de France (Maurício), no Oceano Índico, houve tanta dissensão que vários cientistas desembarcaram e quarenta e seis marinheiros desertaram. Mas isso não representava nada em comparação com as dificuldades que estavam por vir. Apesar do equipamento cuidadoso e da preparação de um livro de memórias sobre dieta por um membro do Institut, os suprimentos escassearam e os navios foram assolados pelo escorbuto e pela disenteria. Como muitos dos seus homens, Baudin não viveu para ver a França novamente.

A expedição falhou em grande parte nos seus objectivos geográficos e políticos e, embora as suas realizações científicas fossem consideráveis, as suas importantes colecções antropológicas acabaram por ser perdidas para a ciência. Grande parte deles foi destinada ao proposto museu da Société. Mas quando a expedição regressou em 1804, a Société estava morta ou moribunda, e estes materiais, juntamente com outros que tinham sido expressamente recolhidos para ela, passaram a fazer parte da colecção da Imperatriz Josefina. Parcialmente destruída em 1814, a coleção foi vendida e dispersada em 1829.

Após o seu início brilhante, a Société des Observateurs de l'Homme desapareceu rapidamente do cenário histórico. Embora pareça ter se dividido em relação à proclamação do Império, Jauffret, em junho de 1804, pediu permissão a Napoleão para adicionar o adjetivo impériale ao nome da Société. Tendo em conta o antagonismo político que se desenvolveu entre ele e os ideólogos à medida que se afastava cada vez mais do liberalismo revolucionário e anticlerical que eles sintetizavam, podemos presumir que ele respondeu desfavoravelmente. De qualquer forma, a Société não durou aquele ano, ao final do qual Jauffret, em dificuldades financeiras, foi forçado a deixar Paris. Uma explicação adicional sobre o desaparecimento foi oferecida em 1869 por Paul Broca, então reitor de antropologia francesa. . Quando as guerras napoleónicas a privaram das contribuições antropológicas dos viajantes, a Société voltou-se para questões de etnologia histórica e psicológica: “A história natural foi negligenciada pela filosofia, política e filantropia”.

Após cerca de três anos de existência definhante, foi absorvido pela Société Philanthropique, deixando na história da ciência apenas vestígios tênues de sua existência. . . . Os naturalistas que a fundaram estavam ansiosos demais para se unir às escolas de filosofia pura e de belas letras. A antropologia ainda não tinha bases suficientemente sólidas; ainda não era suficientemente forte para reunir-se e utilizar em seu próprio benefício os poderes extrínsecos que invocara em seu auxílio.

Independentemente do que esta pequena reminiscência fossilizada possa nos dizer sobre as circunstâncias do fim da Société, é duvidoso que Broca tivesse uma compreensão adequada do seu carácter. Pelo contrário, os interesses da Société eram evidentemente amplamente “etnológicos” e os seus motivos parcialmente filantrópicos desde o início. Contudo, os comentários de Broca dizem-nos algo sobre o desenvolvimento subsequente da antropologia em França. Mas para ver este desenvolvimento no contexto, devemos olhar mais de perto para as duas memórias instrucionais da Société des Observateurs de L’Homme

A medição da força selvagem

O autodenominado “antropólogo” que cumpriria as instruções de Cuvier e Degérando era um jovem estudante de medicina chamado François Péron (1775-1810). Péron trabalhou em zoologia e anatomia comparada com Cuvier no Museum d’histoire naturelle; e quando a moça que amava o rejeitou, ele abandonou os estudos em 1800 e resolveu alistar-se na expedição Baudin, então montada em Le Havre. Para reforçar a sua candidatura ao quadro científico da expedição, Péron distribuiu um artigo com o título bastante incisivo “Observações sobre a antropologia, ou a história natural do homem, a necessidade de se ocupar com o avanço desta ciência, e a importância de admitir ao frota do Capitão Baudin, um ou mais naturalistas especialmente encarregados de fazer pesquisas para esse fim.” Quando surgiu uma vaga de última hora, Péron, com o apoio de Cuvier, foi nomeado para a expedição como zoologista.

As “Observações” de Péron são interessantes porque apresentam uma hipótese que governaria o seu trabalho de campo tanto quanto as memórias da Société. Seu interesse específico estava nos factores ambientais, culturais e físicos que afetam as doenças características das regiões polares. Mas, num sentido mais amplo, as suas suposições podem ser consideradas na linha de Rousseau. Tanto os viajantes como os médicos documentaram o facto “incontestável” de que os selvagens eram geralmente fisicamente superiores aos europeus civilizados. Mas com esta superioridade veio uma “insensibilidade” física e moral que se expressou na capacidade do selvagem de suportar a dor, e. consumir com prazer impaciente os “membros ainda palpitantes” de suas infelizes vítimas humanas. Será que, perguntou Péron, “a perfeição moral deve estar na proporção inversa da perfeição física? ”

Munido dessa hipótese, das duas memórias instrutivas e de um zelo ilimitado pelo avanço da ciência, Péron partiu para a Austrália. Infelizmente, a deserção e a morte colocaram sobre ele todo o fardo do trabalho zoológico da expedição, e as suas investigações antropológicas aparentemente sofreram como resultado. Embora Péron tenha trazido um esqueleto humano de Moçambique, não há provas na lista parcial de espécimes antropológicos sobreviventes de qualquer tentativa sistemática de cumprir as instruções de Cuvier. E se ele recolheu um conjunto considerável de artefactos e listas de palavras de várias línguas, não há indicação de que tenha seguido as instruções de Degérando de forma mais sistemática, embora o seu relato publicado da viagem seja intercalado com material etnográfico.

Péron foi muito mais sistemático ao testar as suas próprias teorias sobre a perfeição moral e física através de uma série de “Experiências sobre a força física dos povos selvagens da Terra de Diéman [Tasmânia], da Nova Holanda e dos habitantes de Timor”. Aqui, um século antes da expedição de Haddon ao Estreito de Torres, está um estudo comparativo, quantitativo e experimental das capacidades dos povos nativos. Péron sentiu que os resultados refutavam a hipótese que trouxera da França e, ao registrá-los, atacou agora aqueles “sofistas vaidosos” que idealizariam o estado de natureza e a força física do homem selvagem. Baseando-se nas pesquisas do físico Coulomb e empregando um dinamômetro inventado por Regnier, Péron sentiu que havia encontrado uma maneira de testar experimentalmente a concepção do “Nobre Selvagem”, comparando a força física medida de Tasmanianos, Australianos, Malaios de Timor, e europeus. Os tasmanianos, mais próximos do “homem anti-social”, “filhos da natureza por excelência”, representavam o degrau mais baixo da escada da civilização, um degrau abaixo dos australianos. Por falta de neoguineenses, neozelandeses e polinésios, Péron teve de saltar para os malaios no sexto degrau. Os europeus estavam, obviamente, no topo. E, de facto, a força física de cada grupo de indivíduos, medida cientificamente e registada em tabelas detalhadas para todos verem, variava em relação directa com o seu grau de civilização.

Ao interpretar os seus resultados, Péron argumentou que a exuberante abundância do seu habitat natural tornou os malaios letárgicos. Mas só a pobreza do seu estatuto social poderia explicar a fraqueza dos australianos e dos tasmanianos. Se esses “filhos deserdados da natureza” abandonassem “seus costumes ferozes e vagabundos” e se reunissem em aldeias, se “o direito de propriedade despertasse neles uma feliz emulação” – então os recursos efetivos de seu ambiente físico se multiplicariam , seu estado social melhora e seu “temperamento torna-se mais robusto”. Nem foram estas as únicas virtudes do Estado civilizado. Comentando noutro local a surpresa demonstrada pelos tasmanianos face à virilidade sexual de um marinheiro francês, Péron levantou a hipótese de que o seu próprio desejo era periódico como o dos animais. A capacidade sustentada e o interesse dos europeus foram o produto de salas acolhedoras, boas condições de vida. bebidas espirituosas, relações sociais mais complexas e lazer. Abandonando a tradição ambivalente de Rousseau, Péron parece ter abraçado o evolucionismo social incondicionalmente optimista de Degérando; mas também há evidências em seu trabalho de uma tradição emergente que pode estar associada a Cuvier. Ao contrário de Degérando, Péron não era indiferente à raça. Ele se refere frequentemente às características físicas peculiares de diferentes raças humanas e, de fato, preparou um livro de memórias sobre as peculiaridades genitais da mulher hotentote, que ele investigou em sua viagem de retorno à França. Na verdade, pode-se argumentar que há no segundo volume de Péron a sugestão de uma posição que ia além daquela que o próprio Cuvier foi capaz de aceitar: o poligenismo racial, ou a suposição de que as diferenças raciais humanas eram aborígines e datavam da primeira aparição do homem na terra . Em um livro de memórias “Sobre certos fenômenos da zoologia das regiões meridionais aplicáveis ​​à história física do globo e à da espécie humana”, Péron especulou sobre as teorias geológicas então conflitantes do Vulcanismo e do Netunismo e sobre a antiguidade da separação entre Tasmânia e Austrália. Apesar da proximidade geográfica, Péron sentia que havia uma “diferença absoluta nas raças que povoam cada uma destas terras”. Mas, devido à sua fraqueza física, eles não eram nada semelhantes - nem “nos seus costumes, nos seus usos, nas suas artes rudes, nem nos seus instrumentos de caça e pesca, nas suas habitações, nas suas pirogas, nas suas armas, nem na sua constituição física geral”. , a forma do crânio, as proporções da gordura, etc.” Péron utilizou estas diferenças “raciais”, juntamente com dados geológicos e zoológicos, para apoiar a visão de que a Tasmânia e a Austrália estavam geograficamente separadas desde “antes da época da população destes países”. Mas, tendo em conta o título das suas memórias e o seu comentário ainda não elaborado de que estes factos ofereciam novas provas “da imperfeição dos nossos sistemas nas comunicações dos povos, nas suas transmigrações e na influência do clima sobre o homem”, pareceria Percebi que Péron nutria a ideia então radical - mas não inédita - de que estas duas raças absolutamente diferentes, cujas diferenças não eram facilmente explicadas nem em termos de migração nem de clima, eram de facto originalmente distintas.

.

Degérando e a observação do homem selvagem

O cidadão Degérando, ou Joseph Marie de Gérando (1772-1842), como era conhecido em tempos menos igualitários, foi um daqueles ideólogos mais flexíveis e ecléticos que conseguiram se ajustar à atmosfera cada vez mais conservadora da era napoleônica. Ele encontrou sua vocação em 1799, quando os ideólogos, de seu reduto na Classe des Sciences morales et politiques do Institut, propuseram um concurso sobre a “influência dos símbolos na formação de ideias”. Degérando, que percorreu um caminho tortuoso desde uma origem monarquista até um lugar nas fileiras do exército da República, apresentou o livro de memórias premiado. Chamado para Paris, logo se tornou membro associado da Classe. . . morales, entrou ao serviço do governo e iniciou uma longa e ativa carreira como filósofo, publicitário, filantropo e Observateur de l’Homme.

As “Considerações sobre os métodos a seguir na observação dos povos selvagens ” é um documento fascinante. Degérando, neste ponto completamente dentro da tradição idéologiste, sustentava que a “ciência do homem” partilhava o método das ciências naturais: começando com uma observação cuidadosa, procedia-se à análise comparativa, e daí às “leis gerais” do desenvolvimento humano. e comportamento. E entre os homens, os selvagens eram especialmente adequados para tal estudo, uma vez que o homem num estado mais primitivo estava sujeito a menos influências modificadoras e era assim mais fácil “penetrar na natureza e determinar as suas leis essenciais”.

Infelizmente, a ciência do homem até agora naufragou devido à inadequação das observações passadas. Seja pela brevidade das visitas ou pelos caprichos da atenção, a maioria dos relatos existentes sobre selvagens eram extremamente assistemáticos e incompletos. Mas pior do que isto, o seu conteúdo era de validade incerta. Frequentemente julgando mal uma nação por um único indivíduo, ou com base numa recepção inicialmente hostil, os viajantes anteriores foram culpados de todo o tipo de “hipóteses duvidosas”, que muitas vezes resultaram da sua tendência para julgar costumes selvagens por analogia com os seus próprios.

«Assim, após certas ações, eles atribuem a. . . [selvagens] certas opiniões, certas necessidades, porque em nós. . . [essas ações] normalmente resultam dessas necessidades ou opiniões. Eles fazem o selvagem raciocinar à nossa maneira, quando o próprio selvagem não explicou seu raciocínio. É por isso que muitas vezes pronunciam sentenças tão severas contra uma nação, que a acusam de crueldade, de roubo, de devassidão, de ateísmo».

Apreender a linguagem do nativo

 O pior de tudo foi o fracasso quase universal em aprender a língua selvagem. De que outra forma alguém poderia apreciar a sua “maneira de ver e sentir”, ou registar “os traços mais secretos e essenciais do seu carácter”, ou interpretar as suas tradições para obter informações sobre o povoamento da Terra e as “diversas causas para o estado actual da Terra?” quais nações são encontradas? ”. Mas o problema da linguagem era crucial; a melhor maneira de compreender os selvagens era tornar-se “como um entre eles”, e somente aprendendo a sua língua alguém poderia tornar-se seu “concidadão”. Para fazer isso, partia-se do zero — ou da tabula rasa — e seguia-se uma progressão ordenada baseada nos pressupostos da psicologia dos ideólogos. Visto que a linguagem articulada do selvagem era sem dúvida composta de símbolos tão arbitrários e convencionais quanto os nossos”, deve-se começar, como acontece com as crianças, “com a linguagem da ação”, aprendendo e registrando primeiro o indicativo, depois o descritivo e, finalmente, o gestos metafóricos. Contato assim estabelecido, o observador usou gestos para aprender as palavras da linguagem articulada na ordem da “geração de ideias”: dos objetos sensíveis às qualidades sensíveis (por exemplo, cores) às ações sensíveis (por exemplo, caminhar), e só então para termos de relacionamento (por exemplo, advérbios). Das associações simples avançava-se para as ideias complexas e daí para as ideias abstratas, das quais nem mesmo os “selvagens podem ser totalmente privados”. Começando por aquelas baseadas nas comparações menos repetidas, progredimos através de ideias mais complexas até ao cume da epistemologia associacionista: a ideia reflexiva, sempre evitando atribuir aos selvagens “os raciocínios dos nossos filósofos”.

Sociedades humanas

Mesmo antes de dominar a linguagem selvagem, poder-se-ia começar a observar o indivíduo selvagem e a sua sociedade. Estes também deveriam ser ordenados dentro de uma estrutura ideológica semelhante. De perspectiva materialista e ambientalista, os ideólogos viam as sociedades humanas como sistemas de indivíduos atômicos relacionados pelas leis newtonianas de atração social; começava-se, portanto, com uma descrição do ambiente físico e, em seguida, das características físicas de um indivíduo típico: sua força corporal, movimentos, saúde, longevidade, etc. Do corpo avançava-se para a mente através da ponte da sensação, que Degérando aparentemente pretendia explorar por meio de uma série de testes psicofísicos o aparato sensorial do selvagem. Da sensação, o observador seguiu mais uma vez a mesma progressão associacionista através de ideias simples e complexas até chegar às “faculdades” do selvagem, ainda em sequência genética: imaginação, atenção, memória, previsão e (talvez) reflexão. Só assim se poderia determinar a posição precisa “que este indivíduo ocupa na escala da perfeição intelectual”.

Depois de definir assim os elementos individuais - tendo em conta a variação devida à idade, ao sexo ou às circunstâncias individuais - observávamos-nos na interacção social.

O estado da mulher

No nível da “sociedade doméstica” deve-se observar “o estado da mulher” (o sexo conservava mesmo entre os selvagens “algo do seu doce e secreto império”?); “modéstia” (havia “tal grau de brutalização entre alguns selvagens que as mulheres... andavam [nuas] na frente dos homens sem corar”?); “amor” (fixou-se “num só indivíduo”?); “casamento” (que só existiria “numa sociedade já um tanto desenvolvida”); e “a educação moral das crianças/’

A “sociedade geral” que Degérando via como uma “agregação de famílias” deveria então ser observada nos seus quatro grandes aspectos: político, civil, económico e ético-religioso. Houve agregações intermediárias parciais ou distinções de classificação? Embora um povo de pastores ou caçador não tivesse, sem dúvida, ideia da propriedade da terra, será que tinha ideia da propriedade das ferramentas ou dos produtos do seu trabalho? Até que ponto foram sensíveis aos afetos que unem os homens em grupos maiores? Eles amavam a liberdade? Consideravam eles um culto exterior como um elo necessário com um Ser Supremo? Estariam os seus sacerdotes interessados ​​apenas em “manter a sua nação na ignorância e na barbárie”? Finalmente, e mais difíceis de penetrar, estavam as “tradições” dos selvagens, que poderiam “lançar uma luz preciosa sobre a misteriosa história destas nações”. E como ponto culminante de toda observação no campo, o voyageur-philosophe poderia trazer de volta à França uma família de selvagens: «Possuiríamos então no microcosmo a imagem daquela sociedade da qual eles foram levados».

O livro de memórias de Degérando é fascinante simplesmente como um resumo da antropologia do Iluminismo francês. Mas é de muito mais do que interesse antiquário para a história da antropologia. Apesar de todo o seu rigor empírico, as suas instruções tomam como certa uma concepção da natureza da mudança social e do método do seu estudo adequado que se tornaria parte da herança de pressupostos da etnologia evolucionista social do final do século XIX.

Para Degérando, as linhas gerais de todas as mudanças sociais foram dadas antecipadamente. A natureza humana foi fundamentalmente a mesma em todos os tempos e lugares, e o seu desenvolvimento foi governado por leis naturais: o homem desenvolveu-se desde o seu estado inicial num progresso evolutivo lento e unilinear, cuja manifestação actual mais elevada foi a sociedade da Europa Ocidental. A natureza exata dessas leis e o curso exato do desenvolvimento histórico podem ser objeto de investigação empírica, mas o fato de sua existência e caráter essencial terem sido presumidos antecipadamente é evidente pela maneira como a história “conjectural” inicial do homem deveria ser desenvolvida. reconstruído: o “método comparativo”. Por alguma razão misteriosa, nem todos os grupos humanos progrediram no mesmo ritmo e, portanto, foi possível construir “uma escala exata dos vários graus de civilização e atribuir a cada um as propriedades que o caracterizam”, e assim reconstruir “ as primeiras épocas da nossa própria história.” Porquê?: porque as várias sociedades que coexistem no presente representavam as várias etapas desta sequência (que foi, portanto, de facto assumida antecipadamente). “O voyageur-philosophe que navega em direção às extremidades da terra atravessa com efeito a sequência dos tempos; ele viaja no passado; cada passo que ele dá é um século que ele salta.”  Como salientaram Eric J. Teggart e os seus alunos, estes pressupostos, enraizados na tradição clássica e elaborados pelos participantes na disputa entre Antigos e Modernos, eram difundidos no pensamento social do final do século XVIII. Transmitidas ao século XIX através do trabalho de escritores como Comte, elas se tornariam parte integrante da teorização dos etnólogos vitorianos.

Para Degérando, no entanto, estes pressupostos tinham um significado ainda mais amplo: forneciam uma ligação entre a sua ciência e a sua filantropia. A ciência delineou o curso normal do desenvolvimento humano; a filantropia, auxiliada e guiada pela ciência, elevaria o selvagem misteriosamente retardado ao nível do seu irmão europeu. Se ele não tivesse subido a escala da civilização até ao seu ponto mais alto, não haveria dúvida da sua capacidade para o fazer.

«Que propósito mais comovente do que restabelecer os nós sagrados da sociedade universal, do que reencontrar esses antigos pais separados por um longo exílio do resto da família comum, do que estender a mão pela qual eles se elevarão a uma vida mais feliz estado!»

 O comércio foi a chave para o progresso selvagem, mas o seu papel tinha uma fundamentação científica. O comércio criaria nos selvagens novas “necessidades” e novos “desejos”, e estes os levariam a estágios mais elevados.

«Sempre bem recebido, bem tratado, testemunha da nossa felicidade, da nossa riqueza, e ao mesmo tempo da nossa superioridade, talvez. . . eles nos chamarão ao seu meio para lhes mostrar o caminho que os conduzirá ao nosso estado. Que alegria! Que conquista!»

Degérando não era um relativista cultural. Tanto as suas categorias analíticas como os seus padrões avaliativos derivaram da cultura europeia, que em todos os aspectos importantes era para ele a mais alta expressão da perfeição humana já alcançada. Tal como ele sentia que os selvagens beneficiariam com a introdução da ciência e da economia europeias, ele também sentia que eles beneficiariam com a introdução do vestuário europeu.19 Mas se a sua própria civilização era inquestionavelmente superior, não era uma civilização exclusiva de qualquer etnia. . Não era apenas francês, mas europeu e, num certo sentido, era mais do que isto: era humano, e todos os humanos podiam alcançá-lo e desfrutar dele.

Conceito de raça

O que falta totalmente nas “Considerações” de Degérando é qualquer conceito de “raça”, qualquer noção de diferenças hereditárias permanentes entre os grupos da família humana. É verdade que Degérando preparava as instruções para a observação do homem nos seus aspectos “morais” ou culturais, mas não deixou, portanto, de considerar as relações entre mente e corpo, ou o efeitos de diferenças corporais individuais ou a existência de diferenças entre grupos selvagens. Mas estes grupos foram sempre “povos” ou “nações”, nunca “raças e as suas diferenças eram ambientais e não hereditárias. Nisto Degérando não era completamente representativo dos Observateurs. Mas ele talvez fosse representativo de algo mais amplo: o humanitarismo igualitário otimista e abrangente da tradição revolucionária francesa.

O Declínio do Bom Selvagem

Péron e Degérando foram ambos atormentados pelo problema do povoamento da terra, ou “a história misteriosa destas nações”. Envolvido nesta história misteriosa estava o “porquê” definitivo das diferenças culturais entre os grupos humanos. Para Degérando a questão permaneceu sem resposta. Ele apenas esperava que um estudo de suas tradições lançasse luz sobre as “causas diversas [e presumivelmente adventícias] do presente [i. e. estado atrasado e, portanto, anormal] em que as nações são encontradas.” Para Péron há um indício de uma resposta diferente. No século XIX, a resposta era cada vez mais encontrada na “raça”.

A mudança é evidente na vida de Georges Cuvier. Em 1790, o jovem Cuvier repreendeu um amigo por acreditar em “alguns viajantes estúpidos” que alegavam que o negro e o orangotango eram interférteis, e por tentar explicar as “faculdades intelectuais” com base em diferenças na estrutura cerebral. Mas em 1817, Cuvier sustentou que a civilização egípcia não tinha sido criada por “qualquer raça de negros”, mas por homens “da mesma raça que nós”, que tinham “um crânio e um cérebro igualmente grandes”, e que não ofereciam “exceção à aquela lei cruel que parece ter condenado a uma inferioridade eterna as raças de crânios deprimidos e comprimidos.” Nesse mesmo ano, ao colocar o homem à frente do Reino Animal, Cuvier descreveu o seu desenvolvimento “moral” em grande parte nos mesmos termos evolutivos sociais que Degérando. Mas concluiu com uma ressalva crucial: “Há, no entanto, também certas causas intrínsecas que parecem impedir o progresso de certas raças, mesmo nas circunstâncias [ambientais] mais favoráveis”. Na descrição das três “Variedades da Espécie Humana” que se seguiram, Cuvier sustentou que a civilização da raça mongol sempre permaneceu estacionária e que os negros nunca progrediram além da barbárie total.

Tal como surgiu no final do século XVIII, a ideia de civilização era vista como o objectivo destinado a toda a humanidade. Mas no século XIX, cada vez mais homens viam isso como uma conquista peculiar de certas “raças”. Explicar esta mudança está além do escopo deste artigo; aqui não podemos fazer mais do que especulativamente para sugerir vários contextos mais amplos. No nível da lógica das ideias, o impulso caracteristicamente “diversitário” do Romantismo tinha, como apontou A. O. Lovejoy, um importante potencial racial. No nível político geral, a mudança talvez possa ser vista como parte da reação conservadora. contra o otimismo igualitário da Revolução Francesa. Mais especificamente, foi sugerido que a ideia de raça surgiu como uma ideologia defensiva quando a escravatura e o comércio de escravos sofreram sérios ataques no final do século XVIII. Os negros parecem ter sido os últimos povos de pele escura a serem incluído na imagem do “Nobre Selvagem”, que se desenvolveu ao longo dos últimos séculos principalmente em relação aos selvagens das Américas. A sua nobreza era, na melhor das hipóteses, ténue, e a história sangrenta de São Domingos deve ter levado outros, além de Chateaubriand, a perguntar “quem defenderia agora a causa dos negros depois dos crimes que cometeram? ”

A pergunta de Chateaubriand foi um apelo à mudança de experiência. E, de facto, a outro nível, a mudança que estamos a discutir pode reflectir o impacto do desenvolvimento da experiência de contacto racial. Um certo tipo de “dados empíricos” – a visível “degradação” dos tasmanianos – parece ter ajudado a minar a crença de Péron nas virtudes da vida selvagem. Depois de 1800, quando a grande exploração e colonização da África negra ainda não tinha realmente começado, as “evidências” de tal “degradação” iriam acumular-se à medida que os portadores de uma civilização europeia em constante avanço eram empurrados corporalmente, e muitas vezes de forma sangrenta, para o restante “ selvagens” áreas do globo. Tais dados “empíricos” estão, naturalmente, notoriamente sujeitos a distorções ideológicas ou convencionais. Mas este é precisamente o ponto. No apogeu do Nobre Selvagem, no final do século XVIII, os polinésios dos diários de Cook foram transformados nos exóticos homens naturais das Viagens de Hawkesworth. No século XIX, tanto as circunstâncias do contacto racial como o quadro convencional em que o contacto era percebido mudaram. A transformação literária de Hawkesworth tornou-se cada vez mais difícil; os próprios observadores eram mais propensos a ver os selvagens como “degradados”. Enquanto isso acontecia, o Bom Selvagem, de qualquer matiz, levava uma existência cada vez mais precária na imaginação da Europa Ocidental e da América do Norte branca.

A mudança que estamos a discutir também pode ser vista como um desenvolvimento da própria ideia de civilização. No século XVIII, as noções recentemente emergentes de “progresso” e “civilização” existiam em tensão, muitas vezes numa única mente, com ideias primitivistas mais antigas que foram incorporadas na tradição do Bom Selvagem. Mas à medida que a ideia de civilização foi elaborada simultaneamente com a realidade social e material que simbolizava, esta coexistência tornou-se cada vez mais difícil. Com a expansão da civilização industrial, o crescente fosso visível entre o homem selvagem e o europeu civilizado já não era tão fácil de ser superado, nem o estado atrasado do primeiro era explicado simplesmente como “história misteriosa”. Quando as ideias de primitivismo e de progresso na civilização se separaram, a “civilização” prestou-se muito facilmente – na verdade, pareceu mesmo a alguns exigir – uma interpretação racial.

Este desenvolvimento ficou explícito já em 1803 nos escritos de Saint-Simon, que foi um elo entre o evolucionismo social comteano e os seus antecedentes do século XVIII. Saint-Simon sentiu que os revolucionários erraram ao aplicar aos negros “os princípios da igualdade”. Se tivessem consultado os “fisiologistas” – entre os quais Saint-Simon incluía o ideólogo Cabanis – “teriam aprendido que o negro, por causa de sua estrutura física básica, não é suscetível, mesmo com a mesma educação, de ascender ao intelectual”. nível dos europeus.” Se o século XVIII foi pensado em termos de uma civilização humana genérica, foi em parte simplesmente um reflexo do nível de conhecimento das diferenças físicas humanas. Por volta de 1800, esse conhecimento atingia um nível que sugeria a alguns homens modificações na concepção da natureza humana do século XVIII. Estas foram especialmente manifestadas na obra de Cabanis; e, de facto, a psicologia ideológica, com a sua forte tendência fisiológica, não era inadequada para a interpretação racial. Em Saint-Simon, estas forças uniram-se; e a ideia de civilização era agora vista em termos raciais.

Mas se o século XIX pensasse mais em termos de “raça”, a própria “raça” ainda teria de ser explicada. Aqui, os impulsos diversitários e anti-igualitários colidiram frontalmente com o ressurgimento da ortodoxia religiosa e a unidade bíblica da humanidade. O conservador religioso poderia aceitar a “raça” como uma força causal na história; mas ao mesmo tempo foi forçado a explicá-lo como produto de processos ambientais históricos. Todas as raças humanas tiveram que ser reduzidas a uma única raiz Adâmica.

Os defensores mais ousadamente heterodoxos da “raça” abraçaram uma doutrina que mais tarde veio a ser chamada de “poligenismo”: as diferenças físicas entre os homens eram grandes demais para serem explicadas como o produto do ambiente dentro do período bíblico limitado da existência do homem na terra ou para serem explicadas como o produto do ambiente dentro do período bíblico limitado da existência do homem na terra. estar englobado numa única espécie; portanto, Deus deve ter criado outras espécies de homem além de Adão. Prenunciada nas especulações clássicas, avançadas em 1655 no Prae-Adamitae de Isaac de la Peyrere, a posição poligenista foi delineada - embora em termos qualificados - por Lord Kames nos seus Sketches of the History of Man em 1774, e defendida nos dois últimos décadas do século XVIII por um punhado de outros estudiosos.

Mas se teve os seus precursores do século XVIII, o poligenismo foi mais difundido no meio social e científico mais adequado do século XIX. Na verdade, dado o ponto de vista estático, não evolutivo e classificatório da anatomia comparativa cuvieriana, o poligenismo seguiu-se facilmente para aqueles suficientemente desinibidos pela ortodoxia religiosa. Num certo nível, o debate entre monogenistas e poligenistas pode ser interpretado como um debate entre “lumpers” e “spliters” do género homo. Ambos tomaram a definição de espécie de Cuvier como ponto de partida, e se a própria ortodoxia de Cuvier o impediu de abraçar o poligenismo, pode-se argumentar que, em aspectos importantes, o ponto de vista anatômico comparativo que ele desenvolveu era compatível com o poligenismo. Tal como Cuvier, os poligenistas estabeleceram limites estreitos à eficácia das forças ambientais na modificação das formas vivas; como Cuvier, alguns deles procuraram basear sua classificação em medidas precisas da estrutura esquelética e especialmente craniana; como Cuvier, todos eles viam as diferenças cranianas como correlatos das diferenças mentais que determinavam o desempenho racial.

Em 1859, o poligenismo, apesar da sua heterodoxia, era talvez a corrente dominante no pensamento antropológico físico em França, Inglaterra e Estados Unidos. Embora nunca tenha sido capaz de reivindicar a lealdade de figuras importantes como Blumenbach e Prichard, definiu, no entanto, em grande medida, o âmbito do seu pensamento antropológico, que foi uma tentativa longa e frequentemente defensiva de provar a unidade da humanidade. Neste sentido, o poligenismo – ou, mais amplamente, o problema da raça – era uma preocupação central da antropologia pré-darwiniana.

Estruturado pelas categorias da anatomia comparativa pré-evolucionária e da ortodoxia bíblica, o debate entre monogenistas e poligenistas não sobreviveu por muito tempo num ambiente darwiniano. Mas a antropologia não tinha passado pelas águas turvas do pensamento racial pré-darwiniano sem sofrer mudanças profundas do carácter mais profundo. Na França, essas mudanças foram tais que Paul Broca, herdeiro das tradições francesa e americana do pensamento poligenista e fundador da Sociétè d’Anthropologie de Paris não podiam mais aceitar a Société de l’Homme nos seus próprios ecléticos termos “históricos naturais”. Em 1859, a “antropologia” em França tinha sido largamente remodelada segundo linhas anatómicas comparativas: era, em primeira instância, antropologia física e era, acima de tudo, craniologia.

Mas em 1860 o impacto do pensamento racial foi ainda mais longe, afectando também a tradição da etnologia evolucionista. Por mais semelhantes em método e teoria aos escritores do final do século XVIII, os etnólogos vitorianos diferiam em aspectos importantes. Quando a expansão europeia entrou no seu período culminante no final do século XIX, o evolucionismo social tinha sido em grande parte expurgado dos seus elementos primitivistas. Como disse Sir John Lubbock: “o verdadeiro selvagem não é livre nem nobre; ele é escravo de seus próprios desejos, de suas próprias paixões; . . . ignorante da agricultura, vivendo da caça e imprevidente no sucesso, a fome sempre o encara e muitas vezes o leva à terrível alternativa do canibalismo ou da morte. Para Degérando, a extensão da capacidade do selvagem para conceber ideias abstratas era uma questão em aberto. Para Herbert Spencer, a questão não estava mais em dúvida: “Condicionado como está, o selvagem carece de ideias abstratas”. A mente selvagem foi “investigada” e considerada deficiente; as diferenças mentais humanas eram agora concebidas em termos raciais. Se os evolucionistas vitorianos ainda propunham uma escala mais ou menos unilinear de evolução social, já não se presumia que todos os homens ascenderiam até ao topo. Os tasmanianos de Péron desapareceram da face da terra e muitos escritores previram um destino semelhante para outras “raças selvagens”. Como disse o sociólogo spenceriano americano Franklin Giddings: “Não há evidências de que os agora extintos tasmanianos tivessem a capacidade de ascender. Eles foram exterminados tão facilmente que obviamente não tinham poder de resistência nem qualquer adaptabilidade.”  Mesmo E. B. Tylor, cujo trabalho foi interpretado como um esforço para reabilitar o “método comparativo” do século XVIII após um “período de dúvida” de meio século, diferiu em aspectos importantes de Degérando. Para ambos os homens, a ciência da antropologia era “essencialmente uma ciência reformista”. Mas o objectivo da sua reforma não foi o mesmo. Para Degérando foi a elevação dos povos selvagens; para Tylor foi a erradicação dos últimos sobreviventes da selvageria e da barbárie da sociedade europeia civilizada

 

Africa aos primórdios da antropologia

Nem os historiadores antigos nem os primeiros exploradores do interior da África ou do continente americano se propuseram a observar e descrever as sociedades com as quais entraram em contacto, ignorando sua própria sociedade, seus hábitos ou seus preconceitos. Longe de ser um objeto de conhecimento, o mundo selvagem existe para eles apenas por meio de uma certa prática, que os proíbe de renunciar ao seu status civilizado para serem apenas observadores-participantes, à maneira dos etnógrafos modernos. Na África e na América, mercadores, marinheiros, soldados ou missionários estão empenhados em uma empresa da qual esperam um lucro, seja material ou espiritual: conquistando impérios, preparando ou fortificando um estabelecimento, lançando bases de um comércio seguido de borracha ou marfim, para enumerar as tribos hostis ou acolhedoras, evangelizar povos 'grosseiros' e 'supersticiosos', tantas tarefas que não predispõem nem à observação nem à compreensão. Apenas os missionários que permaneceram em contacto com as mesmas etnias por muitos anos, aprendendo sua língua e se esforçando para fixar seu uso em dicionários e gramáticas, foram uma excepção à regra. Mas sua própria função em nada os protege de preconceitos, principalmente quando se trata de religião:

«Qualquer estátua é para eles o diabo', disse Voltaire com humor; 'toda assembléia é um sábado, toda figura simbólica é um talismã, todo nganga é um feiticeiro».

 

Os relatos mais interessantes também são escritos sem ordem ou método, misturando a descrição de costumes com a história das mil e uma aventuras da viagem ou estadia em Africa. Monografias são muito raras - e por boas razões - o leitor deve folhear inúmeras páginas para saber mais sobre os Bakongo ou os Ovimbundo. Cornelius de Pauw, autor de Philosophical Researches on the Americans, resume a dificuldade assim:

«Estamos no caso de um botânico que, para encontrar uma planta cujas características deseja conhecer, às vezes é forçado a percorrer florestas, charnecas, rochas, precipícios e herborizar toda uma província antes de ficar satisfeito»

Assim, nem pelo conteúdo nem pela forma, essa literatura pré-etnográfica favoreceu a constituição de um novo saber. É preciso esperar o momento em que as grandes coleções de viagens são constituídas (Dapper em Angola, Cavazzi no reino do Congo, Thévenot na França) e quando as coleções facilitam a coleta de informações (Compêndio de viagens holandesas, História das descobertas e conquistas dos portugueses, Coleção de Viagens à América do Norte e do Sul, todas entre 1700 e 1740) para que a reflexão prevaleça sobre a observação. O trabalho do padre Lafitau sobre os costumes dos selvagens americanos é significativo, porém, que seja pela etnologia comparada que a humanidade exótica, presente há mais de dois séculos nos horizontes do pensamento moderno, ingressa no campo do conhecimento. Os seus costumes e as suas crenças só perdem a sua estranheza quando comparadas com as dos 'primeiros tempos', de que os Antigos deixaram testemunho. É somente através de sua própria cultura que o europeu percebe a realidade do mundo selvagem que, em si, lhe permanece estranho, inacessível. A metamorfose do homem selvagem em homem primitivo, porque o torna um ser histórico, ao mesmo tempo torna possível uma finalidade antropológica; Finalmente, nele o homem europeu pode reconhecer-se e aprender a conhecer-se: basta-lhe abrir o espaço da sua própria história, e incluir o Pitecanthropus afariensis entre os seus antepassados. Assim se constitui definitivamente o casal selvagem-civilizado que, pelo jogo de paralelos e antíteses, ao longo de uma escala de seres e valores, comanda todo o funcionamento do pensamento antropológico até o início do século XIX. O homem selvagem coloca-se num vasto mito das origens.

O progresso do conhecimento, a ampliação dos horizontes e a frequência dos contactos modificaram fundamentalmente esse modo de percepção? Para saber, tivemos que nos perguntar que espaço novo o homem do Iluminismo foi realmente capaz de ocupar, ou seja, apreciar a distância que separa os relatos de viagens mais recentes de seus leitores. Por outro lado, descobrimos que as observações de certos viajantes, Bruce ou Patterson, por exemplo, foram disseminadas para um público restrito – estudiosos e filósofos – anos antes de seus relatos serem publicados. Devido a novas exigências, criam-se circuitos paralelos: correspondências, memórias, extratos de diários, enquanto descobertas e explorações ocupam um lugar cada vez maior no período.O próprio mundo selvagem, objeto de curiosidade ou investigação, lentamente percebido como precisando ser objecto de conhecimento específico, ainda só existe pelo prisma distorcido da história europeia. Reduzido geograficamente às fronteiras do mundo colonial, mutilado e escravizado pelos seus conquistadores ou lentamente tomado pelos brancos, já não é a alteridade aquele outro mundo, milagrosamente novo, que maravilhava os homens do Renascimento. Os selvagens de ontem, reduzidos à escravidão, lançados brutalmente no cadinho das raças e das civilizações, mudaram de ser e de rosto, onde quer que a natureza não tenha oposto um obstáculo intransponível à ganância das nações europeias.

Pois a cupla selvagem-civilizado só controla o funcionamento do pensamento antropológico porque sua estrutura é dada de antemão, e os papéis distribuídos: desde a descoberta da África e da América, e do início do processo de colonização, o homem selvagem é um objecto, só o homem civilizado é sujeito; é ele quem civiliza, traz consigo a civilização, fala-a, pensa-a e, por ser o modo da sua ação, torna-se o referente do seu discurso. Quer queira quer não, o pensamento filosófico sustenta a violência feita ao homem selvagem, em nome de uma superioridade da qual ele participa: pode afirmar que todos os homens são irmãos, não pode defender-se de um eurocentrismo, que encontra na ideia de progrida seu melhor álibi. Em vão se defende de consentir com a ordem das coisas, só pode opor-se a ela, no melhor dos casos, com um reformismo humanitário. Emancipar os escravos negros, civilizar os povos selvagens, conciliar humanidade e interesse, não é compor com um sistema cuja destruição suporia um novo equilibrio comercial. A civilização dos selvagens, único fundamento moral de um humanismo de conquista. Julgamos, portanto, necessário denunciar o mito do anticolonialismo dos filósofos e reduzir a justas proporções sua campanha em favor dos negros e dos índios. Quando olhamos de perto, e comparamos a sua posição com a dos responsáveis ​​pela política colonial, não podemos deixar de concluir que, de acordo com eles, procuravam sobretudo remediar os abusos, e assim contribuíam para a manutenção da ordem estabelecida . Libertação dos negros, proteção dos índios e civilização dos selvagens são, apesar das aparências, apenas elementos de uma mesma estrutura, a da ideologia colonial, que experimentará no século XIX, o desenvolvimento que conhecemos.

O espaço humano constitui-se, portanto, a partir de duas imagens opostas: de um lado, nações civilizadas, arrastadas por um movimento que as afasta cada vez mais de sua condição primitiva, de outro, povos selvagens, sem escrita e, portanto, sem passado, brutalmente arrancado de uma duração imóvel e jogado no cadinho de raças e civilizações. Mundo selvagem e mundo civilizado se confrontam e se definem, um contra o outro, irreconciliáveis ​​no tempo e na história. Para uma filosofia que se apresenta como ciência do universal, há aí um escândalo, tanto na ordem dos factos quanto na ordem do conhecimento. A destruição dos índios, a escravidão dos negros, a corrupção dos taitianos são tão inaceitáveis quanto a existência de dois tipos de sociedades irredutíveis entre si. O humanismo e a antropologia se esforçarão, no plano duplo da ciência e da política, para superar essa contradição inicial: enquanto os filósofos-administradores formarão o projeto de 'assimilar', de 'incorporar', de reduzir de alguma forma ao estado de civilização dos povos estrangeiros, os filósofos-cientistas vão querer fundar uma nova ciência que, de todas as variedades de homens, faça surgir uma imagem do homem, em toda parte diverso e em toda parte semelhante, diferenciando-se de si mesmo por graus imperceptíveis, por um lento processo de todas as causas e os estágios seriam conhecidos. Em Dapper os Caffres e Hottentotes se confundem.

Ciência enganadora, que não engana ninguém: como os leitores se reconheceriam nela? Nem mesmo é certo que eles queiram: a Enciclopédia cita desordenadamente cerca de vinte nações canadenses.

O facto de classificar as tribos em três grupos: Hurons, Iroquois e Algonquins, e numa ordem geográfica já representa uma preocupação de rigor que não é tão comum. A prática atual é amalgamar: “Pintando os iroqueses e os huronianos”, diz M. de Sacy, “pintei todas as nações vizinhas: mesmo caráter, mesmos vícios, mesmos talentos...

No entanto, o retrato moral dos !Kung está longe de ser tão negativo. O abade Yvon hesita em ver ateus estes povos que “não têm templos, nem ídolos, nem cultos”, mas que “reconhecem uma equidade” e “conhecem a lei das pessoas e da natureza”; Raynal elogiou “sua harmonia inalterável”, sua “benevolência”, e Voltaire os colocou ao lado dos canadenses entre os povos que “têm a arte de fazer eles mesmos tudo o que precisam”. A metamorfose dos !Kung em 'bons selvagens' baseia-se nestas imagens contrastantes: uma selvageria da qual nos afastamos, porque é animal, e um estado selvagem, que é inocência e repouso.

 Na Historia das viagens, a parte dedicada à África baseia-se em relatos antigos, por exemplo o de Odoardo López, um comerciante português (publicado por Pigafetta) para o interior do Congo, sendo que a sua viagem data de 1578. Na sua Carta sobre o progresso das ciências, em 1752, Maupertuis recomenda a exploração da África da mesma forma que a das Terras do Sul, porque:

Todo este vasto continente nos é quase tão pouco conhecido

Bruë subiu o curso do Senegal por volta de 1697 e criou um posto comercial em Galam. Se a África no seu conjunto é muito pouco conhecida e o interior quase inexplorado, a Nigrítia, este 'anexo das Antilhas', é contudo familiar a todos os que vivem do tráfico ou do trabalho negreiro. Os portugueses, os holandeses, os ingleses e os franceses estabeleceram fortalezas e feitorias ao longo das costas onde os traficantes de escravos vinham abastecer-se de ébano. As viagens de exploração do interior limitavam-se a alguns rios (Zaire) e não eram incentivadas pelas Companhias, que só se interessavam pelo comércio de escravos, escoados para a costa por mercadores negros. O marfim e a borracha chegam pelo mesmo caminho, e as dificuldades de acesso ainda parecem intransponíveis. As principais relações são obra de agentes das Companhias, como Bruë, diretor da Compagnie du Sénégal, ou de mercadores em busca de novos pontos comerciais, como Snelgrave, ou dos relativamente raros missionários, como Cavazzi. Labat compôs sua Nova Relação da África Ocidental usando suas histórias, notadamente as de Bruë e Sieur La Courbe, das quais ele copiou textualmente um grande número de páginas. Ele também publicou as Viagens de Des Marchais, que descreve o país a partir do rio da Serra Leoa até o reino de Judá, e os de Cavazzi sobre o oeste da Etiópia, os reinos do Congo, Angola e Matamba. Mas o próprio Labat nunca pisou na África, e eram muito menos os africanos que interessavam a esse superior da missão das Índias Ocidentais, autor de uma Viagem às Ilhas da América, do que as raças escravas destinadas às plantações da Martinica e de Santo Domingo. Podemos concordar com M. Mercier o 'zelo sincero' de Labat, que se queixa da indiferença das Companhias pela conversão de escravos, mas é preciso admitir que ele fala mais como comerciante do que como missionário. É sempre pensando nas ilhas que avalia as qualidades e defeitos dos africanos. Dedica, assim, um capítulo aos “escravos negros usados ​​nas ilhas”. Todo um capítulo das viagens de Des Marchais não passa de uma longa enumeração das várias 'raças' negras dos reinos de Judá e Ardra: os Aradas são os melhores para a escravidão, os Tebous (sudaneses) os piores, os “ os negros ayois” são perigosos, os “rostos” [reino de Mina] são excelentes para o serviço doméstico. Em Cavazzi, encontramos um quadro completo dos “defeitos naturais e morais destes povos (...) ainda envoltos nas trevas do paganismo” . A lista é longa: vaidade, preguiça, covardia, engano, dureza de coração, inveja, desonestidade, superstições ridículas. Para povos cuja “naturalidade” é tão ruim, não há salvação senão na escravidão, que os resgata de uma condição miserável para torná-los homens e cristãos. Em sua Histoire de Saint-Domingue, o padre Charlevoix afirma que “esses desgraçados admitem sem alarde que um sentimento íntimo lhes diz que são uma nação maldita” e que “os mais espirituais, como os do Senegal, aprenderam por uma tradição, que se perpetua entre eles, esse infortúnio é consequência do pecado de seu pai. A qualidade essencial do senegalês é, além disso, ser de todos os negros o mais bem feito, o mais fácil de disciplinar e o mais adequado para o serviço doméstico. Os Bambaras são os maiores, mas ladrões, os Arandas, os que melhor entendem o cultivo da terra, mas os mais orgulhosos; os menores Congos, os pescadores mais hábeis, mas desertam facilmente; os Nagos, os mais humanos, os Mondongos, os mais cruéis, os Mines os mais resolutos, os mais caprichosos, os mais propensos ao desespero.

Observateurs de l'homme

No outono de 1799, a Société des Observateurs de l’homme nasceu em Paris. Foi fundada por iniciativa de Louis-François Jauffret (1770-1850), um jovem professor de ciências naturais que reuniu em torno a si mesmo um grupo de intelectuais e cientistas que se sentiam herdeiros d iluminismo e do espírito da Encyclopédie. Para a ocasião, Jauffret escreveu que gostariamos de fixar na memória das gerações futuras:

«O que é mais adequado para iluminar os pontos mais sombrios da história primitiva do que comparar ao mesmo tempo os costumes, a língua e a cultura material dos diferentes povos? ... E o que é mais rico do que a satisfação, podemos acrescentar, isso dedique-se a esta actividade e forje conhecimento com um número! Duma infinidade de populações que merecem tão pouco o desprezo insultuoso que temos por elas?»  (Jauffret 1970: 279).

Jauffret e seus colegas não eram antropólogos no sentido moderno do termo. Mas esta afirmação auspiciosa e programática - é provavelmente a primeira formulação verdadeira de um plano de pesquisa em que o 'estudo do homem' se delineia tanto como conhecimento empírico quanto como disciplina teórica; como um conhecimento novo que faz parte de um projeto científico completamente novo, o do estudo comparativo de sociedades e culturas.

I. A Société des Observateurs de I’Homme e a Expedição Baudin para a Austrália

A Société des Observateurs de l’Homme é hoje quase desconhecida dos “observadores do homem” profissionais fora da França. Tal destino dificilmente foi previsto pelo secretário da Société na noite de 24 de agosto de 1800, quando ele ofereceu a uma distinta companhia de cientistas e exploradores um brinde “ao progresso da antropologia”: “Que a nossa sociedade algum dia seja homenageada por suas úteis pesquisas e seus ilustres correspondentes! ”E, de fato, a primeira sociedade antropológica do mundo merece ser lembrada pois é constituída pelos precursores da antropologia. Independentemente da estimativa atual da utilidade de suas pesquisas, um olhar sobre elas pode nos dizer algo sobre os desenvolvimentos subsequentes no pensamento antropológico do século XIX.

A Société foi fundada no final de 1799 por Louis François Jauffret (1770-1850), uma figura literária francesa menor cuja inclinação romântica, pedagógica e interesses científicos populares se refletem no título dos seus

«Passeios no país. . . fez o propósito de dar aos jovens uma idéia da felicidade que pode resultar para o homem do estudo de si mesmo e da contemplação da natureza».

Como seu lema (“connais-toi toi-même”) – sugerido a Socrates, a Société foi animada por um espírito semelhante . Convocou o 'metafísico profundo e o médico praticante, o historiador e o viajante, aquele que estuda o espírito das línguas e aquele que guia e protege os primeiros desenvolvimentos da infância' a se libertarem de 'toda paixão, todo preconceito e acima de tudo tudo de todo o espírito do sistema ”e participar de um estudo comparativo do homem em todas as diferentes cenas de sua vida”. Entre os que responderam estavam os biólogos Cuvier, Lamarck, Jussieu e Geoffrey Saint-Hilaire, os médicos Cabanis e Pinel, o químico Fourcroy, os exploradores Bougainville e Levaillant, os linguistas Destutt de Tracy e Sicard.

1.1 interesses da Sociedade dos Observadores

A amplitude de seus interesses é evidente na gama de projetos sugeridos por Jauffret em sua introdução a um volume proposto, mas nunca publicado, das memórias da Société:

«uma antropologia comparada dos costumes e usos dos povos; uma topografia antropológica da França para ajudar a determinar a influência precisa do clima no homem; um dicionário comparativo de todas as línguas conhecidas; uma “classificação metódica de raças” baseada em uma anatomia comparativa completa dos povos; e um museu de etnografia comparativa».

Jauffret chegou a propor um experimento - que ele considerava possível apenas em “um século tão esclarecido como o nosso” - para determinar as características do “homem natural” observando desde a adolescência crianças “colocadas desde o nascimento em um único recinto, distante de todas as instituições sociais, e abandonadas apenas ao instinto da natureza para o desenvolvimento de ideias e linguagem”.

Por outro lado, humanistas e libertinos vêem nesses povos que vivem sem leis, sem reis, sem sacerdotes, sem os seus ou os meus, e que são felizes e virtuosos, a prova da superioridade de uma moral natural, fundada no instinto e devido. Dos primeiros relatos de viagens, alguns concluíram rapidamente que havia povos ateus. Para lhes responder, os missionários, etnólogos por necessidade senão por vocação, empenharam-se numa investigação sistemática dos costumes e crenças dos selvagens, procurando descobrir, na sua aparente diversidade, um princípio de identidade que manifestasse a presença de um Deus Oculto. . Negando a existência de povos ateus, eles reafirmaram o valor do argumento tradicional baseado no consentimento universal. Por sua vez, estudiosos libertinos 2, como La Mothe le Vayer. entregaram-se a uma erudita exegese de seus escritos, ao final da qual a virtude dos pagãos, aquele instinto divino que, segundo o padre Acosta, preparou as almas do Novo Mundo para a revelação e a pregação, tornou-se um instinto natural que permitiu povos privados da luz da verdadeira religião para distinguir o bem do mal e para ter uma conduta moral. O louvor dos bons selvagens, cantado para a maior glória de Deus, voltado contra seus imprudentes louvadores

1.2 Antropologia dos Observadores

Que os Observateurs seguiam a tradição da ciência social newtoniana e da escola psicológica materialista de Condillac, Cabanis e Destutt de Tracy, a quem Napoleão deveria estigmatizar como 'idéólogos' é evidente tanto pelos nomes de seus membros quanto pelos conteúdos relatados por seu público Encontros. A deles era uma antropologia ainda indiferenciada do mais amplo escopo. Incluía observações sobre governo, religião, língua, costumes, cultura material e psicologia social e individual. Os Observateurs estavam apenas começando a se interessar por “raças”, mas a tradição da “história natural” que alimentou a “etnologia” do século 19 é claramente evidente.

1.3 O tema de fundo da sociedade

O tema, como emerge de uma série de palestras duas vezes por semana oferecida por Jauffret no inverno de 1803, era

«A História Natural do Homem”: “as diferentes raças do gênero humano, a origem e as migrações dos povos. os personagens físicos e morais que os distinguem, ”ilustrados,“ tão frequentemente quanto possível ”, com“ suas armas, suas ferramentas, suas roupas e outros produtos de sua indústria ».

1.4 Viagem de descoberta científica e geográfica

Embora a morte subsequente da Société sugira um destino malfadado,  os primeiros meses foram favorecidos por uma conjunção quase providencial de eventos. No início de março de 1800, o capitão Nicholas Baudin (1754-1803) apresentou ao Instituto Nacional, a instituição focal da ciência francesa, um plano para uma expedição de descoberta científica e geográfica. Conforme revisado por um comitê do Instituto e aprovado por Napoleão, o objetivo principal era explorar a costa sudoeste da Nova Holanda para resolver de uma vez por todas a ainda discutida questão da unidade do continente australiano; mas toda uma gama de investigações científicas também foi imaginada, incluindo estudos do homem australiano. Não a caso, o comitê de planeamento voltou-se para a sociedade antropológica à qual vários deles pertenciam para obter ajuda na realização do projecto de pesquisa da expedição. Quando foi questionado se a Société prepararia instruções para estudar os aspectos “físicos, intelectuais e morais” do homem selvagem, Louis Jauffret respondeu com dados extáticos. Os Observateurs, surgindo nesta magnífica “ocasião para aperfeiçoar a antropologia”, produziram duas memórias para orientar as actividades antropológicas da expedição: uma do cidadão Degérando,

«Considerações sobre os métodos a seguir na observação dos povos selvagens”; um do cidadão Cuvier, “Uma nota instrutiva sobre as pesquisas a serem realizadas sobre as diferenças anatômicas entre as diversas raças do homem».

1.5 Fracasso da expedição

Apesar desses começos auspiciosos, a boa sorte logo abandonou a Société e a expedição à Austrália. Em 19 de outubro de 1800, os navios de Baudin lançaram suas velas para os antípodas - e para a decepção. Embora fosse um capitão competente, Baudin se viu em constante conflito com o grande contingente de cientistas. Quando os navios chegaram à Ile de France (Ilhas Maurício), no Oceano Índico, havia tanta dissensão que vários cientistas desembarcaram e 46 marinheiros desertaram. Mas isso não representava nada para as dificuldades que se avizinhavam. Apesar dos trajes cuidadosos e da preparação de um livro de memórias sobre a dieta por um membro do Instituto, os suprimentos acabaram e os navios foram assolados por escorbuto e disenteria. Como muitos de seus homens, Baudin morreu.

A expedição falhou amplamente em seus objetivos geográficos e políticos e, embora suas realizações científicas fossem consideráveis, suas importantes coleções antropológicas acabaram perdidas para a ciência. Grande parte deles destinava-se ao proposto museu da Société. Mas quando a expedição voltou em 1804, a Société estava morta ou morrendo, e esses materiais, junto com outros que haviam sido expressamente coletados para ela, passaram a fazer parte da coleção da Imperatriz Josefina. Parcialmente destruída em 1814, a coleção foi vendida e dispersa em 1829.

Os ideólogos

Após seu brilhante início, a Société des Observateurs de l’Homme desapareceu rapidamente do cenário histórico. Embora pareça ter se dividido com a proclamação do Império, Jauffret, em junho de 1804, pediu permissão a Napoleão para adicionar o adjetivo impériale ao nome da Société. Em vista do antagonismo político que se desenvolveu entre ele e os idéologues, à medida que ele se afastava cada vez mais do liberalismo revolucionário e anticlerical que eles sintetizavam, podemos supor que ele respondeu desfavoravelmente. Em todo caso, a Société não durou aquele ano, ao final do qual Jauffret, em apuros financeiros, foi forçado a deixar Paris. Uma explicação adicional da morte foi oferecida em 1869 por Paul Broca, então decano da antropologia francesa. Quando as guerras napoleônicas o privaram das contribuições antropológicas dos viajantes, a Société se voltou para questões de etnologia histórica e psicológica: A história natural foi negligenciada pela filosofia, política e filantropia

Após cerca de três anos de existência lânguida, foi absorvida pela Société Philanthropique, deixando na história da ciência apenas leves vestígios de sua existência. . . . Os naturalistas que a fundaram estavam ansiosos demais para se unir às escolas da filosofia pura e das belas-letras. A antropologia ainda não tinha uma base suficientemente sólida; ainda não era forte o suficiente para reunir e usar em seu próprio benefício os poderes extrínsecos que invocara em seu auxílio.

O que quer que essa reminiscência fossilizada possa nos dizer sobre as circunstâncias do fim da Société, é duvidoso que Broca tivesse uma compreensão adequada de seu caráter. Ao contrário, os interesses da Société eram evidentemente amplamente “etnológicos” e seus motivos parcialmente filantrópicos desde o início. No entanto, os comentários de Broca nos dizem algo sobre o desenvolvimento subsequente da antropologia na França. Mas, para ver esse desenvolvimento em contexto, devemos olhar mais de perto as duas memórias instrucionais da Société des Observateurs de l’Homme.

 Cidadão Degérando e a Observação do Homem Selvagem

O cidadão Degérando, ou Joseph Marie de Gérando (1772-1842), como era conhecido em tempos menos igualitários, foi um dos mais flexíveis e ideólogos ecléticos que foram capazes de se ajustar à atmosfera cada vez mais conservadora da era napoleônica. Ele encontrou sua vocação em 1799 quando os ideólogos, de seu reduto na Classe des Sciences morales et politiques do Institut, propuseram um concurso sobre a “influência dos símbolos na formação das ideias”. Degérando, que percorreu um caminho tortuoso de uma origem monarquista a uma posição nas fileiras do exército da República, apresentou o livro de memórias premiado. Chamado a Paris, ele logo se tornou um membro associado da Classe. . . morales, entrou a serviço do governo e iniciou uma longa e ativa carreira como filósofo, publicitário, filantropo e Observateur de l’Homme.

Método de pesquisa

As “Considerações sobre os métodos a seguir na observação de povos selvagens é um documento fascinante. Degérando, a essa altura inteiramente dentro da tradição iluminista, sustentava que a “ciência do homem” compartilhava o método das ciências naturais: a partir da observação cuidadosa, passava-se à análise comparativa, e daí às “leis gerais” do desenvolvimento humano e comportamento. E entre os homens, os selvagens eram especialmente adequados para esse estudo, uma vez que o homem em um estado mais primitivo estava sujeito a menos influências modificadoras e, portanto, era mais fácil “penetrar na natureza e determinar suas leis essenciais”.

Etnocentrismo

Infelizmente, a ciência do homem tinha até agora naufragado com a inadequação das observações anteriores. Fosse por causa da brevidade das visitas ou dos caprichos da atenção, a maioria dos relatos existentes sobre selvagens eram extremamente assistemáticos e incompletos. Mas, pior do que isso, seu conteúdo era de validade incerta. Frequentemente julgando mal uma nação por um único indivíduo, ou com base em uma recepção inicialmente hostil, os viajantes anteriores eram culpados de todos os tipos de 'hipóteses duvidosas', que muitas vezes resultavam etnocêntricas pela sua tendência de julgar costumes selvagens em analogia aos seus próprios.

«Assim, após determinadas ações, eles atribuem a. . . [selvagens] certas opiniões, certas necessidades, porque em nós. . . [essas ações] normalmente resultam dessas necessidades ou opiniões. Eles fazem o selvagem raciocinar à nossa maneira, quando o próprio selvagem não explicou seu raciocínio. É por isso que muitas vezes pronunciam sentenças tão severas contra uma nação, que a acusam de crueldade, de roubo, de devassidão, de ateísmo ».

O pior de tudo foi o fracasso quase universal em aprender a linguagem selvagem. De que outra forma alguém poderia apreciar sua 'maneira de ver e sentir', ou registrar 'os traços mais secretos e essenciais de seu caráter', ou interpretar suas tradições para obter informações sobre o povoamento da terra e as 'diversas causas para o estado presente em quais nações são encontradas?

«Não é de admirar que a maioria dos relatos de viagens“ nos transmita descrições bizarras que divertem a curiosidade ociosa do vulgo, mas que não fornecem informações úteis para o espírito científico».

Necessidade de conhecer a língua nativa

Parte da dificuldade de observação adequada poderia ser superada pelo uso de “tabelas regulares” nas quais as observações pudessem ser registadas na ordem apropriada, em terminologia descritiva precisa e não avaliativa. Mas o problema da linguagem era crucial; a melhor maneira de entender os selvagens era se tornar “como um entre eles” e somente aprendendo sua língua alguém poderia se tornar seu “concidadão”. Para tanto, partia-se do zero - ou da tábula rasa - e seguia-se uma progressão ordenada com base nos pressupostos da psicologia iluminista. Uma vez que a linguagem articulada do selvagem era, sem dúvida, composta de símbolos tão arbitrários e convencionais quanto os nossos ”, deve-se começar, como acontece com as crianças, “com a linguagem da ação”, aprendendo e registando primeiro indicativo, depois descritivo e, finalmente, gestos metafóricos. Pelo contacto assim estabelecido, o observador usava gestos para aprender as palavras da linguagem articulada na ordem da 'geração de ideias': de objetos sensíveis a qualidades sensíveis (por exemplo, cores) a ações sensíveis (por exemplo, caminhar), e só então para termos de relacionamento (por exemplo, advérbios). De associações simples, avançamos para ideias complexas e daí para ideias abstratas, das quais mesmo 'selvagens não podem ser totalmente privados'. Começando com aquelas baseadas nas comparações menos repetidas, progrediu-se por meio de ideias mais complexas até o ápice da epistemologia associacionista: a ideia reflexiva, sempre evitando atribuir aos selvagens “os raciocínios de nossos philosophes”.

Observar o homem

Mesmo antes de dominar a linguagem selvagem, pode-se começar a observar o indivíduo selvagem e sua sociedade. Estes também deveriam ser encomendados dentro de uma estrutura antropológica semelhante. De perspectiva materialista e ambientalista, os idéólogos viam as sociedades humanas como sistemas de indivíduos atômicos relacionados pelas leis newtonianas de atração social; iniciava-se, portanto, com uma descrição do ambiente físico e, em seguida, das características físicas de um indivíduo típico: sua força corporal, movimentos, saúde, longevidade, etc. Do corpo avançava-se para a mente pela ponte da sensação, que Degérando aparentemente pretendia explorar por uma série de testes psicofísicos do aparelho sensorial do selvagem. Da sensação, o observador seguiu mais uma vez a mesma progressão associacionista por meio de ideias simples e complexas, em última análise, até as 'faculdades' do selvagem, ainda na sequência genética: imaginação, atenção, memória, previsão e (talvez) reflexão. Só assim se poderia determinar a posição precisa “que este indivíduo ocupa na escala da perfeição intelectual”.

Observar a sociedade

A “sociedade em geral” que Degérando via como um “agregado de famílias” passaria a ser observada em seus quatro grandes aspectos: político, civil, econômico e ético-religioso. Houve agregações intermediárias parciais ou distinções na classificação? Embora um povo pastor ou caçador sem dúvida não tivesse nenhuma ideia da propriedade da terra, eles tinham uma ideia da propriedade das ferramentas ou produtos de seu trabalho? Até que ponto eles se deram conta dos afectos que unem os homens em grupos maiores? Eles amam a liberdade? Eles consideravam um culto exterior como um elo necessário com um Ser Supremo? Seus antepassados estavam interessados apenas em “manter sua nação na ignorância e na barbárie”? Por fim, e mais difíceis de penetrar, eram as “tradições” dos selvagens, que podiam “lançar uma luz preciosa sobre a misteriosa história dessas nações”. E como ponto culminante de toda observação em campo, o filosofo-viajante pode trazer de volta à França uma família de selvagens: “Teríamos então em microcosmo a imagem daquela sociedade da qual eles foram expulsos”.

De Gerando evolucionismo comparativo

O livro de memórias de Degérando é fascinante simplesmente como um resumo resumido da antropologia do Iluminismo francês. Mas é de muito mais interesse do que antiquário para a história da antropologia. Apesar de todo o seu rigor empírico, suas instruções tomam como certo uma concepção da natureza da mudança social e do método de seu estudo apropriado que se tornaria parte da herança de suposição da etnologia social evolucionista do final do século XIX.

Para Degérando, as linhas gerais de todas as mudanças sociais foram fornecidas com antecedência. A natureza humana foi fundamentalmente a mesma em todas as épocas e lugares, e seu desenvolvimento foi governado por leis naturais: o homem se desenvolveu desde seu estado inicial em um progresso evolucionista lento e unilinear, cuja manifestação actual mais elevada era a sociedade da Europa Ocidental. A natureza exata dessas leis e o curso exato do desenvolvimento histórico podem ser objeto de investigação empírica, mas que sua existência e caráter essencial foram assumidos de antemão é evidente a partir da maneira como a história 'conjectural' inicial do homem deveria ser reconstruída: o 'método comparativo'. Por alguma razão misteriosa, nem todos os grupos humanos progrediram no mesmo ritmo e, portanto, foi possível construir 'uma escala exata dos vários graus de civilização e atribuir a cada um as propriedades que o caracterizam' e, assim, reconstruir ' as primeiras épocas da nossa própria história. ” Por quê ?: porque as várias sociedades que coexistem no presente representavam as várias etapas dessa sequência (que, de fato, foi assumida de antemão).

«O voyageur-philosophe que navega em direção às extremidades da terra atravessa com efeito a sequência das eras; ele viaja no passado; cada passo que ele dá é um século sobre o qual ele salta».

Como FredErick J. Teggart e seus alunos apontaram que essas suposições, enraizadas na tradição clássica e elaboradas pelos participantes da disputa dos Antigos e Modernos, eram amplamente difundidas no pensamento social do final do século XVIII. Transmitidos ao século 19 por meio do trabalho de escritores como Comte, eles se tornariam parte integrante da teorização dos antropólogos vitorianos.

Para Degérando, no entanto, esses pressupostos tiveram um significado ainda mais amplo: eles forneceram um elo entre sua ciência e sua filantropia. A ciência delineou o curso normal do desenvolvimento humano; a filantropia, auxiliada e guiada pela ciência, elevaria o selvagem misteriosamente retardado ao nível de seu irmão europeu. Se ele não tivesse escalado a escala da civilização até seu ponto mais alto, não havia dúvida de sua capacidade de fazê-lo.

«Que propósito mais tocante do que restabelecer os nós sagrados da sociedade universal, do que reencontrar esses antigos pais separados por um longo exílio do resto da família comum, do que estender a mão com a qual eles se erguerão para um mais feliz Estado!»

O comércio era a chave para o progresso selvagem, mas seu papel tinha uma base científica. O comércio criaria nos selvagens novas “necessidades” e novos “desejos”, e isso os levaria a estágios superiores.

«Sempre bem recebidos, bem tratados, testemunho da nossa felicidade, das nossas riquezas, e ao mesmo tempo da nossa superioridade, talvez. . . eles nos chamarão ao seu meio para mostrar-lhes o caminho que os conduzirá ao nosso estado. Que alegria! Que conquista!»

Degérando não era um relativista cultural. Tanto suas categorias analíticas quanto seus padrões de avaliação derivavam da cultura europeia, que em todos os aspectos importantes era para ele a mais alta expressão de perfectibilidade humana já alcançada. Assim como ele achava que os selvagens se beneficiariam com a introdução da ciência e da economia europeias, ele também achava que eles se beneficiariam com a introdução de roupas europeias. Mas se sua própria civilização era inquestionavelmente superior, não era uma civilização única para qualquer etnia.  Não era apenas francês, mas europeia e, em certo sentido, era mais do que isso: era humana, e todos os humanos podiam alcançá-lo e desfrutá-la

O que falta totalmente nas 'Considerações' de Degérando é qualquer conceito de 'raça', qualquer noção de diferenças hereditárias permanentes entre os grupos da família humana. É verdade que Degérando estava preparando as instruções para a observação do homem em seus aspectos “morais” ou culturais, mas não deixou, portanto, de considerar as relações de corpo e mente, ou os efeitos de diferenças corporais individuais, ou a existência de diferenças entre grupos de selvagens. Mas esses grupos sempre foram “povos” ou “nações”, “nunca“ raças e suas diferenças eram mais ambientais do que hereditárias. Neste Degérando não era totalmente representativo dos Observadores. Mas talvez fosse representante de algo mais amplo: o otimista e o humanitarismo igualitário abrangente da tradição revolucionária francesa.

 

3.1 Peron

 

Abandonando a tradição ambivalente de Rousseau, Péron parece ter abraçado o evolucionismo social irrestritamente otimista de Degérando; mas também há evidências em seu trabalho de uma tradição emergente que pode estar associada a Cuvier. Ao contrário de Degérando, Péron não era indiferente à corrida. Ele se refere frequentemente às características físicas peculiares de diferentes raças humanas e, de fato, preparou um livro de memórias sobre as peculiaridades genitais da mulher hotentote, que ele investigou em sua viagem de volta à França. Na verdade, pode-se argumentar que há no segundo volume de Péron a sugestão de uma posição que ia além daquela que o próprio Cuvier foi capaz de aceitar: o poligenismo racial, ou a suposição de que as diferenças raciais humanas eram aborígenes e datavam da primeira aparição do homem na Terra. Em um livro de memórias 'Sobre certos fenômenos da zoologia das regiões do sul aplicáveis à história física do globo e à da espécie humana', Péron especulou sobre as teorias geológicas então conflituantes do Vulcanismo e Neptunismo e sobre a antiguidade da separação entre Tasmânia e Austrália. Apesar de sua proximidade geográfica, Péron sentiu que havia uma

«diferença absoluta nas raças que povoam cada uma dessas terras”. Mas por sua fraqueza física, eles dificilmente eram semelhantes - nem em 'seus costumes, seus usos, suas artes rudes, nem em seus implementos para caça e pesca, suas habitações, suas pirogas, suas armas, nem em sua constituição física geral , a forma de seu crânio, as proporções de sua gordura, etc.»

 Péron usou essas diferenças 'raciais', juntamente com dados geológicos e zoológicos, para apoiar a visão de que Tasmânia e Austrália estavam geograficamente separadas desde 'antes da época da população desses países'. Mas, em vista do título de suas memórias e de seu comentário ainda não elaborado de que esses factos ofereciam uma nova prova 'da imperfeição de nossos sistemas nas comunicações dos povos, suas transmigrações e a influência do clima no homem', parece que Péron alimentava a então radical - mas não inédita - ideia de que essas duas raças absolutamente diferentes, cujas diferenças não eram facilmente explicadas em termos de migração ou clima, eram de facto originalmente distintas.

IV. O Declínio do Nobre Selvagem

Péron e Degérando foram ambos atormentados pelo problema do povoamento da terra, ou 'a história misteriosa dessas nações. Envolvido nesta história misteriosa estava o' porquê 'final das diferenças culturais entre os grupos humanos. Para Degérando, a questão ficou sem resposta. Ele apenas esperava que um estudo de suas tradições lançasse luz sobre as “diversas [e presumivelmente adventícias] causas para o presente [i. e. retrógrado e, portanto, anormal] estado em que as nações são encontradas. ” Para Péron, há uma vaga ideia de uma resposta diferente. No século 19, a resposta era cada vez mais encontrada na 'raça'.

4.1 Cuvier

 

A mudança é evidente na vida de Georges Cuvier. Em 1790, o jovem Cuvier repreendeu um amigo por acreditar em 'alguns viajantes estúpidos' que alegavam que o negro e o orangotango eram interferentes e por tentar explicar as 'faculdades intelectuais' com base nas diferenças na estrutura do cérebro. Mas em 1817, Cuvier sustentou que a civilização egípcia não foi criada por 'qualquer raça de negros', mas por homens 'da mesma raça que nós', que tinham 'um crânio e cérebro igualmente grandes' e que não ofereciam nenhuma 'exceção a essa lei cruel que parece condenaram a uma inferioridade eterna as raças de crânios deprimidos e comprimidos ”. Nesse mesmo ano, ao colocar o homem à frente do Reino Animal, Cuvier descreveu seu desenvolvimento “moral” nos mesmos termos evolutivos sociais de Degérando, mas concluiu com uma ressalva crucial:

 «Existem, porém, também certos aspectos intrínsecos causas que parecem impedir o progresso de certas raças, mesmo nas circunstâncias [ambientais] mais favoráveis»

Na descrição das três 'Variedades das Espécies Humanas' que se seguiram, Cuvier sustentou que a civilização da raça mongol permaneceu sempre estacionária e que os negros nunca progrediram além da barbárie total.

4.2 Civilização

 

Como surgiu no final do século 18, a ideia de civilização era vista como o objetivo predestinado de toda a humanidade. Mas, no século 19, mais e mais homens viam isso como uma conquista peculiar de certas “raças”. Levar em conta essa mudança está além do escopo deste artigo; aqui não podemos fazer mais do que especulativamente sugerir vários contextos mais amplos. No nível da lógica das ideias, o impulso caracteristicamente “diversos” do Romantismo tinha, como A. O. Lovejoy apontou, um importante potencial racial.

No nível político geral, a mudança talvez possa ser vista como parte da reação conservadora contra o otimismo igualitário da Revolução Francesa. Mais especificamente, foi sugerido que a ideia de raça surgiu como uma ideologia defensiva quando a escravidão e o comércio de escravos sofreram sérios ataques no final do século 18. Os negros parecem ter sido os últimos povos de pele escura a ser subsumida na imagem do “Nobre Selvagem”, que se desenvolveu ao longo dos últimos séculos principalmente em relação aos selvagens das Américas. Sua nobreza era tênue, na melhor das hipóteses, e a sangrenta história de San Domingo deve ter levado outros, além de Chateaubriand, a perguntar “quem agora pleitearia a causa dos negros depois dos crimes que cometeram? ”

A pergunta de Chateaubriand foi um apelo à mudança de experiência. E, de fato, em outro nível, a mudança que estamos discutindo pode refletir o impacto do desenvolvimento da experiência de contato racial. Um certo tipo de 'dados empíricos' - a 'degradação' visível dos tasmanianos - parece ter ajudado a minar a crença de Péron nas virtudes da vida selvagem. Depois de 1800, quando a maior exploração e colonização da África negra ainda não havia realmente começado, a 'evidência' de tal 'degradação' se acumulou à medida que os portadores de uma civilização européia em constante avanço avançando corporalmente, e muitas vezes com sangue, nos “selvagens” do globo. Esses dados “empíricos” são, obviamente, notoriamente sujeitos a distorções ideológicas ou convencionais. Mas este é precisamente o ponto. No apogeu do Nobre Selvagem, no final do século 18, os polinésios dos diários de Cook foram transformados nos exóticos homens naturais das Viagens de Hawkesworth. No século 19, tanto as circunstâncias do contato racial quanto a estrutura convencional em que o contato era percebido haviam mudado. A transformação literária de Hawkesworth tornou-se cada vez mais difícil; os próprios observadores estavam mais propensos a ver os selvagens como 'degradados'. Quando isso aconteceu, o Nobre Selvagem, de qualquer matiz, levou uma existência cada vez mais precária na imaginação da Europa Ocidental e da América do Norte branca.

A mudança que estamos discutindo também pode ser vista como um desenvolvimento da própria ideia de civilização. No século 18, as noções recentemente emergentes de 'progresso' e 'civilização' existiam em tensão, muitas vezes em um único mente, com ideias primitivistas mais antigas que estavam incorporadas na tradição do Nobre Selvagem. Mas como a ideia de civilização foi elaborada simultaneamente com a realidade social e material que simbolizava, essa coexistência tornou-se cada vez mais difícil. Com a expansão da civilização industrial, o crescente fosso visível entre o homem selvagem e o europeu civilizado não era mais fácil de ser superado, nem o estado anterior do anterior podia ser explicado simplesmente como 'história misteriosa' Quando as ideias de primitivismo e de progresso na civilização se separaram, 'civilização' se prestou muito facilmente a - na verdade, pareceu a alguns até mesmo exigir - uma interpretação racial.

4.3 Cabanis

 

Esse desenvolvimento foi explícito já em 1803 nos escritos de Saint-Simon, que foi um elo entre o evolucionismo social comtiano e seus antecedentes do século XVIII. Saint-Simon sentiu que os revolucionários erraram ao aplicar aos negros 'os princípios da igualdade'. Se tivessem consultado os “fisiologistas” - entre os quais Saint-Simon incluía o idéologue Cabanis - «teriam aprendido que o negro, por sua estrutura física básica, não é suscetível, mesmo com a mesma formação, de ascender ao intelectual nível dos europeus» Se o século 18 pensado em termos de uma civilização humana genérica, foi em parte simplesmente um reflexo do nível de conhecimento das diferenças físicas humanas. Por volta de 1800, esse conhecimento estava atingindo um nível que sugeria a alguns homens modificações na concepção da natureza humana do século XVIII. Isso se manifestou especialmente na obra de Cabanis; e, de fato, a psicologia idéológica, com seu forte viés fisiológico, não era inadequada para a interpretação racial. Em Saint-Simon, essas forças se uniram; e a ideia de civilização era vista agora em termos raciais.35

4.4 O problema das raças

 

Mas se o século 19 pensava mais em termos de “raça”, a própria “raça” ainda precisava ser explicada. Aqui, os impulsos diversificados e anti-igualitários se chocaram de frente com a ortodoxia religiosa ressurgente e a unidade bíblica da humanidade. O conservador religioso poderia aceitar a “raça” como uma força causal na história; mas ao mesmo tempo ele foi forçado a explicá-lo como o produto de processos ambientais históricos. Todas as raças humanas tiveram que ser reduzidas a uma única raiz Adâmica.

Os mais ousadamente heterodoxos defensores da 'raça' abraçaram uma doutrina que mais tarde veio a ser chamada de 'poligenismo': as diferenças físicas entre os homens eram grandes demais para serem explicadas como o produto do ambiente dentro do limitado período bíblico da existência do homem na terra ou para ser englobado em uma única espécie; portanto, Deus deve ter criado outras espécies de homem além de Adão. Prenunciado em especulações clássicas, avançado em 1655 no Prae-Adamitae de Isaac de la Peyrere, a posição poligênica foi delineada - embora em termos qualificados - por Lord Kames em seus Esboços da História do Homem em 1774, e defendida nas últimas duas décadas do século 18 por um um punhado de outros estudiosos.

Mas se teve seus precursores do século 18, o poligenismo foi mais difundido no meio social e científico mais adequado do século 19. De fato, dado o ponto de vista estático, não evolutivo e classificatório da anatomia comparativa de Cuvier, o poligenismo seguiu facilmente para aqueles suficientemente desinibidos pela ortodoxia religiosa. Em um nível, o debate entre monogenistas e poligenistas pode ser interpretado como um entre “protuberantes” e “divisores” do gênero homo. Ambos tomaram a definição de espécie de Cuvier como seu ponto de partida, e se a própria ortodoxia de Cuvier o impediu de abraçar o poligenismo, pode-se argumentar que, em aspectos importantes, o ponto de vista anatômico comparativo que ele desenvolveu era compatível com o poligenismo. Como Cuvier, os poligênicos colocaram limites estreitos na eficácia das forças ambientais na modificação das formas vivas; como Cuvier, alguns deles buscaram basear sua classificação na medição precisa da estrutura esquelética e, especialmente, craniana; como Cuvier, todos eles viam as diferenças cranianas como os correlatos das diferenças mentais que determinavam o desempenho racial.

Em 1859, o poligenismo, apesar de sua heterodoxia, era talvez a corrente dominante no pensamento antropológico físico na França, Inglaterra e Estados Unidos. Se nunca foi capaz de reivindicar a lealdade de figuras importantes como Blumenbach e Prichard, ainda assim definiu amplamente o escopo de seu pensamento antropológico, que foi uma tentativa longa e freqüentemente defensiva de provar a unidade da humanidade. Nesse sentido, o poligenismo - ou, mais amplamente, o problema da raça - era uma preocupação central da antropologia pré-darwiniana.

Estruturado pelas categorias de anatomia comparativa pré-evolutiva e ortodoxia bíblica, o debate entre monogenistas e poligenistas não sobreviveu por muito tempo em um ambiente darwiniano. Mas a antropologia não passou pelas águas turvas do pensamento racial pré-darwiniano sem passar por mudanças profundas do caráter mais profundo. Na França, essas mudanças foram tais que Paul Broca, herdeiro das tradições francesa e americana do pensamento poligênico e fundador da Sociétè d’Anthropologie de Paris não podiam mais aceitar a Société des Observateurs de l’Homme em seus próprios termos ecléticos “históricos naturais”. Em 1859, a “antropologia” na França havia sido amplamente remodelada ao longo de linhas anatômicas comparativas: era em primeira instância antropologia física e, acima de tudo, craniologia.

Mas, em 1860, o impacto do pensamento racial foi ainda mais longe, afetando também a tradição da etnologia evolucionista. Por serem semelhantes em método e teoria aos escritores do final do século 18, os etnólogos vitorianos diferiam em aspectos importantes. Na época em que a expansão europeia entrou em seu período culminante no final do século 19, o evolucionismo social havia sido amplamente expurgado de seus elementos primitivistas. Como disse Sir John Lubbock:

«o verdadeiro selvagem não é livre nem nobre; ele é um escravo de suas próprias necessidades, de suas próprias paixões; . . . ignorante em agricultura, vivendo da caça e imprudente no sucesso, a fome sempre o encara de frente e muitas vezes o leva à terrível alternativa do canibalismo ou da morte».

Para Degérando, a extensão da capacidade do selvagem de conceber ideias abstratas era uma questão em aberto. Para Herbert Spencer, a questão não estava mais em dúvida: “Condicionado como está, o selvagem carece de ideias abstratas”. A mente selvagem foi “investigada” e considerada deficiente; as diferenças mentais humanas eram agora concebidas em termos raciais. Se os evolucionistas vitorianos ainda propunham uma escala mais ou menos unilinear de evolução social, não se presumia mais que todos os homens a ascenderiam ao topo. Os tasmanianos de Péron haviam desaparecido da face da terra, e muitos escritores previram um destino semelhante para outras 'raças selvagens'. Como disse o sociólogo americano spenceriano Franklin Giddings:

Mesmo E. B. Tylor, cuja obra tem sido interpretada como um esforço para reabilitar o “método comparativo” do século XVIII após meio século de “período de dúvida”, diferia em aspectos importantes de Degérando. Para ambos, a ciência da antropologia era 'essencialmente uma ciência reformadora'. Mas o objetivo de sua reforma não era o mesmo. Para Degérando foi a elevação dos povos selvagens; para Tylor, foi a erradicação dos últimos vestígios de selvageria e barbárie da sociedade civilizada europeia.

 

 

4.5 Os observadores: Jauffret

De origem provençal e com trinta anos à época da Fundação, o Secretário Permanente, Louis-François Jauffret, é uma figura muito interessante: embora só tenha publicado uma estimada “Zoographie” em 1801, uma anterior obra educativa moral, Os encantos da infância e os prazeres do amor materno, classificaram-no entre os autores da moda. Organizou passeios pelo campo “com o objetivo de dar aos jovens uma ideia da felicidade que pode resultar para o Homem do estudo de si mesmo e da contemplação da Natureza”. Em agosto de 1801, a excursão aconteceu em Meudon. Depois de estudar botânica e ouvir quatro “Discursos” de Jauffret, os sessenta participantes reuniram-se para um jantar campestre. À sobremesa “Cidadão Guillard”, da Sociedade Filotécnica, “leu fábulas cheias de bom gosto e moralidade” e de May Meilleur, Presidente, no ano anterior, dos Observadores do Homem, uma tradução em verso de um poema de Herder. “Cidadão Le Blond”, outra personalidade activa dos Observadores, fez finalmente “a senhorita sua filha cantar versos encantadores, adequados à ocasião”. Obra pedagógica e interesses científicos populares estão refletidos no título de seus Passeios no Jardim das plantas . Com o propósito de dar aos jovens uma ideia da felicidade que pode resultar para o homem no estudo de si mesmo e da contemplação da natureza.A amplitude dos seus interesses é evidente na gama de projectos sugeridos por Jauffret na sua introdução a um volume proposto mas nunca publicado das memórias da Société: uma antropologia comparativa dos costumes e usos dos povos; uma topografia antropológica da França para ajudar a determinar a influência precisa do clima sobre o homem; um dicionário comparativo de todas as línguas conhecidas; uma “classificação metódica das raças” baseada numa anatomia comparativa completa dos povos; e um museu de etnografia comparativa. Jauffret chegou a propor um experimento – que ele considerava possível apenas em “um século tão esclarecido como o nosso” – para determinar as características do “homem natural”, observando durante a adolescência crianças “colocadas desde o nascimento em um único recinto, distante de todas as instituições sociais”. , e abandonado para o desenvolvimento de ideias e linguagem apenas ao instinto da natureza.”

Ao mesmo tempo, Jauffret ministrou cursos no Louvre (Salle des Ducs et Peers) sobre raças e seus costumes. Ele os continuou depois de 1815, no Museu de Marselha; nesta última cidade dirigiu, até sua morte, a Biblioteca Pública e o Gabinete de Medalhas e Antiguidades.

Foi Jauffret quem escreveu um “Panorama do trabalho realizado pela Sociedade”, lido na sessão pública de 29 Frimaire.

 

A obra do Padre Lafitau sobre a moral dos selvagens americanos comparada com a moral dos primeiros tempos (1724) organiza uma massa considerável de informações segundo um método que não é mais analítico, mas sintético: comparando termo por termo as crenças e costumes dos povos separados uns dos outros por séculos, no tempo, ou por obstáculos intransponíveis no espaço, lança os fundamentos de uma ciência do homem universal; para uma perspectiva histórica e geográfica, ele substitui uma perspectiva antropológica. Certamente ele quer sobretudo demonstrar que nunca houve e que não pode haver um povo ateu, que cada sociedade humana dá origem a deuses e cultos e assim dá testemunho da sua essência divina. Mas a tese é menos importante do que o espírito de síntese que, ligando factos retirados de toda a extensão do mundo selvagem, oferece dele uma nova visão e, por assim dizer, uma nova leitura. É significativo, porém, que seja através da etnologia comparada que a humanidade exótica, presente há mais de dois séculos nos horizontes do pensamento moderno, entre no campo do conhecimento. Os seus costumes e crenças só perdem a estranheza quando comparados com os dos “primeiros tempos”, dos quais os Antigos deixaram testemunho. É apenas através da sua própria cultura que o europeu percebe a realidade do mundo selvagem que, em si, lhe permanece estranho, inacessível. A metamorfose do homem selvagem em homem primitivo, porque faz dele um ser histórico, torna ao mesmo tempo possível uma finalidade antropológica; nele, finalmente, o homem europeu pode reconhecer-se e aprender a conhecer-se: basta-lhe abrir o espaço da sua própria história e incluir o homo sylvestris entre os seus antepassados. Constitui-se assim definitivamente o casal selvagem-civilizado que, através do jogo de paralelos e antíteses, ao longo de uma escala de seres e valores, controla todo o funcionamento do pensamento antropológico até ao início do século XIX. O homem selvagem funde-se com os seus sósias, citas ou alemães, e ocupa o seu lugar ao lado deles num vasto mito de origens.

 

Georges Cuvier

A mudança é evidente na vida de Georges Cuvier. Em 1790, o jovem Cuvier repreendeu um amigo por acreditar em 'alguns viajantes estúpidos' que alegavam que o negro e o orangotango eram interferentes e por tentar explicar as 'faculdades intelectuais' com base nas diferenças na estrutura do cérebro. Mas em 1817, Cuvier sustentou que a civilização egípcia não foi criada por 'qualquer raça de negros', mas por homens 'da mesma raça que nós', que tinham 'um crânio e cérebro igualmente grandes' e que não ofereciam nenhuma 'exceção a essa lei cruel que parece condenaram a uma inferioridade eterna as raças de crânios deprimidos e comprimidos ”. Nesse mesmo ano, ao colocar o homem à frente do Reino Animal, Cuvier descreveu seu desenvolvimento “moral” nos mesmos termos evolutivos sociais de Degérando, mas concluiu com uma ressalva crucial:
«Existem, porém, também certos aspectos intrínsecos causas que parecem impedir o progresso de certas raças, mesmo nas circunstâncias [ambientais] mais favoráveis».
Na descrição das três 'Variedades das Espécies Humanas' que se seguiram, Cuvier sustentou que a civilização da raça mongol permaneceu sempre estacionária e que os negros nunca progrediram além da barbárie total.

 

Entre os que responderam estavam o biólogo Georges Cuvier, no seu livro Ensaio sobre a Teoria da Terra que foi o último trabalho do escritor científico Robert Kerr, que o traduziu do ensaio introdutório dos quatro volumes de George Cuvier, Recherches sur les ossements fossiles de quadrupèdes.  Usando evidências geológicas como principal fonte de investigação, o ensaio de Cuvier tenta abordar as questões das origens da raça humana, da formação da Terra e da correlação entre restos fósseis incompletos e espécies existentes de animais. Extremamente influente em sua própria época, o ensaio continua sendo uma fonte de insights consideráveis sobre o desenvolvimento inicial da pesquisa geológica. Nos Ensaios sobre a teoria da terra Cuvier que trabalhava no Museu de História Natural de Paris, conseguiu comparar os ossos fósseis que escavou nas pedreiras de Montmartre com os de animais vivos hoje. Guiado pelo princípio da correlação, de que todas as partes de um animal devem ser coerentes e, por analogia, com as espécies vivas, Cuvier reconstruiu corajosamente criaturas extintas a partir dos esqueletos incompletos que desenterrou. Este processo é descrito em seu Ensaio sobre a Teoria da Terra.Trabalhando no Museu de História Natural de Paris, Cuvier conseguiu comparar os ossos fósseis que escavou nas pedreiras de Montmartre com os de animais vivos hoje. Guiado pelo princípio da correlação, de que todas as partes de um animal devem ser coerentes e, por analogia, com as espécies vivas, Cuvier reconstruiu corajosamente criaturas extintas a partir dos esqueletos incompletos que desenterrou. Este processo é descrito em seu Ensaio sobre a Teoria da Terra.

Georges Cuvier e a preservação dos crânios selvagens

Passar das “Considerações” de Degérando à breve “Nota instrutiva sobre as pesquisas a realizar relativamente às diferenças anatómicas entre as diversas raças do homem” de Cuvier é passar, em certo sentido, do século XVIII para o século XIX. Embora fossem contemporâneos, Degérando fazia claramente parte de uma tradição em declínio que se adaptava a um ambiente mudado, enquanto Cuvier (1769-1832) representava, na verdade, pode-se até dizer que promulgou, o ponto de vista que dominou amplamente a biologia na primeira metade. do século XIX: a tradição essencialmente estática e não evolucionária da anatomia comparada.

As memórias de Cuvier começaram com um breve resumo do estado do pensamento antropológico físico. Embora se soubesse há muito tempo que as raças humanas diferiam na cor da pele e na qualidade do cabelo, pensava-se que as diferenças esqueléticas se deviam a causas ambientais mecânicas. Daubenton chegou a afirmar que os crânios dos negros e dos chineses não lhe pareciam sensivelmente diferentes dos dos europeus. Mas o método de Camper para medir o ângulo facial mostrou que havia, de facto, diferenças raciais bem definidas, e a influência que diferentes estruturas cranianas podiam ter nas faculdades morais e intelectuais começava a ser apreciada. Blumenbach iniciou a investigação de 100 crânios de diferentes nações e estabeleceu “os limites da variabilidade das grandes raças do antigo continente, o negro, o amarelo e o branco. Mas ele não tinha crânios suficientes para distinguir outras raças com tanta precisão. Nem a descrição nem o retrato, por mais cuidadosos que sejam, seriam suficientes para esse propósito; foi necessário também coletar as diversas peças anatômicas em um único local para comparação detalhada. Mas, até agora, o material para a anatomia comparativa humana era tão escasso que Cuvier descreveu um “esqueleto inteiro” como “infinitamente precioso”.

Para obtê-lo, Cuvier sugeriu que, quando os viajantes testemunhassem ou participassem de batalhas com selvagens, não deveriam deixar de visitar “os locais onde os mortos são depositados”. Uma vez obtido – “de qualquer maneira”, cada esqueleto deveria ser fervido em potassa cáustica durante várias horas para remover a carne, após o que os ossos deveriam ser colocados num saco, rotulados e enviados de volta para a Europa, onde poderiam ser remontados. Também seria desejável trazer alguns crânios com a carne ainda intacta. Bastava mergulhá-los numa solução de sublimado corrosivo e colocá-los para secar, e eles se tornariam duros como madeira, com suas formas faciais preservadas sem atrair insetos. É verdade que os marinheiros podem opor-se a tudo isto como bárbaro, mas os líderes devem lembrar-se de que uma expedição científica deve ser “governada apenas pela razão”.

Sem questionar a utilidade científica de tais técnicas, deve-se ainda observar que esta era uma abordagem aos povos selvagens muito diferente daquela de Degérando – diferente no foco, na suposição e na atitude. O foco de Cuvier era a “raça”, as diferenças físicas herdadas permanentes que distinguem os grupos humanos. Ele presumiu que a “raça” era um fator importante na determinação de características culturais peculiares. E para o propósito científico desta curta “Nota Instrutiva”, sua atitude em relação ao selvagem era a do ladrão de túmulos, e não a do filantropo.

 

O cidadão Degérando, ou Joseph Marie de Gérando (1772-1842), como era conhecido em tempos menos igualitários, foi um dos mais flexíveis e ideólogos ecléticos que foram capazes de se ajustar à atmosfera cada vez mais conservadora da era napoleônica. Ele encontrou sua vocação em 1799 quando os ideólogos, de seu reduto na Classe des Sciences morales et politiques do Instituí, propuseram um concurso sobre a “influência dos símbolos na formação das idéias”. Degérando, que percorreu um caminho tortuoso de uma origem monarquista a uma posição nas fileiras do exército da República, apresentou o livro de memórias premiado. Chamado para Paris, ele logo se tornou um membro associado da Classe. . . morales, entrou a serviço do governo e iniciou uma longa e ativa carreira como filósofo, publicitário, filantropo e Observateur de l’Homme.

 Método de pesquisa

As “Considerações sobre os métodos a seguir na observação de povos selvagens” é um documento fascinante. Degérando, a essa altura inteiramente dentro da tradição iluminista, sustentava que a “ciência do homem” compartilhava o método das ciências naturais: a partir da observação cuidadosa, passava-se à análise comparativa, e daí às “leis gerais” do desenvolvimento humano e comportamento. E entre os homens, os selvagens eram especialmente adequados para esse estudo, uma vez que o homem em um estado mais primitivo estava sujeito a menos influências modificadoras e, portanto, era mais fácil “penetrar na natureza e determinar suas leis essenciais”.

As Considerações sobre os Diversos Métodos a Seguir na Observação dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) são, quanto a isso, exemplares. Primeira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma missão nas ’’Terras Austrais”, esse texto é uma crítica da observação selvagem do selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele próprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ciência - qualificada de ’’ciência do homem”ou ’’ciência natural— é uma ’’ciência de observação”, devendo o observador participar da própria existência dos grupos sociais observados.

Etnocentrismo

Infelizmente, a ciência do homem tinha até agora naufragado com a inadequação das observações anteriores. Fosse por causa da brevidade das visitas ou dos caprichos da atenção, a maioria dos relatos existentes sobre selvagens eram extremamente assistemáticos e incompletos. Mas, pior do que isso, seu conteúdo era de validade incerta. Frequentemente julgando mal uma nação por um único indivíduo, ou com base em uma recepção inicialmente hostil, os viajantes anteriores eram culpados de todos os tipos de 'hipóteses duvidosas', que muitas vezes resultavam etnocêntricas pela sua tendência de julgar costumes selvagens em analogia aos seus próprios. “Assim, após determinadas ações, eles atribuem a. . . [selvagens] certas opiniões, certas necessidades, porque em nós. . . [essas ações] normalmente resultam dessas necessidades ou opiniões. Eles fazem o selvagem raciocinar à nossa maneira, quando o próprio selvagem não explicou seu raciocínio. É por isso que muitas vezes pronunciam sentenças tão severas contra uma nação, que a acusam de crueldade, de roubo, de devassidão, de ateísmo ”. O pior de tudo foi o fracasso quase universal em aprender a linguagem selvagem. De que outra forma alguém poderia apreciar sua 'maneira de ver e sentir', ou registrar 'os traços mais secretos e essenciais de seu caráter', ou interpretar suas tradições para obter informações sobre o povoamento da terra e as 'diversas causas para o estado presente em quais nações são encontradas? ”Não é de admirar que a maioria dos relatos de viagens“ nos transmita descrições bizarras que divertem a curiosidade ociosa do vulgo, mas que não fornecem informações úteis para o espírito científico ”.

Necessidade de conhecer a língua nativa

Parte da dificuldade de observação adequada poderia ser superada pelo uso de “tabelas regulares” nas quais as observações pudessem ser registadas na ordem apropriada, em terminologia descritiva precisa e não avaliativa. Mas o problema da linguagem era crucial; a melhor maneira de entender os selvagens era se tornar “como um entre eles” e somente aprendendo sua língua alguém poderia se tornar seu “concidadão”. Para tanto, partia-se do zero - ou da tábula rasa - e seguia-se uma progressão ordenada com base nos pressupostos da psicologia iluminista. Uma vez que a linguagem articulada do selvagem era, sem dúvida, composta de símbolos tão arbitrários e convencionais quanto os nossos ”, deve-se começar, como acontece com as crianças,“ com a linguagem da ação ”, aprendendo e registando primeiro indicativo, depois descritivo e, finalmente, gestos metafóricos. Pelo contacto assim estabelecido, o observador usava gestos para aprender as palavras da linguagem articulada na ordem da 'geração de ideias': de objetos sensíveis a qualidades sensíveis (por exemplo, cores) a ações sensíveis (por exemplo, caminhar), e só então para termos de relacionamento (por exemplo, advérbios). De associações simples, avançamos para ideias complexas e daí para ideias abstratas, das quais mesmo 'selvagens não podem ser totalmente privados'. Começando com aquelas baseadas nas comparações menos repetidas, progrediu-se por meio de ideias mais complexas até o ápice da epistemologia associacionista: a ideia reflexiva, sempre evitando atribuir aos selvagens “os raciocínios de nossos philosophes”.

Observar o homem

Mesmo antes de dominar a linguagem selvagem, pode-se começar a observar o indivíduo selvagem e sua sociedade. Estes também deveriam ser encomendados dentro de uma estrutura antropológica semelhante. De perspectiva materialista e ambientalista, os idéólogos viam as sociedades humanas como sistemas de indivíduos atômicos relacionados pelas leis newtonianas de atração social; iniciava-se, portanto, com uma descrição do ambiente físico e, em seguida, das características físicas de um indivíduo típico: sua força corporal, movimentos, saúde, longevidade, etc. Do corpo avançava-se para a mente pela ponte da sensação, que Degérando aparentemente pretendia explorar por uma série de testes psicofísicos do aparelho sensorial do selvagem. Da sensação, o observador seguiu mais uma vez a mesma progressão associacionista por meio de ideias simples e complexas, em última análise, até as 'faculdades' do selvagem, ainda na sequência genética: imaginação, atenção, memória, previsão e (talvez) reflexão. Só assim se poderia determinar a posição precisa “que este indivíduo ocupa na escala da perfeição intelectual”.

Observar a sociedade

A “sociedade em geral” que Degérando via como um “agregado de famílias” passaria a ser observada em seus quatro grandes aspectos: político, civil, econômico e ético-religioso. Houve agregações intermediárias parciais ou distinções na classificação? Embora um povo pastor ou caçador sem dúvida não tivesse nenhuma ideia da propriedade da terra, eles tinham uma ideia da propriedade das ferramentas ou produtos de seu trabalho? Até que ponto eles se deram conta dos afectos que unem os homens em grupos maiores? Eles amam a liberdade? Eles consideravam um culto exterior como um elo necessário com um Ser Supremo? Seus antepassados estavam interessados apenas em “manter sua nação na ignorância e na barbárie”? Por fim, e mais difíceis de penetrar, eram as “tradições” dos selvagens, que podiam “lançar uma luz preciosa sobre a misteriosa história dessas nações”. E como ponto culminante de toda observação em campo, o filosofo-viajante pode trazer de volta à França uma família de selvagens: “Teríamos então em microcosmo a imagem daquela sociedade da qual eles foram expulsos”.

De Gerando evolucionismo comparativo

O livro de memórias de Degérando é fascinante simplesmente como um resumo resumido da antropologia do Iluminismo francês. Mas é de muito mais interesse do que antiquário para a história da antropologia. Apesar de todo o seu rigor empírico, suas instruções tomam como certo uma concepção da natureza da mudança social e do método de seu estudo apropriado que se tornaria parte da herança de suposição da etnologia social evolucionista do final do século XIX. Para Degérando, as linhas gerais de todas as mudanças sociais foram fornecidas com antecedência. A natureza humana foi fundamentalmente a mesma em todas as épocas e lugares, e seu desenvolvimento foi governado por leis naturais: o homem se desenvolveu desde seu estado inicial em um progresso evolucionista lento e unilinear, cuja manifestação actual mais elevada era a sociedade da Europa Ocidental. A natureza exata dessas leis e o curso exato do desenvolvimento histórico podem ser objeto de investigação empírica, mas que sua existência e caráter essencial foram assumidos de antemão é evidente a partir da maneira como a história 'conjectural' inicial do homem deveria ser reconstruída: o 'método comparativo'. Por alguma razão misteriosa, nem todos os grupos humanos progrediram no mesmo ritmo e, portanto, foi possível construir 'uma escala exata dos vários graus de civilização e atribuir a cada um as propriedades que o caracterizam' e, assim, reconstruir ' as primeiras épocas da nossa própria história. ” Por quê ?: porque as várias sociedades que coexistem no presente representavam as várias etapas dessa sequência (que, de fato, foi assumida de antemão). “O voyageur-philosophe que navega em direção às extremidades da terra atravessa com efeito a sequência das eras; ele viaja no passado; cada passo que ele dá é um século sobre o qual ele salta. ” Como FredErick J. Teggart e seus alunos apontaram que essas suposições, enraizadas na tradição clássica e elaboradas pelos participantes da disputa dos Antigos e Modernos, eram amplamente difundidas no pensamento social do final do século XVIII. Transmitidos ao século 19 por meio do trabalho de escritores como Comte, eles se tornariam parte integrante da teorização dos antropólogos vitorianos.
Para Degérando, no entanto, esses pressupostos tiveram um significado ainda mais amplo: eles forneceram um elo entre sua ciência e sua filantropia. A ciência delineou o curso normal do desenvolvimento humano; a filantropia, auxiliada e guiada pela ciência, elevaria o selvagem misteriosamente retardado ao nível de seu irmão europeu. Se ele não tivesse escalado a escala da civilização até seu ponto mais alto, não havia dúvida de sua capacidade de fazê-lo. “Que propósito mais tocante do que restabelecer os nós sagrados da sociedade universal, do que reencontrar esses antigos pais separados por um longo exílio do resto da família comum, do que estender a mão com a qual eles se erguerão para um mais feliz Estado! “O comércio era a chave para o progresso selvagem, mas seu papel tinha uma base científica. O comércio criaria nos selvagens novas “necessidades” e novos “desejos”, e isso os levaria a estágios superiores. “Sempre bem recebidos, bem tratados, testemunho da nossa felicidade, das nossas riquezas, e ao mesmo tempo da nossa superioridade, talvez. . . eles nos chamarão ao seu meio para mostrar-lhes o caminho que os conduzirá ao nosso estado. Que alegria! Que conquista! ”
Degérando não era um relativista cultural. Tanto suas categorias analíticas quanto seus padrões de avaliação derivavam da cultura europeia, que em todos os aspectos importantes era para ele a mais alta expressão de perfectibilidade humana já alcançada. Assim como ele achava que os selvagens se beneficiariam com a introdução da ciência e da economia europeias, ele também achava que eles se beneficiariam com a introdução de roupas europeias. Mas se sua própria civilização era inquestionavelmente superior, não era uma civilização única para qualquer etnia. Não era apenas francês, mas europeia e, em certo sentido, era mais do que isso: era humana, e todos os humanos podiam alcançá-lo e desfrutá-la. O que falta totalmente nas 'Considerações' de Degérando é qualquer conceito de 'raça', qualquer noção de diferenças hereditárias permanentes entre os grupos da família humana. É verdade que Degérando estava preparando as instruções para a observação do homem em seus aspectos “morais” ou culturais, mas não deixou, portanto, de considerar as relações de corpo e mente, ou os efeitos de diferenças corporais individuais, ou a existência de diferenças entre grupos de selvagens. Mas esses grupos sempre foram “povos” ou “nações”, “nunca“ raças e suas diferenças eram mais ambientais do que hereditárias. Neste Degérando não era totalmente representativo dos Observadores. Mas talvez fosse representante de algo mais amplo: o otimista e o humanitarismo igualitário abrangente da tradição revolucionária francesa.

 

 

Peron

Abandonando a tradição ambivalente de Rousseau, Péron parece ter abraçado o evolucionismo social irrestritamente otimista de Degérando; mas também há evidências em seu trabalho de uma tradição emergente que pode estar associada a Cuvier. Ao contrário de Degérando, Péron não era indiferente à corrida. Ele se refere frequentemente às características físicas peculiares de diferentes raças humanas e, de fato, preparou um livro de memórias sobre as peculiaridades genitais da mulher hotentote, que ele investigou em sua viagem de volta à França. Na verdade, pode-se argumentar que há no segundo volume de Péron a sugestão de uma posição que ia além daquela que o próprio Cuvier foi capaz de aceitar: o poligenismo racial, ou a suposição de que as diferenças raciais humanas eram aborígenes e datavam da primeira aparição do homem na Terra. . Em um livro de memórias 'Sobre certos fenômenos da zoologia das regiões do sul aplicáveis à história física do globo e à da espécie humana', Péron especulou sobre as teorias geológicas então conflituantes do Vulcanismo e Neptunismo e sobre a antiguidade da separação entre Tasmânia e Austrália. Apesar de sua proximidade geográfica, Péron sentiu que havia uma
“diferença absoluta nas raças que povoam cada uma dessas terras”. Mas por sua fraqueza física, eles dificilmente eram semelhantes - nem em 'seus costumes, seus usos, suas artes rudes, nem em seus implementos para caça e pesca, suas habitações, suas pirogas, suas armas, nem em sua constituição física geral , a forma de seu crânio, as proporções de sua gordura, etc.”
Péron usou essas diferenças 'raciais', juntamente com dados geológicos e zoológicos, para apoiar a visão de que Tasmânia e Austrália estavam geograficamente separadas desde 'antes da época da população desses países'. Mas, em vista do título de suas memórias e de seu comentário ainda não elaborado de que esses factos ofereciam uma nova prova 'da imperfeição de nossos sistemas nas comunicações dos povos, suas transmigrações e a influência do clima no homem', parece que Péron alimentava a então radical - mas não inédita - ideia de que essas duas raças absolutamente diferentes, cujas diferenças não eram facilmente explicadas em termos de migração ou clima, eram de facto originalmente distintas.

 

 

Cabanis

Esse desenvolvimento foi explícito já em 1803 nos escritos de Saint-Simon, que foi um elo entre o evolucionismo social comtiano e seus antecedentes do século XVIII. Saint-Simon sentiu que os revolucionários erraram ao aplicar aos negros 'os princípios da igualdade'. Se tivessem consultado os “fisiologistas” - entre os quais Saint-Simon incluía o idéologue Cabanis - «teriam aprendido que o negro, por sua estrutura física básica, não é suscetível, mesmo com a mesma formação, de ascender ao intelectual nível dos europeus».  Se o século XVIII pensado em termos de uma civilização humana genérica, foi em parte simplesmente um reflexo do nível de conhecimento das diferenças físicas humanas. Por volta de 1800, esse conhecimento estava atingindo um nível que sugeria a alguns homens modificações na concepção da natureza humana do século XVIII. Isso se manifestou especialmente na obra de Cabanis; e, de fato, a psicologia idéológica, com seu forte viés fisiológico, não era inadequada para a interpretação racial. Em Saint-Simon, essas forças se uniram; e a ideia de civilização era vista agora em termos raciais.

 

De Maistre

As Noites de Pedroburgo obra mais conhecida de De Maistre. Nele, porém, há referências diretas à dominação política, na qual de Maistre é considerado um 'reacionário'.  Na verdade, existem principalmente considerações sobre problemas morais e religiosos, e o mesmo subtítulo do livro 'Conversas sobre o governo temporal da Providência' Supondo a existência de uma Providência concebida em termos moralizantes, de Maistre enfrenta o problema de conciliá-la com o espetáculo que o mundo e a história em sua factualidade nos apresentam: maldades que não são punidas, virtudes que não tinham nenhuma recompensa.

As Noites de Pedroburgo

Recorre à ideia de uma justiça divina  uma visão mais clara e satisfatória quando compara os males e as contingências. Ou seja, devemos pensar que o ser, assumindo o estado humano de existência é exposto a contingências específicas deste estado. Procurar conexões morais transcendentes em um ou outro caso é algo que se pode fazer naturalmente. Para mencionar algumas ideias de Maistre que são interessantes já que ponto de vista tradicional.

Primeiro, pode-se indicar o de uma Tradição Primordial. Pode ser que De Maistre não está em dívida com Claude de Saint-Martin, que conheceu e que foi um expoente das doutrinas esotéricas. Depois, há a tese de que o estado natural original da humanidade não era o da barbárie. Ao contrário, teria sido de luz e conhecimento, enquanto o selvagem, o suposto 'primitivo', teria sido apenas 'o descendente de um homem que se separou da grande árvore da civilização após um ato de abuso que não pode ser repetido”.

Mas noutros aspectos o homem sente os efeitos do abuso e da consequente degradação, causas de sua vulnerabilidade não apenas espiritual e intelectual, mas também física. Tal ideia é evidentemente semelhante ao do “pecado original” da mitologia cristã, sendo o quadro, no entanto, mais amplo e mais aceitável. Quanto à tese acima mencionada sobre a verdadeira natureza dos 'primitivos', seria tal que levaria a investigação a um nível superior etnológico e para evitar que cometa muitos erros. De Maistre acusa cientistas e afins, que, como numa conspiração, não permitem que ninguém saiba mais do que eles ou de uma forma diferente da deles.

“Julgamos uma época em que os homens viam os efeitos nas causas com a mentalidade de uma época em que os homens lutam para voltar dos efeitos às causas, ou dizem que é inútil lidar com as causas, ou não sabem quase mais do que uma causa. Ele acrescenta:

Causa física

Milhares de falacias se escutam sobre a ignorância dos antigos que eles viram espíritos por toda parte: parece-me que somos muito mais tolos do que eles porque não vemos nenhum em lugar nenhum. Sempre ouvimos falar de causas. Mas o que é, em suma, uma causa física?

Para ele, o axioma: «Nenhum evento físico concernente ao homem pode ter uma causa superior».

A ideia de progresso é negada. A de uma involução parece muito mais plausível. De Maistre observa que múltiplas tradições atestam que 'os homens começaram com a ciência, mas com uma ciência diferente da nossa e superior a ela, porque partiu de um ponto mais alto, o que também a tornou muito perigosa. E isso explica por que a ciência, em seus primórdios, sempre foi misteriosa e permaneceu fechada na esfera dos templos, onde finalmente morreu quando esta chama não poderia servir outro propósito senão queimar', mas, estritamente falando, é o oposto que seria exigido que se fizesse provar, o que não é fácil. Encontramo-nos diante da antítese entre a oração da virtude que lhe é atribuída e a imutabilidade das leis da natureza, antítese que De Maistre tenta enfrentar, embora de forma pouco convincente.

Ele acredita que se as orações não forem respondidas, é apenas devido à sabedoria divina superior.

'Ninguém pode tentar que uma nação que ora não foi atendida'

O pedido de desculpas de De Maistre do carrasco como instrumento de Deus é frequentemente citado com escândalo, assim como o seu concepção do caráter divino da guerra. Infelizmente, este último aspecto não é considerado o que o

a guerra pode propiciar em termos de heroísmo, de ações superindividuais, mas é vista nos termos sombrios da expiação que afecta uma humanidade fundamentalmente culpada e degradada. A diferença entre guerra justa e injusta, entre a guerra de defesa e de conquista, entre guerras vencidas e perdidas, não é considerada. Estas são opiniões que têm pouca importância concordamos com uma orientação positivamente “reacionária”.

Em outra de suas obras, de Maistre, declarando-se a favor de uma restauração, enuncia um conceito importante ao dizer que a contrarrevolução não deve ser uma, mas sim Devemos a ele uma espécie de teologia da revolução; ele destaca o que é 'demoníaco' esconde-se, em geral, no fenómeno revolucionário. Este aspecto também é perceptível pelo fato de que a revolução transporta seus criadores, em vez de se deixar guiar verdadeiramente por eles. Somente na era moderna o fenômeno poderia ter ocorrido uma “revolução permanente” mais ou menos institucionalizada, com os seus técnicos e os seus manipuladores lúcidos.

Não podemos resistir à tentação de relatar o que diz De Maistre acerca da mulher:

«A mulher só pode ser superior como mulher, mas a partir do momento em que ela quer imitar o homem, se torna um macaco».

Bibliografia

 

Topinard, P. (1895). L’anthropologie. Reinwald et Cie.

Bourguet, L. (1762). Lettres Philosophiques sur la formations des sels et des crystaux. Marc-Michel Rey.

Chandeigne, Michel, and Jean-Paul Duviols. 2011. Sur La Route de Colomb et Magellan. Montpellier: Le Cavalier Bleu.

Deschamps, M.-H. (1857). Études des Races Humaines. Leiber et Comelin.

Degerando, M.-J. (1973). Dos signos e da arte de pensar considerados em mútuas relações. In Textos escolhidos (pp. 329–436). Victor Civita.

Démeunier, M. (1776). L’esprit des usages et des coutumes des différens peuples: Vol. I. Pissot.

Letorneau, C. (1880). La sociologie d’après l’ethnographie. Reinwald.

Degerando, J. M. 1799. Considérations sur les Méthodes à suivre dans l’observation des peuples sauvages. Paris: Société des Observateurs de l’Homme.

Duchet, Michèle. (1971). Anthropologie et histoire au siècle des lumières. Paris: Albin Michel.

Stoking, W. George. 1964. “French Anthropology in 1800.” Isis 55(2):134–50.

De Gérando, M. L. B. (1859). De la bienfaisance publique. Bruxelles: Socoété belge de librairie.

Stoking, W. G. (1964). French Anthropology in 1800. Isis, 55(2), 134–150.

Jauffret, Louís-François. 1797. Voyage Au Jardin Des Plantes. Paris: De l’imprimerie de Ch. Houel.

Lafitau, Joseph-François. 1724. Moeurs Dea Sauvages Ameriquains, comparées aux Moeurs des Premiers Temps. Paris: Saugraisn et Charles Etienne Hochereau.

Cuvier, George. 2009. Essay on the Theory of the Earth. New York: Cambridge University Press.

 

Segunda Lição: 18 de Outubro - Tylor

 

                                           Edward Burnett Tylor

 

Edward Burnett Tylor

 

A Grã-Bretanha da Rainha Vitória, que reinou de 1837 a 1901, pode ser considerada o berço da antropologia moderna. Na Europa continental não faltaram estudiosos que deram uma contribuição neste campo de estudo. Mas foi durante o longo reinado deste soberano que a Grã-Bretanha se estabeleceu como a maior potência industrial, colonial, militar e política. Durante este período, a Grã-Bretanha se apoderou de toda a Índia, estendeu seu controle sobre grande parte da África e disseminou o Oriente Médio, Sudeste Asiático e América do Sul com seus próprios escritórios diplomáticos e postos comerciais. Austrália, Nova Zelândia e grande parte da Oceânia estavam sob a coroa britânica, enquanto seu poderio militar lhe permitia enfrentar a expansão da Rússia czarista na Ásia Central e ditar ordens ao império chinês. O progresso alcançado em casa havia sido notável. Após o período do "capitalismo gatuno" que, sob a bandeira do liberalismo desenfreado, criou enormes massas de pobres, o proletariado inglês foi melhorando lentamente sua condição graças ao nascimento de organizações sindicais que surgiram sob o impulso do socialismo reformista, utópico e revolucionário . A burguesia e a aristocracia liberal (reformista), por outro lado, favoreceram a elevação económica, social, política e cultural do proletariado através do aumento dos salários, o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, o sufrágio universal (estendido porém apenas aos homens), e um vasto e difundido trabalho de alfabetização e escolarização. A Grã-Bretanha estava então na vanguarda. É claro que não se deve esquecer que esses "avanços" no campo social foram obtidos graças à exploração das colónias, seus recursos e suas populações, situação que já então lançava as bases daquela divisão económica e política entre o Norte e o Sul do mundo do qual hoje experimentamos efeitos muitas vezes dramáticos. Os sucessos no campo técnico-científico, e as conquistas nos campos colonial e social, confortaram uma visão optimista e progressista do desenvolvimento histórico. Esta visão ofereceu uma chave para interpretar a história da humanidade que, no entanto, precisava de "evidências empíricas" para ser apoiada. Essas evidências foram fornecidas pela antropologia. A antropologia moderna nasceu, de fato, de uma libertação gradual da especulação filosófica e da produção de conhecimento empírico cumulativo relativo a populações extra-europeias e da própria Europa.

Biografia

E DWARD B. TYLOR, que morreu em 2 de janeiro de 1917, aos oitenta e quatro anos, era uma personalidade histórica. Colega e companheiro de armas de Wallace, Huxley e Spencer. Ele mesmo advogava - não uma aceitação servil de princípios, mas um seguimento de métodos através das melhores evidências para fins mais elevados. A família de Tylor era Quakers, então uma minoria religiosa, embora parte da classe média britânica. A religião de Tylor impediu a educação em Oxford ou Cambridge, pois a admissão nestas universidades eram reservada apenas aos membros da Igreja da Inglaterra. Tylor foi educado nas escolas Quaker antes de ingressar na empresa de fundição de ferro familiar aos dezasseis anos. A educação Quakers também o levou a um agnosticismo que temperou os seus estudos sobre as origens da religião. Ackerman observa que o agnosticismo de Tylor o levou a abordar as religiões como sistemas intelectuais, em vez de expressões de crença, (1987: 77).

A familia de Tylor

Tylor nasceu em Camberwell, Inglaterra, no dia 2 de outubro de 1832. Seu pai Joseph Tylor inha uma fundição de bronze bem encaminhada, que pertencia à família. Ambos os pais eram Quakers e Tylor queria ser livre do formalismo religioso herdado deles. Edward Burnett Tylor nasceu em Camberwell em 2 de outubro de 1832 e estudou na Grove House School, em Tottenham. O seu espírito de independência impediu-lhe de ser formado na cultura clássica: e não conseguiu ultrapassar os exames de ortodoxia religiosa, que eram requeridos para a admissão à Universidade. Em vez disso recebeu uma educação breve e informal numa escola mantida pela Sociedade dos Amigos. Aos dezasseis anos, ele trabalhou na empresa do pai por sete anos. O pai era o proprietário-operador de uma fundição de bronze, e Tylor deixou a escola aos seis anos de idade para trabalhar na empresa da família. Em 1855, com a idade de 23 anos, apresentou sintomas de um esgotamento orgânico grave, e sintomas preliminares de tuberculose, o seu médico aconselhou-o a deixar o trabalho e dedicar sua vida a  lazer e viagens.e deixou assim o trabalho da família e viajou para latitudes mais quentes para recuperar sua saúde.  (Hatch 1973: 16)

Como se tornou antropologo

Na primavera de 1856, ele estava em Cuba. Em Havana dentro de um autocarro, escutou um passageiro que usava o pronome arcaico 'thou' que, durante este tempo, era uma fraseologia típica dos Quakers. Tylor se aproximou do estrangeiro e apresentou-se, era Henry Christy, um arqueólogo e etnólogo que teria transformado a sua vida. Os dois imediatamente simpatizaram, Christy persuadiu Tylor para acompanhá-lo numa expedição arqueológica no México e assim Christy descobriu Tylor como antropólogo. Durante a viagem com frequentes paradas, o arqueólogo Christy procurava ravinas na estrada em busca de pontas de flechas de obsidiana (Tylor 1861: 35). Sob a orientação de Christy (mais velho dele de 20 anos), o poder natural de observação que ele possuia, e seus juizos equilibrados foram direcionados para reconstruir a cultura pré-histórica do México. Descobriu achados pertencentes aos Mayas e aos Incas, bem como tradições populares, costumes, crenças e lendas observadas e colhidas entre as populações do México. Ele observou que muitos costumes eram parecidos ou mesmo idênticos aos costumes dos povos antigos. Os dois viajadores visitaram sítios arqueológicos e procuraram por repertos comparando-os com as descobertas recentes da Europa.
Os dois partiram para uma viagem de quatro meses pelo México, desta viagem saiu o primeiro livro de Tylor, um diario de viagem com o título Anahuac: Or, Mexico and the Mexican, Ancient and Modern (1861). Mas a maior parte do livro Anahuac descreve o México moderno, não antigo.  

Experiência mexicana

Tylor e Christy percorreram plantações de cana-de-açúcar, fábricas e lojas de tecidos e fazendas. Ele descreve a instabilidade política e a pobreza do México. A educação anticlerical de Tylor irrompe em uma série de diatribes contra a Igreja Católica. Suas críticas são tão pungentes que o próprio Tylor admite: “Parece difícil estar sempre atacando o clero católico romano”, mas depois passa a culpar os padres pela “ignorância desalentadora” e pela pobreza da população (1861: 126). Em Anahuac, Tylor se mostra um escritor informado e observador, embora não sem preconceitos. Nos quatro anos seguintes, Tylor amadureceu e se tornou um estudante mais sério da cultura humana. Em 1865, ele publicou Pesquisas sobre o Início da História da Humanidade e o Desenvolvimento da Civilização, onde delineou os temas analíticos que ele mais tarde desenvolveu no seu livro “A primeira história da cultura da humanidade”, escreveu Tylor, “deve ser tratada como uma ciência indutiva, coletando e agrupando fatos” (1964: 137). Tylor vasculhou os relatos dos missionários, os diários dos exploradores, os textos antigos e os relatórios etnológicos para procurar semelhanças nas culturas humanas. “Quando artes, costumes, crenças ou lendas similares são encontrados em várias regiões distantes, entre povos que não são conhecidos por serem da mesma raça”, perguntou Tylor, “como essa similaridade é explicada?” (1964: 3).

Academia Universitária

Tylor não obteve um diploma universitário, mas tornou-se um dos principais antropólogos acadêmicos e profissionais na Inglaterra. Em 1883 foi nomeado Guardião do Museum da Universidade em Oxford; Pouco depois, foi nomeado leitor em antropologia e, em 1896, tornou-se o primeiro professor de antropologia de Oxford. Ele ocupou essa posição até 1909. Tylor é conhecido por sua cuidadosa pesquisa, uso crítico de fontes e sua postura teórica moderada e bem fundamentada. Até mesmo Lowie, um dos mais severos críticos da escola evolutiva de pensamento, fala com aprovação sobre ele: 'o lapso de tempo apenas confirmou o julgamento anterior de sua grandeza' (Lowie 1937: 68). Tylor também era bem visto como um indivíduo: sua simplicidade, paciência e humor quieto o tornaram popular como professor e organizador, e contribuiu para um estilo fácil e persuasivo que conquistou uma ampla audiência para seus escritos. Seus escritos eram sempre livres de pretensões de qualquer tipo, uma consequência, talvez, do fato de que ele foi tirado da escola aos dezesseis anos e nunca mais se tornou um 'estudante' no sentido acadêmico (Kardiner e Pre

Obras

O interesse pessoal de Christy presta e a viagem americana levou à primeira publicação de Tylor, um livro sobre Anahuac; ou o México e os mexicanos (1861). Neste livro divulgativo e discursivo, ele dá uma clara evidência de um interesse crescente em questões antropológicas. Anahuac foi seguido em breve por vários artigos sobre tópicos antropológicos, Vários anos depois surgiram as Pesquisas sobre o Início da História da Humanidade e o Desenvolvimento da Civilização (1865).   Apesar de não ter tido formação universitária, Tylor colaborou com a Universidade de Oxford, tanto na qualidade de guardião do Museu Universitário e como professor, sendo 'leitor em antropologia' de 1884-1895 e 'professor' de 1895-1909, quando se tornou professor emérito. e em 1865 por seu primeiro trabalho antropológico substancial. As ideias de Tylor continuaram a se desenvolver em uma série de palestras e artigos sobre temas como o desenvolvimento da religião e da linguagem, e  sua fama profissional, que atingiu seu apogeu em 1871 com a publicação de Cultura Primitiva: Pesquisas no Desenvolvimento da Mitologia, Filosofia, Religião, Linguagem, Arte e Costumes. Este trabalho é uma análise das crenças e práticas religiosas primitivas, entre outras coisas. Embora ambos os volumes da Cultura Primitiva estão cheios de material descritivo, estes dados são direcionados para o estabelecimento de certos princípios teoréticos, cujo fundamento é que a cultura da humanidade é governada por leis evolucionistas este livro teve um impacto considerável sobre a antropologia holística e mudou a ênfase longe do estudo de tópicos como lei e arqueologia para proteger a religião linha 1966: 235-39). A Cultura Primitiva foi a pedra angular da carreira de Tylor; embora continuasse a lecionar e escrever durante vários anos após sua publicação, o que se seguiu continha pouco que ele já não tivesse dito (Stocking 1968b: 174). O único trabalho de livro que ele publicaria subsequentemente foi sua Antropologia (1881), uma introdução geral ao livro. Em 1881, ele escreveu um dos mais úteis textos de Antropologia uma Introdução ao Estudo do Homem e da Civilização.

 

A Antropologia de  Tylor

A "Ciência das Sociedades Primitivas"

 A antropologia que se desenvolveu na Grã-Bretanha vitoriana foi, por um tempo, tão "otimista" quanto a sociedade que a produziu. Chegou mesmo a ser definida como "a ciência do reformador", precisamente para indicar a ideia de que a antropologia, com os seus conhecimentos, poderia dar um contributo útil a uma humanidade que necessita de reformas sociais, políticas e culturais. Quem o definiu desta forma foi Edward B. Tylor (1832-1917) considerado um dos fundadores da disciplina e, de certa forma, a figura de maior autoridade desta época.

 

Positivismo

O positivismo não tem dúvidas sobre a realidade do mundo externo ou que nesse mundo pode ser apreendido e compreendido é objetivamente. Um elemento importante desse realismo é a visão de que o mundo opera de acordo com as leis naturais, e que isso é tão verdadeiro para a sociedade e para as instituições sociais quanto para as moléculas ou organismos vivos. Consequentemente, a explicação nas ciências sociais é essencialmente a mesma explicação nas ciências naturais, e consiste em interpretar os eventos a serem explicados sob leis empíricas naturais do universo  A crença de Spencer na causalidade levou-o à sua teoria evolutiva, uma vez que a ideia de sequências evolutivas satisfizeram as necessidades de um esquema de causa e efeito. Para Tylor, o princípio que guia a humanidade na elaboração de suas instituições utilitárias é o da razão, e as práticas sociais são explicadas por referência a processos racionais de pensamento. A razão, portanto, é a chave que podemos aplicar às nossas próprias crenças e práticas, a fim de obter entendimento. Intimamente associado com o princípio da razão no esquema de Tylor está sua visão de que as instituições humanas podem ser estudadas em termos causais, como expressões de leis naturais. Nas páginas de abertura da Primitive Culture, ele observou que muitas pessoas são repelidas pela ideia de que a história humana é apenas um aspecto da história da natureza, ou que “nossos pensamentos, vontades e ações estão de acordo com leis tão definidas quanto aquelas que governam o movimento das ondas, a combinação de ácidos e bases, e o crescimento de plantas e animais. Ele argumentou que de fato as leis naturais desempenham um papel no comportamento humano, e que ele tomaria uma aspecto da história do homem - a Cultura - e determinar algumas das causas que estão por trás disso (1871, 1: 5) (Hatch 1973: 20). Para Tylor, a cultura é fructo de crescimento lento. As mentes das pessoas nos estágios iniciais de desenvolvimento são severamente limitadas pelos grilhões conservadores da tradição, mas o pensamento racional é obstinado e o sobrenatural mais cedo ou mais tarde prevalecerá. Isso não quer dizer que a razão sempre resulte em progresso, no entanto, erros de julgamento são comuns, particularmente nos estágios iniciais. Como o biólogo interessado na planta em crescimento, e não na terra através da qual ela luta, a preocupação central de Tylor era sempre o pensamento racional (Hatch 1973: 22).

Conservatorismo

Tylor aparentemente não discutiu em detalhes como é possível que um costume tenha um domínio tão tenaz nas mentes de um povo; ele nunca tentou explicar os mecanismos psicológicos ou sociais que asseguram a persistência do costume. O conservadorismo tradicional resulta quando, por alguma razão, um povo não aplica suas mentes a suas práticas e crenças tradicionais, mas adere a ideias pré-constituidas sem reflexão consciente. Por exemplo, Tylor ocasionalmente escreveu que o consenso da opinião pública é uma base do conservadorismo: as pessoas freqüentemente acreditam que 'o que todo mundo diz deve ser verdade, o que todo mundo faz deve estar certo' (1871, I; 13). Tylor ocasionalmente sugeriu que as autoridades eclesiásticas são uma fonte de conservadorismo quando atribuem crenças e práticas ao reino do sagrado (Hatch 1973: 21-23)

Evolucionismo

A teoria evolutiva de Tylor deve ser vista em grande parte em relação a um dos principais problemas enfrentados pela antropologia durante a década de 1860: esse foi o debate entre os degeneracionistas e os progressistas (Stocking 1968: 74-81). Os degeneracionistas argumentaram que os povos selvagens uma vez desfrutavam de uma condição melhor, mas, tendo caído aos olhos de Deus, degeneraram para seu status atual. A visão degeneracionista foi associada à noção de que a cultura não é um fenômeno natural e que está além do alcance da análise científica. Tylor foi um dos principais expoentes do argumento progressista, de que todas as instituições passam por um processo gradual e natural de desenvolvimento, e que os vários povos do mundo representam diferentes níveis de realização ao longo desta linha de evolução. progressão.

A estrutura conceitual subjacente à sua teoria evolutiva.

Quase se pode dizer que, enquanto Durkheim e Spencer tomavam o organismo biológico como modelo para a análise cultural, Tylor, como Comte, levou o desenvolvimento da ciência na sociedade (Hatch 1973: 24).

Tylor usou dois métodos principais para traçar o curso da evolução - o método comparativo e a análise de sobrevivências.

Sobrevivências

Esta última é uma técnica para rastrear as seqüências de desenvolvimento por meio dos resíduos das instituições passadas remanescentes entre os povos existentes. Em todas as sociedades, antigos padrões de pensamento e comportamento sobreviveram além das condições que os originaram, e esses padrões servem “como provas e exemplos” de um estágio anterior de desenvolvimento (1871, I: 16). Por exemplo, os arcos, as flechas são meros brinquedos na sociedade africana moderna, mas fornecem um registro das atividades em que os africanos se engajaram por muito tempo (1871, I: 72ss.). O costume europeu de usar brincos. O brinco, Tylor acreditava, é “uma relíquia de uma condição mental mais grosseira”, uma condição na qual coisas como anéis, ossos e penas são inseridas através da cartilagem do nariz, ou nas quais pinos de marfim são inseridos nos cantos do nariz. a boca. O uso de brincos é um costume que indica a sequência de desenvolvimento. Os costumes e leis das tribos selvagens e bárbaras 'freqüentemente nos explicam, de maneiras que deveríamos ter adivinhado, o sentido e a razão de nossa própria' (1881: 401; ver também 1873,

Método comparativo

O segundo método que Tylor empregou, o método comparativo, baseia-se no que lhe parecia um fato evidente, que em todo o mundo as instituições da humanidade exibem notáveis ​​semelhanças. Tais fenômenos culturais diferem de sociedade para sociedade e continente para continente (1871, 1: 6). Por trás desses dois princípios metodológicos está a suposição de que, para explicar a evolução cultural, o antropólogo tem que “repensar” os passos pelos quais a cultura surgiu: uma vez que as instituições são conscientemente e intencionalmente criadas pelos indivíduos para seus próprios fins, Segue-se que, para entendê-las e descobrir suas causas, é preciso recriar as experiências e as bases sobre as quais elas assentaram no passado (Hatch 1973: 24-28). O valor da estrutura comparativa é que ela permite ao antropólogo descobrir, por meio da indução, os processos comuns de pensamento por trás das instituições humanas e, portanto, seu significado.

 

Animismo

Ele afirmou que essas crenças dificilmente são “um montão de lixo de loucura variada”, mas são consistentes e lógicas em alto grau. Sua formação e desenvolvimento baseiam-se em princípios racionais, embora a racionalidade envolvida seja de mentes ignorantes (1871, 1: 22-23). Tylor afirmou que a crença em seres espirituais é a crença religiosa comum a todas raças (1871, II: g). Essa crença, portanto, constitui o próprio 'fundamento da filosofia da religião' .  Com base nisso, ele pensou que a origem da crença em seres espirituais deve ser encontrada nas tentativas dos selvagens de explicar dois enigmas da vida (Hatch 1973: 30). Em primeiro lugar o feitiço, qual a diferença no corpo do feiticeiro vivo e um morto; o que causa o acordar, o sono, o transe, a doença, a morte? Em segundo lugar, quais são as formas humanas que aparecem nos sonhos e visões  do feiticeiro (1871, II: t2)? Durante o sono o feiticeiro é capaz de deixar o corpo temporariamente, de se afastar e de passar pelas experiências registradas na mente como sonhos; e pode partir para sempre, deixando o corpo sem vida. O sacrifício humano também é derivado da crença nas almas; É uma inferência racional que, quando um homem morre, ele pode precisar ou desejar que outros o acompanhem na próxima vida (1871, 11:42).

Unidade psiquica do gênero humano

Tylor enfatizou o que foi chamado de unidade psíquica da humanidade. Por exemplo, em suas Pesquisas, ele afirmou que, quando consideramos as artes, o conhecimento, os costumes e as superstições da humanidade, ficamos impressionados com a recorrência de formas semelhantes nas partes mais remotas do mundo. Isso, observou, 'ilustra de forma impressionante a extensão da uniformidade mental entre a humanidade' (1873: 373). Na sua antropologia, ele afirmou que “parece haver na humanidade um temperamento inato e uma capacidade de mente inata”. Algumas raças, ele comentou, “marcharam na civilização enquanto outras pararam ou recuaram”, e isso se deve em parte às “diferenças de poderes intelectuais e morais”. Ele afirmou que os filhos de raças inferiores parecem aprender tanto quanto as crianças brancas até os doze anos, quando são deixadas para trás pelas crianças brancas. O progresso da própria civilização seria uma causa das semelhanças entre as raças. as mentes das pessoas em posições semelhantes ao longo da escala de desenvolvimento.

Tylor embora considerasse o contexto etnográfico como um relativamente sem importância, para ele, é principalmente dentro de um contexto comparativo ou histórico que as características distintivas de um traço emergem.

Traços culturais

Uma razão pela qual Tylor poderia ignorar o contexto cultural ou etnográfico de um traço é porque enfatizava as relações causais entre os processos mentais individuais e os fenômenos culturais. Todos os traços que compartilham a mesma causa pertencem juntos, independentemente de onde forem encontrados ao mesmo contexto cultural. Argumentar que é necessário fornecer o contexto etnográfico de um traço para compreendê-lo baseia-se no pressuposto de que são as relações entre os elementos culturais que são importantes para o entendimento - que os traços têm propriedades que os capacitam a reagir sobre um deles. outro. Em suma, assume que a cultura é um sistema emergente (Hatch 1973: 37).

 

 

Conceito de cultura

Cultura primitiva é o título da obra mais famosa de Tylor. Foi publicado em 1871. É um estudo dedicado principalmente ao desenvolvimento das idéias religiosas do 'estágio' primitivo ao 'moderno'. Mas é um livro fundamental, sobretudo porque aborda a própria ideia de evolução cultural e contém a primeira definição antropológica verdadeira de cultura. O livro abre com uma definição do conceito de cultura que, a partir de Tylor, passou a constituir, ainda que entre consensos e divergências, o tema em torno do qual gira o raciocínio da antropologia:

«Cultura, ou civilização, entendida no seu sentido etnográfico mais amplo , é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras habilidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade» (Tylor 1871: 1).

Esta definição contém algumas idéias importantes.

1) A primeira é que a cultura (ou civilização) é encontrada em toda parte ('entendida no sentido etnográfico mais amplo'). Portanto, não existem povos com cultura e povos sem cultura.

2) A segunda ideia é que a cultura é um 'todo complexo' feito de uma série de elementos que podemos, mesmo neste caso, encontrar em todos os lugares (todos os povos têm uma economia, uma moralidade, um direito, uma tecnologia, etc. para como podem ser 'primitivos').

3) A terceira ideia é que a cultura é 'adquirida'. Ou seja, não se limita a uma 'raça' (como pensavam os criacionistas), nem é transmitido por sangue. A quarta ideia, intimamente ligada à anterior, é que a cultura é adquirida pelo homem como membro da sociedade, ou seja: o ser humano 'recebe' cultura da sua própria sociedade, e como as sociedades são muitas e diversas, existem tantas culturas como existem sociedades. Conseqüentemente, os seres humanos são sujeitos 'culturais'.

Contexto social

Como se pode ver, o uso do conceito de cultura não se refere mais apenas ao indivíduo aqui, mas é colocado em relação a toda a humanidade e às sociedades que a compõem.

Na verdade, Tylor mudou o uso do termo cultura (civilização) de um contexto individual para um coletivo. No entanto, ele manteve os aspectos semânticos possuídos por esse termo no contexto anterior, especialmente aqueles relacionados às ideias de cumulatividade e crescimento. Por exemplo, quando os latinos falavam de 'cultura da alma', eles queriam se referir a uma condição espiritual resultante de um processo de crescimento interior determinado pela aquisição de conhecimentos nos campos artístico, filosófico, literário e científico. Tornou-se 'culto', como ainda hoje, como resultado de um 'acúmulo de conhecimento'.

A ideia de cultura como algo que está sujeito a processos de crescimento e cumulatividade foi transferida do indivíduo para o único povo e para a humanidade em geral. O salto representado pela passagem do uso individualista do conceito de cultura para o coletivo foi, portanto, grande e importante, mas inevitavelmente trouxe consigo as ideias de crescimento e cumulatividade incorporadas no significado anterior do termo. A cultura humana, como a de um único indivíduo, de um único povo ou de toda a humanidade, apareceu assim como um patrimônio cumulativo e cada vez mais crescente.

Tendo estabelecido o referente do conceito de cultura, devemos agora considerar sua função como um conceito chave da antropologia evolucionista. Essa função reside na qualificação da cultura como um todo complexo. Isso implica que a cultura é vista como uma soma de vários elementos: objetos, ações, símbolos, etc. Esses elementos estão, por assim dizer, 'dentro de uma cultura' e ao mesmo tempo a constituem. Tylor não abordou a questão (que surgirá apenas mais tarde) de como esses elementos interagem entre si. Os conjuntos, por mais complexos que sejam, podem ser decompostos em seus elementos. É aqui que a cultura assume a importância de um conceito-chave para a antropologia evolucionista. O projeto deste último configurou-se de facto como uma tentativa de reconstruir, graças aos dados fornecidos por observações sobre povos selvagens, primitivos e bárbaros, sequências de desenvolvimento ou progresso como as preconizadas pelo Iluminismo tardio reunidas na Société des Observateurs de l ' Homme. A decomposição das culturas nos seus elementos permitiu 'extrair' das várias culturas aquele dado elemento que, estando presente em todas as culturas estudadas, permitiu determinar a sequência de desenvolvimento do elemento escolhido: da religião como da família. , de uma certa tecnologia em vez de moralidade, direito, bem como arte, em suma, de toda a cultura humana.

O conceito de cultura, tal como havia sido enunciado por Tylor, era portanto adequado ao projeto evolucionista e este poderia se desdobrar tendo como referência, seja de forma explícita ou implícita, esse conceito Como todos os seus contemporâneos, Tylor também pensava que existiam povos 'inferiores' e povos 'superiores', no sentido de que a história da humanidade poderia ser representada por uma linha ascendente que, de formas mais simples de organização social, conduzia a formas mais complexas e formas mais bem organizadas de vida associada. Na cultura primitiva, por exemplo, ele escreveu: 'A civilização pode ser considerada como um aprimoramento geral da humanidade por meio de uma organização superior do indivíduo e da sociedade a fim de promover a bondade, o poder e a felicidade do homem' (Tylor 1920: 27 ) Nessa afirmação, estão presentes os temas dominantes da ideologia antropológica vitoriana, a saber: civilização concebida como resultado de um processo cumulativo; o processo evolutivo desenhado com base na crescente complexidade organizacional; a ideia da vida social como meio de promover o progresso e, portanto, a riqueza e a felicidade de todos os seres humanos, um legado evidente do otimismo do Iluminismo.

Tylor compartilhava com seus contemporâneos a ideia de que os povos 'selvagens' espalhados pelos vários continentes eram representantes das etapas anteriores da história humana e que, como tal, poderiam ilustrar bem as condições de vida dos homens pré-históricos. Em Antropologia de 1881, um livro escrito com intenções mais populares, ele argumentou claramente que 'as tribos selvagens e bárbaras representam mais ou menos as etapas culturais pelas quais passaram há muito tempo nossos ancestrais 'e que' seus costumes e suas leis muitas vezes nos explicam, de uma forma que de outra forma seria difícil para nós concebermos, o significado e as raízes das nossas próprias causas '(Tylor 1881: 401). O conceito de estágio cultural era o que permitiu a Tylor inserir a definição de cultura, que foi a famosa estreia do livro em 1871, em uma representação geral da história humana de personagens progressivos.

Tylor de forma alguma excluiu a regressão cultural como tal, mas a considerou apenas contingente e secundária ao processo cumulativo de conhecimento. Tylor concebeu o estudo da cultura com base no mesmo método das ciências naturais. Para ele, como afirmou nas primeiras páginas de Cultura Primitiva, “os nossos pensamentos, os movimentos da vontade e das ações seguem leis definidas como as que regem os movimentos das ondas, as combinações de ácidos e bases, o crescimento das plantas . e animais A característica mais óbvia que distingue o trabalho de Tylor do de seus contemporâneos e sucessores ingleses é a universalidade de seus interesses etnológicos. Outros, como Lang e Frazer, estavam predominantemente ocupados com problemas sociológicos e religiosos; A visão de Tylor abraçou, para citar sua própria definição de cultura,

«aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade».

Na atitude de Tylor em relação à imensa massa de fatos concretos com os quais sua versatilidade o colocou em contato, um traço psicológico distinto é manifesto - seu senso intuitivo de adequação. Devemos recordar o caráter dos dados disponíveis quando ele começou seu trabalho de campo - a miscelânea de observação imperfeita e provincial com o qual ele era obrigado a lidar sobretudo a desinformação grosseira de segunda mão ou má interpretação grosseira devido aos espetáculos coloridos da civilização européia. Face ao ponto de vista etnocêntrico de alguns autore  como Burton que declarava que os Arapaho possuíam um vocabulário tão escasso que dificilmente poderiam conversar uns com os outros, avaliando tais declarações, Tylor mostrou um instinto quase infalível e uma grande consciência crítica. Ao reler as Pesquisas sobre o Início da História da Humanidade, se percebe como a conexão histórica é usada para interpretar a existência de factos culturais. Não se pode interpretar Tylor, como a concepção tradicional americana queria declarando-o apenas um evolucionista da escola clássica.

 

Evolucionismo.

E dward B. Tylor discordou da alegação de alguns escritores franceses e ingleses do início do século XIX, liderados pelo conde Joseph de Maistre, de que grupos como os índios americanos e outros povos indígenas eram exemplos de degeneração cultural. Ele acreditava que os povos em diferentes locais eram igualmente capazes de se desenvolver e progredir através dos estágios. Grupos primitivos tinham “alcançado sua posição aprendendo e não desaprendendo”. Tylor sustentava que a cultura evoluiu dos simples para o complexo, e que todas as sociedades passaram pelos três estágios básicos de desenvolvimento sugeridos por Montesquieu: da selvageria à barbárie e à civilização. 'Progresso', portanto, era possível para todos. Tylor acreditava, como Adolf Bastian, que havia uma espécie de unidade psíquica entre todos os povos que explicava seqüências evolutivas paralelas em diferentes tradições culturais. Em outras palavras, por causa das semelhanças básicas na tradição. No quadro mental de todos os povos, diferentes sociedades frequentemente encontram as mesmas soluções para os mesmos problemas, mas Tylor também estava ciente de que os traços culturais poderiam se espalhar de uma sociedade para outra por simples difusão - o empréstimo de uma cultura de uma característica outro devido ao contato entre os dois.

 

A religião e as supervivências

Religião e parentesco estavam entre os temas de reflexão dos primeiros antropólogos. O interesse pela religião refletia o confronto entre criacionistas e evolucionistas, bem como as ansiedades e perplexidades de uma época em que a autoridade bíblica, assim como a igreja, era questionada em questões de ciências naturais e origens humanas. O parentesco foi outro importante objeto de reflexão, em que o interesse pela evolução do direito e a curiosidade pela forma 'estranha' como se confundem os parentes nas diferentes sociedades. Das europeias e, não confessado, uma subtil vontade de se aproximar. temas então 'proibidos', como o das práticas sexuais dos povos primitivos. Em qualquer caso, foi a religião que, no interesse dos evolucionistas europeus, prevaleceu de longe sobre as outras. A tal ponto, já foi dito, a antropologia parece ter nascido em primeiro lugar como uma antropologia da religião.

Tylor dedicou grande parte de sua obra Cultura Primitiva à evolução da religião e, em particular, ao que desde então se tornou parte de sua obra do jargão antropológico com o nome de animismo. Com este termo Tylor apontou à crença nas almas e nos seres espirituais em geral'. Mais exatamente, o termo animismo significava a crença, típica segundo Tylor dos povos mais primitivos, segundo a qual os objetos, mesmo os inertes, possuíam uma 'alma'. Com base em alguns relatos etnográficos, Tylor postulou que a origem do animismo foi devido à experiência do sonho do qual nossos progenitores devem ter extraído a convicção de que os fenômenos de duplicação de personalidade e de aparições, que ocorrem às vezes durante o sono, deviam-se à existência de um 'duplo'. Este duplo, ou alma, pode levar uma existência independente do corpo tanto durante a vida quanto após a morte. Mais tarde, de acordo com Tylor, a humanidade teria estendido a crença na posse de uma alma a todos aqueles seres e fenômenos naturais que de alguma forma atingiram sua imaginação. Animais, plantas e objetos foram assim dotados de uma alma que, podendo se desprender dos corpos a que pertencia, deu origem à noção ainda mais abstrata de espírito, entidade completamente autônoma e desprovida de 'suporte' material.

Porém, uma vez que para Tylor o animismo era 'a base da filosofia da religião, desde a dos selvagens até a do homem civilizado', essa mesma noção indicava também aquele tipo de pensamento para o qual a explicação dos fenômenos naturais e psíquicos era reconduzida a princípios. não relacionado à investigação racional e materialista. O animismo foi, portanto, uma noção que permitiu a Tylor definir em um único golpe a essência do pensamento mítico, mágico e religioso e distingui-lo, por oposição, do pensamento científico e racional. De facto, Tylor observou que “a divisão que separou as grandes religiões da humanidade em seitas hostis é quase nada se comparada ao mais profundo de todos os cismas, aquele que separa o animismo do materialismo”. Desta forma, ele insinuou o abismo que separa essas duas atitudes mentais. No entanto, ele acreditava que o florescimento do pensamento racional era o resultado de um lento e progressivo amadurecimento intelectual da humanidade. Visto que o ponto de chegada deste caminho foi representado pela afirmação do pensamento racional, tratou-se de traçar não só as etapas evolutivas desse caminho, mas também de mostrar que tipo de modificações a crença nos espíritos durante as várias fases, do primeiro ao último, por que passou na história da raça humana ”. Para Tylor, o animismo era, portanto, em sua forma original - isto é, a crença na existência da alma humana - uma presença ininterrupta

“Da filosofia do selvagem à filosofia do moderno professor de teologia”. Com o acúmulo de conhecimento e, portanto, com o surgimento do pensamento racional, essa crença, inicialmente estendida a todos os seres vivos e objetos inertes, foi progressivamente 'encolhendo' para apenas uma preocupação o 'cristão civilizado'. O surgimento do pensamento racional foi assim acompanhado da redução progressiva da gama de fenómenos naturais e psicológicos originalmente investidos pelo pensamento mágico e religioso, enquanto o animismo acabou se transformando na crença relativa à posse de uma única alma Individual.

Apesar da lenta mas progressiva afirmação do pensamento racional, “as crenças e rituais dos povos superiores mostravam a sobrevivência do velho no seio do novo, as modificações do velho para se adaptar ao novo e o abandono do velho como não mais. compatível com o novo. novo '(Tylor 1920: 500).

Estamos aqui na presença de outro conceito importante da antropologia evolutiva, o da sobrevivência. O que Tylor quis dizer com sobrevivência é ilustrado por esta passagem da Cultura Primitiva: “Quando chegou o tempo para criar uma mudança geral nas condições de vida de um povo, é fácil encontrar muitas coisas que claramente não têm sua origem no novo estado de coisas, mas que simplesmente permaneceram nele. Em virtude dessas sobrevivências, é possível argumentar que a cultura na qual elas podem ser observadas deve ser derivada de um estado cultural anterior no qual o lugar autêntico e o significado autêntico dessas coisas devem ser rastreados; consequentemente, esta série de fatos deve ser considerada como uma verdadeira mina para investigação histórica ”(Tylor 1920: 71).

A sobrevivência era, portanto, qualquer coisa, por exemplo, uma crença, uma ideia, uma prática, cujo significado original havia perecido por séculos, mas que, no entanto, poderia continuar a sobreviver 'simplesmente porque existiu anteriormente'. A sobrevivência era um fóssil social e, como diz Tylor, um ‘fóssil para investigação histórica'. Detectar uma sobrevivência significava ser capaz de voltar à época em que aquela ideia ou prática (de sobrevivência) tinha um significado e, portanto, ser capaz de compreender o estágio de desenvolvimento cultural anterior ao atual. Nesse sentido, é interessante notar como, por meio de sua teoria das sobrevivências, Tylor dinamiza aquele conceito de cultura que, como tal, não revela as relações que os elementos que constituem um assim definido 'todo complexo' podem ter entre eles mesmos. A sobrevivência, na verdade, é para Tylor algo 'fora do lugar', portanto, desprovida de relações com os outros elementos da cultura, relações (dinâmicas) que deve ter tido em uma era cultural anterior.

 

       O método comparativo

Para a antropologia evolucionista, as culturas e sociedades que o Ocidente encontrou em seu caminho eram realidades que podiam e deveriam ser rastreadas até o sentido de uma história coincidente com o desenvolvimento cumulativo da cultura, da qual o Ocidente representou o clímax. Precisamente como exemplo de etapas da história humana, essas culturas e sociedades 'primitivas' foram, para a antropologia, realidades importantes. Não eram mais simples eflorescências insignificantes, como haviam sido para as filosofias da história da época anterior. Nem eram, ao contrário do que afirmavam os criacionistas e degeneracionistas, exemplos desprezíveis da barbárie a que o pecado havia condenado uma parte da humanidade.

Para os evolucionistas, a antropologia configurou-se antes de tudo como uma grande jornada intelectual pelas culturas. De fato, poucos deles tinham experiência directa com populações 'primitivas'. Seu objetivo era traçar as tendências, estágios, sequências de desenvolvimento das instituições e ideias que caracterizaram a história da cultura. Embora fundada na especulação, este projeto exigia um 'cruzamento' de 'outras' experiências culturais. Desde então a antropologia tornou-se um saber comparativo, e não pude ser diferente. A característica da antropologia é, de fato, fazer da comparação a premissa de qualquer conclusão possível tendente à generalização. A centralidade da comparação permanece a própria condição do conhecimento antropológico. Embora criticada em vários momentos, a comparação continua sendo o método inspirador da antropologia.

Os evolucionistas foram os que, entre os antropólogos, fizeram o uso mais explícito e massivo da comparação. Um uso que pode ser criticado em muitos aspectos pela tendência que demonstraram em descontextualizar os dados etnográficos, a curvá-los ao seu projeto cognitivo que consiste em querer traçar sequências e linhas de desenvolvimento. A este respeito é necessário fazer alguns esclarecimentos. A evolução cultural imaginada pelos antropólogos dessa época não previa que todos os povos da terra devessem necessariamente seguir exatamente a mesma linha de desenvolvimento. Tylor, e muitos outros contemporâneos dele, pensaram que apenas em geral se poderia falar de evolução. Na verdade, eles levaram a sério a possibilidade de que o desenvolvimento cultural fosse dominado por algo que poderia ser chamado de 'princípio das possibilidades divergentes'. Tendo atingido um ponto de evolução, ou seja, uma cultura poderia ter trilhado um caminho em vez de outro, dando origem a caminhos evolutivos diversificados no campo social, político, religioso, etc.

O conceito de cultura como um todo complexo (e decomponível), a noção de sobrevivência e comparação constituíram, assim, os pontos de apoio de um projeto que visa reconstruir as etapas da evolução cultural. Tylor tentou dar ao projeto uma base estatística através da aplicação de um método denominado 'variações concomitantes' ou, precisamente, 'correlações estatísticas'. Em seu ensaio de 1889 Sobre um método para estudar o desenvolvimento institucional, Tylor procurou estabelecer a frequência estatística com que certos casamentos e práticas rituais são encontrados associados à presença de descendência matrilinear ou patrilinear. Ao examinar uma amostra de 350 sociedades, Tylor procurou determinar com que frequência certas formas de residência, ancestralidade e comportamento ritual estavam relacionados. Um exemplo entre outros é a correlação que ele estabeleceu entre o costume da couvade e o tipo de descendência característica da sociedade em que esse costume estava presente. A 'couvade' é aquele comportamento que consiste no respeito a certos tabus, e às vezes na simulação dos sintomas do parto e pós-gravidez, pelo marido de uma puérpera. É interpretada como uma 'declaração pública' de paternidade do homem.

Tylor descobriu que os resultados do processamento estatístico indicavam a ausência da couvade em sociedades matrilineares, alta frequência dela em sociedades com descendência 'dupla' (ou seja, patri e matrilinear) e baixa frequência em sociedades patrilineares. Tylor concluiu que a couvade deve ter surgido com descendência dupla (ou seja, quando a incerteza da descendência pertencer a um grupo em vez de outro era maior), enquanto no estágio patrilinear era apenas uma sobrevivência. Os três tipos de descendência, matrilinear, dupla e patrilinear, deviam ser considerados característicos de três estágios sucessivos da evolução das formas de descendência. O ensaio de 1889 marcou o surgimento de uma ideia de antropologia como uma ciência que pode ser construída em bases estatísticas, uma ideia que ressurgirá na primeira parte do século seguinte como parte de um projeto comparativo.

Fim.

 

O conceito de «Cultura Primitiva »

Cultura e evolução para Tylor

Deveria estar muito claro neste ponto que a antropologia não começou com os escritos de Edward Burnett Tylor. (1832-1917). Mas o simples facto de tantas vezes ter sido definido como o “pai” desta disciplina é suficiente para sublinhar a importância dos seus contributos, entre os quais o mais notável consiste na clarificação e definição do Conceito de cultura. No geral, as reconstruções evolutivas de Tylor estavam mais próximas do transformacionismo lamarckiano do que do conceito darwiniano de seleção natural. No prefácio da segunda edição de Primitive Culture (1958, I: XVI) Tylor reconheceu a importância de Darwin e Spencer, acrescentando, no entanto, que o seu próprio trabalho seguiu uma linha diferente, não diretamente influenciada pelos seus escritos. Na verdade, embora grande parte do pensamento do século XIX convirja nas suas teorias antropológicas, Tylor raramente reconheceu alguém como seu antecessor. O conceito de antropologia como história, o interesse pelos fenómenos exóticos, a fé no progresso, a divisão em etapas, o conceito de sobrevivência, a importância atribuída aos dados empíricos e o carácter científico da antropologia são conceitos já então presentes. Mas foi mérito de Tylor ter sintetizado estas diversas tendências num todo orgânico e ter fundado a antropologia na Europa, um campo de estudo com base autónoma e científica. Ele era um defensor tão entusiasmado disso que muitos de seus contemporâneos se referiam a ela, brincando, como 'a ciência do Sr. Tylor'. Uma ciência que, no entanto, não ficou sem reconhecimento académico: foi de facto o primeiro em Inglaterra a ocupar um cargo universitário oficial, primeiro como curador do museu universitário e um ano depois, em 1884, como professor de antropologia em Oxford. Não sem razão, em última análise, Tylor é considerado o fundador da antropologia moderna. Ele não só tem o mérito de tê-la fundado na Europa como uma ciência reconhecida academicamente, mas também de ter atribuído a devida importância aos dados de primeira mão, cuja recolha se tornou desde então uma característica essencial de todo estudo antropológico. Embora tenha passado um ano nos Estados Unidos, seis meses no México e um período mais curto em Cuba, Tylor não era fundamentalmente um investigador de campo e confiava voluntariamente em fontes de segunda mão para as suas reconstruções. Isso não significa, porém, que ele não fosse crítico em relação a esses dados, tanto que muitas vezes tentou demonstrar sua exatidão com o método comparativo. Foi precisamente porque muitas vezes descobriu que não eram exatos que Tylor percebeu a necessidade de um trabalho de campo que partisse de uma abordagem verdadeiramente científica. neste sentido foi de grande importância para a fundação das organizações que promoveram este tipo de investigação.

Termo biológico

O  termo em si não é novo. Originalmente se trata do «termo biológico (que ainda hoje sobrevive em palavras como «agricultura» ou «horticultura») que indicava a criação e melhoramento de espécies animais e vegetais.

Termo social

A primeira aplicação deste termo à sociedade ocorreu na Alemanha no século XVIII (Kroeber e Kluckho n 1963, 13), ainda mantendo o significado original de melhoria. Muito antes disso, o conceito de cultura já havia sido reconhecido, ainda que expresso com termos diversos como “costume”, “tradição” ou “usos sociais” dos homens.

Diversidade social

Certamente, desde Heródoto, sabia-se que os modelos comportamentais variavam de lugar para lugar e foram feitas tentativas de diferentes maneiras para explicar as razões de tais mudanças. Alguns propuseram explicações em termos de clima ou meio ambiente, outros declararam-se convencidos de que havia diferenças nas capacidades mentais, outros ainda sustentaram que as leis naturais fizeram alguns povos progredirem mais do que outros. No século XVIII, se não antes, ganhou terreno a ideia de que as diferenças de comportamento deveriam estar ligadas às diferenças raciais e que a cultura fazia parte da constituição física do homem. De acordo com esta teoria, os traços culturais, tal como os físicos, passavam através de algum mecanismo biológico hereditário de uma geração para outra: a hierarquia de raças e culturas era, portanto, constante e inalterável;

Degeneracionismo

Finalmente, a lei degenerativa sustentava que os povos eram diferentes uns dos outros porque se afastaram. variadamente do estado de: perfeição 'original' do homem. Tylor criticou particularmente esta teoria, apoiada com particular ardor pelo Arcebispo Whately de Dublin. Este último tinha de facto declarado que a condição de civilização era aquela originalmente concedida à raça humana pela vontade divina; os selvagens e bárbaros degeneraram deste estado ideal, enquanto as nações civilizadas não apenas mantiveram, mas aperfeiçoaram um nível mais elevado de cultura. Tylor questionou esta teoria não só porque acreditava no progresso, mas também porque estava convencido de que a investigação científica não poderia de forma alguma basear-se em crenças religiosas (Tylor, 1958, I: ii).

A definição de cultura de Tylor evitou todas as explicações errôneas anteriores. Cultura Primitiva (1971) abre assim:

«Cultura ou civilização, tomada no sentido etnográfico mais amplo, é aquele todo complexo de conhecimento, fé, arte, moralidade, leis, costumes e outras atividades e hábitos aprendidos pelo homem como membro da sociedade»

'aprendido'

é a palavra-chave nesta definição, porque significava que culturas era o produto da aprendizagem social e não da herança biológica, e que as diferenças no desenvolvimento cultural entre um povo e o seu povo não eram o resultado de um processo degenerativo, mas do progresso do conhecimento cultural. Além disso, a insistência de que o. cultura. era um todo articulado, implicava que incluía todos os comportamentos socialmente adquiridos, por mais insignificantes ou não. Desta forma, todos os aspectos da vida social tornaram-se dignos de estudo porque contribuíram para a compreensão da raça humana.

Embora Locke e outros tivessem consciência de que a cultura é aprendida e não inata, eles não compreenderam suficientemente este tipo da aprendizagem tinha um caráter social e atribuíam-no às percepções e experiências sensoriais de cada homem.

No contexto social

Tylor, em vez disso, entendeu que o homem aprende num contexto social: a sua definição é, portanto, não apenas um reconhecimento da existência da cultura, mas é também uma teorização dela. Desde então, os antropólogos inventaram dezenas de outras definições, mas poucos discordariam da definição de cultura de Tylor como uma entidade socialmente aprendida. Embora convencido da existência e ação do progresso.

Tylor nunca a concebeu como a força motriz da história, mas sim a utilizou como uma ferramenta para. reconstruir as condições sociais de períodos anteriores.

Monogamia

A monogamia, por exemplo, era a norma que regia o casamento na sua civilização altamente evoluída: daí resultou que nas primeiras sociedades existiu, em vez disso, um sistema diametralmente oposto a este, nomeadamente a promiscuidade. No entanto, Tylor teve sempre muito cuidado em indicar que nem todos as mudanças culturais foram positivas em si mesmas:

« Tendo aprendido a envenenar secreta e eficazmente; tendo levado a literatura corrupta a um estado de perfeição venenosa; ter conseguido elaborar um plano eficaz para bloquear a pesquisa livre e proibir a liberdade de expressão são produtos de conhecimento e capacidade cuja caminho em direção ao objetivo desejado certamente não trouxe o bem geral» (Ibid., 28).

Progresso

No entanto, de um ponto de vista geral, o progresso continuou e contribuiu para a melhoria da vida humana:

 « ...no geral, o homem civilizado não é apenas mais sábio e mais habilidoso que o selvagem, mas também é melhor e mais feliz. Os bárbaros estão em algum lugar entre esses dois estágios” (Ibid., 31).

 A diferença, contudo, não era atribuível a uma constituição mental diferente: a fé de Tylor na existência de uma unidade psíquica levou-o a sustentar que todos os povos eram igualmente progressistas. As diferenças entre uma cultura e outra eram de desenvolvimento e não de origem, de grau e não de tipo” (Tylor, 1865: 232). Vários grupos de pessoas teriam progredido em linhas de desenvolvimento semelhantes, em virtude da uniformidade da mente humana.

 Como Tylor levantou a hipótese de várias linhas de desenvolvimento nas quais vários grupos humanos teriam evoluído em sequências semelhantes, seguiu-se que ele preferia a invenção autônoma à difusão, embora certamente não negasse a importância desta última. Na verdade, ele forneceu muitos exemplos de características. culturas semelhantes entre povos cujas conexões históricas não eram conhecidas:

«Os aborígenes australianos têm cicatrizes no corpo como as tribos africanas; eles circuncidam como judeus e árabes; eles proíbem o casamento na linha feminina como os Iroquois; eliminam de sua língua os nomes de animais e plantas que 'tinham servido como nomes próprios de homens mortos, e criam novos termos em seu lugar, como no caso dos Abiponi da América do Sul…» (Tylor, 1964. 233-34). Resumindo, foi. possível estabelecer paralelos mais ou menos próximos. entre qualquer manifestação cultural, especialmente em culturas inferiores

Estadeações 

O esquema evolutivo proposto por Tylor; foi dividido em famosos três estágios: selvajaria, barbárie e civilização, mas não havia nada de dogmático nisso. Tylor. na verdade ele sempre foi muito cuidadoso, referindo-se a essas fases de; desenvolvimento, Deve-se sublinhar que era um esquema ideal que representava um modelo possível de evolução, que havia uma direção neste sentido que o curso do progresso nem sempre era uniforme, e que a evolução poderia ocorrer ao longo de muitas linhas diferentes; (Tylor, I: 6, 27). Ele nem sequer tentou forçar culturas específicas no seu esquema – inserindo-as no Estado. selvagem ou bárbaro, apesar de estar absolutamente convencido de que a Inglaterra vitoriana em que viveu já tinha atingido a terceira fase, a da civilização.

Reconstruir através dos traços culturais

Em vez de estar interessado em formular fases gerais de desenvolvimento, em reconstruir a evolução de.. traços culturais ou instituições específicas

As técnicas utilizadas para essas reconstruções foram as mais variadas. Uma delas consistiu em atribuir condições opostas às contemporâneas aos estágios iniciais de desenvolvimento; noutro  Tylor usou o conceito de sobrevivência de forma semelhante a Maine e McLennan, referindo-se a esses processos; costumes e opiniões que continuaram a existir por força do hábito mesmo quando já tinham perdido toda a utilidade, permanecendo assim evidência de condições anteriores. Tylor encontrou isso nas superstições, nas brincadeiras infantis, nos provérbios, nos enigmas e em poemas infantis. O hábito de dizer “Deus te abençoe” quando alguém espirra remete a uma crença muito antiga (de que o espirro era uma tentativa da alma de abandonar o corpo, um perigo a ser evitado com uma fórmula propiciatória.

Em seu ensaio de 1899, Sobre uma maneira de investigar o desenvolvimento das instituições conforme aplicado às leis do casamento e da descendência (observe que este é o desenvolvimento de instituições e não de culturas),

Método estatístico

Tylor usou o método estatístico. Recolhendo dados de 282 sociedades e correlacionando formas de residência pós-marital com o costume de evitar sogros, concluiu que a matrilinearidade e a matrilocalidade devem ter precedido a patrilinearidade e a patrilocalidade. O próprio costume da couvade apontava nessa direção. As sociedades matrilineares não a praticavam – de forma alguma, já que a posição da mulher era dominante; pelo contrário, muitas sociedades na fase patriarcal intermédia adoptaram-na porque os homens sentiram a necessidade de impor a sua autoridade às mulheres, imitando-as; pelo hábito de ter dores de parto como as mulheres, os homens afirmavam ao mesmo tempo sua paternidade. Além disso, nas sociedades patrilineares, alguns ainda praticavam o couvadè como um “residual”; enquanto outros o abandonaram porque perdeu suas funções originais. Consequentemente, a forma mais antiga de organização familiar; deve ter sido a matrilinear.

 

 

O conceito de cultura

Cultura primitiva é o título da obra mais famosa de Tylor. Foi publicado em 1871. É um estudo dedicado principalmente ao desenvolvimento das idéias religiosas do "estágio" primitivo ao "moderno". Mas é um livro fundamental sobretudo porque trata da própria ideia de evolução cultural e contém a primeira verdadeira definição antropológica de cultura, o livro abre com uma definição do conceito de cultura que, a partir de Tylor, passou a constituir, ainda que entre consensos e divergências, o tema em torno do qual gira o raciocínio da antropologia:

«Cultura, ou civilização, entendida em seu sentido etnográfico mais amplo, é aquele todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moralidade, lei, costume e quaisquer outras habilidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade» (Tylor 1871: 1).

Esta definição contém algumas ideias importantes.

 

Como se pode perceber, o uso do conceito de cultura não se refere mais apenas ao indivíduo, mas é colocado em relação a toda a humanidade e às sociedades que a compõem. Na verdade, Tylor mudou o uso do termo cultura (civilização) de um contexto individual para um colectivo. No entanto, ele reteve os aspectos semânticos possuídos por esse termo no contexto anterior, especialmente aqueles relacionados às ideias de cumulatividade e crescimento. Por exemplo, quando os latinos falavam de "cultura da alma", eles queriam se referir a uma condição espiritual resultante de um processo de crescimento interior determinado pela aquisição de conhecimentos nos campos artístico, filosófico, literário e científico. Tornou-se "culto", como ainda hoje, como resultado de um "acúmulo de conhecimento". A ideia de cultura como algo sujeito a processos de crescimento e cumulatividade foi transferida do indivíduo para o único povo e para a humanidade em geral. O salto representado pela passagem do uso individualista do conceito de cultura para o colectivo foi, portanto, grande e importante, mas trouxe inevitavelmente consigo as ideias de crescimento e cumulatividade incorporadas no sentido anterior do termo. A cultura humana, como a de um único indivíduo, de um único povo ou de toda a humanidade, apareceu assim como um património cumulativo e cada vez mais crescente.

Tendo estabelecido o referente do conceito de cultura, devemos agora considerar sua função de "todo complexo" como um conceito chave da antropologia evolucionista. Essa função reside na qualificação da cultura como um todo complexo. Isso implica que a cultura é vista como uma soma de vários elementos: objectos, acções, símbolos, etc. Esses elementos estão, por assim dizer, "dentro de uma cultura" e ao mesmo tempo a constituem. Tylor não se perguntou (que só surgirá mais tarde) de como esses elementos interagem uns com os outros. Os conjuntos, embora complexos, são decomponíveis em seus elementos. É aqui que a cultura assume o significado de um conceito-chave para a antropologia evolucionista. O projecto deste último configurou-se de fato como uma tentativa de reconstruir, graças aos dados fornecidos pelas observações sobre os povos selvagens, primitivos e bárbaros, sequências de desenvolvimento ou progresso como as esperadas pelo Iluminismo tardio reunidas na Société des Observateurs de l'homme. A decomposição das culturas nos seus elementos permitiu de "extrair" das várias culturas aquele elemento dado que, estando presente em todas as culturas estudadas, permitiu determinar a sequência da antropologia evolucionista em Era vitoriana «desenvolvimento do elemento escolhido: da religião como da família, de uma certa tecnologia em vez da moral, do direito como da arte, enfim, de toda a cultura humana». O conceito de cultura, tal como havia sido enunciado por Tylor, era, portanto, adequado ao projecto evolucionista e este poderia se desdobrar tendo como referência, seja de forma explícita ou implícita, esse conceito. Como todos os seus contemporâneos, Tylor também pensava que existiam povos "inferiores" e povos "superiores", no sentido de que a história da humanidade poderia ser representada por uma linha ascendente que, a partir de formas mais simples de organização social, conduzia a formas de vida associada mais complexa e mais bem organizada. Na cultura primitiva, ele escreveu, por exemplo:

«A civilização pode ser considerada como um aprimoramento geral da humanidade por meio de uma organização superior do indivíduo e da sociedade para promover a bondade, o poder e a felicidade do homem» (Tylor 1920: 27).

Nesta afirmação estão presentes os temas dominantes da ideologia antropológica vitoriana, a saber:

Tylor compartilhava com seus contemporâneos a ideia de que os povos "selvagens" espalhados pelos vários continentes eram representantes das etapas anteriores da história humana e que, como tal, poderiam ilustrar bem as condições de vida dos homens pré-históricos. Em Antropologia de 1881, livro escrito com intenções mais populares, ele afirmava claramente que

«as tribos selvagens e bárbaras representam mais ou menos as etapas culturais pelas quais nossos ancestrais passaram há tanto tempo" e que "seus costumes e suas leis frequentemente nos explicam, de uma maneira que de outra forma seria difícil para nós concebermos, o significado e as raízes das nossas próprias causas» (Tylor 1881: 401).

O conceito de estágio cultural foi o que permitiu a Tylor inserir a definição de cultura, que havia sido a famosa estreia do livro em 1871, em uma representação geral da história humana com personagens progressistas. Tylor de forma alguma excluiu o regresso cultural como tal, mas o considerou apenas contingente e secundário ao processo cumulativo de conhecimento. Tylor concebeu o estudo da cultura com base no mesmo método das ciências naturais. Para ele, como afirmou nas primeiras páginas de Cultura Primitiva, “o nosso pensamento, os movimentos da vontade e das acções seguem leis definidas como as que regem os movimentos das ondas, as combinações de ácidos e bases, o crescimento das plantas. e animais ".

Religião e sobrevivências

O estudo das religiões: animismo

Embora Tylor tivesse reconstruído diversas “sequências” possíveis de muitas instituições culturais, o campo que recebeu o tratamento mais completo e abrangente foi o da religião. Podemos acompanhar estas reconstruções muito claramente porque representam o exemplo mais claro do método global adoptado por Tylor. Ele começa definindo a religião de modo a incluir todas as suas formas, isto é, como 'crença nos seres'. espiritual''; você continua afirmando que era universal porque nenhuma cultura entre as conhecidas estava sem ele; finalmente tentou explicar como era o culto aos espíritos.

Os homens primitivos que, segundo Tylor, eram racionalistas que não possuíam o conhecimento necessário para poder raciocinar cientificamente (ele os chamava de 'filósofos selvagens') devem ter notado a diferença entre um corpo vivo e um corpo morto. Refletindo sobre esse fenômeno, como sobre o sono, o transe e as visões, chegaram à conclusão de que todo homem possuía não apenas um corpo físico, mas também uma vida e um fantasma. Além disso, a análise da religião de Tylor concentrou-se apenas nos aspectos cognitivos do problema: isto é, a religião era principalmente uma ferramenta para a compreensão dos eventos da experiência humana e o filósofo selvagem também era uma espécie de lógico primitivo que analisava racionalmente o mundo como os cientistas ocidentais. , dificultado apenas pela falta de experiência e conhecimento.Neste exercício racional, Tylor procurou a diferença entre as formas primitivas e as posteriores de religião com base na qualidade e no grau de conhecimento, negligenciando assim o aspecto essencialmente social deste fenómeno.

 

Alma

A vida permitiu ao corpo pensar e agir, enquanto o fantasma era sua imagem e alter ego. Ambas as entidades eram separáveis ​​do corpo: a vida desaparecia com a morte, enquanto o fantasma podia aparecer para outras pessoas à distância - como nos sonhos. Logo os selvagens começaram a considerar essas duas entidades idênticas, concebendo assim a ideia de alma. Após a morte a alma abandonou o corpo para sempre, mas às vezes aparecia em sonhos como se ainda estivesse viva. A partir daqui passou a acreditar que a alma continuava a viver após a morte do corpo, e esta crença foi estendida para incluir também todos os outros seres vivos e até objetos porque - até mesmo bugigangas e plantas, além de armas, barcos e roupas apareciam em sonhos.

Animismo

Os homens primitivos começaram assim a acreditar que tudo possuía um corpo e uma alma, e Tylor definiu este primeiro estágio da religião como 'animismo', então 'para explicar que os homens primitivos reconheceram cedo a superioridade da alma sobre o corpo devido à sua maior mobilidade e longevidade.No início eles simplesmente respeitavam as almas dos mortos, mas. mais tarde, eles receberam outros poderes. Ou seja, acreditava-se que protegiam famílias e tribos e zelavam pelo seu comportamento moral. Orações e adoração foram o resultado do tentar comunicar com essas almas. A ideia de que as almas e os espíritos tinham que viver em algum lugar deu origem à crença na vida após a morte e à liberdade com. o modo como as almas se moviam e apareciam por toda parte nos fazia acreditar que elas poderiam entrar no corpo dos vivos; daí a ideia de 'possessão' e a prática do exorcismo. Tylor dedicou grande parte de sua obra Cultura Primitiva à evolução da religião e, em particular, ao que desde então se tornou parte do jargão antropológico sob o nome de animismo. Com este termo Tylor indicou "a crença nas almas e nos seres espirituais em geral". Mais precisamente, o termo animismo indicava a crença, segundo Tylor, típica dos povos mais primitivos, segundo a qual os objectos, mesmo os inertes, possuíam uma "alma". Com base em alguns relatos etnográficos, Tylor postulou que a origem do animismo foi devido à experiência onírica da qual nossos ancestrais devem ter extraído a crença de que os fenómenos de divisão de personalidade e aparições, que às vezes ocorrem durante sono, foram devido à existência de um "duplo". Este duplo, ou alma, pode levar uma existência independente do corpo tanto durante a vida quanto após a morte. Mais tarde, de acordo com Tylor, o homem estenderia a crença na posse de uma alma a todos aqueles seres e fenómenos naturais que de alguma forma atingiram sua imaginação. Animais, plantas e objectos foram assim dotados de uma alma que, podendo se desprender dos corpos a que pertencia, deu origem à noção ainda mais abstracta de espírito, entidade completamente autónoma e sem "suporte" material. No entanto, uma vez que para Tylor o animismo era "a base da filosofia da religião, desde os selvagens até a do homem civilizado", essa mesma noção indicava também aquele tipo de pensamento para o qual a explicação dos fenómenos naturais e psíquicos era trazido de volta a princípios não relacionados à investigação racional e materialista. O animismo foi, portanto, uma noção que permitiu a Tylor definir de um só golpe a essência do pensamento mítico, mágico e religioso e distingui-lo, por oposição, do pensamento científico e racional. Na verdade, Tylor observou que

«a divisão que separou as grandes religiões da humanidade em seitas hostis é quase nada se comparada ao mais profundo de todos os cismas, aquele que separa o animismo do materialismo».

Desta forma, ele insinuou o abismo que separa essas duas atitudes mentais. No entanto, ele acreditava que o surgimento do pensamento racional era o resultado de um lento e progressivo amadurecimento intelectual da humanidade. Uma vez que o ponto de chegada deste caminho foi representado pela afirmação do pensamento racional, tratou-se de traçar não só as etapas evolutivas deste caminho, mas também de mostrar que tipo de modificações "a crença nos espíritos durante as várias fases, da primeira à última, pelas quais passou na história da humanidade ». Para Tylor, o animismo constituía, portanto, em sua forma original - ou seja, a crença na existência da alma humana - uma presença ininterrupta "da filosofia do selvagem à filosofia do moderno professor de teologia". Com o acúmulo de conhecimentos e, portanto, com o surgimento do pensamento racional, essa crença, inicialmente estendida a todos os seres vivos e objectos inertes, foi progressivamente "encolhendo" a ponto de envolver apenas o "cristão civilizado". O surgimento do pensamento racional, assim, foi acompanhado da redução progressiva do leque de fenómenos naturais e psíquicos originalmente investidos pelo pensamento mágico e religioso, enquanto o animismo acabou se transformando na crença relativa à posse de uma única alma por do indivíduo. Ele afirmou que essas crenças dificilmente são “um montão de lixo de loucura variada”, mas são consistentes e lógicas em alto grau. Sua formação e desenvolvimento baseiam-se em princípios racionais, embora a racionalidade envolvida seja de mentes ignorantes (1871, 1: 22-23). Tylor afirmou que a crença em seres espirituais é a crença religiosa comum a todas raças (1871, II: g). Essa crença, portanto, constitui o próprio 'fundamento da filosofia da religião' .  Com base nisso, ele pensou que a origem da crença em seres espirituais deve ser encontrada nas tentativas dos selvagens de explicar dois enigmas da vida (Hatch 1973: 30). Em primeiro lugar o feitiço, qual a diferença no corpo do feiticeiro vivo e um morto; o que causa o acordar, o sono, o transe, a doença, a morte? Em segundo lugar, quais são as formas humanas que aparecem nos sonhos e visões  do feiticeiro (1871, II: t2)? Durante o sono o feiticeiro é capaz de deixar o corpo temporariamente, de se afastar e de passar pelas experiências registadas na mente como sonhos; e pode partir para sempre, deixando o corpo sem vida. O sacrifício humano também é derivado da crença nas almas; É uma inferência racional que, quando um homem morre, ele pode precisar ou desejar que outros o acompanhem na próxima vida (1871, 11:42).

 

Estágio politeísta

Como os espíritos também podiam entrar nos objetos, estes teriam adquirido um poder particular ao se transformarem em fetiches o que, ao receber a forma de ídolos e elevar os espíritos à categoria de divindade, teria levado à idolatria. No estágio politeísta inicial, cada deus estava no controle. um aspecto particular da vida e da natureza, mas como nem todos os deuses tinham a mesma importância, foi criada uma hierarquia com apenas um deus como divindade suprema. Posteriormente, todos os deuses menores ficaram em segundo plano e depois desapareceram completamente: o estágio final do monoteísmo! foi alcançado. A análise da religião de Tylor é indicativa tanto da eficácia quanto da fraqueza da religião. seu método. Sem dúvida positivo é o uso abundante de material etnográfico que ilustra detalhadamente tudo o que Tylor quer demonstrar. No prefácio de Cultura Primitiva, aliás, o estudioso sublinhou a importância de fornecer «evidências amplas e precisas» (1958, I: XVI) que servissem tanto para validar as suas teorias como para explicar dados etnográficos que até então eram considerados sem significado. A sua muito útil 'definição mínima' de religião, o seu conceito de religião como um universal cultural e a sua interpretação da relação entre as religiões primitivas ainda são aceites hoje. Tylor não adotou um esquema rígido de desenvolvimento, nem tentou classificar um culto específico sob o rótulo de “barbárie” ou “estado selvagem” a todo custo; ele não considerou os sistemas religiosos em sua totalidade, mas sim reconstruiu as origens e o desenvolvimento das crenças em seres sobrenaturais, na alma, na vida após a morte e em várias práticas religiosas, como orações, oferendas de sacrifícios e outros aspectos. Nesta forma de proceder reside provavelmente a sua maior fraqueza: todos os fenómenos religiosos foram extraídos do seu contexto cultural e utilizados como prova isolada da sua tese. Além disso, a análise da religião de Tylor concentrou-se apenas em aspectos

Religião e parentesco estavam entre os temas de reflexão dos primeiros antropóides. O interesse pela religião reflectia o embate entre criacionistas e evolucionistas, bem como as ansiedades e perplexidades de uma época que via a autoridade bíblica, assim como a igreja, questionada em questões de ciências naturais e origens humanas. O parentesco era outro importante objecto de reflexão, que mesclava interesse na evolução do direito, curiosidade sobre a forma "estranha" como os parentes se chamavam em sociedades diferentes daquelas. e, não reconhecido, um desejo subtil (reunindo temas "proibidos" então. como o das práticas sexuais dos povos primitivos. Em todo caso, foi a religião que, no interesse dos evolucionistas europeus, prevaleceu de longe sobre as outras. A tal ponto que, já foi dito, a antropologia parece ter nascido em primeiro lugar como uma antropologia da religião.

 

As sobrevivências

Apesar da lenta mas progressiva afirmação do pensamento racional,

«as crenças e ritos dos povos superiores mostravam a sobrevivência do velho no seio do novo, as modificações do velho para se adaptar ao novo e o abandono do presente do velho já não é compatível com o novo» (Tylor 1920: 500).

Estamos aqui na presença de outro conceito importante da antropologia evolutiva, o da sobrevivência. O que Tylor quis dizer com sobrevivência é ilustrado por esta passagem da Cultura Primitiva:

«Quando, com o tempo, ocorre uma mudança geral nas condições de vida de um povo É fácil encontrar muitas coisas que claramente não têm sua origem no novo estado de coisas, mas que simplesmente permaneceram nele. Em virtude dessas sobrevivências, é possível argumentar que a cultura na qual elas podem ser observadas deve ser derivada de um estado cultural anterior no qual o lugar autêntico e o significado autêntico dessas coisas devem ser rastreados; conseqüentemente, esta série de fatos deve ser considerada como uma verdadeira mina para investigação histórica» (Tylor 1920: 71).

A sobrevivência era, portanto, qualquer coisa, por exemplo, uma crença, uma ideia, uma prática, cujo significado original havia perecido por séculos, mas que poderia continuar a sobreviver "simplesmente porque existia anteriormente". A crença da alma que o monoteísmo tem como prerrogativa deve, portanto, ser vista como um fenómeno de sobrevivência e é uma crença cujo significado sobreviveu durante séculos. continuou a sobreviver como um fóssil social, uma sobrevivência. Tylor, no entanto, atenuou o sentido de fóssil social ao introduzir os conceitos de adaptação e modificação ao novo, à nova sociedade industrial e à mentalidade positivista, todos coisas que refletem a concepção particular da relação ciência-religião. A religião, portanto, deve se adaptar para não ser destruída. A sobrevivência era um fóssil social e, como Tylor coloca, uma "mina para investigação histórica". Detectar uma sobrevivência significava ser capaz de voltar ao tempo em que aquela ideia ou prática (de sobrevivência) tinha um significado e, portanto, ser capaz de compreender o estágio de desenvolvimento cultural anterior ao atual. A esse respeito, é interessante notar como é por meio de sua teoria da sobrevivência que Tylor dinamiza aquele conceito de cultura que, como tal, não revela as relações que os elementos que constituem um assim definido "todo complexo" podem ter entre si. A sobrevivência, de fato, é para Tylor algo "fora do lugar", portanto desprovido de relações com os outros elementos da cultura, relações (dinâmicas) que deve ter tido em uma era cultural anterior. O método comparativo Para a antropologia evolutiva, as culturas e sociedades que o Ocidente encontrou em seu caminho eram realidades que podiam e deveriam ser rastreadas até o sentido de uma história coincidente com o desenvolvimento cumulativo da cultura, da qual o Ocidente representava a culminação. Precisamente como exemplos de etapas da história humana, essas culturas e sociedades "primitivas" foram realidades importantes para a antropologia. Não eram mais meras eflorescências insignificantes, como haviam sido para as filosofias da história da época anterior. Nem eram, ao contrário do que afirmavam os criacionistas e degeneracionistas, exemplos desprezíveis da barbárie a que o pecado havia condenado uma parte da humanidade. Para os evolucionistas, a antropologia se configurou antes de tudo como uma grande pesquisa intelectual de culturas. Poucos deles, de fato, tinham experiência direta com populações "primitivas", seu objetivo era traçar tendências, estágios, sequências de desenvolvimento das instituições e ideias que caracterizaram a história da cultura. Esta última é uma técnica para rastrear as sequências de desenvolvimento por meio dos resíduos das instituições passadas remanescentes entre os povos existentes. Em todas as sociedades, antigos padrões de pensamento e comportamento sobreviveram além das condições que os originaram, e esses padrões servem “como provas e exemplos” de um estágio anterior de desenvolvimento (1871, I: 16). Por exemplo, os arcos, as flechas são meros brinquedos na sociedade africana moderna, mas fornecem um registro das actividades em que os africanos se engajaram por muito tempo (1871, I: 72ss.). O costume europeu de usar brincos. O brinco, Tylor acreditava, é “uma relíquia de uma condição mental mais grosseira”, uma condição na qual coisas como anéis, ossos e penas são inseridas através da cartilagem do nariz, ou nas quais pinos de marfim são inseridos nos cantos do nariz. a boca. O uso de brincos é um costume que indica a sequência de desenvolvimento. Os costumes e leis das tribos selvagens e bárbaras 'frequentemente nos explicam, de maneiras que deveríamos ter adivinhado, o sentido e a razão de nossa própria' (1881: 401; ver também 1873,

Método comparativo

Embora fundado na especulação, este projeto exigia um "cruzamento" de "outras" experiências culturais. A partir daí, a antropologia passou a ser um conhecimento comparativo, e não poderia ser diferente. A característica da antropologia é, de fato, fazer da comparação a premissa de toda conclusão possível tendente à generalização. A centralidade da comparação pode ser explícita ou implícita, pode ser enfatizada o nuançada ou nuançado, ora declinado no sentido geográfico, ora no sentido tipológico. No entanto, permanece a própria condição do conhecimento antropológico. Embora criticada em vários momentos, a comparação continua sendo o método inspirador da antropologia. Os evolucionistas foram os que, entre os antropólogos, fizeram o uso mais explícito e massivo da comparação. Uso em muitos aspectos que pode ser criticado pela tendência que demonstraram em descontextualizar os dados etnográficos, curvando-os ao seu projecto cognitivo que consiste em querer traçar sequências e linhas de desenvolvimento. A este respeito é necessário fazer alguns esclarecimentos. A evolução cultural das possibilidades divergentes nascidas dos antropólogos desta época não previu que todos os povos da terra deviam necessariamente seguir exactamente a mesma linha de desenvolvimento. Tylor, e muitos de seus contemporâneos, pensaram que só em geral se poderia falar de evolução. Na verdade, eles levaram a sério a possibilidade de que o desenvolvimento cultural fosse dominado por algo que poderia ser chamado de "princípio das possibilidades divergentes". Tendo chegado a um ponto de sua evolução, uma cultura poderia ter trilhado um caminho e não outro, dando origem a caminhos evolutivos diversificados nos campos social, político, religioso e ecológico.

Antropologia evolutiva

Para a antropologia evolutiva, as culturas e sociedades que o Ocidente encontrou em seu caminho eram realidades que podiam e deveriam ser rastreadas até o sentido de uma história coincidente com o desenvolvimento cumulativo da cultura, da qual o Ocidente representava a culminação. Precisamente como exemplos de etapas da história humana, essas culturas e sociedades "primitivas" foram realidades importantes para a antropologia. Não eram mais meras eflorescências insignificantes, como haviam sido para as filosofias da história da época anterior. Nem eram, ao contrário do que afirmavam os criacionistas e degeneracionistas, exemplos desprezíveis da barbárie a que o pecado condenou uma parte da humanidade. Para os evolucionistas, a antropologia configurou-se antes de tudo como uma grande jornada intelectual pelas culturas. Poucos deles, de fato, tinham experiência directa com populações "primitivas", seu objectivo era traçar tendências, estágios, sequências de desenvolvimento das instituições e ideias que caracterizaram a história da cultura. Embora fundado na especulação, este projeto exigia um "cruzamento" de "outras" experiências culturais. A partir daí, a antropologia passou a ser um conhecimento comparativo, e não poderia ser diferente. A característica da antropologia é, de fato, fazer da comparação a premissa de toda conclusão possível tendente à generalização. A centralidade da comparação pode ser explícita ou implícita, pode ser enfatizada ou matizada, ora declinada em um sentido geográfico, ora em um sentido tipológico. No entanto, permanece a própria condição do conhecimento antropológico. Embora criticada em vários momentos, a comparação continua sendo o método inspirador da antropologia. Os evolucionistas foram os que, entre os antropólogos, fizeram o uso mais explícito e massivo da comparação. Uso que pode ser criticado em muitos aspectos pela tendência que demonstraram a descontextualizar os dados etnográficos, a curvá-los ao seu projecto cognitivo que consiste em querer traçar sequências e linhas de desenvolvimento. A este respeito é necessário fazer alguns esclarecimentos. A evolução cultural das possibilidades divergentes nascidas dos antropólogos desta época não previu que todos os povos da terra deviam necessariamente seguir exactamente a mesma linha de desenvolvimento. Tylor, e muitos outros contemporâneos dele, pensaram que apenas em geral se poderia falar de evolução. Na verdade, eles levaram a sério a possibilidade de que o desenvolvimento cultural fosse dominado por algo que poderia ser chamado de "princípio das possibilidades divergentes". Tendo alcançado um ponto de evolução, uma cultura poderia ter trilhado um caminho ao invés de outro, iniciando caminhos evolutivos diversificados nos campos social, político, religioso e ecológico.

O conceito de cultura como um todo complexo (e decomponível), a noção de sobrevivência e comparação constituíram, assim, os pontos de apoio de um projecto que visa reconstruir as etapas da evolução cultural. Tylor tentou dar ao projecto uma base estatística através da aplicação de um método denominado "variações concomitantes" ou, na verdade, "correlações estatísticas". Em seu ensaio Sobre um método para estudar o desenvolvimento institucional, de 1889, Tylor procurou estabelecer a frequência estatística com que certas práticas e rituais de casamento estão associados à presença de linhagem matrilinear ou patrilinear. Ao examinar uma amostra de 350 sociedades, Tylor procurou determinar com que frequência certas formas de residência, ancestralidade e comportamento ritual estavam relacionados.

Couvade

Um exemplo entre outros é a correlação que ele estabeleceu entre o costume da couvade e o tipo de descendência característica da sociedade em que esse costume estava presente. A "couvade" é aquele comportamento que consiste no respeito a certos tabus, e às vezes na simulação dos sintomas do parto e pós-gravidez, pelo marido de uma mãe. É interpretada como uma "declaração pública" de paternidade do homem. Tylor descobriu que os resultados do processamento estatístico deram ausência da couvade em sociedades matrilineares, alta frequência dela em sociedades com descendência "dupla" (isto é, patri e matrilinear), e baixa frequência em sociedades patrilineares. Tylor concluiu que a couvade deve ter surgido com prole dupla (ou seja, quando a incerteza da prole pertencer a um grupo em vez de outro era máxima), enquanto no estágio patrilinear era apenas uma sobrevivência. Os três tipos de descendência, matrilinear, dupla e patrilinear, deviam ser considerados característicos de três estágios sucessivos na evolução das formas de descendência. O ensaio de 1889 marcou o surgimento de uma ideia de antropologia como uma ciência que poderia ser construída em bases estatísticas, ideia que ressurgiria na primeira parte do século seguinte no quadro de um projeto comparativo típico da disciplina.

Positivismo

O positivismo não tem dúvidas sobre a realidade do mundo externo ou que nesse mundo pode ser apreendido e compreendido é objectivamente. Um elemento importante desse realismo é a visão de que o mundo opera de acordo com as leis naturais, e que isso é tão verdadeiro para a sociedade e para as instituições sociais quanto para as moléculas ou organismos vivos. Consequentemente, a explicação nas ciências sociais é essencialmente a mesma explicação nas ciências naturais, e consiste em subsumir os eventos a serem explicados sob leis empíricas naturais do universo  A crença de Spencer na causalidade levou-o à sua teoria evolutiva, uma vez que a ideia de sequências evolutivas satisfizeram as necessidades de um esquema de causa e efeito. Para Tylor, o princípio que guia a humanidade na elaboração de suas instituições utilitárias é o da razão, e as práticas sociais são explicadas por referência a processos racionais de pensamento. A razão, portanto, é a chave que podemos aplicar às nossas próprias crenças e práticas, a fim de obter entendimento. Intimamente associado com o princípio da razão no esquema de Tylor está sua visão de que as instituições humanas podem ser estudadas em termos causais, como expressões de leis naturais. Nas páginas de abertura da Primitive Culture, ele observou que muitas pessoas são repelidas pela ideia de que a história humana é apenas um aspecto da história da natureza, ou que

«nossos pensamentos, vontades e ações estão de acordo com leis tão definidas quanto aquelas que governam o movimento das ondas, a combinação de ácidos e bases, e o crescimento de plantas e animais» (1871, 1: 2).

Ele argumentou que de fato as leis naturais desempenham um papel no comportamento humano, e que ele tomaria uma aspecto da história do homem - a Cultura - e determinar algumas das causas que estão por trás disso (1871, 1: 5) (Hatch 1973: 20). Para Tylor, a cultura é fructo de crescimento lento. As mentes das pessoas nos estágios iniciais de desenvolvimento são severamente limitadas pelos grilhões conservadores da tradição, mas o pensamento racional é obstinado e o sobrenatural mais cedo ou mais tarde prevalecerá. Isso não quer dizer que a razão sempre resulte em progresso, no entanto, erros de julgamento são comuns, particularmente nos estágios iniciais. Como o biólogo interessado na planta em crescimento, e não na terra através da qual ela luta, a preocupação central de Tylor era sempre o pensamento racional (Hatch 1973: 22).

Conservatorismo

Tylor aparentemente não discutiu em detalhes como é possível que um costume tenha um domínio tão tenaz nas mentes de um povo; ele nunca tentou explicar os mecanismos psicológicos ou sociais que asseguram a persistência do costume. O conservadorismo tradicional resulta quando, por alguma razão, um povo não aplica suas mentes a suas práticas e crenças tradicionais, mas adere a ideias pré-constituídas sem reflexão consciente. Por exemplo, Tylor ocasionalmente escreveu que o consenso da opinião pública é uma base do conservadorismo: as pessoas frequentemente acreditam que 'o que todo mundo diz deve ser verdade, o que todo mundo faz deve estar certo' (1871, I; 13). Tylor ocasionalmente sugeriu que as autoridades eclesiásticas são uma fonte de conservadorismo quando atribuem crenças e práticas ao reino do sagrado (Hatch 1973: 21-23)

Evolucionismo

A teoria evolutiva de Tylor deve ser vista em grande parte em relação a um dos principais problemas enfrentados pela antropologia durante a década de 1860: esse foi o debate entre os degeneracionistas e os progressistas (Stocking 1968: 74-81). Os degeneracionistas argumentaram que os povos selvagens uma vez desfrutavam de uma condição melhor, mas, tendo caído aos olhos de Deus, degeneraram para seu status atual. A visão degeneracionista foi associada à noção de que a cultura não é um fenômeno natural e que está além do alcance da análise científica. Tylor foi um dos principais expoentes do argumento progressista, de que todas as instituições passam por um processo gradual e natural de desenvolvimento, e que os vários povos do mundo representam diferentes níveis de realização ao longo desta linha de evolução. progressão.

A estrutura conceitual subjacente à sua teoria evolutiva.

Quase se pode dizer que, enquanto Durkheim e Spencer tomavam o organismo biológico como modelo para a análise cultural, Tylor, como Comte, levou o desenvolvimento da ciência na sociedade (Hatch 1973: 24).

Tylor usou dois métodos principais para traçar o curso da evolução - o método comparativo e a análise de sobrevivências.

Unidade psíquica do gênero humano

Tylor enfatizou o que foi chamado de unidade psíquica da humanidade. Por exemplo, em suas Pesquisas, ele afirmou que, quando consideramos as artes, o conhecimento, os costumes e as superstições da humanidade, ficamos impressionados com a recorrência de formas semelhantes nas partes mais remotas do mundo. Isso, observou, 'ilustra de forma impressionante a extensão da uniformidade mental entre a humanidade' (1873: 373). Na sua antropologia, ele afirmou que “parece haver na humanidade um temperamento inato e uma capacidade de mente inata”. Algumas raças, ele comentou, “marcharam na civilização enquanto outras pararam ou recuaram”, e isso se deve em parte às “diferenças de poderes intelectuais e morais”. Ele afirmou que os filhos de raças inferiores parecem aprender tanto quanto as crianças brancas até os doze anos, quando são deixadas para trás pelas crianças brancas. O progresso da própria civilização seria uma causa das semelhanças entre as raças. as mentes das pessoas em posições semelhantes ao longo da escala de desenvolvimento.

Tylor embora considerasse o contexto etnográfico como um relativamente sem importância, para ele, é principalmente dentro de um contexto comparativo ou histórico que as características distintivas de um traço emergem.

 

Traços culturais

Uma razão pela qual Tylor poderia ignorar o contexto cultural ou etnográfico de um traço é porque enfatizava as relações causais entre os processos mentais individuais e os fenómenos culturais. Todos os traços que compartilham a mesma causa pertencem juntos, independentemente de onde forem encontrados ao mesmo contexto cultural. Argumentar que é necessário fornecer o contexto etnográfico de um traço para compreendê-lo baseia-se no pressuposto de que são as relações entre os elementos culturais que são importantes para o entendimento - que os traços têm propriedades que os capacitam a reagir sobre um deles. outro. Em suma, assume que a cultura é um sistema emergente (Hatch 1973:37)

 

Conclusão

O método holístico dos quatro campos, particularmente difundido na antropologia americana, também esteve presente no trabalho de Tylor. A sua Antropologia (1881) incluía de facto capítulos sobre o homem primitivo e a sua relação com os outros animais, sobre as raças da raça humana, sobre a linguagem, com numerosas referências à arqueologia. A análise dos sistemas de comunicação entre. surdos e mudos serviram de modelo para o estudo dos sistemas de comunicação não ocidentais, ao passo que ter apreendido a importância da natureza do processo de simbolização foi um fato decisivo para a compreensão da cultura e do homem. R; R. Marett (1866-1943), aluno de Tylor e seu biógrafo (1936), resumiu sua contribuição teórica: o conceito de animismo, a definição ampla de cultura e religião, o uso do método comum, as tentativas de correlação estatística, o importância atribuída à cultura material, à reconstrução histórica e assim por diante. Provavelmente nenhuma dessas contribuições é verdadeiramente original, mas Tylor merece crédito por reuni-las num todo coerente. Nas suas mãos, a antropologia tornou-se 'a ciência da cultura'                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

Evolucionismo.

Edward B. Tylor discordou da alegação de alguns escritores franceses e ingleses do início do século XIX, liderados pelo conde Joseph de Maistre, de que grupos como os índios americanos e outros povos indígenas eram exemplos de degeneração cultural. Ele acreditava que os povos em diferentes locais eram igualmente capazes de se desenvolver e progredir através dos estágios. Grupos primitivos tinham “alcançado sua posição aprendendo e não desaprendendo”. Tylor sustentava que a cultura evoluiu dos simples para o complexo, e que todas as sociedades passaram pelos três estágios básicos de desenvolvimento sugeridos por Montesquieu: da selvageria à barbárie e à civilização. 'Progresso', portanto, era possível para todos. Tylor acreditava, como Adolf Bastian, que havia uma espécie de unidade psíquica entre todos os povos que explicava sequências evolutivas paralelas em diferentes tradições culturais. Em outras palavras, por causa das semelhanças básicas na tradição. No quadro mental de todos os povos, diferentes sociedades frequentemente encontram as mesmas soluções para os mesmos problemas, mas Tylor também estava ciente de que os traços culturais poderiam se espalhar de uma sociedade para outra por simples difusão - o empréstimo de uma cultura de uma característica outro devido ao contato entre os dois.

 

Hatch, E. (1973). Theories of Man and Culture. New York: Columbia University Press.

Tylor, Edward, B. (1877). Anahuac. Mexico and the Mexicans, Ancient and Modern. London: Longmans.

Tylor, E. B. (1878). Researches into the Early History of Mankind and the Development of Civilization. Boston: Estes&Lauriat.

Tylor, E. B. (1871). Primitive Culture. London: John Murray.

Tylor, E. B. (1909). Anthropology. An introduction to the Study of Man and Civilization. New York: Appleton.

Lowie, R. (1917). Edward B. Tylor. American Anthropologist, 19(2), 262–268.

Kroeber, Alfred, e Clyde Kluckhohn. 1952. Culture. A critical Review of Concept and Definition. Cambridge: Museum.

 

 

outra Lição: de Outubro - Morgan

 

 

 

 

 

Vida de Henry Lewis Morgan

Na América, os estudos etno-antropológicos se desenvolveram durante a primeira metade do século XIX por iniciativa de um pequeno grupo de pesquisadores amadores, curiosos sobre a vida e os costumes dos índios americanos. Entre estes estava Lewis Henry Morgan (1818-1881) que, ampliou as observações feitas por ele próprio ou por outrem, numa visão teórica mais abrangente. Por isso Morgan é considerado uma figura central na história da antropologia nos Estados Unidos e dos estudos antropológicos em geral. Morgan nasceu em Aurora 1818, filho de um proprietário rural do estado de Nova York que chegou a ser eleito senador estadual onde existiam inúmeras reservas indígenas, Morgan conheceu desde muito cedo e diretamente os hábitos de vida dos índios. A amizade que formou com um destes, descendente de uma linhagem de dirigentes do Séneca, J deve ter-se revelado decisiva para o sucesso com que Morgan mais tarde se dedicaria ao estudo da civilização indígena: foi de facto pelo seu mérito que Morgan teve a oportunidade de fazer estadias curtas na reserva de Sêneca e, assim, entrar em contato direto com um universo social até então quase completamente desconhecido. Estudou direito, formando-se em 1842. Na faculdade, participou de uma associação de estudantes conhecida como Ordem do Nó Górdio, dedicada principalmente a estudos clássicos. Por sugestão de Morgan, a associação mudou seu nome para Grande Ordem dos Iroqueses, numa alusão aos índios desse grupo que viviam nas redondezas. O que começou como uma brincadeira logo assumiu proporções mais sérias. Os membros foram paulatinamente adotando uniformes baseados nos costumes iroqueses em seus encontros e rituais. Passaram também a adotar figuras e formas de linguagem e um estilo retórico supostamente iroqueses e a estudar as poucas fontes disponíveis sobre a história e os costumes dessa nação indígena.

No final de 1844, Morgan mudou-se para Rochester, onde abriu um escritório de advocacia. Nesse mesmo ano, durante uma visita a Albany, conheceu casualmente, numa livraria, um índio, filho de um chefe iroquês da tribo dos Seneca, batizado com o nome cristão de Ely Parker. Ele convidou Morgan a encontrar-se naquela mesma noite com alguns chefes de sua tribo, hospedados num hotel da cidade. Com seu novo conhecido atuando como intérprete, Morgan retornou nas duas noites seguintes, fazendo perguntas e apontando as respostas. Os nativos explicaram como a Confederação Iroquesa estava organizada, sua estrutura de tribos e clãs, e ensinaram palavras de sua língua. Para quem gosta de mitos de origem, esses encontros podem ser vistos como o momento de nascimento da antropologia norte-americana.

Encorajados por Parker, Morgan e seus colegas fizeram visitas às reservas indígenas. Numa delas, em outubro de 1846, Morgan foi adotado como guerreiro Seneca do clã do Falcão, com a restrição de não poder acompanhar os rituais mais secretos. Pouco depois a Grande Ordem foi se dissolvendo, devido em grande parte ao fato de que seus "guerreiros” foram tendo que ganhar a vida e ocupar-se mais de outros negócios. Mas o interesse de Morgan continuou, e ele logo tornou- se inquestionavelmente o maior especialista americano nos Iroqueses, passando a escrever vários artigos. Foi também o responsável por montar uma coleção de objetos indígenas para o New York Museum.

Para compreender a importância do trabalho de Morgan, é necessário contextualizar seus interesses pelos índios américanos ao clima geral das relações entre brancos e nativos americanos no final da primeira metade do século XIX. De facto, não se pode ignorar o duplo papel que os indígenas desempenharam no processo de constituição dos Estados Unidos da América, tanto no sentido estritamente político como no ideológico. As primeiras observações de Morgan relatadas aos sistemas de parentesco indianos. Morgan observou que os iroqueses designavam os parentes de uma forma radicalmente diferente daquela em uso entre os 'povos civilizados': qualquer indivíduo chamado, por exemplo, o irmão de seu pai de 'pai' e a irmã de sua mãe de 'mãe'. Consistente com isso, Morgan observou, os filhos do irmão do pai e os da irmã da mãe se dirigiam um ao outro chamando-se 'irmão' e 'irmã' e não por meio de termos correspondentes aos de 'primo' ou 'prima' em nossa terminologia de parentesco.

Embora essas observações mais tarde tivessem a intenção de representar o ponto de partida de um estudo muito maior publicado exatamente vinte anos depois da Liga, Morgan não prestou atenção especial na época às características do sistema de parentesco iroquês. A atenção de Morga foi mais atraída para a função do que para este sistema; parecia ter jogado no processo de formação da unidade política das Seis Nações no passado

A «questão indigena»

Quando Morgan começou sua pesquisa por volta de 1840, a opinião pública americana, especialmente a culta da 'costa leste' dos Estados Unidos, ainda estava presa entre duas concepções de índio, ambas datando da era de Declaração de independência (1776). De fato, nos escritos e discursos dos 'pais fundadores' da jovem nação americana, dois conceitos de indígena coexistiram, um negativo e outro positivo. Essas visões opostas foram consequência da maneira diferente como os políticos e intelectuais americanos da época tentaram apresentar os Estados Unidos aos próprios americanos, por um lado, e aos europeus, por outro. Quando se tratava de 'assuntos internos' o índio era o inimigo, ou pelo menos quem impedia o homem branco de se expandir em uma terra que considerava sua porque sabia explorá-la 'racionalmente'. Quando se tratava de opor o vigor e a liberdade do Novo Mundo à decadência e opressão da velha Europa, o índio foi chamado a apoiar, com as suas virtudes, o seu valor, a sua simplicidade e o seu amor pela liberdade, a jovem nação americana.

Havia, de fato, um grave problema jurídico: se a posse da terra conferia a um povo o carácter de nação, os índios, donos das terras que habitavam desde tempos imemoriais, não constituíam eles próprios uma nação ou muitas nações diferentes. ? Como então pensar em uma nação americana que era ao mesmo tempo branca e índia? Thomas Jefferson, o segundo presidente dos Estados Unidos, que tinha sentimentos benevolentes para com os índios, tentou resolver o problema da forma que a partir de então parecia mais óbvia: se os índios tivessem abandonado sua economia de caçadores para se converterem em agricultores, eles não apenas teriam mantido seus direitos legítimos de propriedade da terra, mas também poderiam ter se tornado parte da nação civilizada americana. Como o próprio Morgan escreveu um século e meio depois sobre Jefferson,

«quando os iroqueses alcançarem o status estável de fazendeiros e a terra for dividida entre as famílias com o poder de aliená-la ... quando isso acontecer, eles deixarão de ser índios, excepto no nome».

A ‘questão indígena', como apareceu no final da primeira metade do século XIX, constituiria precisamente o pano de fundo ideológico do sucesso de Lewis Henry Morgan como um estudioso nativo americano.

Obras

Em 1851, Morgan consolidou o que aprendera sobre os Iroqueses em The Teague oft he Ho-dé- no-sau-nee, or lroquois [A Liga dos Ho-dé-no-sau-nee, ou Iroqueses], O livro foi dedicado a Parker, apresentado como um "pesquisador associado". Morgan dizia que o objetivo do livro era "encorajar um sentimento mais bondoso em relação aos índios, baseado num conhecimento mais verdadeiro de suas instituições civis e domésticas, e de suas capacidades de futura evolução» Para dar maior credibilidade ao seu testemunho, Morgan invocava o facto que manteve "relações frequentes" com os iroqueses e o facto de ter sido "adoptado" por eles. Nos anos seguintes, Morgan teve sucesso como advogado de empresas de estradas de ferro e de mineração. Seu interesse por temas antropológicos reavivou- se, no entanto, após comparecer, em 1856, à reunião anual da American Association for the Advancement of Science [Associação Americana para o Progresso da Ciência] que se realizou em Albany. Na reunião de 1858 da AAAS, Morgan apresentou um trabalho sobre as características essenciais da sociedade iroquesa, destacando-se seu sistema de parentesco com suas leis de consanguinidade e descendência, tema que o perseguiria nos próximos anos. Morgan acreditava que o sistema classificatório de parentesco dos iroqueses era similar ao encontrado entre várias outras tribos norte-americanas (o que poderia provar sua origem comum) e talvez mesmo em várias partes do mundo (o que, a seu ver, se também fossem encontradas no Oriente, estabeleceria cientificamente a origem asiática dos nativos norte-americanos).

Para tentar provar sua suposição, Morgan enviou, nos anos seguintes, questionários a dezenas de missões religiosas, agências governamentais e instituições científicas nos Estados Unidos e em todos os continentes, perguntando sobre a organização social de povos nativos, em particular sobre o sistema de parentesco. Realizou também, até 1862, quatro curtas viagens de campo (a maior delas de 45 dias) a missões e reservas indígenas nos estados de Kansas e Nebraska, reunindo diagramas e tabelas de parentesco. Pouco após partir para a última dessas viagens, Morgan recebeu por telégrafo uma mensagem de sua mulher, informando que sua filha mais velha estava muito doente e pedindo sua volta imediata. Morgan preferiu continuar a viagem. Mais adiante, foi informado da morte de suas duas filhas, vitimadas por febre escarlatina. Devastado pelo remorso, Morgan, então com 44 anos, nunca mais voltaria a campo.

Systems of Consanguinity and Affinity

O resultado da pesquisa sobre parentesco foi publicado em 1871 no monumental Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family [Sistemas de consanguinidade e afinidade da família humana], o maior e mais caro livro até então publicado pela Smithsonian Institution. Morgan chegou ã conclusão de que havia apenas dois sistemas de terminologia de parentesco, fundamentalmente diferentes: um descritivo (do hemisfério sul, tropical e claramente não-europeu) e outro classificatório (da Europa e do noroeste asiático). As diferenças entre os dois sistemas, sugere Morgan, poderiam ser devidas ao resultado do desenvolvimento da propriedade. O livro tornou-se um marco nos estudos antropológicos. Antes de Morgan, poucos haviam registrado com cuidado e de maneira extensa a terminologia de parentesco de outros povos. O tema do parentesco tornou-se, com seu livro, central na antropologia. E interessante observar que, oito décadas mais tarde, Lévi-Strauss dedicaria seu As estruturas elementares do parentesco (1949) à memória de Morgan.

Ao longo da década de 1860, Morgan foi eleito pelo partido republicano para a assembléia legislativa (1861-1868) e para o senado (1868-1869) de seu estado, tendo tido uma atuação apagada, exceto por sua participação na presidência do Comi té de Assuntos Indígenas da assembléia. Seu grande interesse continuava sendo a ciência. Paralelamente aos estudos antropológicos, publicou em 1868 The American Beaver and His Works [O castor americano e suas obras]. Morgan acreditava que o funcionamento das mentes humana e animal era similar, diferenciando-se apenas em grau, e que não se podia explicar os comportamentos animais mais complexos, como por exemplo a construção de represas pelos castores, com base na noção de instinto.

Após a publicação de Sistemas, o principal projeto intelectual de Morgan passou a ser tentar aplicar o conhecimento antropológico contemporâneo para interpretar a história passada. Numa carta de 1873 a um amigo, escreveu:

«Penso, sobretudo, que as épocas de real progresso estão conectadas com as artes de subsistência, que incluem a idéia darwiniana de 'luta pela existência». O resultado foi o livro

Ancient Society [A sociedade antiga],

publicado em 1877. No livro, Morgan estudou os estágios de progresso da sociedade humana através da análise de cinco casos exemplares: os aborígines australianos, os índios iroqueses, os aztecas, os gregos e os romanos. O desenvolvimento da idéia de propriedade teria sido, na interpretação de Morgan, o processo decisivo para o surgimento da civilização.

Com o livro, Morgan tornou-se internacionalmente conhecido (embora também bastante criticado) como principal expoente da antropologia nos Estados Unidos. Toda uma geração de jovens interessados na disciplina passou a procurá-lo em sua casa em Rochester. Em 1875, na reunião anual da AAAS, Morgan criou e presidiu uma subseção permanente de antropologia, sendo eleito nesse mesmo ano, para ocupar uma das 16 vagas da National Academy of Sciences. Em 1879, foi eleito presidente da AAAS. Sua saúde já estava, no entanto, deteriorada. Morgan morreu no final de 1881, pouco após completar anos e ver publicado seu último livro, Morgan, H. L. (1891).

Houses and House-Life of the American Aborígines.

Washington: Gouvernement Printing Office.

[Casas e vida doméstica dos aborígines americanos].

Após sua morte, a fama de Morgan e suas idéias foram profundamente marcadas, para o bem ou para o mal, pela admiração que A sociedade antiga causou em Karl Marx e Friedrich Engels. Marx leu o livro entre 1880 e 1881 e acrescentou 98 páginas de notas. Engels utilizou amplamente dessas anotações para escrever A origem da família, da propriedade privada e do Estado . No prefácio à primeira edição, de 1884, Engels afirmou que sua obra era a "execução de um testamento", pois Marx, morto em 1883, queria expor pessoalmente os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da análise materialista da história.

Em A origem da família... Engels afirma que Morgan era responsável por uma "revolução do pensamento" que teria, para a história primitiva,"... a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política." A afinidade das teorias de Morgan com as de Marx seria completa: "Na América, Morgan descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história - formulada por Marx quarenta anos antes - e, baseado nela, chegou, contrapondo barbárie e civilização, aos mesmos resultados essenciais de Marx." Numa carta a Kautsky, do mesmo ano, Engels repetiria que: "Morgan redescobriu espontaneamente, nos limites que lhe traçava seu objeto, a concepção materialista da história de Marx, e suas conclusões relativas à sociedade atual são postulados absolutamente comunistas.

A admiração dos expoentes do comunismo por um advogado burguês republicano norte-americano viria a ser ironizada por vários autores. Apesar disso, deve-se registrar que, durante uma viagem a Paris pouco após a derrota da Comuna (1871), Morgan escreveria em seus diários, nunca publicados na íntegra, que os communards, apesar de sua parcela de crimes, haviam sido injustamente condenados, por terem sido pouco compreendidos. Ao deixar Paris, Morgan escreveu que o direito divino estava dando lugar ao direito comercial e que os governos estavam tornando-se instrumentos para a preservação e o aumento da propriedade: "Junto com essa tendência, percebemos outra: a de que os comerciantes, assim que ganham dinheiro, tornam-se aristocratas", passando-se para o lado das classes privilegiadas. No entanto, "quando seu dia tiver chegado, a vez do povo chegará».  Sem dúvida, todavia, a importância dada por Morgan ao desenvolvimento da idéia de propriedade e sua concepção determinista da evolução cultural humana aproximam suas idéias às dos marxistas; por outro lado, Morgan nunca foi um materialista ortodoxo, e termina A sociedade antiga atribuindo o curso da história humana ao plano de uma "Inteligência Suprema" para desenvolver o selvagem em civilizado, passando pelo estádio da barbárie. Um facto importante a registrar, no entanto, é que, como consequência da leitura de Marx e Engels, as idéias de Morgan, e especificamente seu A sociedade antiga , tornaram-se a doutrina antropológica oficial da União Soviética, prolongando assim a influência de suas idéias para muito além da época do apogeu do evolucionismo cultural."

 

Pensamento

A presença  do  homem  na  terra  remonta  a  uma  idade  muito  recuada.  Sabe-se  agora  que  o   homem  existiu  na  Europa  desde  o  início do período glaciar, e parece provável a sua presença  já num período geológico, anterior. A espécie humana sobreviveu,  enquanto  desapareciam  numerõsás  espécies de  animais  seus  contemporâneos, e a sua evolução, através dos diversos ramos  da família humana, foi tão notável pelos caminhos que seguiu  como pelos progressos que realizou. Como a duração provável da sua epopeia está ligada a eras geológicas, não podemos esperar medi-la de maneira precisa. Cem ou duzentos mil  anos não seria uma exagerada duração do período  que  separa a fusão dos glaciares no hemisfério norte da actualidade. Por mais aproximativa que seja qualquer avaliação de  um período cuja duração real não conhecemos, podemos afir mar  que  'ã  .existência  da  raça  humana  remonta  a  épocas  imemoriais e se perde numa longínqua antiguidade. Esta afirmação altera, na prática, as opiniões que preva leceram sobre as relações ' entre selvagens e bárbaros, e  entre  bárbaros e homens civilizados. Podemos assegurar agora,  apoiando-nos  em  provas  irrefutáveis,  que  o  período  do  estado  selvagem precedeu o período da barbárie em todas a  humanidade,  do  mesmo 'modo  que . 'sabemos, que  a  barbárie precedeu a civilzação. A história da humanidade é  uma só quanto à sua origem,  uma só quanto à sua experiência  e uma só quanto ao seu progresso. É louvável e ao mesmo tempo natural procurar saber, na  medida do possível, de que modo viveu a humanidade durante  todos estes séculos recuados, de que modo os selvagens atingiram  a condição superior da barbárie, numa lenta progres são e a um ritmo quase imperceptível, de que modo os bárbaros, numa progressão semelhante, atingiram finalmente a  civilização, 'e qual a razão por que outras tribos e outras  nações ficaram para trás no caminho do progresso, algumas  no estado de civilização, outras no estado de barbárie e outras  no estado selvagem. É uma ambição perfeitamente justa esperar que no futuro se encontrem as respostas para estas questões. As invenções e as descobertas estão em directa relação  com o progresso da humanidade, assinalando a sua marcha  por uma série de etapas sucessivas,  ao passo que as instituições  sociais e civis, dada a sua relação com as necessidades permanentes do homem, se desenvolveram a partir de alguns germes  originais de pensamento. Representam no  entanto  uma mesma  escala de progresso. Estas instituições, invenções e descobertas  incarnaram  e  preservaram  os  principais  factos  ainda  hoje  significativos  que ilustram esta experiência. Quando as reuni mos e comparamos,  tendem a demonstrar a origem da humanidade, a semelhança das necessidades dos homens no mesmo  estádio de desenvolvimento e a identidade da actividade do  espírito humano em condições sociais semelhantes. Durante a parte mais recente do período do estado sel vagem \e durante todo o período da barbárie, a humanidade  no  seu  conjunto  achava-se  organizada  em  gens,  fratrias  e  tribos. Estas formas de organização prevaleceram na generalidade do mundo arcaico, em todos os continentes, e foram elas  os instrumentos que possibilitaram a organização e a manu tenção da sociedade arcaica. A sua estrutura e suas relações  enquanto elementos dè uma série orgânica, os direitos, os  privilégios e os deveres dos membros da gens, da fratria e da  tribo, ilustram o desenvolvimento da ideia de governo no  espírito  humano.  As  principais  instituições  da  raça  humana surgiram no longínquo perioda do estado selvagem, desenvolveram-se  durante  o  período  da  barbárie  e  atingiram  a  maturidade na civilização. Também a família tomou sucessivamente formas diferentes,  dando origem aos grandes sistemas de consanguinidade  e afinidade que subsistiram até aos nossas dias. É este um campo de investigações que, na nossa qualidade  de americanos, deve merecer-nos um interesse particular e em  relação ao qual temos um dever essencial a cumprir. Sabemos  que o continente americano, rico em bens materiais, é também  o mais rico em objectos etnológicos, filológicos e arqueológicos referentes ao grande período da barbárie. A  raça humana,  pelo facto de ter tido a mesma origem, seguiu percursos idên ticos, tomando veredas diferentes mas paralelas em todos os  continentes, evoluindo de maneira muito semelhante em todas  as tribos e nações no mesmo estádio de desenvolvimento. Daí  resulta que a história e a experiência das tribos ameríndias  ofereçam uma imagem mais ou menos fiel da história e da  experiência  dos  nossos  próprios  antepassados  em  condições  correspondentes.  Como parte integrante da historiada humanidade,  as  instituições  das  tribos  de  índios,  as  suas  técnicas,   suas invenções e a sua experiência prática têm um valor enorme  e muito particular, superior por certo ao da sua própria raça. Quando  as  tribos  ameríndias  foram  descobertas,  representavam três períodos étnicos diferentes,  e de uma maneira mais completa que em qualquer outra parte. Ofereciam-se, numa  abundância até então desconhecida, materiais para a etnologia,  a filologia e a arqueologia. No entanto, dado o estado actual  destas ciências ainda balbuciantes e muito pouco praticadas  entre nós, os investigadores não se mostraram à altura da  sua tarefa. E  se os fósseis se conservarão na terra,  intactos para  o estudante do futuro, os vestígios das artes, da língua e das  instituições  índias extifiguem-se  diariamente,  e  isto desde há três séculos. A vida cultural das tribos índias  degenera sob a influência da civilização americana; as técnicas  e a língua desaparecem, as instituições dissolvem-se.

 

A questão indiana

Com a compra da Louisiana pela França em 1803, a Proclamação com a qual Jorge III fixou a fronteira ocidental das colônias nas montanhas Allegani, não tinha mais razão de ser. Os estados da União iniciaram assim um movimento de expansão para o Ocidente, e a 'fronteira', que na proclamação do rei Jorge tinha o significado que esta palavra tradicionalmente tinha na Europa, logo se tornou a fronteira: uma fronteira móvel, suscetível de mudanças sempre em direção à conquista de novas terras. Símbolo da iniciativa e da vontade de conquista do Leste a fronteira se tornará mais tarde um mito que terá um papel decisivo no processo de formação da ideologia nacional americana. Essa dupla luta contra a natureza hostil e contra o índio tornou-se, posteriormente transfigurada em mito, o lugar ideológico em que os habitantes dos Estados Unidos buscaram, para além de sua diversidade originária, um princípio de coesão e reconhecimento mútuo. Na 'conquista do Ocidente', entretanto, a apologética do 'espírito da fronteira' geralmente e preferencialmente viu apenas um dos dois aspectos da questão, enfatizando a luta contra as dificuldades impostas à colonização por uma hostil terra, esquecendo assim que a história da expansão para o Ocidente foi antes de tudo a história de um genocídio. -

Desde as primeiras escaramuças entre colonos e índios até o massacre do Wounded Knee de 1890, são mais de dois séculos espalhados pelos já conhecidos episódios de violência política, cultural e militar contra os índios; e este não é trabalho exclusivo dos 'homens rudes da fronteira', as vanguardas de uma sociedade pronta para substituir suas próprias cabanas de toras por fazendas, cidades, ferrovias e indústrias. Os próprios governos dos Estados Unidos contribuirão, para todo o século XIX, para 'comprar', 'desapropriar' e ocupar as terras dos índios. As deportações em massa, a destruição de aldeias e os recursos necessários à subsistência das populações indígenas, epidemias muitas vezes intentadas, foram os meios pelos quais os Estados Unidos levaram a cabo o seu processo de 'acumulação originária'. A consolidação de cada nova fronteira ocidental será de facto alcançada por meio de uma série de guerras sistemáticas contra os índios. E à medida que uma fronteira se consolidará, outra se abrirá até a conquista final do continente. Como dirá o historiador americano Frederick Jackson Turner após o anúncio oficial de que mesmo a última fronteira - a das Montanhas Rochosas - foi definitivamente conquistada, “o desenvolvimento social da América foi continuamente reiniciado na fronteira”.

Quando com a rendição de Geronimo e seus Apaches em 1886 a conquista do Ocidente chegará ao seu epílogo e Buffalo Bill viajará o mundo com seu circo apresentando seu 'Wild West Show' ao público da América e da Europa, a Epopéia do a fronteira será mitificada e tornar-se-á um elemento de exigência, por parte dos cidadãos da União, de uma originalidade cultural irredutível. Mesmo o perdedor, o índio, cuja destruição física será rapidamente removida ao nível da consciência social, passará a fazer parte integrante da tradição histórica da república estrelada, ainda que esta 'recuperação' se dê principalmente nas modalidades de simples folclore. Na realidade, essa ambigüidade de atitude da América branca em relação ao índio não é um produto exclusivo dos últimos anos do século XIX, mas remonta ao período entre os anos imediatamente anteriores e imediatamente posteriores à conquista da independência. Nos escritos e discursos dos 'Pais Fundadores', duas concepções do índio, uma negativa e outra positiva, coexistem lado a lado, muitas vezes se anulando. Em seu aspecto negativo, o índio agora é visto como um ser de natureza corrupta e cruel; agora como representante de um estágio primitivo da história humana; ou como aquele que ocupa, explorando-as irracionalmente, aquelas terras que os brancos poderiam explorar com mais eficácia. No seu aspecto positivo, por outro lado, o índio é de vez em quando ou o 'bom selvagem' que julga os males da civilização ou aquele que pela sua inocência primitiva constitui a garantia do carácter totalmente positivo do continente onde ele está desenvolvendo uma nova empresa. A aparente contradição desses julgamentos expressos em relação ao índio só pode ser esclarecida na condição de ser considerada como o duplo efeito retórico que esses autores tentam produzir de vez em quando de acordo com o tipo de definição de civilização americana que desejam. destinatários diferentes, nomeadamente os próprios americanos, por um lado, e os europeus, por outro. Quando se trata de 'assuntos internos' o índio é o inimigo, aquele que impede o homem branco de se expandir em uma terra que ele legitimamente considera sua porque sabe explorá-la 'racionalmente': neste caso o sentido de uma missão. ser realizado em nome da civilização é o fator que mais do que qualquer outro justifica a guerra contra os índios. E ainda para os ideólogos da jovem América, o que a seus olhos parecia ser um sério problema jurídico ainda precisava ser resolvido: se a posse da terra dava a um povo o caráter de uma nação (e os habitantes das ex-colônias formados um na - tio justamente em virtude dessa posse), os índios,possessores das terras que habitaram desde tempos imemoriais, eles próprios não constituíram uma nação? Como então pensar em uma nação americana que era ao mesmo tempo branca e índia? Jefferson, que certamente não tinha sentimentos hostis aos índios, tentou resolver o problema da maneira que a partir de então parecia mais óbvia: se os índios tivessem abandonado sua economia caçadora para se converterem à agricultura, não teriam apenas conservado seus direitos legítimos de propriedade da terra, mas também poderiam ter se tornado parte da nação civilizada americana. Um século e meio depois, Morgan escreverá: “Quando os iroqueses alcançarem a condição de fazendeiros estáveis ​​e a terra for dividida entre famílias com poder de aliená-la ... quando isso acontecer, eles deixarão de ser índios, exceto no nome. '

Por uma ironia atroz, o humanitarismo jeffersoniano encontrou sua negação mais aguda precisamente no destino trágico daqueles índios que seguiram seu 'conselho' antes e melhor do que os outros. A tribo Cherokee, baseada no leste do Mississipee, foi capaz de converter rapidamente sua organização de caça em uma economia agrícola. Os Cherokees tornaram-se assim agricultores e artesãos no espaço de menos de trinta anos, construíram suas próprias escolas e desenvolveram um sistema de tradução de sua própria língua para a escrita, conseguindo até imprimir seu próprio jornal. No entanto, quando a pressão demográfica no leste se tornou mais intensa e surgiu a necessidade de abrir novos territórios para a colonização, o Congresso aprovou o 'Projeto de Remoção' (1830) que deu ao então presidente Jackson autoridade para 'trocar as terras por o oeste com aqueles a leste do Mississipee. A longa resistência, primeiro passiva e depois armada, à qual os Cherokees se opuseram à sua deportação, resultou em um massacre sistemático por colonos e tropas norte-americanas. A guerra contra os Cherokees foi, na verdade, nada menos que a primeira das a primeira das grandes operações conduzidas pelos governos dos Estados Unidos com o objetivo de privar os índios de suas terras e abrir novos territórios para a colonização. O início deste tipo de operação coincidirá com o desaparecimento, dentro da ideologia política oficial, daquela imagem do índio como o 'bom selvagem' que havia sido uma característica da ideologia política dos 'pais'. Fundadores »em o rescaldo da independência.

Se de fato para os europeus a figura do 'bom selvagem' era o símbolo de uma inocência humana que a civilização, ou pecado original, havia corrompido, para os americanos o 'bom selvagem' foi por muito tempo um elemento funcional na vingança de uma irredutível autonomia histórica e originalidade cultural. Quando os ideólogos da jovem nação tentarão afirmar, em polêmica com os que apóiam o Novo Mundo ele é impróprio para o assentamento humano (Buffon) ou com aqueles que afirmam que sua conquista foi “o maior dos desastres que a humanidade já experimentou sofrer '(De Pauw), a boa índole da América e da civilização branca que nela se implanta, não hesitarão em opor a pureza primitiva do índio à corrupção da civilização europeia, todos os males da civilização, afirmam os 'pais fundadores', vêm de 'Europa: se a América os herdou parcialmente, eles logo desaparecerão porque sua civilização se desenvolverá junto com a da Índia. O índio é chamado a desempenhar uma função de 'suporte' sobre a qual se torna possível fundar uma 'tradição' histórica específica e completamente nova: assim como a civilização europeia é, nos seus melhores aspectos, a herdeira da civilização dos antigos, também o é. a civilização americana saberá fazer bom uso do exemplo dado pelos índios 'virtuosos'.

Quando mais tarde, uma vez que a América se integre definitivamente no grupo das nações 'civilizadas', não sentirá mais necessidade de se definir de forma original perante a opinião pública europeia, a imagem do índio como o 'bom selvagem. ”, Que havia sido um tema recorrente nos escritos e discursos de Jefferson e Franklin, aos poucos tenderá a desaparecer da ideologia oficial do“ desenvolvimento nacional ”.

À medida que as terras caem em mãos brancas e a fronteira se move cada vez mais para o oeste, as decisões puramente administrativas tomadas pelos governos dos Estados Unidos em relação às populações indígenas que se renderam serão o que resta do país. A atitude da América Branca em relação aos índios vermelhos. O destino da reserva que lhe foi atribuída, com todos os efeitos degradantes ao nível da vida cultural e social que este destino inevitavelmente acarretou, deu origem ao chamado 'problema indígena', uma elaboração ideológica da opressão de um. civilização por outra.

O 'problema indígena', tal como surgiu nos últimos anos da primeira metade do século XIX, viria a constituir o pano de fundo ideológico da estreia antropológica de Lewis Henry Morgan.

 

Morgan e o Iroquois

A publicação de The League of the Ho-de'-no-sau-nee, ou Iroquois, a primeira grande obra de Morgan (1818-1881), ocorreu em 1851. Seu aparecimento foi saudado por índios desde então como um evento de grande importância. O trabalho foi posteriormente definido como 'a primeira descrição científica de uma tribo a nivel mundial’. Uma primeira descrição dos iroqueses foi dada por Lafitau em sua famosa obra, da qual, entretanto, Morgan nunca soube.

As seis tribos que formavam a 'federação' Iroquois eram as dos Senecas, Oneida, Mohawks, Cayugas, Onondagas e Tuscarora, todas baseadas na costa sul do Lago Ontário, com exceção dos Tuscarora que emigraram para o sul por vários séculos primeiro.

Morgan ficou especialmente impressionado com o fato de que cada uma dessas tribos era aparentada com todas as outras em virtude de um complexo sistema de relações de parentesco. Na verdade, cada uma dessas tribos foi dividida em um certo número de gentes (clãs), cada uma com seu próprio nome animal. Gentes do mesmo nome eram encontrados tanto na tribo Sêneca quanto na tribo Oneida ou Mohawk e seus membros, mesmo pertencendo a tribos diferentes, consideravam-se descendentes de um ancestral comum e, portanto, 'irmãos' uns dos outros. Por exemplo, todos os membros da gens do Lobo, sejam eles Sêneca ou Oneida, se consideram 'irmãos', e o mesmo vale para os indivíduos pertencentes à gens do Falcão, da Tartaruga, do Castor e assim por diante, independentemente se eles fizeram parte de alguma das seis tribos.

Mesmo nesse caso, entretanto, Morgan não impulsionou sua pesquisa em uma direção que lhe permitisse apreender as regras de funcionamento desse complexo sistema de relações. Suas observações, relativas tanto à terminologia do parentesco quanto à organização social das tribos iroquesas, estavam de fato claramente subordinadas ao interesse prevalecente de Morgan devido ao efeito que esse sistema havia produzido no nível de integração política das Seis Nações. O facto é que o olhar de Morgan sobre a sociedade indiana nos anos entre os anos '45 e '50 foi em si um olhar 'político'. O quadro que Morgan pinta na Liga dos Iroqueses é o de uma federação de tribos profundamente ligadas por valores comuns, que por sua vez refletem um sistema de organização social extremamente democrático e igualitário. O que Morgan quer destacar não são tanto as características originais do sistema social que une as seis tribos, mas sim o fato de que um povo de 'selvagens' no passado soube dar a si mesmo uma ordem política cujo caráter democrático poderia não tenha a menor dúvida. Para esse fim, ele compara a ordem e o espírito igualitário da federação iroquesa ao da Atenas democrática para mostrar que os índios, embora possuam modos de vida ultrapassados, são, no entanto, dignos do mais amplo respeito, não menos do que aquele devido aos antigos. Mas a exaltação dos valores da civilização indiana não correspondia a um projeto que visava reivindicar alguma continuidade ideal entre ela e a civilização branca da América; pelo contrário, o objetivo da Liga Iroquois era levantar um problema de interesse nacional aos olhos dos cidadãos da União, cuja solução parecia a Morgan extremamente urgente. A ideia de Morgan era de fato que a democracia americana, que, aliás, ele acreditava ser a melhor que existe, só poderia provar sua superioridade sobre todas as outras se fosse capaz de resolver, com base nos mesmos princípios igualitários em que foi fundada, o 'problema indígena'. Se os índios, com sua presença em solo dos Estados Unidos, não podiam mais representar o símbolo de um estado de inocência original sobre o qual se tornou possível fundar a boa índole da civilização americana, eles representavam um problema cujo fracasso nunca teria permitido que os cidadãos americanos declarassem legitimamente a suposta superioridade de seu sistema político.

Os iroqueses de Morgan, portanto, nada têm do 'bom selvagem'. A defesa dos índios, que constitui o último capítulo da Liga dos Iroqueses, demonstra a atitude de Morgan em relação ao 'problema' daqueles tempos que era absolutamente realista. Diante da ameaça de desaparecimento dos índios das reservas, Morgan propõe uma política de assimilação progressiva por meio da educação dos jovens e da destinação de terras de que podem dispor livremente.

A Liga dos Iroqueses, portanto, parece ser o produto, e não de um interesse estritamente científico, daquelas preocupações que seu autor sempre demonstrou ter pelo destino dos índios: da defesa dos direitos dos senecas em Washington em 1846, até a aprovação, expressa no rescaldo da batalha do Little Big Horn (1876) contra a resistência indígena contra as tropas do imprudente General Custer.O livro, no qual Morgan fornece uma descrição da organização sócio-política das seis 'nações' da federação iroquesa, não nasceu de interesses científicos em sentido estrito.

A Liga dos Iroqueses de facto coletou e retrabalhou algumas 'cartas' que Morgan havia publicado quatro anos antes na American Review, após a feliz conclusão de um processo judicial do qual ele havia participado, em 1846, dando sua própria contribuição como advogado na defesa dos Senecas, uma das 'nações' da Liga Iroquois, que corria o risco de perder suas terras a causa de um grupo de especuladores brancos.

Morgan antropólogo

A própria história da 'vocação' antropológica de Morgan é, além disso, bastante conhecida. Nascido no estado de Nova York, onde existiam inúmeras reservas indígenas, Morgan conheceu desde muito cedo os hábitos de vida dos índios. A amizade que formou com um deles, descendente de uma linhagem de dirigentes senecianos, foi decisiva para o sucesso com que Morgan se dedicaria posteriormente ao estudo da civilização indígena. Graças a este conhecimento, Morgan teve a oportunidade de fazer curtas estadias na reserva de Seneca, e assim entrar em contato direto com um universo social até então 'quase completamente desconhecido'.

Na The League of the Iroquois, encontramos as primeiras observações de Morgan relacionadas aos sistemas de parentesco indianos, o campo no qual o acadêmico americano dará sua maior contribuição à antropologia.

Nações iroquesas

Embora essas observações tivessem a intenção de representar o ponto de partida de um estudo muito mais amplo publicado exactamente vinte anos depois, a atenção de Morgan se concentrou, em seu trabalho de 1851, no sistema de relações que as seis nações iroquesas mantinham entre si:  Seneca , Oneida , Mohawk , Cayuga , Onondaga e Tuscarora , muitos dos quais estão localizadas na costa sul do Lago Ontário.

As tribos

Morgan ficou impressionado com o facto de que cada um desses grupos (que ele chamava de 'nações' de acordo com um uso então bastante frequente) estava relacionado a todos os outros em virtude de uma complexa rede de relações de parentesco. Cada uma dessas nações foi de facto dividida em tribos, cada uma designada por um nome de animal.

Tribos com o mesmo nome foram encontradas tanto na nação dos Senecas quanto na dos Oneidas ou Mohawks etc. e seus membros, mesmo pertencendo a nações diferentes, consideravam-se descendentes de um ancestral comum e, portanto, 'irmãos' uns dos outros. Todos os membros da tribo do Lobo, por exemplo, fossem eles membros da 'nação' Sêneca ou Oneida, consideravam-se 'irmãos', e o mesmo acontecia com os indivíduos pertencentes à tribo do Falcão, da Tartaruga, do Castor e assim por diante, independentemente do facto de pertencer a alguma das Seis Nações. Este, de acordo com Morgan, era um sistema eficaz de manter relações pacíficas entre as nações iroquesas, uma vez que os membros das diferentes tribos eram distribuídos entre as nações. De facto, em caso de conflito, surgiria uma situação paradoxal: a de um conflito 'entre irmãos'.

A imagem que Morgan traçou em The League of Iroquois foi a de uma federação de povos ligados por valores comuns a um sistema democrático e igualitário de organização social. O que Morgan queria enfatizar era como um povo de supostos 'selvagens' tinha sabido conscientemente como dar a si mesmo uma ordem política cujo caráter 'democrático' não podia ser posto em dúvida.

O Propósito 'político' de Morgan era de comparar a organização e o espírito igualitário da Liga dos Iroquenses à democracia da cidade de Atenas para mostrar que os índios eram dignos do maior respeito, não menos do que aquele devido aos Antigos Gregos. Um dos objetivos da Liga dos Iroqueses era levantar, aos olhos dos acadêmicos e políticos americanos, um problema de interesse nacional, cuja solução parecia a Morgan de extrema urgência. A ideia de Morgan era de fato que a democracia americana, na qual ele acreditava como a melhor que existia, só poderia provar sua superioridade sobre todas as outras se fosse capaz de resolver, com base nos mesmos princípios igualitários a ‘questão indígena'.

Os iroqueses de Morgan não tinham nada de parecido ao 'bom selvagem'. O apelo a favor da 'causa indígena', que constitui o último capítulo de The League of Iroquois, revela a atitude de Morgan em relação ao 'problema'. Diante da ameaça de desaparecimento dos índios das reservas, Morgan propõe uma política de assimilação progressiva por meio da educação dos jovens e da destinação de terras de que eles poderiam dispor livremente.

A Liga dos Iroqueses surge, portanto, inspirada por aquelas preocupações que seu autor sempre demonstrou ter pelo destino dos índios: da defesa dos direitos da Seneca em 1846 à aprovação, expressa no rescaldo da batalha do Little Big Horn (1876) , onde a cavalaria dos Estados Unidos sofreu uma pesada derrota, contra a resistência dos Sioux diante das tropas do imprudente e ambicioso General Custer.

 

Os sistemas de parentesco

Morgan Teórico do Parentesco: 'Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana'

Vinte anos separam a publicação da Liga dos Iroquois daquela de Sistemas de Consanguinidade e Afinidade do Ser Humano. A publicação deste livro, que provavelmente continua a ser a grande obra-prima antropológica do século XIX, ocorreu em 1871. Com Sistemas, aquelas preocupações 'políticas' que haviam sugerido a Morgan o corpo editorial da Liga Iroquois deram lugar a interesses exclusivamente científicos. Não tanto como consequência da mudança de atitude de Morgan em relação ao problema indiano, mas sim como resultado do surgimento de uma nova problemática

Como pode ser visto em seus diários redigidos entre 1859 e 1862 durante as missões de pesquisa que realizou nos territórios indígenas do Kansas e Nebraska, Morgan sempre esteve ciente do processo de degradação social e cultural que as tribos indígenas enfrentavam à medida que resultado do avanço dos brancos em direção ao Ocidente foram essencialmente dois fatores: de um lado, a descoberta, feita pelo próprio Morgan em 1858, da resistência entre os Sioux e Ojibwa, populações pertencentes a uma linhagem linguística diferente da dos iroqueses, de um sistema de parentesco semelhante ao deste último; de outro, a questão, muito debatida na época entre os indianos, da origem asiática ou indígena dos peles-vermelhas. Morgan, que era um proponente da teoria de que os índios americanos eram de origem asiática, pensava que a possível presença na Ásia de um sistema de parentesco semelhante ao observado por ele entre várias tribos norte-americanas poderia ter constituído notável evidência a favor de essa teoria. Com efeito, a possibilidade de traçar em duas populações, mesmo geograficamente distantes uma da outra, um sistema de parentesco de tipo semelhante constituía aos olhos de Morgan um critério válido para poder estabelecer as relações históricas entre essas populações; um critério sem dúvida mais válido, para Morgan, do que aquele representado pela possibilidade de rastrear quaisquer semelhanças em termos de linguagem: «de facto, a linguagem não só muda o seu vocabulário mas, com o tempo, muda também a sua estrutura gramatical ... enquanto sistema das relações, uma vez em operação, está menos sujeito a mudanças do que a linguagem; não em palavras usadas como termos de parentesco; mas nas ideias subjacentes ao próprio sistema '. Na verdade, um sistema de parentesco expressa segundo Morgan 'um certo número de ideias permanentes e imutáveis ​​que sobreviveram e que continuarão a sobreviver tanto às mudanças linguísticas como a todas as subdivisões e migrações do grupo original'.

A pesquisa de Morgan foi, portanto, dividida em duas direções: a colecta de dados relativos aos sistemas de parentesco das populações indígenas na América do Norte, de um lado, e a colecta de dados sobre o sistema de parentesco dos povos de toda a Terra, do outro. Em quatro pesquisas conduzidas entre 1859 e 1862, Morgan visitou várias tribos no Kansas e Nebraska e coletcou informações sobre seus sistemas de parentesco, enquanto um questionário que ele elaborou foi enviado ao redor do mundo pela Smithsonian Institution. Os dados que assim vão chegando gradativamente e os que Morgan coletou pessoalmente durante suas viagens ao Ocidente devem de fato confirmar a presença, tanto na América quanto na Ásia, de sistemas de parentesco que, embora diferentes entre si, apresentavam, no entanto, um lógica semelhante de estruturação. Ele se opôs a este grupo de sistemas de parentesco como uma fonte de 5 'Sistemas de consanguinidade da raça vermelha e suas relações com a etnologia', relatório lido no 13º Congresso da Associação Americana para o Avanço da Ciência, agosto de 1859. É dado por um princípio estruturante diferente, o grupo de sistemas que Morgan indicou como arianos, semíticos e uralianos e ao qual pertencia aquele em uso entre os 'povos civilizados'.

Em Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana, os dados relativos à investigação foram ordenados e expostos de forma sistemática, Morgan assim estabeleceu a distinção entre dois grandes grupos de sistemas de parentesco correspondendo a duas formas radicalmente diferentes entre si. parentes consanguíneos.  Nos sistemas de parentesco do tipo iroquês, que Morgan chamou de classificatòrio, os parentes consanguíneos na linha lateral não se distinguiam daqueles em linha direta: assim, como foi visto no caso dos iroqueses, o irmão do pai não se distinguia (linguisticamente) deste último, mas também era denominado 'pai'. Nos sistemas de parentesco do tipo europeu, que Morgan chamou de descritivo, os parentes consanguíneos na linha colateral foram, em vez disso, distinguidos daqueles na linha direta. Em sistemas deste último tipo, há de fato termos específicos por meio dos quais é possível distinguir aquelas pessoas que 'nos sistemas de classificação são, em vez disso, 'classificadas' na mesma categoria.

Embora Morgan afirmasse que era 'praticamente tributável'. É possível explicar como estes dois sistemas diferentes, tão distintos quanto à sua estrutura, podem ter nascido ele, no entanto, avançou a hipótese, desenvolvida mais tarde em Sociedade Antiga, segundo a qual os sistemas de classificação e  os descritivos seriam característicos de dois distintos. tipos de sociedade: os sistemas de classificação de uma organização social com base nas relações de parentesco; aqueles que descrevem uma sociedade fundada em relações de tipo 'político'. De fato, Morgan destacou, na ausência de leis codificadas ou de um Estado capaz de garantir os direitos dos indivíduos, “o vínculo de parentesco presente entre as nações não civilizadas exerce forte influência sobre tudo o que tem a ver com ajuda mútua entre as pessoas '(ibidem).

Para Morgan, o tipo de organização social fundada em pa-! a rentela manteve-se característica do período da 'barbárie',

A emergência de uma sociedade baseada em relações 'políticas' do tipo I esteve intimamente ligada à 'emergência da civilização'. Aqui se abriu um espaço no qual se tornou possível pensar as várias formas de organização social H a partir de um esquema evolucionário. As mesmas diferenças existentes entre os vários sistemas de classificação observáveis, as diferenças consistindo no maior ou menor grau em que cada um deles expressava a lógica subjacente de classificação, foram consideradas por Morgan como representando as fases de um processo evolutivo de transformação dessa própria lógica . Já que, segundo Morgan, a evolução dos sistemas de classificação se expressava em um desaparecimento progressivo da mesma lógica de classificação em proveito da lógica descritiva, ele pensava que poderia explicar essas diferenças, índices de um processo evolutivo, através da reconstrução das formas que a instituição família assumiu nas várias 'épocas' históricas. Com efeito, o quadro que descreve a evolução da família, contido em Sistemas (p. 480), mostra claramente que o desenvolvimento desta instituição - que Morgan considerava a 'base' da sociedade - estava relacionado com o processo de lenta substituição da classificação lógica. por parte da descritiva: da 'promiscuidade originária', situação em que era impossível reconhecer os filhos de um casal dos de qualquer outro, alcançava-se, com a civilização, a família monogâmica com a qual se tornou possível 'descrever' com precisão as relações existentes entre seus membros. A chave fundamental que permitiu a reconstrução dessa sequência evolutiva foi constituída por aqueles termos particulares de parentesco cujo uso parecia a Morgan não justificado pelas práticas de casamento reais existentes, mas sim referindo-se a formas 'mais arcaicas' da instituição familiar.

As nomenclaturas de parentesco, portanto, assumiram a mesma função epistêmica na prática científica de Morgan que os sobreviventes desempenhavam na obra de Tylor: “A humanidade, de origem única, deve ter se dividido em uma era remota, em nações individuais. Daquele dia até hoje os descendentes destes devem ter feito progressos desiguais, alguns permanecendo em um estado não muito diferente de seu original ... Portanto, deve-se supor que esses costumes e essas instituições, considerados como uma sequência, devem ter se espalhado entre as nações à medida que sua experiência progredia; e que nada mais são do que os grandes marcos do desenvolvimento dessa experiência ”(Systems, p. 479).

Se por um lado a evolução dos sistemas de classificação pode ser reconstruída com base em uma teoria conjectural do desenvolvimento da família, por outro lado a possibilidade de determinar o momento exato da passagem dos sistemas de classificação para os descritivos. permaneceu, por admissão do mesmo Morgan, amplamente problemático. No entanto, o surgimento da sociedade 'política', dentro da qual as relações de parentesco tendiam a perder sua função dominante como um sistema de relações sociais a serem substituídas por relações baseadas no consentimento e na territorialidade, era para Morgan inseparável da aparência de direitos de propriedade da terra. De facto, com o aparecimento da civilização, não só «a protecção da lei ou do Estado viria a substituir aquela protecção dos familiares; mas com eficácia muito maior, os direitos de propriedade teriam influenciado o sistema de relações [entre os indivíduos]. De fato, o surgimento da propriedade foi considerado por Morgan como o único fator capaz de explicar a substituição de um sistema de classificação por um sistema descritivo. Se Morgan foi levado a essa conclusão por alguma mudança observada na terminologia de parentesco de alguma população indiana em um estágio avançado de degradação social e cultural, não podemos dizer isso.

O estudo das culturas indígenas foi favorecido, a partir de meados do século XIX, pela criação de instituições responsáveis ​​por documentar a vida das populações nativas. A Smithsonian Institution foi fundada em 1846 e foi através da seção etnológica desta última que um importante programa etnográfico foi lançado pelo famoso Indianista H.R. Schoolcraft. Em 1879, foi criado o Bureau of American Ethnology, iniciativa governamental destinada a exercer profunda influência na organização dos estudos etnográficos até a virada do século XX.

Nos anos seguintes à publicação da The League of Iroquois, Morgan continuou sua pesquisa com outros grupos nativos americanos.

Em 1858, ele havia descoberto, entre os Sioux e Ojibwa, populações pertencentes a uma linhagem linguística completamente diferente da dos Iroqueses, a existência de um sistema terminológico de parentesco em muitos aspectos semelhante ao destes últimos. O sistema terminológico de parentesco dos Iroqueses era de facto particular. Morgan observou que os Iroqueses designavam os parentes de uma forma diferente daquela em uso entre os 'povos civilizados': um indivíduo (Ego) chamava, por exemplo, o irmão de seu pai de 'pai' e a irmã de sua mãe de 'mãe'. Nesta senda, Morgan observou que os irmãos do pai e as irmãs da mãe de um indivíduo chamavam este último de 'filho' ou 'filha'. Além disso, e sempre de acordo com a mesma lógica, os filhos do irmão do pai e os do a irmã de sua mãe se dirigia uma à outra chamando-se 'irmão' e 'irmã'. Morgan fez, assim, entre 1859 e 1862, viagens de estudo ao Kansas e Nebraska entre os Sioux e os Ojibwa, a fim de aprofundar seu conhecimento dessas terminologias.

Origem dos índios

Naqueles mesmos anos, aliás, Morgan se interessou pela questão, muito debatida - A origem dos índios ou seja qual fosse a origem dos nativos americanos. Morgan era um americano partidário da teoria (que se revelou correcta) segundo a qual os índios americanos eram de origem asiática. Ele, portanto, pensava que a possível presença na Ásia de um sistema de parentesco de natureza semelhante ao observado por ele entre várias tribos na América do Norte poderia constituir uma forte evidência a favor dessa teoria. A possibilidade de traçar um sistema terminológico de tipo semelhante em duas populações, mesmo distantes geograficamente uma da outra, constituiu um critério válido para Morgan para poder estabelecer relações históricas entre essas populações. Para Morgan, este era, sem dúvida, um critério mais válido do que aquele representado pela possibilidade de rastrear quaisquer semelhanças em termos de linguagem: “de fato - escreveu Morgan em 1859 - não só muda seu vocabulário, mas, com o passar do tempo também muda sua estrutura gramatical ... ao passo que um sistema de relações, uma vez em operação, está menos sujeito a mudanças do que a linguagem; não em palavras usadas como termos de parentesco; mas nas idéias subjacentes ao próprio sistema '(Morgan 1859). Na verdade, um sistema de parentesco expresso, de acordo com Morgan 'um certo número de ideias permanentes e imutáveis que sobreviveram e continuarão a sobreviver tanto às mudanças linguísticas quanto a todas as subdivisões e migrações do grupo original' (ibidem). A pesquisa de Morgan, portanto, tomou duas direções: de um lado, a colecta de dados sobre os sistemas de parentesco das populações indígenas da América do Norte; de outro, a colecta de dados sobre os sistemas de parentesco de povos não americanos. Enquanto Morgan pesquisava no Kansas e Nebraska colectando informações sobre o sistema de parentesco sioux e ojibwa, um questionário que ele elaborou foi enviado em todo o mundo pelo Smithsonian Institution.

 

Sistemas Ciassificatórios e Sistemas Descritivos

Os dados que gradativamente chegam dessa forma e aqueles que Morgan colectou pessoalmente durante suas viagens ao Ocidente devem ter confirmado a presença, tanto na América quanto na Ásia, de sistemas de parentesco que, embora diferentes uns dos outros para os termos usados, eles apresentavam, no entanto, uma estrutura lógica semelhante. Este grupo de sistemas de parentesco era oposto, fundado em um princípio diferente, pelo grupo de sistemas que Morgan indicou como arianos, semíticos e uralianos, e ao qual pertencia aquele em uso entre os povos 'civilizados'.

Os resultados da pesquisa de Morgan foram classificados e exibidos em Sistemas de Consanguinidade e Afinidade da Família Humana de 1871, uma das obras mais importantes em toda a história da antropologia. Morgan aqui estabeleceu a distinção entre dois grandes grupos de sistemas de parentesco correspondentes a duas maneiras radicalmente diferentes de designar parentes consangüíneos, isto é, aqueles em 'parentesco consanguíneo' e, portanto, distintos de parentes afins (ou 'aliados') que são adquiridos através de um relacionamento como o casamento.

A esses dois grandes grupos, Morgan deu o nome de sistemas de classificação e sistemas descritivos, respectivamente.

Classificatórios

Nos sistemas de parentesco iroqueses que Morgan atribuiu ao grupo dos sistemas classificatórios, os parentes consanguíneos na linha colateral não são terminologicamente distintos daqueles em linha direta: assim, como vimos no caso dos iroqueses, o irmão do pai ele não é (terminologicamente) distinto deste último, mas também é chamado de 'pai'.

Descritivos

Nos sistemas de parentesco vigentes entre os povos europeus (podemos pensar no nosso), que Morgan chamava de descritivos, os parentes da linha colateral eram diferenciados daqueles da linha direta. De fato, em sistemas deste último tipo existem termos específicos por meio dos quais é possível distinguir aqueles indivíduos que, em sistemas do tipo de classificação, são 'classificados', no sentido de 'agrupados', na mesma categoria (pai e tio; mãe e tia; filho e sobrinho, irmã e primo etc.).

Embora Morgan sustentasse que era 'praticamente impossível explicar como esses dois sistemas diferentes, tão diferentes em sua estrutura, poderiam ter nascido' (Morgan 1871: 14), ele, no entanto, avançou a hipótese, que desenvolveu alguns anos depois, em The Ancient Society de 1877, segundo a qual os sistemas classificatórios e descritivos seriam característicos de dois tipos distintos de sociedade: os sistemas de classificação de uma organização social baseada nas relações de parentesco; aquelas descritivas de uma sociedade fundada em relações de tipo 'político', aliás, Morgan especificou, na ausência de leis codificadas ou de um estado capaz de garantir os direitos dos indivíduos, 'o vínculo de parentesco presente entre nações não civilizadas uma forte influência em tudo o que diz respeito à ajuda mútua entre as pessoas ”(ibidem).

É evidente a influência que, nesta hipótese de Morgan, ele tinha o profundo conhecimento que tinha do sistema político iroques baseado sobretudo na pertença tribal.

Para Morgan, o tipo de organização social baseada no parentesco ainda era característico do período da 'barbárie', enquanto o surgimento de uma sociedade fundada em relações 'políticas' estava intimamente ligada ao 'surgimento da civilização'. Na verdade, aqui se abriu a possibilidade de pensar as várias formas de organização social a partir de um esquema evolutivo. As mesmas diferenças existentes entre os vários sistemas de classificação, consistindo no maior ou menor grau em que cada um deles expressava a lógica subjacente (classificação), foram consideradas por Morgan como diferenças que marcaram as fases de um processo evolutivo de transformação daquela própria lógica.

Já que, segundo Morgan, a evolução dos sistemas classificatórios resultou em um desaparecimento gradual da lógica classificatória em que se baseavam em benefício da lógica descritiva, ele pensava que poderia explicar essas diferenças, índices de um processo evolutivo, através da reconstrução das formas que a instituição familiar assumiu em várias 'épocas' históricas. Na verdade, o esquema que sintetiza as etapas da evolução da família, contido na obra de Morgan de 1871, mostra claramente que o desenvolvimento da 'família' - que Morgan considerava a 'base' da sociedade - estava relacionado ao processo de lenta substituição da lógica de classificação pela descritiva: da 'promiscuidade originária', situação em que era impossível reconhecer os filhos de um casal dos filhos de qualquer outro, chegando a civilização à família monogâmica com a qual se tornou possível 'descrever' com precisão as relações existentes entre seus membros. A chave fundamental que tornou possível reconstruir essa sequência evolutiva foi constituída por aqueles termos particulares de parentesco cujo uso parecia a Morgan não justificado pelas práticas de casamento reais existentes, mas sim referindo-se a formas 'mais arcaicas' da instituição familiar: uma espécie de sobrevivências .

 

Relações sociais e termos de parentesco

Segundo Morgan, os termos de parentesco refletem a natureza das relações sociais. Isso não significa que se um iroques chamasse o irmão de seu pai de 'pai', ele tivesse a mesma atitude em relação a ele. Em vez disso, ele quiz dizer que essa forma de chamar o irmão de seu pai era uma 'sobrevivência' de uma época em que não era possível distinguir os dois indivíduos, uma época caracterizada pela instituição da 'poliandria adélfica', ou seja, a união de um mulher com vários irmãos.

As terminologias de parentesco assim assumiram, no raciocínio de Morgan, a mesma função epistemológica que as sobrevivências desempenhavam na obra de Tylor. De facto, escreveu Morgan: «A humanidade, de origem única, deve ter-se dividido, numa época remota, em nações únicas. Daquele dia até hoje os descendentes destes devem ter progredido de forma desigual, alguns permanecendo em um estado não muito diferente do original ... Portanto, deve-se supor que esses costumes e essas instituições, considerados como uma sequência, devem ter se espalhado entre as nações, à medida que a sua experiência foi progredindo, e a do desenvolvimento desta experiência, eles não são senão os grandes marcos ”(ibid.: 479).

As terminologias de parentesco poderiam, portanto, ser sobrevivencias, e Família, casamento como tal, poderia ser usados na reconstrução dos estágios de desenvolvimento dos sistemas históricos de parentesco. No entanto, o ponto de transição dos sistemas de classificação para os descritivos permaneceu, pela própria admissão de Morgan, amplamente problemático. O surgimento da sociedade 'política', dentro da qual as relações de parentesco tendiam a perder sua função dominante em benefício das relações baseadas no consentimento e na territorialidade, era, no entanto, segundo Morgan, inseparável do surgimento dos direitos de propriedade sobre a terra. Com o surgimento da civilização, de facto, não só «a proteção da lei ou do Estado viria a substituir a proteção proporcionada pelo grupo de parentes; mas com uma eficácia muito maior, os direitos de propriedade teriam influenciado o sistema de relações [entre os indivíduos] '(1871: 14). De facto, o surgimento da propriedade privada (portanto individual) foi considerado por Morgan como o único factor capaz de explicar a substituição de um sistema de classificação por um sistema descritivo.

 

Morgan e a evolução social

Em 1877, Morgan publicou The Ancient Society. Aqui Morgan enfrentou o estudo de algumas questões importantes, como o significado das terminologias de parentesco, o 'desenvolvimento da ideia de governo', o 'desenvolvimento da ideia de propriedade' e uma discussão geral sobre a evolução da cultura humana e das sociedades.

Essa evolução poderia ser melhor compreendida, segundo Morgan, uma vez que os períodos ‘históricos’ se subdividiram numa série de períodos que ele chamou de étnicos, cada um dos quais representava 'uma condição distinta da sociedade e distinguível pelo modo de vida que lhe era peculiar '(ibid.: 5). A sucessão de períodos étnicos foi expressa pela sequência 'selvagem-bárbaro-civilizado' com a adição de três subperíodos (inferior-intermediário-superior) para cada um dos dois primeiros períodos. Essa periodização encontrou expressão em invenções e descobertas que, segundo Morgan, eram representativas dos diferentes graus de progresso característicos de cada fase histórica. Assim, a fase intermediária do estado selvagem, caracterizada pela aquisição da pesca como meio de subsistência e uso do fogo, seguiu-se à fase superior do estado selvagem marcada pela invenção do arco e flecha e depois pela caça como técnica de subsistência; os três estágios da barbárie seguiram este último período étnico, cada um reconhecível pela presença de certas técnicas e invenções de subsistência. Finalmente, o período de civilização se seguiu, caracterizado pela invenção de um alfabeto fonético. Estado selvagem, barbárie e civilização, com suas subdivisões relativas, aparecem assim como 'três condições distintas ... conectadas umas às outras em uma seqüência de progresso tão natural quanto necessário' (ibid: 1).

Assim, as invenções e descobertas, que para Morgan estavam numa relação de ligação cumulativa, além de constituírem o critério de identificação das etapas subsequentes de desenvolvimento das técnicas de subsistência, foram consideradas como os índices da evolução característica de cada fase histórica e, portanto, como o elemento expressivo de cada uma delas. estágios.

 

América e humanidade

A consideração de invenções e descobertas como 'sinais' de progresso era de fato uma ideia compartilhada pelos estudiosos europeus contemporâneos de Morgan. Curiosamente, as linhas de 'progresso humano' que ele delineou em Ancient Society também correspondiam a uma ideia da América como o 'laboratório do historiador'. Uma ideia corrente, na época de Morgan, era de facto que na história da América era possível ler a história passada da humanidade: da sociedade indiana, representando a fase histórica em que a humanidade viveu pescando, colhendo e caça, até o ápice do progresso representado pela decolagem da sociedade industrial, pelo surgimento do comércio com os índios, o que contribuiu para enfraquecer sua sociedade e, portanto, marginalizar os povos caçadores do curso da história, por meio da pecuária (a fazenda) e agricultura (a fazenda).

A história da América forneceu, assim, não só a chave para a leitura da sucessão das grandes épocas da história humana, cada uma coincidindo com uma determinada técnica de subsistência, mas, devido à rapidez com que esta história se 'completou', também ofereceu o imagem de um progresso material cuja cumulatividade pode ser pensada em termos de 'progressão geométrica'. Desse modo, a sociedade indiana, em casos como o dos iroqueses, passou a ser representativa de uma fase histórica, como 'excelente exemplo de sociedade gentia', ou seja, tribal (Morgan 1851: 117) característica do período da barbárie.

Na opinião de alguns autores, a sociedade antiga teria mesmo constituído 'a obra mais influente da história da etnologia' (Service 1985: 53), não só pela repercussão que teve nos especialistas, mas também por ter estado no centro de um longo debate que extrapola o campo disciplinar em sentido estrito. A fama da Ancient Society deriva essencialmente do fato de ter sido objecto de atenção especial por parte de Karl Marx e Friedrich Engels, que pensavam poder ler nela a confirmação indireta de sua 'concepção materialista da história'; Por outro lado. A Sociedade Antiga tornou-se o alvo principal das críticas que a antropologia americana das décadas seguintes trouxe ao evolucionismo antropológico do qual aquela obra de Morgan era considerada a expressão mais completa.

 

Depois de Morgan

No final do século XIX, a antropologia americana se fortaleceu e cresceu rapidamente no nível acadêmico devido à atividade infatigável de muitos pesquisadores. Em 1888, foi lançado o primeiro número do American Anthropologist, o jornal oficial da associação de antropólogos americanos. No mesmo ano, no final das 'guerras indígenas' (Geronimo e seus Apaches haviam se rendido recentemente), o sistema de reservas foi generalizado. A reserva, nasceu sob o signo de «proteção e bem-estar dos índios ”, foi produzir a imagem ilusória de uma sociedade india se manteve afastado de todo tipo de contaminação externa. No caso dos antropólogos, essa imagem de uma sociedade afastada da influência da civilização 'avançada' dos brancos se traduzirá, por sua vez, em uma visão global das culturas indianas como culturas 'primitivas', com características de pura arcaicidade. Claro, havia exceções. Entre eles, a pesquisa de James Mooney sobre as formas de resistência indígena que encontraram expressão em novos cultos religiosos. No livro The Ghost Dance Religion and the Sioux Outbreak de 1890, publicado em 1896, Mooney analisou o movimento messiânico que, espalhado entre os índios das reservas como uma tentativa de responder à progressiva marginalização e degradação social, foi reprimido com o massacre de Wounded Knee de 1890.

Bibliografia

Fim.

Fabietti, U. (1979). Antropologia. Un percorso. Bologna: Zanichelli.

Morgan, H. L. (1992). League of the Ho-Dé-No-Sau-Nee or Iroquois. New York: Dodd.

Morgan, H. L. (1871). System of Consanguinity and affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution.

Lévi-Strauss, C. (1982). As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes.

Morgan, H. L. (1868). American Beaver and his Works. Philadelphia: Lippincott.

Engels, F. (1901). L’origine della famiglia della proprietà privata e dello Stato. Milano: Uffici della Critica Sociale.

Morgan, H. L. (1877). Ancient Society. Chicago: Charles H. Kerr.

Morgan, H. L. (1980). A sociedade antiga. Lisboas: Editorial Presença.

Green, J. (ed). (1996). After Wounded Knee. East Lansing: Michigan State University Press.

Turner, F. J. (1920). The Frontrier in American History. New York: Henry Holt.

Barrett, S. M. (1907). Geronimo’s Story of His Life. New York: Duffield.

Thornton, R. (n.d.). American Indian Holocaust and Survival. Norman: University of Oklahoma Press.

Hauptman, L. M. (2019). Coming Full Circle. The Seneca Nation of Indians 1848-1934. Norman: University of Oklahoma Press.

Gehring, C. T., & Starna, W. A. (2013). A Journey into Mohawk and Oneida Country, 1634–1635. New York: Syracuse University Press.

Dwyer, H. (2012). Mohawk history and culture. New York: Gareth Stevens.

Speck, G. F., & General, A. (1995). Midwinter rites of the Cayuga long house. Nebraska: University of Nebraska Press.

La Vere, D. (2013). The Tuscarora War: Indians, Settlers, and the Fight for the Carolina Colonies. North Carolina: The University of North Carolina Press.

Panzeri, P. (1995). Little Big Horn 1876. London: Reed International Books.

Boas, F. U. (1902). The Bureau of American Ethnology. Science, New Series, 16(412), 828–831.

Mooney, J. (1896). The Ghost-Dance Religion and the Sioux Outbreak of 1890. Washington.

Brown, D. (1972). Seppellite il mio cuore a Wounded knee. Milano: Mondadori.

 

Terceira Lição: 23 de Outubro - Franz Uri Boas

 

Franz Uri Boas

Contexto histórico-cultural

O que constitui o campo específico da antropologia americana desde o início são, como vimos, as culturas indígenas em processo de degradação do ponto de vista social e econômico e reduzidas a um papel de marginalidade absoluta em relação ao desenvolvimento dos Estados Unidos.

Fáce à marginalização das sociedades indígenas que nos últimos anos aparece como uma característica dominante da propria situação historico-social, se afirma um certo empirismo etnológico, que pode ser considerado o resultado de uma série de operações ideológicas conduzidas por antropólogos americanos no final do século XIX. Com efeito, o empirismo, que tinha por efeito excluir qualquer atitude para com os objetos etnológicos que não fosse uma simples atitude descritiva, correspondia a uma tendência para a reconstruir as sequências histórico-evolutivas da cultura observada generalizando ilecitamente dados etnográficos.

Depois de Morgan, a antropologia americana oscilou entre o descritivismo mais absoluto, por um lado, e a tendência de exacerbar a interpretação evolucionista da história das culturas e sociedades, do outro. Não há a menor dúvida de que essas duas tendências se originaram de premissas ideológicas muito semelhantes. Na verdade, vimos como a imagem de uma sociedade indiana com características de arcaicidade agiu por trás da atitude empírica e como o colapso da organização socioeconômica das populações indígenas permitiu que o etnocentrismo capitalista marginalizasse essas sociedades 'primitivas' nas «reservas» históricas para tornar inteligível a história da formação dos Estados Unidos.

Essa ideologia do progresso, que, aliás, não impediu Morgan, que também foi seu primeiro intérprete antropológico relevante, de ir além da simples reconstrução de sequências evolutivas. de sistemas de parentesco interpretados com base em uma adaptação funcional dos próprios sistemas à natureza das relações sociais), passou a constituir a contrapartida teórica do que o empirismo descritivista representou no nível da prática etnográfica. Se levarmos em conta o fato de que nas últimas décadas do século XIX o darwinismo social passou a constituir um pólo ideológico de alguma importância na reflexão sociológica americana, a antropologia americana parece ser caracterizada por uma prática teórica que se inscreve no evolucionismo, privado do seu potencial analítico derivado da atitude fundamentalmente antiempirista do autor de Systems of Consanguinity and Affinity. A atitude empírica, por outro lado, negando-se, justamente pelo descritivismo absoluto em que se resolvia na prática etnográfica, qualquer possibilidade de autocorreção na teoria, acentuou de forma decisiva a fratura entre a prática de pesquisa e a reflexão teórica que tinha. gerar a tendência, característica da antropologia americana das décadas seguintes, de interpretar as culturas humanas ora em um sentido determinista, ora em um sentido idealista. Esta última característica da antropologia americana, entretanto, emergirá gradualmente e encontrará sua expressão mais completa no trabalho dos alunos de Boas.

É precisamente a Franz Boas (1858-1942) que devemos a tentativa de refundar a antropologia americana sobre premissas teóricas mais rigorosas do que aquelas que caracterizaram o trabalho dos antropólogos pertencentes à geração seguinte à de Morgan.

Para Franz Boas, foi 'na sublime solidão do Ártico e em contato com o mundo ativo' que ele começou a viver. O desenvolvimento desse paradoxo - solidão sublime e um mundo ativo - é encontrado ao longo da vida de Boas e ajuda a explicar a cadeia de contradições que constitui seu trabalho. Para Boas, a humanidade era um enigma e, portanto, um desafio. Ele poderia facilmente ter se tornado uma grande figura nas ciências físicas ou naturais. Sua inclinação mais vívida era para os fenômenos da natureza sem relação com o homem mas em vez disso, ele escolheu estudar o homem. Compensava a falta de talentos naturais com trabalho árduo, com determinação e coragem, de modo a obter sucesso mesmo quando outros mais talentosos fracassassem. Em sua batalha para entender os homens, ele tornou a antropologia uma disciplina altamente controlada - e nenhuma generalização foi permitida em torno de problemas humanos. E embora ele sempre se empurrou para o centro do mundo ativo, sempre permaneceu um grande solitário.

Biografia

Boas nasceu em 9 de julho de 1858 em Minden, Vestfalia (Alemanha). Ele foi um dos seis filhos de Mejer Boas e Sophie Meyer Boas, ambos de linhagem judaica. Seu pai era um homem de negócios e sua mãe era uma mulher extremamente ativa em assuntos cívicos e políticos. Oradores, especialmente a mãe, abraçaram o espírito e os ideais da Revolução Alemã de 1848 e Boas falou desse espírito de liberalismo como uma 'força viva' dos seus primeiros anos. A irmã mais nova casou-se com o dr. Abraham Jacobi, um dos famosos membros do grupo revolucionário de 1848. Boas descreve a mãe como uma idealista, com um vivo interesse em assuntos públicos. O pai, embora fosse também 'liberal', segundo Boas, não alinhava pela causa à qual a mãe se dedicava ativamente: dos seis filhos apenas Boas e três irmãs (uma maior que ele e duas menos) eles sobreviveram à infância. Os seus relacionamentos com a mãe e irmãs (especialmente as mais velhas) foram profundos e o afetaram durante toda a sua vida, e seu interesse assíduo e protetor por elas parecia às vezes excessivo, mas ele sempre se sentiu ligado a elas. Embora ele fosse uma criança quieta e delicada - e isso era a causa de muitas das preocupações de sua mãe e irmãs - Boas passava muito tempo fora de sua casa. Ele era um amante da natureza desde pequeno e foi incentivado por sua mãe em sua vida à pesquisa botânica. 

Contexto liberal

Aos oitenta anos de idade, em uma de suas reminiscências raras, ele lembra o primeiro intenso interesse emocional que ele sentia pelos fenômenos do mundo. Boas apreciou muito o contexto liberal que viveu nos seus primeiros anos de vida familiar. Ele sustentou que seus pais haviam 'quebrado as correntes dos dogmas', embora seu pai tivesse mantido uma ligação emocional com o cerimonial da casa. Boas era grato a essas atitudes parentais, graças às quais, ele diz, 'eu fui poupado dessa luta contra os dogmas da religião que empenharam a vida de tantos jovens'. Ele passou os primeiros dezanove anos de sua vida na família em Minden, onde frequentou o ensino básico e médio, sabe-se muito pouco sobre esse período de sua vida, já que ele não se abandonou a relembrar seu passado, característica que Alfred Kroeber atribui ao interesse fanático de Boas pelo presente. É sabido, no entanto, que ele era um pianista muito hábil. Por muitos anos, o plano permaneceu uma fonte de satisfação e relaxamento por ele. Desde primeiros anos da vida Boas, deu a impressão de um menino um tanto delicado, interessado na natureza, música, estudos escolares e cuja vida familiar era dominada pela atenção atenta de sua mãe.

Formação

A 20 anos Boas entrou na universidade. Ele estudou quatro anos em Heidelberg, Bonn e Kiel e se formou em Kiel em 1881, aos vinte e três. Ele primeiro se especializou em física e matemática, depois se interessou por física e depois em geografia cultural. Sua dissertação de doutorado diz respeito à física e foi intitulada Contribuições para entender a cor da água. Como era exigido naquela época, ele teve que discutir, além da tese principal, as seguintes tese. O título da última delas - Como deve a opereta contemporânea ser condenada tanto com base na arte como na base da moralidade - revela um lado de sua personalidade destinada a caracterizar grande parte de sua vida e obra. Kroeber afirma que 'pode-se supor que a vida universitária de Boas foi violenta e rica em experiência' e, em apoio a essa suposição, ela se lembra das cicatrizes no rosto que Boas adquiriu naquela época em duelos. Mas Boas frequentemente atribuiu essas cicatrizes às garras dos ursos da terra de Baffin; e era uma maneira característica e divertida de contornar questões sobre seus assuntos pessoais. No entanto, ele recebeu essas cicatrizes em duelos que foram o resultado de más relações entre as duas corporações universitárias que representavam os estudantes aristocráticos (Kerps) e os estudantes comuns (Burschenschaft), respectivamente. Boas pertencia à Burschenschaft e não tolerava os insultos - muitas vezes anti-semitas - de estudantes aristocráticos. Ele passou pelo menos um ano no exército alemão para o treinamento de oficiais de reserva, e outro dedicou-o a estudos posteriores.

Boas antropólogo

Finalmente, em 1883, ele começou sua carreira como antropólogo com uma excursão à terra de Baffin; uma experiência de importância crucial para ele e para a antropologia. Foi financiado durante um ano por um jornal alemão, o Berliner Tageblatt, que publicou suas cartas e artigos. Sua experiência direta com os esquimós desempenhou um papel decisivo em direcionar seus interesses dos fenômenos naturais da física para os humanos. Ele escreveu sobre os esquimós, alguns anos depois, com um calor incomum: 'Eu tinha visto que eles gostavam da vida e, além disso, da vida dura que levavam; que a natureza para eles é linda; que sentimentos de amizade também estão no coração dos esquimós; que, embora o que sejam uma vida primitiva em comparação com a vida civil, o esquimó é, no entanto, um homem como nós; que suas sensações, suas virtudes e suas deficiências são baseadas na natureza humana, como a nossa '.

Boas museólogo

Ele passou os anos seguintes (1884-1885) em Nova York e depois retornou à Alemanha como assistente do Muséum für Võlkerkunde. instituição fundada pelo famoso antropólogo Adolf Bastían Em 1886, como professor da Universidade de Berlim, ele estudou um grupo de índios  Bella Coola que trouxeram para Berlim, e decidiu fazer outra exploração, desta vez na Colúmbia Britânica. Ele retornou a Nova York nesta excursão em 1887 e obteve o cargo de vice-editor da revista científica  'Science'. No mesmo ano, ele casou Marie Krackowitzer e decidiu se tornar um cidadão americano. Seu retorno à Colúmbia Britânica no verão de 1888 para um estudo das tribos indígenas do noroeste marcou o início de um estudo antropológico monumental. De 1888 a 1892, ele ensinou na faculdade de Clark University, onde sob sua direção conseguiu-se a primeira licenciatura em antropologia obtida (por A. F. Chamerlain). Deixou a Universidade em 1892 e assumiu o cargo de assistente de chefe do setor antropológico da Exposição de Chicago. Em 1895, tornou-se diretor da seção de antropologia do Field Museum em Chicago e trabalhou lá até que um conflito pessoal deu origem à sua transferência. Em 1896, dirigiu a seção de Etnologia e Somatologia do Museu Americano e, em 1899, iniciou sua longa carreira como professor de antropologia na Universidade de Columbia. Ele também trabalhou por muitos anos (1901-1905) como diretor do American Museum e merece crédito pela maioria dos estudos e explorações que foram realizados logo após o início do século, o tempo a partir dessa data, foi para Boas o período de pesquisa mais bem sucedido, o mais notável dos quais foi a expedição a Yesup no Pacífico Norte, que se propôs a estabelecer a relação dos aborígines norte-americanos com as tribos internas da Ásia.

Honras e sofrimentos

Outros marcos importantes na vida de Boas foram: a nomeação, em 1901, a filólogo honorário do Bureau de Etnologia Americana, que deu origem ao seu Manual de Línguas Indígenas Americanas (Manual sobre as línguas dos índios americanos) em três volumes; a fundação da Escola Internacional de Arqueologia e Etnologia Americana no México (1910); a fundação do 'Journal of American Linguistics' em 1917 e a presidência de um comitê de estudo de línguas indígenas americanas em nome do American Council of Learned Societies. Os últimos anos da vida de Boas foram marcados por muitas tristezas pessoais. Dois de seus filhos morreram de repente, um em um acidente de carro. Sua esposa também perdeu a vida em um acidente de carro em 1929. Em 1931, aos 73 anos, ele teve um ataque cardíaco, mas se recuperou o suficiente para poder retornar ao seu trabalho regular. Ele teimosamente continuou a trabalhar por mais onze anos e morreu subitamente durante um almoço no Columbia University Faculty Club, em 21 de dezembro de 1942 nos braços de Lévi-Strauss. Boas era membro de todas as principais sociedades científicas americanas e membro correspondente da maioria das sociedades estrangeiras. Ele foi presidente da Academia de Ciências de Nova York (1910), presidente da Associação Americana para o Avanço das Ciências (1931), e cobriu muitos outros cargos honorários. Oxford o homenageou com um diploma honorário (Kardiner, 1964, pag 167-199).

Obras

Embora uma das características da atitude de Boas em relação à antropologia como disciplina tenha coincidido com uma espécie de aversão quase total a qualquer forma de exposição sistemática, é nessas poucas obras teóricas que constituem apenas uma pequena parte de sua produção global, que pode ser identificou os temas que, posteriormente desenvolvidos por seus alunos, passaram a delinear os rumos, os interesses e, portanto, as escolhas da antropologia americana da primeira metade do século XX. Na verdade, pode-se afirmar com segurança que, com Boas, além de qualquer avaliação que possa ser feita de sua obra e de sua influência, a antropologia americana adquire uma fisionomia definida.

Os limites do método comparativo da antropologia (1896) é talvez o mais conhecido dos textos teóricos de Boas: nele foi feita uma ruptura decisiva com respeito à tradição antropológica então dominante na América e ao mesmo tempo os princípios gerais da sociedade. denominado método histórico foram enunciados. Rejeitando os resultados especulativos a que chegam as reconstruções históricas dos evolucionistas após Morgan. Boas negou qualquer valor 'ao esforço de construir uma história sistemática uniforme da evolução da cultura’.

Contrariamente ao evolucionismo Boas baseia-se no pressuposto de que traços culturais semelhantes observáveis ​​entre povos distantes teriam surgido independentemente e não teriam nenhuma origem histórica comum. De facto, os evolucionistas, partiam do pressuposto que a origem dos factos culturais semelhantes era devida à unidade psíquica do gênero humano, foram levados a concluir 'que existe um sistema superior segundo o qual a humanidade ter-se-ia desenvolvido em toda parte '. Quando um fenómeno desenvolviase de forma independente em um certo número de lugares diferentes era equivalente para Boas argumentar que esse fenómeno tinha um desenvolvimento idêntico em todos os lugares e que 'os mesmos fenómenos etnológicos são sempre devidos às mesmas causas'. Tal afirmação, implícita no raciocínio dos evolucionistas, constituiu para Boas um elemento decisivo de fraqueza na construção das reconstruções das sequências históricas.

Para demonstrar a fragilidade teórica do raciocínio dos evolucionistas, Boas produziu uma série de exemplos relativos tanto às possíveis origens diferentes quanto aos diferentes significados que fenômenos culturais semelhantes poderiam ter em contextos culturais heterogêneos. No que diz respeito, por exemplo, à questão da origem da sociedade totêmica, que então foi considerada uma característica universalmente difundida entre os povos 'primitivos' e que se acreditava ter surgido do encontro de povos anteriormente separados clãs. Boas mostrou, com base em sua própria experiência como etnólogo, como a formação de tal tipo de sociedade poderia ser o produto de uma tendência exatamente reversa, consistindo na divisão de numerosas tribos em segmentos menores (clãs).

A intenção de Boas não era, portanto, excluir a perspectiva histórica, mas antes demonstrar como era objetivamente impossível fazer um pronunciamento, uma vez aderido aos 'factos', sobre a identidade universal das causas que determinaram o surgimento dos traços. culturas aparentemente idênticas e pertencentes a culturas diferentes. Boas acreditava que o objetivo fundamental da etnologia permanecia o conhecimento das causas históricas que haviam determinado a forma dos traços culturais próprios para uma determinada população.

Essa série de considerações constituiu os princípios fundamentais do método histórico ou particularismo histórico, como a tradição posterior o designaria, cujo objeto era representado pelo estudo e conhecimento das culturas em sua singularidade.

A Organização Social e Sociedades Secretas dos Índios Kwakiutl publicada um ano depois dos Limites do Método Comparativo da Antropologia é fruto da mais importante pesquisa de campo conduzida por Boas durante os anos 1894-95 e pode ser considerada um exemplo disso. o pensamento de seu autor constituía uma prática científica rigorosa. Na verdade, Boas conduziu essa pesquisa inspirado nos mesmos princípios do método que mais tarde ele enunciaria em seu famoso artigo de '96.

Embora Boas estivesse convencido de que apenas uma adesão estrita aos 'fatos' permitiria que ele escapasse dos resultados especulativos típicos das teorias evolucionistas, e embora ele pensasse que poderia colocar essa suposição programática em prática praticando um tipo puramente descritivo de etnologia, seu livro sobre Kwakiutl é um exemplo clássico de como o empirismo etnológico, caindo na ilusão de ser capaz de atingir a objetividade absoluta, acaba sendo o meio mais direto pelo qual o preconceito etnocêntrico é reproduzido. A esse respeito, o relato de Boas sobre o potlatch é significativo.1 Hoje tendemos a considerar o potlatch, pelo menos em seu aspecto 'destrutivo', como um mecanismo pelo qual esses bens foram retirados do processo de produção que, se pelo contrário, haviam sido reintroduzidas, teriam causado uma alteração do sistema e, conseqüentemente, teriam introduzido um elemento perturbador na própria estrutura do poder, ou seja, do controle da produção. O potlatch teria então sido uma prática ideológica por meio da qual se tornou possível evitar uma reprodução ampliada do sistema que teria sido capaz de gerar alterações no sistema de relações sociais.

Certamente Boas não pode ser censurado por não ter hipóteses avançadas sobre o potlatch mais refinadas do que aquelas que o estado das teorias então correntes sobre economias 'primitivas' poderia objetivamente permitir; mas ele certamente pode ser censurado-

1. Em seu estreito significado etnográfico, potlatch é o nome comumente dado a um conjunto de práticas ostensivas e destrutivas de bens considerados de 'prestígio' e que eram característicos das populações indígenas estabelecidas na costa da Colúmbia Britânica e na Ilha de Vancouver. Por meio de potlatches, indivíduos do mesmo status social competiam pela distribuição ou destruição de ativos consideráveis ​​com o propósito declarado de afirmar publicamente sua posição ou recuperá-la, caso a perdessem por algum motivo.

 

Ele publicou um número relativamente pequeno de livros, todos escritos nos últimos anos de sua vida, com exceção de um. Ele relatou a maioria de suas pesquisas massivas o de seus estudos em mais de seiscentos artigos em revistas especializadas. Seu importante livro, A Mente do Homem Primitivo , foi publicado em 1911. Até 1927, ele não escrevia mais. Naquele ano ele escreveu Primitive Art , que foi seguido em 1928 por Anthropology and Modern Life  (Antropologia e o mundo moderno). Em 1938, escreveu  Antropologia Geral. Uma preciosa seleção de seus ensaios mais importantes, realizados pelo próprio Boas, foi publicada em 1940 sob o título Raça, Língua e Cultura . Franz Boas odiava a autoridade. A autoridade, seja tradicional ou de governo, teve que ser combatida e desafiada. Seus alunos foram instados a independência de pensamento e ação e ai para aqueles que não o fizeram. Ele lutou contra a autoridade durante toda a sua vida, mesmo contra a sua própria; desde quando algumas de suas ideias arriscaram ser reduzidas a um sistema, ele mudou-se para outra diretiva, esquiando seus seguidores sem uma bandeira.

Teoria antropologica

Ele foi o maior herói da antropologia americana, mas não há uma 'escola' específica de Boas. Um dos 'momentos inesquecíveis' de sua vida foi quando, como estudante, um amigo de seu entusiasta da teologia declarou sua fé no mundo. autoridade da tradição e sua convicção de que ninguém tinha o direito de duvidar do que o passado nos transmitiu. Boas ficou impressionado e, alguns anos depois, lembrou-se dessa conversa e da influência decisiva que teve em sua vida. Nesta mesma reminiscência, ele menciona uma nova mente à sua repugnância para com a autoridade:

«A origem psicológica da fé interior na autoridade da religião, que era tão estranha à minha mente e que, numa primeira vez que me ocorreu, tornou-se um problema que envolveu meus pensamentos por muitos anos. De fato, toda minha visão da vida social é dominada por essa questão: como podemos reconhecer as correntes que a tradição nos impôs? Porque quando as reconhecemos, também somos capazes de quebrá-las».

Argumentou-se que, para explicar as doutrinas de Boas, é necessário traçar a história de seu desenvolvimento intelectual, desde que ele tenha admitido que defendeu doutrinas. Essa história deve começar com o lado do pensamento livre de sua vida familiar, que ele sempre citou com a mais calorosa gratidão. A intensidade com que ele luta contra a autoridade convida a um exame cuidadoso da liberdade de seus primeiros anos. Sabe-se que a mãe, uma defensora incansável da liberdade política, era algo como um líder na sua própria família e que sua atenção constante muitas vezes se tornava um fardo para ele. Quando ele estava em casa, ela escreveu três ou quatro vezes no sétimo ano. Portanto, embora ele sempre expressasse a mais profunda preocupação e profunda afeição por sua mãe, Boas achava necessário declarar que tinha que viver sua vida. Também seria interessante perguntar até que ponto a sua determinação de 'quebrar as correntes da tradição' estava ligada aos seus contatos com o antissemitismo - a família de Boas era uma das duas famílias judias de Minden. O pai aparentemente era o único da família que não abandonara os laços religiosos. Um livre pensador desde a infância, Boas não recebeu a força e a segurança que a religião pode oferecer, outros ainda o consideravam judeu e o perseguiam. Ele pagou o preço de uma tradição sem nunca receber os benefícios. Talvez isso tenha uma certa importância na sua hostilidade em relação à tradição e a autoridade. Em um ensaio Race and Progress  (Raça e Progresso) de 1931, ele justapõe 'a vestimenta dos judeus medievais' e as 'listras de um prisioneiro' como exemplos de símbolos impostos a certas pessoas por grupos dominantes, 'para que cada indivíduo, sem que consideramos a natureza de seu caráter, ele é imediatamente designado para seu grupo e tratado de acordo. 'Qualquer que tenha sido o motivo que o levou a lutar contra o nivelamento das consciências, ele usou sua independência de maneira dramática e eficaz. um herói tanto por isso quanto pela massa quase digna de credibilidade do trabalho antropológico que ele conseguiu levar ao fim.

Deontologia antropológica

Quando na Primeira Guerra Mundial eram particularmente preocupados com a lealdade dos cidadãos naturalizados, a Universidade de Columbia solicitou de seus alunos relatórios sobre qualquer observação suspeita feita pelos membros do corpo docente. Boas preparou uma declaração vigorosa de visões impopulares, leu-a em suas aulas e ofereceu uma cópia a cada aluno e pretendeu enviá-la aos curadores da Universidade. Em 1918, ele escreveu uma carta aberta à 'Nação' na qual deplorava o comportamento de quatro antropólogos que haviam sido contratados durante a guerra por ações de espionagem em favor dos Estados Unidos, enquanto estavam na América Latina para uma expedição científica. Ele os chamou de 'homens que eu me recuso a chamar ainda de cientistas' e os acusou de 'prostituir a ciência usando-a como uma tela para sua atividade de espionagem' .Para esta carta ele foi formalmente repreendido pela Associação Antropológica Americana em uma reunião tempestuosa. Cambridge em 1919. Até onde Boas sabia que suas opiniões favoreciam os vôos para a Alemanha - mas ele nunca foi acusado de traição aos Estados Unidos - derivava de um apego sentimental à sua terra natal, ele não lutou por isso, criticando francamente seu país de adoção na guerra.

Contra o nazismo

 Com a ascensão do racismo sob os nazistas, antes da Segunda Guerra Mundial, ele foi o primeiro a assumir publicamente uma posição intransigente contra Hitler. Em idade avançada, ele lutou contra a geria de Hitler com todas as capacidades de sua grande vida, sua fama e sua personalidade. Em Kiel, a universidade que lhe concedeu seu mais alto diploma em 1933 queimou seus livros. Onde quer que as liberdades fundamentais fossem ameaçadas, podia-se confiar na intervenção de combate de Boas. Assim, ele se viu inevitavelmente associado a grupos e causas impopulares, mas nunca evitou uma batalha por medo de que qualquer rótulo pudesse ser atribuído a ele. Como Lowie disse, 'ele estava do lado do que ele achava que era certo e deixava as consequências serem enforcadas'. Essa atitude trouxe-lhe muitos amigos leais e até fiéis, e é claro que ele também lhe causou hostilidade em muitas áreas. Mas, em geral, ele foi objeto de muito respeito, sobretudo por seus numerosos e indiscutíveis resultados no campo antropológico.

Boas professor

Uma análise mais profunda de Boas, como professor, colega, amigo e família, revela um homem capaz e piedoso de modéstia. cujo carinho era demonstrado a seus amigos mais íntimos - ou àqueles que lhe eram completamente estranhos - ele gostava de sua esposa, filhos, netos e um pequeno grupo de estudantes e colegas, e ele estava sempre pronto para ajudar pessoas desconhecidas. contanto que ele provasse que precisava de ajuda, para um grande número de pessoas, que estavam entre esses dois extremos, ele apareceu é frequentemente desapegado, desprovido de personalidade e até mesmo hostil. Lowie foi um dos seus discípulos no período em que Boas tinha desentendimentos com o Museu Americano e lembra de ter tido um verdadeiro terror de encontrar-lo enquanto ele estava indo para as salas de aula: um silêncio escuro - diz Lowie – ao qual seguia um conciso 'bom dia' até que a situação se tornou insuportável para mim'. Sabia fazer análises frias e concisas, quando ele estava envolvido em controvérsias, na ocasião, ele sabia como fazer seus sentimentos explodirem sem reticências. Em geral, ele era excepcionalmente calmo, poético e controlado. Uma vez ele passou três horas tentando acostumar seu filho a dizer 'obrigado'; um exemplo de controle emocional que todo pai pode apreciar. Com sua família e velhos amigos, ele não era a pessoa austera que os menos íntimos conheciam. Ele ajudou seus filhos e netos em seus estudos; ele fazia longas viagens com eles e mostrava grande humor, já que ele era particularmente levado a piadas e enigmas. Regularmente reservava parte de suas ocupadas noites familiares e passava a maior parte do descanso com a família. Grande parte da influência de Boas como professor está intimamente relacionada à sua falta de vontade ou incapacidade de se tornar aceitável para os outros. Ele ganhou a confiança dos alunos apenas por causa do mérito de seu trabalho, nunca pela maneira brilhante em que se apresentava. Em vez de um grande número de crentes acríticos e entusiasmados, ele atraiu um pequeno número de jovens discípulos dedicados, cujo trabalho futuro faria dele o maior mestre da antropologia americana. Os últimos discípulos foram atraídos por ele pela intensidade fria de seu trabalho e sua personalidade e só mais tarde eles sentiram o calor que ele irradiava ao seu redor para aqueles que o conheciam mais de perto. Com o tempo, tornou-se conhecido por eles como 'Papà Franz'. Seus principais cursos na Columbia University por quarenta anos foram Teoria Estatística e Línguas Indianas da América. Ele colocou um fardo pesado em seus alunos. Exigia habilidades especiais em matemática e linguística, por exemplo, foram pensadas para fazer parte do equipamento que traziam para a aula juntamente à caneta e papel que eram indispensáveis  para seguir seus cursos. A maioria dos dados que ele usava para ilustrar e apoiar os princípios e métodos fundamentais da antropologia tinham que ser coletados, organizados e assimilados pelo aluno sem sua ajuda e interesse. Ele estava preocupado principalmente com princípios, teoria e metodologia, contra os quais, de acordo com Kroeber, ele exigia 'uma adesão intransigente às suas próprias avaliações. É peculiar que embora ele tivesse voluntariamente suprimido um curso introdutório em antropologia na Columbia College para os meninos, ele realizou um curso paralelo ao Barnard College (para meninas) por muitos anos com satisfação. Na verdade, esse era um dos seus favoritos. As meninas pareciam mais atraídas por ele do que os jovens e ele retribuía sua atenção. Talvez, com sua intuição e sua astúcia primorosamente feminina, pudessem penetrar melhor em sua austera armadura. Quando seus alunos amadureceram e estavam prestes a concluir suas obras, Boas continuava a considerá-los acima de tudo 'seus alunos' e, com eles, de acordo com Herskovits, ele se sentiu obrigado a nunca concordar.

Boas crítico

Sua atitude em relação ao trabalho deles sempre foi crítica, e o fato de suas observações estarem quase sempre corretas não atenuava o desconforto que muitos deles sentiam. Seu maior mérito estava na análise crítica da teoria e do método, e nenhum trabalho de seus alunos foi retirado desse paciente e de uma análise meticulosa. No que diz respeito a uma figura tão poderosa e, em alguns aspectos caprichosa, espera-se descobrir a ambiguidade e contradição das atitudes, especialmente por parte daqueles cuja atividade profissional estava em jogo. E de fato isso é verdade para muitos dos alunos de Boas. Um exagero típico de sua posição na história da antropologia é encontrado em um julgamento de Ruth Benedict de 1943: 'ele encontrou a antropologia como uma coleção de conjecturas grosseiras e uma terra de pesquisa feliz para os amantes românticos das coisas primitivas; ele deixou isso era uma disciplina fundada em teorias verificáveis  e traçou nela o limite que divide as coisas possíveis daquelas que não são possíveis '. Contra esse julgamento outro estudioso de Boas, RH Lowie, sentiu-se obrigado a manifestar sua dissidência vigorosa e sem comprar 'e declarar:' ele não gostava nada ser considerado um herói da cultura do folclore indígena, um portador de luz na escuridão, ele repudiava explicitamente essa qualificação. Em resposta a um discurso por ocasião da comemoração do 25º aniversário de sua obra em Kiel, ele se apresentou conscientemente sob esta luz:

«Eu não devo menos gratidão aos meus colegas do que aos meus amigos que colaboraram entusiasticamente comigo - uma colaboração que temo nem sempre foi fácil para um homem cujo trabalho consiste essencialmente numa crítica profunda do seu trabalho e dos outros» .

Performance de Boas

O ponto fraco que as moças do Barnard College descobriram na armadura de Boas não era tal que permitisse a rendição que marca o erudito natural do homem. O maior mérito que pode ser conhecido por Boas é que ele se recusou a seguir sua predileção emocional pelo isolamento e tentou se aproximar e aprender sobre todos os campos do comportamento humano. Seus métodos vieram dos laboratórios de ciências físicas e suas inspirações, de acordo com suas próprias declarações, provêm do 'espírito de liberalismo' concebido por sua mãe. Foi esse espírito liberal calculado e militante que o alienou de seu pai, um homem conforme os antigos costumes que mantinha uma 'propensão sentimental' pelas tradições do grande povo hebraico. No entanto, é bem possível que tenha sido a influência não reconhecida de seu pai que levou Boas a se retirar do mundo ativo do povo para enfrentar os problemas e mistérios deste mundo. Não tendo sensibilidade natural para as pessoas, ele tentou compensar essa deficiência, acumulando mais do que qualquer outro conhecimento sobre ela. Kroeber afirmou que Boas:

«foi por conta própria para uma série de novas dimensões e só depois procurou contatos com pessoas que tinham os mesmos interesses». Exagerado ou não a afirmação aparece, no entanto, pode-se tentar identificar pensadores que eles tiveram uma certa influência sobre ele. Durante seus anos na universidade, ele foi atraído pelo famoso geógrafo alemão Teobald Fischer, que dirigiu seus interesses da física e da matemática para a geografia física e cultural posterior.

No seu retorno da Terra de Baffin formou uma amizade com Rudolf Virchow, que, de acordo com Kroeber, influenciou-o mais do que qualquer outro estudioso. Virchow era um cientista rigoroso cujas principais realizações diziam respeito à patologia, embora também tivesse pedido desculpas à antropologia. São três importantes eventos de sua vida, tão ligados entre si: ele lançou sua carreira como antropólogo, estabeleceu a sua independência da família, e se apaixonou por Maria Krakovitz, durante este período ele atingiu a maturidade, como aparece na seguinte citação:

«Durante estes anos na sublime solidão do Ártico, e em contato com o mundo ativo, senti minha força amadurecer e comecei a aprender como se ensina». (Kardiner 1964, pag. 190).

Terra de Baffin

Quando Franz Boas tinha vinte e cinco anos de idade, viajou para a ilha de Baffin para empreender pesquisas antropológicas e geográficas entre os esquimós (Innuit). Os diários de cartas que ele guardou durante seu trabalho de campo têm um interesse especial pela história da antropologia. Boas havia obtido seu doutorado na Universidade de Kiel no verão de 1881. Embora sua dissertação fosse em física, ele já escolhera um de seus campos menores, a geografia.

Inuit

A razão para selecionar o esquimó (ou inuit) não é aparente à primeira vista. Boas parece ter sentido que sua dependência ambiental era o caso mais simples para começar, embora a escassez de informações disponíveis sobre a região e seus nativos pesasse contra as vantagens da aparente simplicidade. Talvez a escolha tenha sido bastante pessoal, com raízes muito antigas na juventude de Boas. Em abril de 1882, durante o ano de seu serviço militar obrigatório, ele começou a planejar 'uma investigação da dependência das migrações esquimós contemporâneas sobre as relações físicas e as formas de suas terras'. A cultura do povo esquimós Innuit, ao viver com eles e viajar despertou o interesse pela importância da tradição social como elemento determinante da cultura e da personalidade. Sua concepção do poder da tradição social na forma da vida humana transportou seus interesses da geografia para a etnologia e marcou o início de sua carreira como antropólogo.

Preparação da expedição

Já em 1870, quando tinha apenas doze anos de idade, escreveu a sua irmã para realizar uma expedição ao Pólo Norte ou sul depois de completar seus estudos. A probabilidade de que a exploração polar fosse uma ideia de longa data e não uma fantasia de infância passageira recebe apoio do curso que ele realizou em 1878-79 em Bonn sobre a geografia e pesquisa tendo decidido estudar os inuítes e seu ambiente, Boas começou a se preparar para uma expedição e se mudou para Berlim, onde, entre outras coisas, estudou observação meteorológica, astronômica e magnética. Usava do Planetário e da medição antropológica segundo os moldes de Rudolf Virchow, bem como desenho cartográfico e topográfico, trabalhou nas línguas Inuit e dinamarquesa, consultou Heymann Steinthal em pontos linguísticos, examinou as coleções do Ártico no museu de Berlim, era sob o olho de Adolf Bastian, e aprendeu fotografia. Através de seus conhecidos de Berlim, Boas também foi capaz de organizar as questões práticas do lançamento da expedição. Bastian o colocou em contato com Georg van Neumayer, presidente da Comissão Polar Alemã, que na época apoiava festas científicas nas ilhas de Baffin e Geórgia do Sul. Neumayer prometeu transporte para a Ilha de Baffin com o navio da Comissão e generosamente permitiu que Boas escolhesse os instrumentos e suprimentos da estação de retorno.

Financiamentos

Boas persuadiu os editores do Berliner Tageblatt a avançarem 3.000 marcos em troca de quinze artigos prometidos. Ainda havia muito a ser feito, mas os meios para a expedição e seu esboço planejado eram claros. Ele viajaria para Cumberland, na ilha de Baffin, com o Germânia, um navio construído em 1869 para ser usado no gelo do Ártico. Este navio o levaria para Cumberland Sound até Kingawa. Boas garantiu em Hamburgo uma grande ação de provisões, armas, munições e mercadorias comerciais, um bote de treze pés destinado aos lagos interiores e um pequeno trenó de aço. Sua estratégia de pesquisa foi desenvolvida a partir do seu rápido domínio da iluminação do Ártico (Stoking 1963: 13). Após perseguir por tempo determinados problemas da psicofísica da percepção sensorial sugeridos por seus estudos de doutorado, ele começou a focalizar seus interesses na relação entre as pessoas e seu ambiente natural.

Kwakiutl

Em 1888, a investigação aprofundada começou entre as etnias do Noroeste do Canadá. Ele estava especialmente interessado em seu folclore, destacando a considerável desigualdade do folclore europeu. Começou o que viria a se tornar uma das maiores coleções do folclore antropológico. Sua viagem à Columbia Britânica foi financiada pela Associação Britânica das Tribos Ocidentais do Norte do Canadá, cujo presidente era E. B. Tylor. Ele estava interessado na aplicação que Tylor fizera de métodos estatísticos para dados culturais e, por algum tempo, acreditava que tais métodos poderiam fornecer respostas abrangentes para a maioria dos problemas etnológicos.

Cultura material

De 1888 a 1899 aprofunda seu conhecimento e experiência, como pesquisador, diretor de museu e professor. No final do século, ele estava se preparando para iniciar uma das carreiras de ensino mais brilhantes da história americana. Boas era apaixonado por coletar, classificar e preservar massas significativas de dados brutos. Com a ajuda de alguns barbeiros da cidade de Nova York, ele já teve mais de um milhão de cabelos examinados com lupas para documentar um estudo sobre o envelhecimento. O elemento característico de seu trabalho é a insistência na importância da matéria-prima retirada da área de estudo. Ele disse que havia esquecido toda a antropologia de um de seus ex-alunos.

Além da pesquisa cartográfica e meteorológica, sua intenção era estudar a migração de esquimós, áreas de caça, rotas e relações de um grupo para outro. Ele viajaria no verão e outono de 1883 até o lago Kennedy (lago Nettilling), um lago interior de água doce, e de lá tentaria chegar à costa oeste de Baffin land e segui-lo para o norte, para a região de Lglulik. Cumberland Sound, ele iria 'coletar material etnográfico e fazer um estudo aprofundado da língua, costumes e hábitos dos esquimós. Esse itinerário ambicioso e a tenacidade o que Boas fez em uma viagem até a costa oeste, apesar dos avassaladores retrocessos, indica que ele estava extremamente decidido a demonstrar aquela parte das rotas que estabelecera em seu artigo Netsilik. Provavelmente havia mais a ela também. viagem para o oeste de Cumberland Sound o levaria a uma das maiores regiões inexploradas do Ártico e a uma aparentemente fácil rota para o norte, para Halulik. Seria uma parte significativa da descoberta geográfica. De facto, Boas empatado num final diferente para sua expedição. Sabendo que os navios eram negociados ao longo do Estreito de Davis, ele esperava ser apanhado por um baleeiro americano. As razões por trás desse desejo de visitar a América foram em parte profissionais: por uma série de razões, incluindo o recente surto de anti-semitismo, ele não estava convencido de que seu futuro estivesse na Alemanha. Outro motivo era pessoal e preocupado com a senhorita Marie Krackowizer. Marie Krackowizer era filha do Dr. Ernst Krackowizer, um austríaco que se tornou proeminente médico de Nova York antes de sua morte em 1875. Os Krackowizers eram amigos íntimos de outro médico nova-iorquino e alemão, Abraham Jacobi.

O casamento de Boas

Quando, no verão de 1881, os Krackowizers e Jacobi se hospedaram em Logether nas montanhas Harz da Alemanha, eles se juntaram a Boas, que tinha acabado de terminar seus exames de doutorado em Kiel. Ele só tinha completado vinte e três anos e Marie não tinha nem vinte anos. Durante três dias, eles ficaram quase sempre juntos, caminhando no parque em Wemigerode, olhando para baixo do penhasco do Regenstein. Eles tiveram uma manhã inesquecível no selvagem e pitoresco Bodethal antes de todos partirem para a casa de Boas em Minden, onde Franz e Marie passaram mais dois dias juntos. Embora os Krackowizers tivessem se estabelecido temporariamente em Stuttgart, o relacionamento permaneceu adormecido até que Boas compareceu ao Congresso Geográfico em Frankfurt, na primavera de 1883, e fingiu um compromisso em Stuttgart como uma desculpa de chamar Marie. Naquela primeira tarde de abril, um belo domingo de primavera, eles ficaram sob o velho Schiller Oak 'e contaram um ao outro tudo, excepto o que realmente pensávamos'. A omissão foi removida por uma enxurrada de cartas no final de maio. Menos de três semanas antes de sua partida para a ilha Baffin, eles estavam silenciosamente noivos. Sua carta de despedida, lida enquanto a Germânia descia o rio Elba, terminava com  Mais tarde, espero por você!. Vorwiirts tornou-se uma palavra repetida e repetida por Boas para si mesmo, enquanto ele prosseguia em seus labores nos desertos solitários da ilha de Baffin. A expedição significou uma separação difícil para dois amantes recém-declarados.

Cartas-diário

Por doze ou mais meses, qualquer comunicação entre eles seria impossível. Nas circunstâncias, ambos mantinham diários de cartas não postadas. O que importa se eles não pudessem ser respondidos ou mesmo lidos por meses? Essas circunstâncias fizeram da 'carta-diário de Boas um documento muito peculiar. Em certo sentido, é uma única carta de 500 páginas composta ao longo de um período de quinze meses. Grande parte é uma manifestação de afeição, uma extensa carta de amor, na qual amorosa Muitas vezes, as efusões sobrecarregavam a descrição de suas atividades de campo, e a carta-diário servia a propósitos que seu diário de campo mais simples não permitia. Como uma carta, fornecia uma fuga das circunstâncias atuais para uma comunicação indireta com alguém querido e distante. um documento pessoal em que ele poderia se aliviar de emoções contidas em outras palavras: amor, frustração, alegria e desespero. Sob condições especialmente difíceis, às vezes deixava de ser um documento pessoal e apenas duplicava as entradas esparsas de seu diário de campo. São lacunas de dias, até mais, invariavelmente seguidas de desculpas e relatórios de recuperação. Embora não seja uma maneira perfeita de reconstruir a primeira experiência de campo de Boas, ela permite consideráveis  ins. ight em sua alma e trabalho. A carta-diário é um documento muito difícil de ler. O diário de cartas o acompanhava as cerca de 3.000 milhas que percorria; por sua própria admissão a Marie, sua caligrafia era muitas vezes pouco mais que 'arranhões de galinha'. O documento existente não é sequer 'original' na maior parte, mas um cópia. O original era principalmente a lápis (havia um problema em manter a tinta líquida). A fraca legibilidade do texto e a necessidade de transformar o alemão rabiscado no campo em inglês aceitável tornam a integridade textual impossível. Os nomes dos inuítes são dados com a maior precisão possível, usando Baffinimim (Boas 1885). O que resta, no entanto, talvez transmita a essência da 'iniciação etnográfica' de Boas.

Etnografia de Boas

Os blocos mais sólidos do monumento que Boas construiu são suas provas, sua crença de que o que as pessoas dizem sobre si mesmas acabará revelando análise, com muita precisão suas motivações e sua con '. Em contraste com a forma viva e dramática de escrever de Malinowski, Boas apresenta seu material relativo a um tipo de cultura com uma economia deliberada de esforços literários e imaginativos. Depois de um breve prefácio, um estudo sobre a cultura do Kwakiutl (seu povo favorito) começa com sua Cultura Material; que, sob o título 'Casas', ele dá a seguinte descrição: 'As casas são geralmente construídas no chão e são quadradas. Uma casa grande mede dez braças (cm. 257) para dez.' E ele se expressa com o mesmo estilo num paragrafo sob o título 'vida emocional e ética': 'o prazer é expresso com a risada ... Uma mulher porque um homem quer se casar com ela ... as pessoas que apreciaram uma piada ... marido e mulher riem juntos... as pessoas riem de incidentes engraçados. 'Essas descrições continuam sem variações para 190 páginas, cuidadosamente classificadas por categorias com onze estações principais e cerca de 160 subgrupos.

O método

A concisão que ele usou na descrição de uma cultura foi atribuída a seu medo de que na antropologia, os limites dos métodos rigorosos das ciências exatas já surgiram: suas relações são lidas quase como os pontos de um laboratório de física, e sua atividade anterior sempre foram enfatizadas.

«Boas distinguia duas concepções sobre a natureza da pesquisa científica. Ambas tinham o mesmo ponto de partida: o estabelecimento dos fatos. Ambas tinham o mesmo fim supremo: encontrar a verdade eterna. Mas sua relação com os fatos e sua abordagem da verdade eram muito diferentes. A diferença estava nos métodos, o “físico” e o “histórico”. “O físico compara uma série de fatos similares, dos quais ele isola o fenômeno geral que é comum a todos. Assim, os fatos particulares se tomam menos importantes para o físico, pois ele enfatiza apenas a lei geral.” Por outro lado, o historiador negava que a “dedução de leis a partir dos fenômenos” fosse a única abordagem da “verdade eterna”. Havia também o método da “compreensão”. Os que escolhiam-esse caminho adotavam uma atitude muito diferente diante do fato ou evento individual: “Sua mera existência lhe dá o direito de receber toda a nossa atenção; o conhecimento de sua existência e de sua evolução no espaço e no tempo satisfaz pienamente o estudioso, sem que sejam consideradas as leis que corrobora ou que dele podem ser deduzidas.” Na medida em que o historiador se interessava pela lei, era para explicar a história real dos “fenômenos dos quais tinha sido deduzida”» (Stockhing, 2004, p. 25).

Também aqui somos levados a um confronto com Malinowski, que também atuou como físico. isso também foi negligenciado por Kroeber quando afirmou que as experiências de Boas no campo da física eram únicas na antropologia. De acordo com Leslie Spier, que muitas vezes discorda dos outros comentaristas de Boas, ele provavelmente não gostou muito do trabalho de pesquisa no campo e se o fez, por outro lado, Lowie afirma que 'Boas deve ser considerado, em primeiro lugar, por sua pesquisa de campo'. Que Boas 'não gostou do trabalho de pesquisa no campo', como afirma Spier, pode ser apoiado por extratos de seu diário epistolar para os pais de 1886. De escrever seu encontro com os índios Bella Coola, ele escreve:

«Enquanto isso, em torno de crianças sujas e gritando, às vezes ele faz alguma refeição. Cães e meninos se abrem o seu caminho através das pessoas: a fumaça do fogo é tão intensa que as coisas dificilmente podem ser distinguidas ... Em suma, tudo é um teste de paciência»

 8 de novembro.

Ele ficou amargurado e irritado quando seu estudo não prosseguiu em tabelas ou quando a qualidade dos dados não atendeu às suas expectativas. Quase no mesmo período ele escreve:

«Hoje foi o pior dia desde que eu me encontrei aqui Na prática eu não aprendi nada porque eu desperdicei-me durante todo o dia correndo em busca de novas pessoas ... à noite eu estava muito cansado de ter corrido tanto e fui para a cama de mau humor. Foi um dia perdido»

25 de setembro.

 «Estou muito irritado porque meu Tsimshian me abandonou ... Da experiência eu deveria saber que tais coisas acontecem, mas não ficar com raiva é mais fácil dizer do que fazer. Eu disse ao bom homem, que entre os outros é muito religioso, que ele era o maior mentiroso que eu já conheci e que eu iria queixá-lo sobre isso ao pastor» (24 de setembro).

 

A partir dessas referências pessoais e particulares às experiências no local de pesquisa e de seus relatórios etnográficos oficiais, pode-se ver seu gelado entusiasmo no trabalho. Cada dia deve aumentar o peso de seu manuscrito:

 «meu manuscrito está se tornando verdadeiramente notável e espero ter uma quantidade considerável de dados quando eu voltar a Nova York” (3 de outubro): “Estou triste com a perda de cada momento (26 de setembro) ... Perdi três horas sem fazer nada (6 de novembro) ... Acho que minhas anotações são muito escassas hoje em dia (8 de novembro). .. hoje eu não tenho muito fechado porque eu não pude ver uma pessoa (21 de novembro) ... hoje eu não aprendi muito (30 de novembro) '. E sempre havia o terror mórbido de todo grande colecionador:' Você não pode imagine como eu me preocupo com o pensamento de perder minha mão escrita» (23 de novembro).

 Boas não deixou que o sentimento se insinuasse em suas observações de pessoas, qualquer sentimentalismo se limitava a raras observações desse tipo: “aqui crescem magníficos e altos pinheiros, bem como carvalhos retorcidos e outra árvore cujo nome não sei”.

Diário

O diário-carta abre três dias depois que o “Germânia” partiu de Hamburgo em 20 de junho, quando passava o Elba para o Mar do Norte

«Hoje estou começando a escrever meu diário para você e devo lhe dizer, em primeiro lugar, o quanto eu a amo”. Boas descreve a vida a bordo, vista da sua cabine fedorenta apertada, como ele tentou ministrar lições de inglês para Wilhelm (“ Ele tem terrivelmente cabeça espessa As coisas não penetram muito prontamente), e como, em 5 de julho, a vida se tornou 'muito monótona».

 Em seu aniversário, 9 de julho, quando o navio passou pelo Farol da Capa da Groenlândia para o Oceano Ártico, ele ficou tão louco que só de tarde pôde ver as cartas e presentes que Weike tinha para ele. Dois dias depois, ele ruminou sobre o propósito da viagem:

«É engraçado como todo mundo pensa que eu estou fazendo essa viagem pela fama e glória. Certamente eles não me conhecem e eu teria uma má opinião' Se eu fosse uma pessoa objetiva para o qual eu coloco no trabalho e esforço. Você sabe que eu me esforço para algo mais importante e que essa viagem é apenas um meio para atingir esse objetivo. Eu suponho que é verdade que eu quero reconhecimento externo por minhas realizações, mas apenas na medida em que eu desejo ser conhecido como um homem que irá realizar suas idéias e agir de acordo com elas. Esse é o único tipo de reconhecimento em que consigo pensar. A glória vazia não significa nada para mim».

 

Em 15 de julho, o navio avistou o Cape Mercy, o ponto mais externo da península de Cumberland. Mais progresso, no entanto, era impossível:

«Tudo o que podemos ver, olhando para o sul, é um deserto de gelo, cardume sobre cardume, campo sobre campo, quebrado apenas por um iceberg ocasional».

Ele já estava tendo que revisar seus planos, já que se tornava duvidoso que eles pudessem invadir o som antes de meados de agosto. Em 27 de julho, ele desistira de seu plano para uma viagem de outono ao lglulik e, em 7 de agosto, Boas temia que todo o projeto tivesse de ser abandonado:

«Como minhas coisas chegarão a Kikkerton e o que farei no outono se chegamos a aproar tarde demais? E se nunca chegarmos lá, o que será então? Eu deveria estar muito triste pela desafortunada expedição ao norte '(os homens da Estação Polar Alemã). 'E que grande decepção seria para mim! Mas eu espero o melhor. Eu não tenho conseguido dormir por várias noites para me preocupar com esses assuntos e gostaria que fosse resolvido de uma forma ou de outra. Basta pensar se eu tivesse perdido quatro meses por nada ... Estou realmente me tornando deprimido preocupando-me com tudo isso. Até lá teremos viajado por aqui por quatro semanas e avançamos pouco mais de quinze milhas marítimas».

Embora estivesse muito deprimido, Boas manteve-se ocupado com a fotografia, com o desenho do litoral e com amostras de água do mar e gelo, até 28 de agosto. trouxe uma mudança dramática:

«Kikkerton à vista - a grande novidade do dia! Está apenas aparecendo através do nevoeiro e estamos navegando sob um vento favorável. Começou a clarear às cinco da manhã e imediatamente todas as velas foram içadas para nos apressar. Estamos agora na Ilha Miliaxdjuin e esperamos estar em Kikkerton ao meio-dia. Não sei se vamos chegar, mas estou feliz por estar tão longe. A partir de então, é a palavra agora».

2 de setembro, Kikkerton

«Finalmente encontrei tempo para escrever para você, minha Marie tem sido muito trabalho e rebuliço a bordo e em terra que eu não tive tempo de escrever. Deixe-me dizer-lhe o que aconteceu ... Estávamos perto de Kikkerton e de repente houve um grito 'Navio à frente!' Nós não pudemos entender que barco era, mas logo notamos seis esquimós remando o barco Sr. Alexander Hull [ Hall), um dos escoceses que se hospedam aqui, estava na parte de trás do avião indo em nossa direção, logo o barco estava ao nosso lado e trocamos saudações. O capitão e o timoneiro o reconheceram como um velho conhecido, eu como meu novo compatriota ... O vento estava diminuindo rapidamente e o barco escocês puxou a nossa velha Germânia para o porto Nós empurramos lentamente através do gelo e vimos a estação americana Eles logo nos viram ergueram a bandeira. Ouvimos os cachorros uivando e vimos algumas das tendas dos nativos e logo a estação escocesa agitou sua bandeira ... Ao nos aproximarmos de um barco com mulheres esquimós, viemos da praia e ajudamos a puxar nosso barco para dentro do barco. Por volta de dez minutos para três, em 18 de agosto, ancoramos e chegamos felizes e a salvo no porto de Kikkerton».

[A estação escocesa consistia em alojamentos e três edifícios de escritórios, a antiga casa original trazida por Williarn Penny em 1857. Possui uma grande sala para viver e dormir. Mais perto da costa estava a estação Amerirnn, propriedade da Williams & Co. de New London, Connecticut.

Kikkerton

Kikkerton era agora o maior assentamento Inuit no Som, embora nessa época a maioria dos nativos estivesse caçando no interior e apenas alguns, principalmente mulheres e os trabalhadores empregados nas estações”

3 de setembro, Kikkerton

« Como tudo está cheio de gelo e não há nenhuma chance de que a Germânia possa chegar [à estação alemã] agora, eu me ofereci lá com um barco cheio de esquimós .... Você pode imaginar isso já que tudo está tão infeliz este ano, há muito a considerar e falar. É realmente muito ruim. Nada é como deveria estar aqui: o vapor está caído em volta de um buraco em volta e não pode entrar. Os escoceses veem suas provisões diminuindo, tabaco e fósforos desaparecendo. Nós nos sentamos aqui e não podemos ir mais longe. Capitão Roach está preso perto de Kingawa e não pode chegar até aqui, embora esteja esperando um navio. Nossa estação fica em Kingawa e eles não sabem se podem chegar em casa ou não. 4 de setembro, Kikkerton Se for de qualquer maneira possível, eu irei a Kingawa amanhã. Eu tomarei emprestado um terno Eskimo, como o meu não está pronto. Esta manhã visitei uma cabana de esquimó por cerca de duas horas para coletar o vocabulário e já tenho um bom número de palavras sobre implementos, fornecimento de tepiks, partes do corpo humano, etc. Esta tarde quero coletar plantas. Agora deixe-me contar o que aconteceu nos últimos dias. Depois que mostrei ao Sr. Mutch, o diretor da estação escocesa, a carta do Sr. Noble, seu dono, ele foi muito gentil e prometeu ser útil em todos os aspectos. Meus pertences deveriam ser trazidos para terra no dia seguinte. Pela noite nós visitamos todos os tepiks (tendas de esquimó) aqui e eles não pareciam tão ruins quanto eu tinha imaginado. Eu não posso descrevê-los agora ou eu seria capaz de lhe dizer nada mais».

9 de setembro, Kingawa

 

 [O primeiro dia de encontro com os Inuit parece ter desgustado Boas imensamente, pois se tornou o assunto de três de seus artigos sobre Tageblatt. Em um deles, ele expressou uma forte repulsa inicial à sua fealdade e ao fedor horripilante que vinha das túnicas de couro.

«Se alguém dissesse aquilo que em pouco tempo eu estaria vivendo sem resistência nas mesmas condições, eu teria negado tal imputação com indignação. Não demorou muito, porém, até que a força das circunstâncias me levasse a compartilhar 'a morada carioca nativa e cozinhar na mesma chaleira - embora eu geralmente tomasse a precaução de ter minha própria chaleira» (Boas 1884b ).

12 de setembro, Kikkerton

[A chegada do navio da estação escocesa, 'Catherine, sob o comando do Capitão Abernathy, trouxe correspondência de casa, à qual respondeu)

«Finalmente, eu ouço algo de si novamente. Eu ouço novamente que você me ama, e eu posso beijar sua onda dourada. Você não pode imaginar como é alegre, como eu sou contente .... Poucos dias atrás, na sexta-feira, assim como o navio que trouxe a carta chegou aqui estava eu  em minha jornada, era noite e pousamos no sopé de um penhasco íngreme em um fiorde profundo. Eu havia providenciado meus seis esquimós. Eu só, a única pessoa acordada nas rochas, observando o gelo. Tive o tempo de ficar em paz para pensar no meu doce amor A água profunda estava a meus pés. Em frente a mim, surgiram os íngremes e ameaçadores penhascos negros, as corredeiras que havíamos naquela tarde correram e rugiram ao meu lado, e no fundo em distância  aprimorar as montanhas cobertas de neve, mas só vi você, minha Maria. Você e a 'nobre beleza do que me rodeia me tornaram consciente da imensidão de nossa separação» ...

[No mesmo dia, ele escreveu tranquilizadoramente seus pais: 'Em casa eu imaginei tudo para ser muito mais difícil do que é. Quase todos os esquimós entendem inglés e eu posso lidar com eles muito bem. Eles estão dispostos a trabalhar e bem-humorados, desejando apenas ser bem tratados. Nessa primeira viagem, não ouvi resmungos, embora eu tenha gostado de guiá-los com muita força. Eu fiz a minha parte, no entanto, e não comi mais nada do que recebi para que eu pudesse sempre dizer: não a tenho melhor do que você!”

 19 de setembro, Kikkerton ...

«Agora estou sozinho aqui em Cumberland Sound, mas eu encontrei uma coisa dessas gentil e amigável bem-vinda aqui que eu me sinto muito em casa. Eu me dou bem em inglês e a maioria dos esquimós entende e fala inglês. Eu tenho contratado um homem para todo o inverno, a quem eu alimento. Ele deve me acompanhar onde quer que eu vá, caçar por mim, etc. Ele parece ser totalmente confiável, tanto quanto eu sei e de acordo com suas recomendações. Sinto-me bastante seguro de ter sucesso aqui, então todos vocês devem sentir-se da mesma forma» ....

Devido à atividade de carregar e descarregar o brigue escocês, quase todos os esquimós da estação estavam totalmente envolvidos. A liberação de Signa (ou Jimmy), que normalmente era empregada pelo Capitão Roach, era muito importante para Boas, tanto mais que 'ele conhecia a costa de Cumberland Sound em quase todas as suas extensões e, qual era o principal ele tinha passado muito tempo no Lago Kennedy '(Boas 1885a: 4). Ainda assim, até que ele pudesse contratar uma tripulação completa do barco, tinha que se limitar à vizinhança das ilhas Kikkerton. Sua primeira excursão foi uma viagem ao fiorde de Kingnait. com Signa e Wilhelm, grande parte dela caminhando ao longo da costa irregular

«Signa provou ser uma boa pessoa; ele faz o que eu digo sem fazer objeções e não bebe .... 'Somente depois dessa curta viagem o contrato com Signa foi formalmente fechado, como o diário de campo registra em 24 de setembro:' Signa chega à noite e chegamos a um acordo. Ele recebe o Mauser. Eu acho que posso fazer isso, já que não há mais nada. Caso contrário, ele recebe pão, melaço e tabaco de acordo com seus desejos» ...

24 de setembro, Kikkerton

[Antes da partida da Catarina, Boas pôde escrever mais uma vez diretamente a Marie.]

«… Assim que o navio se foi , a casa deve ser forrada e eu tenho que arrumar minha mesa e minha cama Até agora eu tenho que me ajudar da melhor maneira possível e devo dormir no chão e não ter lugar meu. pele de foca para a sua foto, ou tê-lo feito por uma mulher Eskimo hábil. Eu encontrei o vidro para ele e ele deve ficar acima da minha mesa, você no meio, meus pais para a direita e esquerda .... Existem dois níveis de beliches, de modo que os três de nós têm quatro camas. Há um espelho entre os dois e minha mesa será colocada sob ele. Na despensa são mantidas as disposições para o uso diário. Meus planos para o futuro próximo são para viajar em a vizinhança de Kikkerton, como já fiz até agora, então quando começa a congelar para ficar aqui até cerca de Natal e fazer trabalho etnográfico. Em janeiro o esquimó voltou a viajar. Eu irei com eles e provavelmente para o Lago Kennedy. Talvez eu possa continuar de lá, talvez eu seja forçado a voltar aqui. Eu não posso dizer mais nada com certeza .... Eu tenho tudo do Kingawa que eu precisava. O Sr. Mutch, que permanecerá sozinho na estação aqui, é uma boa pessoa útil. Originalmente ele era um servo na casa do Sr. Nobre .... Ele nunca foi para a escola, mas adquiriu um pouco de conhecimento por si mesmo, muito mais do que um homem que vem de uma escola pública alemã. ... Ele imediatamente prometeu me ajudar em todos os sentidos e no inverno vai me levar com seus trenós e cachorros para o mar, onde um esquimó que ele conhece vive que vai me levar ainda mais longe. comprei peles agora e tudo o que preciso agora é um saco de dormir. Então você vê que eu sou muito bem cuidado em todos os sentidos. Eu realmente gosto do sabor da carne de focas e gaivotas, então eu não preciso ter medo de doenças». . . .

Em 25 de setembro, Boas partiu com o capitão Abernathy na Catherine para visitar um depósito de petróleo na ilha de Warham. Foi planejado como uma viagem curta, mas o tempo ficou ruim e o brigue foi forçado a se abrigar em Naujateling ou Blacklead Island, na costa sul. Somente em 4 de outubro Boas foi capaz de retornar a Kikkerton, onde ele fez várias viagens curtas. Com Wilhelm, Signa, Ututjak (ou 'Yankee', sobrinho de Signa), e Nachajashi, ele viajou: “Não foi ruim assim que superei uma certa resistência'. Depois de retornar ao fiorde entrada, a festa do barco virou para o norte.] ...

11 de outubro, ao norte do fiorde de Pangnirtung ...

«Ontem foi um dia agitado para nós. Quando parei de escrever, havia trabalho a fazer e tentei marcar uma pesquisa de parte da costa no verso de meu diário. Nós remamos para o norte ao longo da costa e eu pretendia, se possível, ir tão longe quanto eu larhor americano e terminar a pesquisa costeira de Kikkerton para Kingawa. Ao meio-dia paramos para descansar em um terraço coberto de plantas e enquanto o jantar estava sendo refeito, subi e encontrei três covas velhas e bem preservadas. Eu queria muito para pegar os crânios cobertos de musgo e líquen, mas não me atrevi em nada. 'O papel do esquimó, a quem eu teria ofendido muito. Então tive que remar sem dizer nada sobre minha descoberta e por volta de 5 : 30 No meio do caminho, chegamos em segurança aos nossos aposentos noturnos, era uma pequena e rochosa saliência de lund que se estendia além das longas ilhas estendidas. Eu tinha dormido em um desses antes em Augpalugtualung, a caminho de Kingawa. Ao ver as nossas coisas, de repente vimos uma vela vindo em nossa direção. Logo meu povo reconheceu o esquimó. Um deles, Yankee, reconheceu o irmão e desceu rapidamente para ajudá-los a descarregar. Você não pode ter ideia da carga de tal coisa. Barcos esquimós, barcos baleeiros de nove metros de comprimento, com homens, mulheres e crianças. Na frente e nas traseiras, estavam amontoados de peles obtidas durante a caçada do verão, no meio dos cães, que de vez em quando introduziam a música berrando, e flutuando para trás, o caiaque, o barco de couro do esquimó. Eles rapidamente colocaram os tepiks. Havia duas famílias. Eles então começaram a cozinhar. Logo chegou uma segunda que tinha viajado com eles e agora nós tínhamos nos tornado um todo nesta pequena faixa de terra, que antes disso tinha sido desabitada, as famílias esquimós e eu com duas tendas! Primeiro visitei os nativos e os troquei com tabaco, o que eles aceitaram com grande prazer porque o seu se esgotava durante a caça do verão. Ao mesmo tempo, comprei duas peles para a nossa roupa de inverno. Agora sou realmente livre de uma preocupação deles trouxe uma pedra do Lago Kennedy que eu também comprei. Essas pessoas tinham passado o verão inteiro no Lake Kennedy, onde caçavam caribu. Se eu não tivesse sido fechado na antiga Germânia por tanto tempo, eu poderia estar lá há muito tempo! Bem, eu deveria estar satisfeito porque durante o outono eu pesquisei a maior parte da costa desse som. Mais tarde, os esquimós vieram me visitar e se acomodaram em minha tenda, que nunca tinha visto tantos convidados. Eu entretive? Com  meia dose de tabaco e um copo de rum. Eu tive convidados até as 10 horas, homens e mulheres»

[Temendo que, a menos que ele acompanhasse os inuits de volta a Kikkerton, os caçadores pudessem vender as peles prometidas para a estação, Boas interrompeu sua viagem ao norte. Depois de assegurar suas peles, ele novamente saiu da estação com Signa para o fiorde Salmon ao sul.

O tempo estava ruim, e a maior parte do tempo, quando não estavam protegidos do nevoeiro, da neve e do vento, era gasto no levantamento das margens, mas Boas relatou em seu campo

Em 17 de outubro,

«a Signa me mostrou jogos Eskimo e eu observei atentamente para registrar e aprender tudo. 'Poucos dias depois de seu retorno a Kikkerton em 22 de outubro, o gelo começou a se formar no Sound, e Boas ficou confinado a Kikkerton até o início de dezembro, quando se tornou forte o bastante para carregar um trenó, montou uma tenda no gelo onde podia medir as marés, mapeou a ilha e seus arredores e, 'muito ajudado pelo sr. Mutch», perseguiu estudo dos Inuit, focalizando seu conhecimento geográfico dge. 'Todas as noites eu passei com os nativos que me contaram sobre a configuração da terra, sobre suas viagens, etc. Eles relataram as velhas histórias entregues a eles por seus ancestrais, cantaram as canções antigas depois das velhas e monótonas melodias, e eu vi eles jogando os velhos jogos, com os quais encurtam as longas e escuras noites de inverno» (Boas 1884a: 253).]

5 de novembro, Kikkerton ...

«Os esquimós amáveis  vêm e vão continuamente. Quase todo o Kikkerton está desenhando mapas para mim, para que eu possa encontrar as pistas para novos problemas. Já obtive muito, mas você não tem ideia de como é difícil arrastá-lo para fora das pessoas. Eu realmente pretendia colocar minha tenda lá embaixo hoje, mas o tempo está tão ruim que eu desisti até melhorar. É quente (-4 ° C), mas é tempestuoso e nevando. Se você soubesse o quão confortável estou em minha casa! Eu me pergunto se você leu minhas cartas a essa altura. Pobre Marie, você deve estudar todos os meus arranhões de frango. Minha caligrafia pobre me faz um verdadeiro criminoso e nada pode ser feito sobre isso». . . .

18 de novembro, Kikkerton ...

«(Tidal) observações e as conversas com os esquimós levam muito tempo. Eu estou ... ocupado em questionar os nativos que estão me dando informações sobre todas as partes de sua terra natal ... Esta manhã eu me sentei em uma minúscula e pequena snowhut no leito de morte de um pobre menino esquimó. Os esquimós estão tão confiantes que a doutora, como eles me chamam, pode ajudá-los quando estão doentes, que eu sempre vou até eles quando me ligam. E eu sempre me sinto tão infeliz quando estou com essas pessoas pobres e não consigo fazê-las. Lá estava a mãe e eu naquela pequena cabana fria, o menino jazia entre nós, envolto em cobertores. A mãe, com olhar assustado, muitas vezes me disse se 'o pikanini estava mais rosado', e eu só vi os membros pequenos se tornarem mais frios e mais frios e como ele engasgava cada vez mais com dificuldade para respirar. E tudo estaria acabado. Você não sabe com que frequência meu coração fica pesado, porque eu não consigo ajudar. Este já é o segundo leito de morte em que eu estou. Tenho outro paciente, uma mulher com pneumonia. ela está bem melhor, embora por três ou quatro dias eu esperasse que ela morresse. Os pobres mun e sua esposa estavam doentes ao mesmo tempo, e mesmo que o outro Eskimo lhes fornecesse carne, teria ido mal com eles se eu não lhes trouxesse comida e algo para beber. Digo a mim mesmo que não é minha culpa que a criança tenha morrido, mas sinto que é uma censura que não pude evitar. E talvez seja por isso que estou me voltando para a minha Marie hoje para encontrar consolo em sua vida!» ...

25 de novembro, Kikkerton

«Receio que você me censure quando eu 'oml' voltar porque eu escrevo tão raramente, minha Marie Mas eu realmente não posso evitar.Eu atraindo todos esses dias eu estava tão cansado quando eu voltei para casa que eu não quis me mover e noites meus bons amigos vieram me dizer algo ou me desejar. não tive que escrever o que eles disseram '.... Marie, realmente é uma vida difícil aqui entre os esquimós. Freqüentemente perco a voz de um amigo, mas você me ajuda a suportar tudo isso e eu vou virar para você quando eu for embora. Diariamente, agora vejo a pequena bandeira que você fez para mim, ao som do vento. Wilhelm ou Signa carregam-no e alguns outros para onde eu faço minhas observações e sempre penso em você quando o vejo! 2 de dezembro, Kikkerton ... Fui interrompido porque uma mulher chegou que está fazendo meias de pele para mim e quer ser paga. Em seguida, outro carregando seu filho mais novo em seu capuz e levando o outro. Um deles, um menino chamado Ko 'ketsitii, é meu bom amigo. Assim que ele me chama, Doctora, Doctora, hop, hop !, Doctora', o grande médico, esse é o meu nome aqui, e eu ocasionalmente deixo ele andar de joelhos. Ele fala e me fala muito, mas infelizmente eu não entendo uma palavra, ou apenas muito pouca coisa, já que a língua é muito difícil de ler. Eu sou muito amigo da maioria das crianças enquanto brinco com elas frequentemente. Geralmente cantamos juntos e tocamos, onde sempre tenho a intenção secreta de começar seus jogos. Eu queria que você pudesse me ver entre os esquimós. Não é tão ruim quanto você imagina. Eu estou tão confortavelmente quente em minhas roupas de pele quanto gostaria de estar. Eu dei uma caminhada de duas horas hoje apenas por prazer e com o vento. 'CJ frio Eu estava tão quente quanto em casa. Eu serei hilário quando eu puder lhe mostrar fotografias de todos os lugares onde estive! Eu sobre Kikkerton, a fim de levá-los e à noite eu tenho conversas importantes com o Esquimó sobre costumes, músicas, religião, etc. O Sr. Mutch é muito prestativo como intérprete e me dá uma grande quantidade de informações sobre todas as coisas possíveis. Agora eles estão todos ocupados fazendo roupas de caribu e espero que eles terminem esta semana. Então eu posso pensar novamente em viajar e espero ir primeiro para o norte. No próximo mês, pretendo estabelecer um depósito de provisões, etc., para o Estreito de Davis e depois para o Lago Kennedy».

4 de dezembro, Kikkerton. . .

«É estranho como alguém se sente por mudanças de frio. Em casa ontem eu teria congelado de forma miserável e aqui parecia um lindo dia na primavera. Uma viagem com um trenó de cachorro é muito divertida. Imagine um pequeno trenó de mão como se usa em casa para caminhões, só que mais leves, na frente há doze cães puxando uma corda na qual estão presas suas rédeas Signa, Wilhelm e eu, cada uma envolta em nossas peles, sentadas no trenó baixo. Ele deve gritar para sempre e chamá-los a fim de mantê-los funcionando e então eles correm e pulam desordenadamente, ocasionalmente mordem um ao outro, e em meia hora ou menos, as rédeas estão em tal Confusão que devemos parar Espero que eu possa sair daqui daqui a uma semana, para começar a minha jornada para o norte ... Jimmy Mutch, meu anfitrião, ... é gentil em todos os sentidos e me ajuda com seu melhor conhecimento do esquimó linguagem sempre que pode, de modo que sou muito obrigado a ele por acrescentar ao meu conhecimento a esse respeito. Ele até me empresta seu gs para viagens. Em suma, tenho que ser grato a ele em todos os sentidos. Ele é um homem muito piedoso, que não permite que nenhum trabalho seja feito na casa aos domingos. Eu não permito que isso me impeça de meu próprio trabalho, seja ele qual for, exceto por desistir de qualquer trabalho barulhento, como carpintaria ou consertos, etc. Em casa, eu acreditava que teria muito tempo livre no inverno, mas Eu estava enganado, pois dificilmente tenho um minuto para mim mesmo. [Ficou claro desde cedo em suas conversas com os esquimós que algumas das Boas 'informações básicas sobre suas viagens e conhecimento geográfico estavam erradas. Ele tinha pensado em relatos na Europa que os Cumberland Sound Inuit frequentemente viajavam para e ao longo da costa oeste de Na ilha de Baffin, ele descobriu, no entanto, que 'não havia um homem que soubesse alguma coisa sobre o país', apenas um nativo, e ele nasceu em Pond Inlet, até ouvira falar da lombada de Fury e Hecla Strait (Boas 1884: Boas determinou, no entanto, ir para o oeste assim que a viagem fosse possível: primeiro para o Lago Kennedy (Lago Nettilling) e depois para o Canal Foxe e a costa oeste.A chegada de dois esquimós da parte norte do Golfo. anunciou o início da viagem de trenó.) 9 de dezembro, Kikkerton Hoje tivemos visitantes pela primeira vez, Padloaping e Shorty, dois esquimós de Tikeraxdjuax, que chegaram ontem às 10 da noite em trenós com suas esposas e um filho cada. , a Há duas crianças muito doentes com doença semelhante à difteria, e ambas morreram. Um pertence a Ssegdloaping e o outro a Bob. Isso causará uma perturbação desagradável na produção do meu terno de caribu, pois as mulheres não vão trabalhar por três dias. No final deste tempo, que não está definido definitivamente, eles têm que perguntar às mulheres de luto se há alguma objeção a elas trabalharem. Padloaping e Shorty vieram de manhã para me permitir questioná-los sobre Nettilling. Eu recebi informações valiosas deles. Padloaping viu perto de Tudron faixas de Adlen [um povo fabuloso com algumas características de animais; cf. Boas 1888: 637]. Eles foram quebrados nas pontas. Ele acha que ele andou com pele de urso. Em 10 de dezembro, Kikkerton Padloaping e Shorty terminaram os mapas de Ncttilling. Eles queriam voltar esta noite, não tendo conseguido o que queriam, a saber, emprestar cães com os quais poderiam tirar suas peles de Kangia (final de Tininixdjuax). Os cães em Kikkerton não são muito numerosos porque a doença foi muito má no outono passado. Existem muito poucos rases agora. Eu preparo tudo para a minha partida. Por volta das 11 da noite, tudo é pronto. Meus chinelos de pássaros serão acabados, embora eu tenha medo de que eles não trabalhem neles, mas é apenas pele de foca e de caribu que eles estão proibidos de fazer em roupas novas. Eles são, no entanto, autorizados a consertar qualquer coisa e fazer coisas novas de aves ou bens europeus. Nem todos sabem exatamente essas regras; em caso de dúvida, eles geralmente se voltam para Nukhikarlin Eisik ou Kanterodoaping. No outono, uma doença, aparentemente trazida da Groenlândia pelos primeiros que passaram o inverno no som e agora era endêmica, atingiu todos os assentamentos, matando cerca de metade dos cães no rio em dezembro».

Foi precisamente do assentamento de Padloaping e Shorty no Nettilling Fjord que Boas esperava que 111 cães seguros o levassem ao grande lago do interior. Nestas circunstâncias, lw só podia fazer um levantamento da parte norte do Sound, pegando emprestado alguns cães de Mutch para seu trenó leve.

Em 11 de dezembro,

Boas, Wilhelm e Signa partiram para Anamitung. Niuxtung

«Querida Marie! Estou agora a dois dias de distância de Kikkerton, no mesmo lugar onde estive há muito tempo em um barco e onde conheci os esquimós que estavam voltando de Nettilling. Que grandes diferenças existem entre agora e então»

«Embora esteja frio 35 ° C, não senti frio enquanto andava. Minha roupa de caribu estava quase quente demais. Quase saí sozinha com Signa, porque a roupa de Wilhelm não estava pronta, mas o Sr. Mutch tirou com pena de mim e me emprestou suas coisas. Espero que eles nos mandem as coisas que faltam na semana que vem ... Você sabe que por um tempo eu acreditei que não tinha coração, porque não levava as coisas tão a sério quanto os outros. Eu sei melhor agora. Você, minha Marie, me ensinou que ainda me sinto bem. Quão feliz estaremos! Mas estou vagando da minha excursão a Augpalugtung. (Você me escreveu uma vez que eu não deveria usar a lógica em minhas cartas - você faz isso neste caso). Eu acredito que alguém pode ser realmente feliz apenas como um membro da humanidade como um todo, se alguém trabalha com todos os energia Ogether com as massas para seus objetivos. Acho que, se alguém sempre se sentisse assim, seria muito mais fácil suportar dificuldades e ficaria mais agradecido por cada alegria. Mas agora boa noite! Eu só quero dizer mais uma vez que eu sempre, sempre, te amo imensamente, que eu só desejo o momento que me leve de volta para você e com saudade eu imagino o tempo em que nada nos separará. E agora durma bem, querido. Sonhe com seu Franz».

13 de dezembro, perto de Niuxtung ...

«Wilhelm e eu partiremos cedo e iremos mais ao norte para fazer gravações da costa. Em breve chegaremos aos buracos de água que são mantidos abertos pelas correntes das marés dos fiordes e nos impedirão de prosseguir. A neblina nos atrapalha consideravelmente, mas nos aproximamos mais de seis quilômetros ao norte. Quando voltamos, Signa está ocupada cortando comida para os cães, isto é, primeiro para ver carne de focas congeladas e depois cortá-la com um machado ... ltu está voltando para Kikkerton, então eu lhe darei uma carta para levar a Mutch. Quero pedir-lhe para enviar uma lâmpada, etc .... Veja, minha Marie, estou escrevendo meu diário e para você nas mesmas páginas. É a única maneira que tenho de deixar você também tirar uma foto da minha vida diária. O iglu é tão frio que não posso escrever mais do que o absolutamente necessário para você aprender o que eu realmente faço. Então aceite estas notas como palavras realmente direcionadas para você. Agora que estamos no iglu há quatro horas, está quente o suficiente para escrever. Ainda não atingiu o ponto de descongelamento, mas ainda me sinto bastante confortável. Sentimentos de conforto e desconforto são realmente bastante relativos. Em casa, seria terrivelmente lamentável por alguém em circunstâncias como a nossa. Mas nós somos alegres e de bom ânimo. Em breve será o Natal. Espero que, a essa altura, esteja em Anarnitung, um assentamento aqui, e de lá vá de trenó até Kikkerton. E agora boa noite, minha querida, a mais amada».

14 de dezembro, Sednirun

«De manhã, ltu e Tom voltam para Kikkerton com todos os cachorros, exceto dois pertencentes a Jimmy. Ao sair, encontramos muitas dificuldades em descer do gelo [a estreita franja de gelo formada ao longo da costa pela maré vazante e spray congelante.) A corda rasga e eu caio de joelhos na água. Mas eu não me molhei em (- 38 ° C). Primeiro seguimos as pistas que o trenó da ltu fez ontem e depois de Kaivun até Sednirun. Signa construiu o iglu em quatro horas e meia. Está finalmente terminado. O puxão foi muito difícil, pois temos uma carga pesada e a neve é O pior é que tudo está molhado de suor e depois congelado na manhã seguinte ... 15 de dezembro, perto do porto americano Parecia surpreendentemente quente esta manhã. Começara a nevar. Isso dificulta minhas observações consideravelmente, mas consegui Chegando à entrada do porto americano, quase não conseguimos ver 100 passos à frente .... De acordo com a Signa, a neve é  mole durante todo o ano ... Amanhã queremos começar a operar com Operdnivikdjuax, mas teremos que deixar alguns nossas coisas aqui, pois são muito pesadas para encobrir a neve macia. A neve está nos atrapalhando muito ... Então embora o plano para tal viagem pareça muito simples, sua execução é muito difícil. Eu me sinto bastante confortável hoje, no entanto, já que é relativamente morno e nós não congelamos no iglu. Não sei se Willelm 'alcançará nosso objetivo amanhã, mas espero que sim, porque estou realmente com pressa ... No ritmo em que estamos viajando, vamos com toda a probabilidade gastar ao mantimentos para o Natal».

Dezembro 16, ao norte de Pangnirtung

«Minha amada querida, estou escrevendo sozinho no final de um dia difícil Quando acordamos às seis da manhã, parecia tão escuro e ameaçador que primeiro pensei que não seriamos capazes de sair. nove polegadas] de neve caíram durante a noite e [foi] muito suave. Como resultado, poderíamos prosseguir apenas com muito grande esforço e estaríamos completamente exaustos quando chegássemos aqui ao meio-dia. Não estamos a 5 km de nossa última iglu e ainda não em American Harbor. Eu esperava estar aqui muito mais cedo ... Deixei uma grande parte de meus pertences no último llu.Nós mal conseguimos carregar o que temos agora connosco, só dormindo e algo para comer. Esta manhã, enquanto ainda estávamos no iglu, Wilhelm e eu inventamos uma lâmpada, que é quase a nossa grande é necessidade. Para faze-la usamos uma velha lata de manteiga e cortamos três buracos na tampa. Nós também fizemos um pote de uma velha lata. Agora temos lâmpadas incandescentes e podemos preparar rapidamente o líquido. E o nosso iglu também é mais quente. Signa foi muito desanimado por causa do trabalho hoje, e é realmente muito desgastante. Vou ficar aqui amanhã e Nurvcy .... Fazer Você sabe como eu passo o tempo nessas noites longas? Eu tenho um 1 ano de Kant comigo, que estou estudando, para que eu não seja tão completamente ignorante quando eu voltar. A vida aqui realmente torna um estúpido e estúpido (somente Às vezes, porém, quando eu volto para Kikkerton, vou ficar afiado novamente. Eu tenho que corar quando me lembro que durante a nossa refeição hoje à noite eu pensei em como a madeira seria um pudim com molho de ameixa e fome, fome real, tem sobre uma pessoa. Talvez o livro de Kant seja um bom antídoto! O contraste é quase inacreditável quando eu me lembro de um ano atrás eu estava na sociedade e observava todas as regras do bom gosto, e a solidão esta cabana de neve com Wilhelm e um esquimó comendo um pedaço de carne de focinho congelada, que tinha primeiro ser cortado com um machado e comer meu café com avidez. Não é uma contradição tão grande quanto se pode pensar?»

18 de dezembro, ao norte de Pangnirtung ...

«O vagar aqui é muito. Ontem, Wilhelm e eu fomos até o porto americano. Foi muito difícil por causa da neve macia e do gelo costeiro acumulado. Signa tinha ido a Nouth procurar por focas nos buracos, mas não viu muitas e não conseguiu nenhuma. Eu vi um pato que se perdeu. Eu realmente queria ir ao nosso antigo iglu II um dia para conseguir algumas coisas, mas eu me virei porque meu rosto poderia facilmente ficar congelado a (- 40 °)  e um vento sul e não era absolutamente necessário ter as coisas. Em vez disso, Wilhelm e eu subimos uma colina atrás do iglu, fizemos algumas medições da altura do sol (eram apenas quarenta)»

 

 Bibliografia

Fim.

Fabietti, U. (1979). Antropologia. Un percorso. Bologna: Zanichelli.

Kardiner, A., & Preble, E. (1964). Lo studio dell’uomo. Milano: Bompiani.

Boas, F. U. (1896). The Limitations of the Comparative Method of Anthropology. Science, 4(103), 901–908.

Boas, F. U. (1970). The Social Organization and the Secret Societies of the Kwakyutl Indians. New York: Johnson Reprint Corporation.

Boas, F. U. (1901). The Mind of Primitive Man. The Journal of American Folklore, 14(52), 1–11.

Boas, F. U. (1942). El arte primitivo. Ciudad del Mexico: Fondo de Cultura Economica.

Boas, F. U. (1932). Anthropology and Modern Life. New York: Norton.

Boas, F. U. (1938). General Anthropology. Boston: Heat and Company.

Boas, F. U. (1940). Race, Language and Culture. New York: MacMillan.

Boas, F. U. (1905). Race and Progress. Science, 74, 1–8.

Stocking, J. G. W. (2004). A formação da antropologia americana 1883-1911. Rio de Janeiro: Contraponto.

Boas, F. U. (1994). Franz Boas among the Inuit of Baffin Island, 1883-1884: Journals and Letters. Toronto: University of Toronto Press.

Stocking, G. W. . (1963). Observers Observed. Madison: Wisconsin Press.

 

Quarta Lição: 25 de Outubro - Robertson Smith

 

 

William Robertson Smith (1846-1894)

Na segunda metade do século XIX, o debate sobre as origens das instituições religiosas e do monoteísmo foi acompanhado por aquele, dirigido por Tylor, sobre a origem das crenças religiosas. A questão da origem da religião não como uma crença, mas como uma instituição foi resolutamente abordada por William Robertson Smith (1846-1894). Professor escocês de hebraico e mais tarde de árabe nas universidades de Aberdeen e Cambridge, Smith foi um dos fundadores dos estudos semíticos modernos, um 'orientalista'. Ao contrário de quase todos os seus colegas da época - antropólogo incluído - Smith fez um reconhecimento de campo, visitando países como Egito e Palestina em busca de elementos da vida local que ajudassem a confirmar suas hipóteses e estimular sua reflexão teórica.

A perspectiva antropológica de Smith originou-se no clima intelectual da burguesia 'liberal' e no pensamento evolucionista. De acordo com essas idéias, Smith, embora ele próprio um ministro da Igreja Livre da Escócia, se posicionou a favor da 'crítica histórica da Bíblia'. Essa atitude o levou à expulsão da Universidade de Aberdeen, onde era professor de hebraico, apesar de sua reputação de grande erudito bíblico e poliglota. Assim, em 1878, mudou-se para Cambridge, onde foi nomeado professor de árabe, cargo que ocupou até sua morte.

O estudo da sociedade e da religião

A partir de 1878, Smith começou a conceber a ideia de um estudo comparativo das instituições religiosas socializadas dos povos semitas: judeus, árabes, pré-muçulmanos, fenícios, etc.  Retomando os temas centrais da teoria da evolução, incluindo o estudo das sobrevivências como meio indicativo do conhecimento do desenvolvimento cultural e, sobretudo, da perspectiva comparativa, Smith pretendeu elaborar, com base em materiais relativos à área das civilizações semíticas, uma teoria geral das relações entre sociedade e religião.

Nas Conferências sobre a religião dos semitas de 1889, Smith expôs suas ideias sobre a natureza de ‘solidariedade’ do fenómeno religioso. A originalidade de Smith reside no facto de que, embora aceitando os pressupostos da antropologia evolucionista, ele partiu de premissas diametralmente opostas às de muitos de seus contemporâneos. Enquanto este último identificou a fase auroral da religião em uma atitude reflexiva do indivíduo 'primitivo' (pense na explicação da origem da crença em espíritos e animismo de acordo com Tylor), Smith preferiu focar na dimensão social e colectiva da religião, e em particular na actividade ritual.

À teoria da religião primitiva concebida como resultado de um esforço de compreensão da realidade feito pelo intelecto primitivo, Smith de fato se opôs à ideia de que o dado primário de qualquer experiência religiosa são os ritos e símbolos a ela relacionados. Esses ritos e símbolos são compartilhados pelos membros de uma determinada sociedade que, nascidos em comunidade, os encontram já presentes e ativos. A dimensão coletiva e pública do fenómeno religioso, que Smith colocava antes do individual, reflexivo e sistemático, manifestava-se nos atos de devoção que envolviam toda a sociedade, ou seja, nos ritos comunitários.

Por meio do estudo do material bíblico, revelando a existência de uma religião fortemente comunal, Smith veio a apoiar a resistência de uma homologia fundamental entre a actividade religiosa e ritual, de um lado, e a identidade política e social, do outro. Afirmando que, na sociedade arcaica, 'a religião de um homem é um elemento integrante suas relações políticas' (1889: 36), Smith enfatizou que obedecer ou não a rituais públicos era um sinal do estado das relações entre os indivíduos e a comunidade. Isso revelou a natureza 'social' da religião e a sua função como um elemento coeso da sociedade.

A centralidade do rito e sua função social

Smith procurou fortalecer essas hipóteses estudando o significado da instituição do sacrifício entre os povos semitas. O sacrifício feito em favor da divindade sacrificial não era para agradá-la. O sacrifício era antes um ritual de comunhão entre a sociedade e uma divindade que representava simbolicamente a unidade da sociedade em si. Essa ideia da divindade como a 'divindade tutelar' do grupo já havia sido avançada pelo historiador antiquário francês Nouma D. Fustel de Coulanges (1830-1889). Em La cité antique de 1864, um estudo comparativo sobre a origem das instituições político-religiosas de Atenas e da Roma arcaica, Coulanges argumentou que a sociedade foi inicialmente fundada em bases teocráticas.

A descendência comum e a co-territorialidade, embora elementos fundamentais na constituição da comunidade política (a cidade), eram de fato secundárias ao culto comum das divindades tutelares. Os mesmos laços parentais, o primeiro vínculo 'político' entre os seres humanos, permitiam garantir a continuidade do culto doméstico e, por conseguinte, estavam subordinados a este.

A religião apareceu assim como um factor regulador das relações sociais. Por meio da adesão a rituais públicos, levou os indivíduos a se conformarem aos padrões colectivos de comportamento. Ali a religião também representou um elemento coesivo, pois, ao reunir periodicamente os indivíduos para fins rituais, fortalecia nos participantes o sentimento de pertença a um único corpo social. Desse modo, a religião deixou de aparecer como produto de uma atitude especulativa, nem como fruto de uma simples 'necessidade espiritual' do indivíduo. Em vez disso, acabou por ser algo que existe 'não para a salvação das almas, mas para a preservação e bem-estar da sociedade' (1889: 29).

Israelitas antigos e beduínos contemporâneos

Os materiais usados por Smith para apoiar sua teoria das relações orgânicas entre religião e sociedade vieram tanto do estudo da Bíblia quanto do estudo dos clássicos árabes. A estes ele acrescentou as observações feitas pessoalmente entre os beduínos do Egito e da Palestina. O interesse de Smith pelos beduínos contemporâneos é explicado por seu próprio projecto comparativo. Ele acreditava que a vida dos nômades árabes de seu tempo era em muitos aspectos semelhante à do povo dos patriarcas bíblicos, e que muitas de suas instituições eram sobreviventes das do antigo povo de Israel. Esta era uma ideia muito difundida entre os orientalistas da época e certamente devedora da perspectiva evolucionista segundo a qual nos povos 'primitivos' ou 'bárbaros' contemporâneos era possível ler tantos exemplos dos estágios de desenvolvimento pelos quais a humanidade passou nos estágios anteriores do é história.

Influenciado pelas teorias então atuais sobre a evolução das formas de descendência, Smith afirmou, em Kinship and Marriage in Early Arabia de 1885, a presença, entre os árabes pré-islâmicos, de um sistema matrilinear que, com o advento do Islã seria substituído por um sistema patrilinear. À luz das evidências históricas e etnográficas, essa teoria parece hoje imprecisa. Embora o livro de Smith contivesse uma teoria desatualizada do desenvolvimento das instituições sociais, este trabalho foi o prelúdio para o surgimento de novos interesses científicos e novos problemas teóricos. Com efeito, representou não só a primeira obra de carácter 'antropológico' sobre a sociedade e cultura dos árabes do deserto, mas constituiu também a premissa fundamental para o desenvolvimento, nas décadas seguintes, daquele sector de investigação identificável com o estudo das chamadas 'sociedades' segmentárias. Na verdade, Smith apontou como as genealogias tribais dos árabes, em vez de representar uma sucessão temporalmente ordenada de gerações reais, eram o resultado de manipulações capazes de justificar o estado actual da sociedade (Dresch 1988). Smith também tem o mérito de ter reconhecido a resistência de formas de organização política carentes de instituições centralizadas e baseadas no equilíbrio de grupos opostos ('segmentos') de descendência. Este tema, juntamente com o da relação entre ritual e coesão social, continua a ser a contribuição mais importante dada por Smith à reflexão antropológica.

Da ciência das formas à biologia da arte

Um reflexo do interesse pelos 'primitivos', que se desenvolveu na Europa no século XIX, foi a organização de museus e a montagem de mostras nas quais eram expostos os produtos da cultura material destes povos: armas, ferramentas, objetos rituais e instrumentos musicais. Já há algum tempo, existem lugares na Europa onde esses objetos são guardados. Misturados a fósseis, conchas e animais empalhados, esses achados de épocas remotas da história humana, da antiguidade clássica ou, precisamente, das 'sociedades selvagens' da época, foram, no entanto, exibidos de forma amplamente assistemática, sem critérios precisos que ligados uns aos outros em um nível histórico e conceitual. No entanto, o surgimento de uma ideia de evolução no campo cultural teve que dar um ponto de inflexão nessa forma de apresentação de tais objetos. Nesse ínterim, entretanto, desde as primeiras décadas do século XIX, o desenvolvimento da geologia e da arqueologia contribuíra para um aumento extraordinário nas coleções de objetos atribuíveis ao trabalho de seres humanos. Em meados do século XIX, o general Augustus Pitt-Rivers na Inglaterra teve a ideia de criar museus que levassem os produtos das artes e da tecnologia dos pólos 'primitivos' ao conhecimento do público e do grande público. Por iniciativa de Pitt-Rivers, o Museu da Universidade de Oxford, que ainda hoje leva seu nome, teria surgido no final do Rio Otto, enquanto seu exemplo também foi seguido em outros países europeus. Na Itália, em 1969, Paolo Mantegazza fundou o Museu de Antropologia e Etnografia J% i? Fifenze; que ainda é amplamente baseado nos critérios adotados por Pitt-Rivers sf para suas exposições. A originalidade do modelo Pitt-Rivers consistia no fato de que, ao contrário do que acontecia até então, os objetos eram exibidos com base em critérios de classificação tipológica que deveriam ilustrar a evolução de um objeto, de uma ferramenta, de um arma, um ornamento, etc., de suas formas mais primitivas até suas formas atuais (Fabietti, 2011, pag. 20).

Na verdade, na classificação de seu material, Pitt-Rivers dividiu os objetos em grupos (1874). Cada grupo incluía objetos de forma ou função semelhante e dos mais diversos lugares da Terra. Assim, quando aproximados ou justapostos um ao outro, esses objetos formavam séries que, das mais simples às mais complexas, ilustravam, nas intenções de Pitt-Rivers, a evolução do próprio objeto. Pitt-Rivers estava convencido de que os objetos, em seu desenvolvimento histórico, seguiram sequências evolutivas para que fosse possível, a partir das formas mais complexas e evoluídas, voltar às mais simples e primitivas. É exemplar, a este respeito, a evolução de uma série de armas ofensivas e defensivas (bumerangue, pique, maça, lança, escudo) a partir do bastão simples, considerada a forma original a partir da qual todas as outras teriam se desenvolvido. Pitt-Rivers acreditava que o ser humano, uma vez adquirido uma determinada ideia, a aplicava, por assim dizer, 'automaticamente' aos seus produtos, sem estar ciente das etapas anteriores pelas quais aquele objeto havia passado. Em suma, os humanos nem sempre precisavam 'começar do zero', mas podiam contar com o que mais tarde seria chamado de continuidade e cumulatividade culturais. Os povos mais avançados traziam dentro de si as idéias que seus predecessores haviam elaborado no passado e das quais se podiam encontrar vestígios na produção material dos povos que, em vez disso, permaneceram no estágio primitivo.

Esta iniciativa da Pitt-Rivers foi, do ponto de vista da ciência da época, uma forma privilegiada de colocar as culturas 'em exibição', pois foi o progresso material que constituiu o índice primário da etapa evolutiva alcançada pelos vários povos do planeta.

PITT RIVERS E O MÉTODO “CONCRETO”

Para colocar a conquista de Malinowski no contexto, no entanto, é necessário olhar mais de perto para a evolução do 'estudo intensivo'. Se a prática etnográfica real dos iniciados na Escola de Cambridge é apenas indiretamente acessível, podemos dizer com alguma certeza o que se pretendia “estudo intensivo”, porque o homem que mais fez para defini-la publicou, às vésperas de Malinowski partida para o campo, várias declarações bastante explícitas do que tal trabalho envolvia. Esse homem não era Haddon, é claro, mas Rivers. Vindo da psicologia experimental para a etnologia - uma das áreas mais metodologicamente explícitas das ciências humanas - Rivers trouxe consigo um alto grau de autoconsciência sobre os problemas do método; mas também possuía uma imaginação explicativa desinibida (Mauss disse “intrépida”) (1923) e era perfeitamente capaz de perseguir uma hipótese preferida muito além dos limites aos quais um método rigoroso poderia levá-lo. Conforme manifestado nas teorias rebuscadas da migração de sua História da Sociedade Melanésia (1914a), e em sua subsequente associação com o hiperdifusionismo de William Perry 'e Grafton Elliot Smith, a última tendência comprometeu seriamente sua reputação histórica (Langham 1981 : 118-99). Mas durante a década anterior à sua morte em 1922, ele foi o antropólogo britânico mais influente. Haddon o descreveu em 1914 como “o maior investigador de campo da sociologia primitiva que já existiu” e seu “método concreto” forneceu para Malinowski, como para muitos outros, o exemplo de metodologia etnográfica sólida.

As contribuições metodológicas de Rivers tendem na memória disciplinar a ser subsumidas dentro de uma concepção bastante estreita do 'método genealógico' que ele desenvolveu em Torres Straits, como se tudo o que ele forneceu fosse uma conveniência (e alguns diriam agora questionável [Schneider 1968: 13-14 ]) meios para coletar dados de parentesco. Para Rivers, entretanto, o estudo do parentesco era uma vantagem derivada e de forma alguma marcava os limites da utilidade das genealogias. Embora ele não tenha sido o primeiro etnógrafo a coletá-los, o interesse de Rivers parece ter se originado de seu trabalho psicológico, ao invés de quaisquer precursores etnográficos. Seu modelo foi aparentemente a pesquisa sobre a hereditariedade humana realizada pelo psicólogo / estatístico / eugenista polimático Sir Francis Galton, que, como antropometrista, foi também uma das principais figuras da antropologia britânica (Pearson 1924: 334-425). Antes de partir para o Estreito de Torres, Rivers havia consultado Galton (FGP: WHR / FG 1/4/97), e seu objetivo original em coletar genealogias era praticamente o mesmo que motivou anteriormente as Inquéritos de Galton sobre a Faculdade Humana (1883 ): “Para descobrir se aqueles que estavam intimamente relacionados se assemelhavam em suas reações aos vários testes psicológicos e fisiológicos” (WHR 1908: 65). Ao perceber, no entanto, que as memórias genealógicas dos ilhéus datavam de três ou mesmo cinco gerações, Rivers 'com o estímulo do encorajamento do Dr. Haddon' começou a coletar os dados para sua potencial utilidade sociológica também (1900: 74 -75).

Usando apenas algumas categorias básicas de inglês ('pai', 'mãe', 'filho ',' marido ',' esposa '), Rivers tentou em inglês pidgin, às vezes esclarecido (ou ainda mais complicado) por um intérprete nativo, para obter de cada informante informa os nomes pessoais e as ligações matrimoniais de seus pais, irmãos, filhos e avós: “que nome esposa lhe pertence?”, “que apelido ele tem?”; certificando-se de que os termos foram usados ​​em seu sentido inglês 'real' ou ‘adaptado’ (ou seja, biológico) e não suscitaram algum parente classificatório ou adotivo - 'o pai adoptivo?’, 'a mãe adoptiva?’ . No contexto de uma sofisticação posterior quanto às ambiguidades do parentesco social e biológico e o caráter problemático de todas essas elicitações etnográficas, a imagem da etnografia em processo de Rivers que nos foi dada por Haddon provavelmente suscitará um sorriso. Quem sabe exatamente que significado “adequado” veiculado na semântica do inglês pidgin aplicado às categorias de parentesco mabuaig? (Howard 1981). Para Rivers, no entanto, o método parecia autocorretivo contra o erro ou mesmo engano deliberado, porque o mesmo conjunto de relações poderia ser eliciado em ocasiões separadas (e mesmo por observadores diferentes) de informantes diferentes nas mesmas (ou sobrepostas) genealogias (1899 ) Assim, mesmo depois de Rivers ter retornado à Inglaterra, o 'chefe' de Mabuaig, ansioso para redigir seu próprio registro 'para uso e orientação de seus descendentes ”, criou outra versão (gravada e enviada pelo comerciante local) que, exceto por“ pequenas discrepâncias ”, informações confirmadas anteriormente coletadas por Rivers (1904: 126). No mínimo, parece ter havido algum acordo entre os informantes sobre o que 'apropriado' significava.

Rivers, entretanto, não sentiu necessidade de tanto benefício da dúvida. Apesar do reconhecimento ocasional das dificuldades da tradução 'exata', ele conseguiu se convencer de que estava lidando com 'corpos de fato ... tão incapazes de serem influenciados por preconceitos, conscientes ou inconscientes, como qualquer assunto que pode ser imaginado' (1914a, 1: 3-4). Além disso, eles forneceram a base para uma abordagem “científica” para a reconstrução da história das formas sociais humanas. Embora, em princípio, o método genealógico exigisse a exclusão de categorias de parentesco nativas, o que tendia a obscurecer as relações biológicas 'reais', a atenção de Rivers estava inevitavelmente focada no aspecto sistemático dos termos nativos que ele estava excluindo. Assim, quando se tratou de resumir as várias genealogias de nomes pessoais para todos os habitantes das ilhas Mabuaig, ele usou termos de parentesco nativos para traçar 'a genealogia de uma família ideal' que ilustrou um sistema de parentesco 'do tipo conhecido como classificatório' (1904: 129). neste contexto, ele foi rapidamente levado à 'redescoberta' (Fortes 1969: 3) dos Sistemas de Consanguinidade de Lewis H. Morgan (1871; cf. WHR 1907) - se tal termo for apropriado para suposições que tinham sido a moeda comum de Etnografia australiana da época de Fison e Howitt. Rivers comprometeu-se com a ideia de que a estrutura social elementar de qualquer grupo seria sistematicamente revelada em sua terminologia de parentesco. Enquanto escritores posteriores enfatizaram a utilidade de modelos paradigmáticos de tais sistemas para fins comparativos (Fortes 1969: 24), o próprio Rivers ficou mais impressionado por ter encontrado uma área do comportamento humano onde “o princípio do determinismo se aplica com rigor e definição iguais ao de qualquer uma das ciências exatas '- uma vez que “todos os detalhes” dos sistemas de relacionamento podiam ser rastreados até alguma “condição social anterior decorrente da regulamentação do casamento e das relações sexuais” (1914b: 95). Mesmo depois de ter abandonado seu 'ponto de vista evolucionário bruto' inicial pela 'análise etnológica [histórica] da cultura' (1911: 131-32), ele continuou a sentir que seus métodos forneciam a base para reconstruções confiáveis das principais sequências históricas do desenvolvimento social humano (1914a).

Nossa preocupação aqui, entretanto, é menos com como a “invenção” de Rivers do método genealógico levou a um conjunto de preocupações teóricas que, subsequentemente desistoricizadas por Radclifife-Brown, seriam centrais para a antropologia social britânica posterior (GS 1971). É antes, na medida em que pode ser mantido separado, com sua contribuição um tanto paradoxal para o desenvolvimento do método etnográfico. Por um lado, a elaboração de Rivers do método genealógico ofereceu uma abordagem fortemente positivista, uma espécie de 'solução metodológica rápida', pela qual observadores treinados cientificamente, 'sem nenhum conhecimento linguagem e com intérpretes muito inferiores ', poderia' em tempo relativamente curto 'coletar informações que permaneceram ocultas dos residentes europeus de longa data mais observadores, até o ponto de revelar a estrutura básica da sociedade indígena (1910: 10) . O modelo aqui é Rivers no convés do Cruzeiro do Sul interrogando um informante por meio de um intérprete, durante uma das breves paradas de seu circuito de missão. Mas havia outros aspectos de sua experiência etnográfica que o levaram a um 'estudo intensivo' de longo prazo mais sofisticado, que poderia permitir ao observador científico alcançar algo análogo ao conhecimento mais empático, extensamente detalhado e amplamente penetrante que havia caracterizado anteriormente os melhores etnógrafos missionários.

Em seus momentos positivistas mais confiantes, Rivers tendeu a ver o método genealógico (generalizado como o “concreto”) como a solução para quase todos os problemas etnográficos. Ele forneceu uma estrutura na qual todos os membros de um grupo local poderiam ser localizados, e à qual poderia ser anexada uma ampla gama de informações etnográficas sobre 'a condição social de cada pessoa incluída nos pedigrees' - dados sobre residência, totens e clã adesão, bem como diversas informações comportamentais e biográficas (1910: 2). Além de sua utilidade na coleta de dados sociológicos, no entanto, poderia ser usado no estudo das migrações, da magia e da religião, da demografia, da antropologia física e mesmo da linguística. Mais importante, permitiu ao observador 'estudar problemas abstratos, nos quais as idéias do selvagem são vagas, por meio de fatos concretos, dos quais ele é um mestre' (1900: 82). Tornou até possível «formular leis que regulam a vida das pessoas que eles provavelmente nunca formularam, certamente não com a clareza e a precisão que têm para a mente treinada por uma civilização mais complexa» (1910: 9). O cientista observador não apenas poderia delinear as leis sociais reais de um grupo específico, mas também detectar até que ponto suas leis sociais ostensivas «estavam sendo realmente seguidas na prática» (1910: 6). O poder do método genealógico foi atestado por observadores independentes - 'homens no local' como G. Orde Brown, que depois de dizer a Rivers que os dados de parentesco eram impossíveis de obter entre um determinado grupo queniano, foi instado a tentar o método de Rivers: 'e agora descubro que ele estava certo e que eu estava completamente errado, apesar dos meus três anos de experiência com essas pessoas na época ”(ACHP: GOB / ACH 2/8/13). Também ficou evidente no trabalho de campo de Rivers, que embora na maioria das vezes francamente da variedade da pesquisa, de fato forneceu uma grande quantidade de dados em um tempo relativamente curto.

Sem dúvida, a segurança despreocupada de Rivers quanto ao poder do pensamento positivista foi apoiada tanto por suposições etnocêntricas tradicionais sobre a evolução da capacidade de pensamento abstrato quanto pelos estudos psicológicos experimentais que ele realizou nesses termos (Langham 1981: 56-64). Mas é importante notar que em alguns pontos ele interpretou a concretude selvagem como devida a uma deficiência lexical em vez de cognitiva, e sugeriu que “certamente não se pode esperar que aprecie adequadamente os termos abstratos da linguagem de seu visitante” (1910: 9). Nesses momentos, sente-se a atração da experiência real de Rivers em direção a um estilo etnográfico um tanto diferente, que, embora em última análise, talvez não menos científico, implica uma maior sensibilidade às dificuldades de tradução cultural e a necessidade de estudo intensivo de longo prazo para superá-las.

Rivers tentou um trabalho de campo que beirou esse 'estudo intensivo'. Em 1902, ele foi para as colinas Nilgiri, no sul da Índia, para estudar os Todas, cuja poliandria há muito os tornara um importante caso etnográfico para o paradigma evolucionário (Rooksby, 1971). Embora suas dificuldades em ajustar os dados de Tbda dentro de uma estrutura evolutiva pareçam ter sido um fator em sua 'conversão' subsequente ao difusionismo, Rivers apresentou seus resultados meramente como uma 'demonstração do método antropológico' na 'coleta' e 'registro' de dados etnográficos material (1906: v). Ele planejou uma estadia de apenas seis meses e trabalhou com intérpretes, mas sua breve introdução metodológica sugere que ele pretendia que seu trabalho fosse um 'estudo intensivo'. Seus muitos comentários interpolados sobre como ele obteve informações específicas indicam que a maioria de seus relatos da cerimônia de Toda eram narrativas obtidas por meio de informantes em sessões matinais 'públicas' e 'privadas' à tarde. Mas ele fez questão de obter tantos relatos corroborantes de forma independente quanto pudesse e pagar apenas pelo tempo de um informante, em vez de por itens específicos de informação (7-17). Ele também começou a observar por si mesmo e, em pelo menos um caso, foi autorizado a testemunhar uma das cerimônias mais sagradas do Tbda. Em poucos dias, porém, a esposa do homem que planejou isso morreu. Este e outros infortúnios semelhantes que aconteceram a dois outros 'guias' Toda foram atribuídos por seus adivinhos 'à ira dos deuses porque seus segredos foram revelados ao estranho'. As fontes de informação de Rivers se esgotaram e ele saiu da Índia 'sabendo que havia assuntos dos quais [ele] mal havia tocado na periferia' e suspeitando que havia 'deficiências muito mais numerosas' das quais ele nem sabia (2-3; cf. Langham 1981: 134-35, onde a crescente “empatia etnográfica” de Rivers está ligada à experiência de sua expedição de 1908).

Alfred C. Haddon (1855-1940)

Alguns anos antes da morte de Pitt-Rivers, Alfred C. Haddon (1855-1940), um biólogo inglês que se convertera à antropologia da qual foi um grande promotor, procurou definir melhor o projeto de uma 'ciência das formas'. De fato, Haddon começou a se interessar pelas transformações de estilos decorativos gravados em cerâmicas, tecidos e outros suportes de vários tipos, como madeira e pedra. Ele estava convencido de que essas transformações eram o resultado de um processo pelo qual uma série de fatores cognitivos e ambientais influenciaram a evolução das formas dos objetos e estilos artísticos, estabelecendo, assim como acontece com as formas vivas, o nascimento, o desenvolvimento e o fim. A 'biologia da arte', como ele mesmo chamou esta investigação, tinha que necessariamente a partir dos povos 'primitivos', no meio dos quais essas formas e estilos devem ter surgido pela primeira vez.

Haddon pretendia tratar a arte não do ponto de vista estético (que ele considerava subjetivo), mas do ponto de vista científico, no sentido de que para ele a biologia da arte era uma forma de aplicar aos produtos humanos aquela perspectiva das ciências naturais que estudam distribuição e variações entre as formas vivas e, portanto, é capaz de determinar sua evolução. A biologia da arte era, portanto, a 'história de vida dos desenhos', como afirma o subtítulo de seu famoso livro de 1895, Evolution in Art . Embora a biologia da arte de Haddon possa ser vista como uma tentativa mais rigorosa do que aquelas feitas por outros evolucionistas para delinear o desenvolvimento de formas culturais e como uma forma de incutir uma perspectiva naturalística e metodologia no estudo de produtos culturais, não teve muito sucesso. Só depois de muito tempo alguns estudiosos reavaliaram suas intuições e vislumbraram possíveis desenvolvimentos (Severi 2004). Na época de Haddon, as coisas estavam mudando: o evolucionismo estava agora em seu fim e outras perspectivas estavam surgindo entre os estudiosos das 'sociedades primitivas', tanto na Europa quanto nos Estados Unidos (Fabietti, 2011, pag. 21-22).

Haddon foi pela primeira vez ao Estreito de Torres em 1888 na esperança de que uma importante expedição científica pudesse ajudá-lo a escapar do que parecia, após sete anos, o beco sem saída de uma cátedra provincial. Seus objetivos científicos eram arquetipicamente darwinianos; estudar a fauna, a estrutura e o modo de formação dos recifes de coral. Tendo sido informado 'que já se sabia muito' sobre os nativos da região, ele 'havia previamente decidido não estudá-los' (1901: vii) - embora tenha levado junto as Perguntas sobre os costumes, crenças e línguas de Savages James Frazer imprimiu em particular em 1887 para facilitar a pesquisa sobre O Ramo de Ouro. Haddon mal havia chegado, no entanto, quando começou a coletar “curiosidades” que aparentemente esperava vender a museus para recuperar algumas das despesas da viagem. Na ilha de Mabuaig, onde se estabeleceu para uma estadia mais longa, ele se juntou aos nativos já missionários em volta da fogueira para as orações noturnas e, enquanto conversavam noite adentro em pidgin, ele perguntou-lhes como era a vida antes os homens brancos vieram. Enquanto os homens mais velhos “tagarelavam”, Haddon se convenceu de que, se negligenciasse essa oportunidade etnográfica, era provável que ela se perdesse para sempre (Quiggin 1942: 81-86). Embora ele tenha continuado sua pesquisa zoológica, ele preencheu todos os momentos livres com etnografia, e antes de sua partida seu interesse principal havia mudado claramente para a antropologia. Como um biólogo preocupado com a distribuição geográfica das formas em uma área contínua (à maneira de Darwin nas Galápagos), sua preocupação etnológica mais sistemática era com a cultura material - a procedência e distribuição daqueles “curiosidades” que ele vinha coletando. Mas ele também registrou uma quantidade considerável de dados etnográficos gerais, que em seu retorno foram publicados na revista do Instituto de Antropologia, organizados em termos das categorias de “aquele livrinho inestimável”, Notes and Queries on Anthropology (1890: 297- 300).

No contexto da reorientação etnográfica já evidenciada na British Association, não é surpreendente que os dados de Haddon fossem de interesse para os principais antropólogos (Quiggin 1942: 90-95). Como um homem acadêmico com experiência de campo em etnografia, ele era uma raridade na antropologia britânica e logo alcançou suas primeiras fileiras pelo mesmo processo pelo qual se treinou nas orientações de pesquisa que então a dominavam: antropologia física e folclore. Assumindo o cargo de investigador principal na Irlanda para o Estudo Etnográfico das Ilhas Britânicas da Associação Britânica, que antropólogos e folcloristas co-patrocinados na década de 1890, ele logo ganhou uma nomeação como professor de antropologia física em Cambridge, cargo que por alguns anos ocupou juntamente com sua cátedra em Dublin. Embora tenha se valido de seu material de Torres Straits para um volume sobre Evolução na Arte (1895a), ele sentiu que seus dados eram inadequados para uma monografia etnográfica que havia esboçado no início da década de 1890. Para completá-los e expandir sua posição em Cambridge como uma “Escola de Antropologia”, ele começou a planejar uma segunda expedição estritamente antropológica.

Para Haddon, 'antropologia' ainda tinha o significado abrangente que ganhou na tradição evolucionária anglo-americana do século XIX, e que também poderia ser esperado para um naturalista de campo, a quem o comportamento, gritos e características físicas de os animais faziam parte de uma única síndrome observacional. Ciente, no entanto, de que algumas áreas da investigação antropológica desenvolveram uma elaboração técnica além das limitações de sua própria competência e ansioso para apresentar os métodos da psicologia experimental para 'avaliar com precisão as capacidades mentais e sensoriais dos povos primitivos', Haddon considerou modelar as grandes expedições de exploração marítima multidisciplinares do século XIX - com base em uma das quais Moseley fez sua reputação e conquistou sua posição em Oxford (Moseley 1879). Ele, portanto, buscou 'a cooperação de uma equipe de colegas, cada um dos quais com alguma qualificação especial', para que eles pudessem dividir o trabalho de investigação antropológica, um fazendo medição física, outro teste psicológico, outra análise linguística, outra sociologia, e assim por diante (1901: viii).

Por acaso, Haddon acabou com três psicólogos experimentais. Sua primeira escolha foi seu colega de Cambridge, W H. R. Rivers, que, após um treinamento inicial em medicina, ficou sob a influência do neurologista Hughlings Jackson e passou a estudar psicologia experimental na Alemanha. Após seu retorno, Rivers foi convidado por Foster para dar uma palestra sobre a fisiologia dos órgãos dos sentidos em Cambridge, e lá introduziu o primeiro curso de instrução em psicologia experimental na Grã-Bretanha (Langham 1981; Slobodin 1978). Relutante a princípio em deixar a Inglaterra, Rivers propôs a seu aluno Charles Myers que tomasse seu lugar; outro aluno, William Mc-Dougall, ofereceu-se como voluntário antes de Rivers decidir, afinal, ir junto. Por sugestão de Codrington, Haddon vinha trabalhando desde 1890 em seus dados linguísticos com Sydney Ray, um especialista em línguas melanésias que ganhava a vida como professor em Londres, mas que agora conseguia obter uma licença sem vencimento. O próprio aluno de Haddon, Anthony Wilkin - ainda estudante de graduação - foi recrutado para lidar com a fotografia e auxiliar na antropologia física. Charles Seligman, um médico amigo de Myers e McDougall que também ofereceu seus serviços, completou o grupo como especialista em medicina nativa.

Expedição ao Estreito de Torres (Haddon)

Com o apoio de dinheiro da Universidade, de várias sociedades científicas e dos governos britânico e de Queensland, os membros da expedição chegaram em um navio comercial ao Estreito de Torres no final de abril de 1898. Todos eles começaram a trabalhar na Ilha Murray (Mer), no leste estreito, onde os três psicólogos continuaram testando os nativos até o final de agosto, quando Myers e McDougall foram como guarda avançada para pesquisas em Sarawak, para a qual a expedição havia sido convidada por Rajah Brooke (por instigação do oficial distrital Charles Hose). Três semanas depois de sua chegada a Mer, entretanto, Haddon, Ray, Wilkin e Seligman partiram para uma viagem de dois meses a Port Moresby e vários distritos próximos na costa de Papua. Deixando Seligman para trabalhar a noroeste ao longo do continente, os outros três se juntaram aos rios em Mer no final de julho. No início de setembro, os quatro navegaram de Mer para encontrar Seligman no distrito de Kiwai, onde deixaram Ray para trabalhar com linguística, enquanto os outros foram para o sudoeste para trabalhar um mês em Mabuaig. No final de outubro, Rivers e Wilkin partiram para a Inglaterra, enquanto Haddon, Ray e Seligman fizeram uma excursão de três semanas para Saibai e várias ilhas menores, e depois de volta para a Península do Cabo York, de onde partiram no final de novembro por quatro meses. trabalho em Sarawak e Bornéu.

Detalhar o itinerário é o ponto, uma vez que foi com base nessa pesquisa um tanto apressada, realizada inteiramente em inglês pidgin, que deveriam ser produzidos, eventualmente, seis grandes volumes de dados etnográficos - para não mencionar o relato narrativo popular de Haddon (1901 ), materiais incorporados em livros posteriores de Seligman em The Melanesians of British New Guinea (1910) e por Hose e McDougall em The Pagan Tribes of Borneo (1912), e vários artigos de jornal. Claro, Haddon também se baseou em materiais que coletou em 1888, mas muito de sua etnografia foi francamente realizada em segunda mão: ele selecionou extensivamente de relatos de missionários e viagens, e confiou fortemente em material fornecido por comerciantes, missionários e funcionários do governo , seja no local, seja em sua extensa etnografia subsequente por correio (ACHP: passim). Seu intermediário etnográfico mais importante, um professor do governo chamado John Bruce, que viveu por uma década em Mer, foi a fonte reconhecida de talvez metade das informações registradas no volume sobre sociologia e religião Mer. Isso não é para minimizar o trabalho de Haddon e seus colegas, que certamente produziram uma grande quantidade de dados em episódios etnográficos relativamente curtos (incluindo, pode-se notar, algumas das primeiras cinematografias etnográficas [Brigard 1975]), e que em muitos pontos evidenciaram uma considerável consideração e sensibilidade sobre os problemas do método etnográfico. É simplesmente para enfatizar que ainda havia um distanciamento do Estreito de Torres para o trabalho de campo no modo antropológico clássico. (Stocking, 1963, pag . 75-77)

Bibliografia

Fabietti, U. (2011). Storia dell’Antropologia. Bologna: Zanichelli.

Haddon, Alfred C. 1895. Evolution in Art. London: Walter Scott.

Fabietti, U. (2011). Storia dell’Antropologia. Bologna: Zanichelli.

Stocking, G. W. . (1963). Observers Observed. Madison: Wisconsin Press.

 

Quarta Lição: 8 de Novembro - Griaule

Marcel Griaule

Etnologia francesa

 

Na França, a etnologia tornou-se uma disciplina universitária em meados da década de 1920, graças aos esforços conjuntos do antropólogo Paul Rivet, do antropólogo Lucien Lévy-Bruhl e do sociólogo Marcel Mauss . Naquela época, os fundadores da etnologia raramente se aventuravam no campo, simplesmente reuniam informações das histórias de viajantes ou missionários para alimentar suas próprias reflexões antropológicas. No entanto, Marcel Mauss ensinava aos seus alunos a promover pesquisas etnográficas, mas sem nunca se submeter aos métodos que ensinava. Marcel Griaule, francês, nasceu em Aisy-sur-Armançon, no Yonne, em 1898. Foi aluno do linguista M. Cohen e Marcel Mauss, um dos fundadores da etnologia e antropologia como disciplinas de ciências sociais; A influência deste último o encorajou a sair no campo. Um aluno de Mauss, que passou à etnologia depois de ter estudado matemática.

 

Vida

 

Marcel Griaule  iniciou sua carreira como aviador nos anos imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. (Em 1946, como titular da primeira cadeira em etnologia na Sorbonne, ele lecionava na sua uniforme de oficial da força aérea) Um promotor enérgico do trabalho de campo, ele o afirmou como a continuação - por meios científicos - de uma grande tradição de aventura e exploração (1948). Em 1928, encorajado por Marcel Mauss e pelo linguista Marcel Cohen, Griaule passou um ano na Etiópia. Ele retornou, desejoso por uma nova expedição, e seus planos deram frutos dois anos depois na muito divulgada Missão Dakar-Djibuti, que durante vinte e um meses atravessou a África do Atlântico até o Mar Vermelho ao longo da margem inferior do Saara. Em grande parte uma empresa de coleta de objectos da cultura material para os museus, a missão também empreendeu longas estadas etnográficas no Sudão francês (Mali), onde Griaule primeiro fez contato com os Dogon do Senegal, e na Etiópia (região de Gondar), onde a expedição passou cinco meses. Os nove membros da missão (alguns indo e vindo) incluíam também Andre Schaeffner, Deborah Lifchitz e Michel Leiris, cada um dos quais deu contribuições etnográficas significativas, graças em grande parte ao sentido de publicidade de Georges Henri Riviere - um amador do jazz. Contratado por Paul Rivet para reorganizar o Museu Etnográfico Trocadero - a Missão Dakar-Djibouti foi patrocinada pela alta sociedade de Paris. A Câmara dos Deputados votou uma lei especial, e Griaule e Riviere habilmente exploraram a moda do pós-guerra para coisas africanas na solicitação de fundos e pessoal. A empresa participou também de uma certa bravata tecnológica que lembra as famosas expedições do período, financiadas pela Citroën, La Croisiere Jaune. e La Croisiere Noire - corridas para atravessar os continentes inteiros de automóvel. Griaule, um dos primeiros entusiastas do avião, ficaria fascinado ao longo de sua carreira com ajudas tecnológicas à etnografia: fotografia convencional e aérea, aparelhos de gravação de som e até mesmo o projeto de um laboratório de pesquisa-barco para uso no Níger. O 'saque' efectuado pela missão, no termo de Riviere e Rivet (1933: 5), incluiu entre suas muitas fotos, gravações e documentos, 3.500 objetos destinados ao Museu Trocadero, que em breve se tornaria o Musée de l’Homme apenas ganhando aceitação na Inglaterra e na América, com o financiamento do Instituto Internacional Africano por Rockefeller, que os estudos intensivos de campo eram em si suficientes para justificar as principais subvenções, assim a coleta era uma necessidade financeira e a missão trazia de volta quaisquer objetos autênticos. A paixão do pós-guerra pela arte negra fomentou o culto do artefato exótico, e as figuras esculpidas e máscaras da África Ocidental e Equatorial satisfizeram perfeitamente um fetichismo europeu alimentado pela estética cubista e surrealista (Clifford 1981; Jamin 1982 De 1935 a 1939, Griaule organizou expedições coletivas para o Sudão francês, Camarões e Tchad, onde o acervo dos museus teve um papel menor. Fez visitas anuais à África Ocidental, concentrando-se cada vez mais nos Dogon, onde ele elaborou um 'método' etnográfico distinto. Para Griaule, a coleção de artefatos era parte da documentação intensiva de uma área de cultura unificada, uma região centrada na curva do rio Níger, e particularmente nos Bambara e Dogon - com quem ele passou cerca de três anos em dez expedições (Lettens 1971: 504). As descrições de Griaule eram cartográficas, arqueológicas e etnográficas; Ele estava preocupado com as variações dos traços culturais, a história das migrações e as grandes civilizações da África Ocidental. Mas cada vez mais os seus interesses se concentravam nos padrões culturais. Com o tempo, ele estabeleceu a existência de uma área de cultura ramificada mas coerente que mais tarde reformulou como sendo uma das três principais divisões da África subsaariana: o Sudão Ocidental, a África Bantu e uma zona intermediária entre Camarões e Tchad. Cada região era caracterizada por um estilo tradicional de conhecimento inscrito na língua, habitat, tradição oral, mito, tecnologia e estética. Griaule discerniu os princípios comuns subjacentes aos três campos epistemológicos africanos, e isso permitiu que ele usasse os Dogon e seus vizinhos como exemplos privilegiados do microcosmo e macrocosmo do pensamento, civilização, filosofia e religião 'africanos'. Um movimento a partir das partes para o tudo, para totalidades ainda mais inclusivas, era o modo básico de representação etnográfica de Griaule. Espelhou e encontrou a confirmação nos estilos Dogon de pensamento, com suas correspondentes correspondências simbólicas de microcosmo e macrocosmo, de corpo e cosmos, de detalhes cotidianos e dos padrões do mito. Várias abordagens diferentes estão incluídas no rótulo geral da 'Escola de Griaule'.

O projeto total abrange cinco décadas, caindo aproximadamente em duas fases: antes e depois de Ogotemmeli. Em 1947, numa lendária série de entrevistas, o sábio Dogon, Ogotemmeli, aparentemente agindo sob instruções dos anciãos das tribos, instruiu Griaule na profunda sabedoria do seu povo (Griaule 1948a). A primeira década de pesquisa em Sanga foi exaustivamente documentada com o conhecimento revelado por Ogotemmeli e outros informantes qualificados, a tarefa tornou-se aquela de interpretar. O elaborado conhecimento de Ogotemmeli - reforçado e ampliado por outras fontes - pareceu fornecer uma 'chave' potente para a cultura Dogon (Griaule 1952c: 548). Visto como uma espécie de mitologia vivida, forneceu uma estrutura para compreender o mundo Dogon como um todo integrado. Essa estrutura imanente 'metafísica', como Griaule gostava de definir, oferecia uma interpretação puramente indígena dos complexos fatos sociais totais da vida Dogon. As compilações completas dessa sabedoria, um sistema enormemente detalhado de correspondências simbólicas e narrativas, apareceram claras somente depois de muitas mais pesquisas e cruzamentos, que continuaram após a morte de Griaule em 1956. As obras-primas do segundo período da Escola Griaule são A raposa pálida, de autoria com seu colaborador mais próximo, Germaine Dieterlen (1965), e Ethnologie et langage: A parole chez les Dogan escrito por sua filha, a ilustre etnolinguista Genevieve Calame-Griaule (1965). Nestas obras se ouve, por assim dizer, dois acordes completos de uma sinfonia Dogon: uma explicação mítica do cosmos, uma teoria nativa da linguagem e da expressividade. Mais do que apenas explicações ou teorias nativas, estes excelentes compêndios se apresentam como artes coerentes da vida, paisagens sócio-míticas da fisionomia e da personalidade, redes simbólicas encarnadas em uma infinidade de detalhes cotidianos. O trabalho de Griaule e seus seguidores é uma das conquistas clássicas da etnografia do século XX. Dentro de certas áreas de ênfase, sua profundidade de compreensão e integridade dos detalhes são incomparáveis. Mas dado o seu enfoque bastante incomum, a natureza extrema de algumas das suas alegações e o papel crucial e problemático dos próprios Dogon como agentes ativos no longo processo etnográfico, o trabalho de Griaule tem sido submetido a fortes críticas de vários pontos de vista. Alguns notaram uma certa postura idealista e falta de dinamismo histórico (Balandier 1960; Sarevskaja 1964). Antropólogos sociais britânicos levantaram questões céticas sobre o trabalho de campo de Griaule, sem dúvida a sua confiança vitalícia em tradutores e em alguns informantes privilegiados sintonizados com seus interesses (cujo conhecimento iniciático pode não ser generalizado para o resto da sociedade). Os seguidores de Malinowski ou Evans-Pritchard perderam na obra de Griaule qualquer atenção sustentada à existência cotidiana ou à política como realmente se viveu e, em geral, desconfiam de uma visão perfeitamente ordenada da realidade Dogon (Richards 1967; Douglas 1967; Goody 1967). Relendo a cultura Dogon de perto, outros críticos começaram a aopontar a contradições internas, e a desvendar o equilíbrio da mitologia dogon e a questionar os processos pelos quais se construiu algo de unificado chamado ‘Dogon como um 'sujeito absoluto' e  constituído na interpretação etnográfica (Lettens 1971; Michel-Jones 1978). Dentro da antropologia colonial, Griaule foi repreendido pela sua saudade por um passado africano sobreposto às pressões de um presente modernizador. Os africanos criticaram-no por essencializar padrões culturais tradicionais e por reprimir o papel da invenção individual na elaboração do mito de Dogon (Hountondji 1976). Depois de 1950, o trabalho de Griaule ressoou fortemente com o Movimento de Negritude, particularmente com a evocação de Senghor de uma essência africana. Mas como o tipo de negritude de Senghor rendeu à concepção de Cesaire - uma concepção mais sincrética, e inventiva da identidade cultural - a metafísica africana de Griaule começa a parecer um alter ego a-histórico e idealizado para um humanismo ocidental totalizante. É impossível avaliar aqui muitas das críticas específicas feitas a Griaule, especialmente na ausência de um estudo detalhado dos Dogon. Algumas advertências metodológicas são necessárias, no entanto, ao se aproximar de uma obra tão contestada. O historiador do trabalho de campo é dificultado por evidências limitadas e antecipadas; é sempre difícil, se não impossível, saber o que aconteceu num encontro etnográfico. (Isso é, pelo menos em parte, responsável pelo fato de que a história da antropologia tendeu a ser uma história da teoria, embora a disciplina moderna tenha se definido por referência a seu 'método' distinto.) Geralmente, como no caso de Griaule, deve depender fortemente das próprias narrativas ex post facto do etnógrafo, relatos que servem para confirmar sua autoridade.

 

Viagens e expedições

 

A partir de 1928, ele partiu para a Etiópia, onde reuniu durante um ano um grande número de informações linguísticas e etnográficas. O diretor da expedição Dakar Djibouti foi Marcel Griaule (Ainsy-sur-Armençon, Yonne, 1898 - Paris, 1956), etnólogo francês, foi o titular da primeira catedra de etnologia da Sorbonne. E, a partir dos anos 30, conduziu em África as grandes expedições científicas organizadas pelo Instituto de Etnologia. Ele foi o primeiro organizador e líder da famosa missão Dakar-Djibuti que, de 1931 a 1933, atravessou a África de oeste a leste, do Senegal à Etiópia. Após esta expedição antropológica de vinte e dois meses, Marcel Griaule organiza quase imediatamente as missões Saara-Sudão (1935), Saara-Camarões (1936-1937) e Níger-Lac Iro (1938-1939). Essas quatro expedições etnográficas marcam um duplo ponto de virada na história da antropologia. Ao organizá-los, Griaule não apenas fundou a etnologia francesa como disciplina de campo, mas também fortaleceu-se como africanista, estimulando as vocações e treinando a primeira geração de etnólogos franceses para a África negra. Os pesquisadores que acompanharam Griaule  se tornarão renomados africanistas, especialmente Denise Paulme, Germaine Dieterlen e Jean-Paul Lebeuf. Já nos preparativos para a missão Dakar-Djibuti, Marcel Griaule reuniu e organizou este movimento africanista participando da criação da Sociedade dos Africanistas em 1930, e depois da publicação de sua revista (o Journal da Sociedade dos africanistas).

 

Obras de Griaule

 

Em várias expedições à África entre 1931 e 1946, incluindo a famosa 'Missão Dakar-Djibuti', ele pôde estudar e transcrever a complexa cosmologia do povo Dogon. Esta missão foi descrita por Michel Leiris no seu livro Africa Fantasma . Em 1938, publicou Mascaras Dogon , onde analisou os rituais e os símbolos dos Dogon. De acordo com Griaule, as simbologias, mitos, rituais e sacrifícios dos Dogon são realidades interconectadas em um sistema de pensamento coerente e autônomo que forma uma verdadeira cosmologia. Um dos livros de antropologia mais lidos é O Deus da Água, publicado pela primeira vez em 1948. É um relato da cosmogonia dogon apresentado com o estilo de entrevista feito a um idoso caçador cego Ogotemmeli. Este livro contém o pensamento dogon que para Griaule deve ser colocado na corrente do pensamento filosófico dos antigos.

 

Cosmologia dogon

 

Com este livro, Griaule quer demonstrar como um povo africano pode possuir uma cosmologia organizada que destaca a relação entre o sistema mítico e a vida social. Essa cosmologia é o ponto de partida para entender a vida social, econômica, ritual e sexual dos Dogon. Essa vida em sua vida cotidiana nada mais é do que a refuncionalização feita pelo homem como ator social, do mito entendido como um ponto de referência ideal. Este livro levantou inúmeras questões entre os antropólogos. Seria possível reconstruir a cosmologia dos Dogon entrevistando apenas Ogotemmeli? Quem é Ogotemmeli? Um velho sábio que fala sobre sua maneira de interpretar a vida dogon? A cultura dogon era baseada apenas no mito ou também era melhor levar a história em consideração?

 

'Missão Dakar-Djibuti'

 

Na época do Dakar-Djibuti, ainda havia uma tendência para pesquisas extensas, equipes multidisciplinares e a coleta de dados e repertos etnográficos em vastos territórios (para alimentar museus). A partir desta primeira viagem missão, Griaule trouxe de volta mais de 3.000 objetos, depositados no Museu de Etnografia do Trocadero, além de 6.000 fotografias, 1.600 metros de filmes e 1.500 folhas manuscritas. Mas, desde o início desta expedição, Marcel Griaule também defende o princípio de pesquisas intensivas para estudar em profundidade alguma sociedade africana. Sua escolha se concentrará na sociedade Dogon no Mali (ex-Sudão francês). Durante as seguintes missões, Marcel Griaule e seus colaboradores permanecerão regularmente no país Dogon para continuar por 25 anos um programa de pesquisa excepcional, tanto em seu escopo quanto em duração. Graças ao trabalho duro e à perseverança de Marcel Griaule, os Dogon se tornaram a população mais conhecida e melhor estudada em toda a África.

 

Vida académica

 

Homem do campo, responsável por todas as principais expedições etnográficas realizadas na África francófona, Griaule também contribuiu para a profissionalização da etnologia, dedicando-se muito cedo à educação universitária. No final de 1940, quando missões no exterior foram suspensas por causa da guerra e ocupação, Griaule foi professor no Instituto de Etnologia da Universidade de Paris; e em 1941 ele se tornou o primeiro titular da cadeira de Etnologia na Sorbonne. Aos seus alunos ensinou métodos de observação e registro de fatos etnográficos; o conteúdo de suas palestras será publicado em 1957 sob o título Método de Etnografia. Neste livro, como em todos os artigos anteriores, a Griaule recomenda o trabalho em equipe, o acúmulo de habilidades e o uso dos meios audiovisuais mais avançados para observar e apreender um facto cultural em toda a sua complexidade. Durante suas primeiras expedições, mobilizou uma equipe multidisciplinar de etnólogos, linguistas, musicólogos, arqueólogos, naturalistas e técnicos; e ele pediu a esses especialistas para compartilhar o trabalho e cruzar o espaço para usar simultaneamente, diferentes técnicas de recolha de dados.

 

Antropologia visual

 

Mas além desses métodos experimentais de investigação, a Griaule inovou, especialmente recorrendo sistematicamente à fotografia, cinema e gravação de som. Seu interesse por técnicas visuais, de fato, nunca vacilou uma vez que, em 1955, ele ganhou o Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) um laboratório visual operando para o Níger. Também nessa área,  Griaule é pioneiro e pode até ser considerado a precursor do cinema etnográfico africano. Além disso, os filmes e milhares de clichês sobre o país Dogon são agora um testemunho excepcional, se não único, da evolução de uma sociedade africana desde o início dos anos 1930. Apesar de suas muitas responsabilidades institucionais no ensino e na pesquisa, Griaule é, no entanto, um autor particularmente frutífero. Depois de sua primeira missão na Etiópia, ele publicou suas observações em três livros: O livro das receitas de um dabtara abissinio (1930), Figuras e desenhos abissinios (1933), Jogos e divertimentos abissinios (1935).  Depois do 1931, Marcel Griaule concentrou suas investigações na sociedade Dogon mas, até a guerra, seus temas de pesquisa permanecem extremamente variados. Fiel a seus métodos, ele observa, grava, fotografa e filma tudo o que pode ver e ouvir, com a ambição de entender todos os aspectos dessa sociedade. Seu campo de estudo inclui cultura material, fenômenos religiosos, mitos, adivinhação e jogos infantis. Em 1938, esta primeira fase de pesquisa culminou na sua tese de doutorado e na publicação de dois livros notavelmente bem documentados: os Jogos dos Dogon e especialmente a monumental Máscaras Dogon. Este último livro, republicado muitas vezes, contém seja um corpo de mitos, breves descrições de cerimônias funerárias, um inventário exaustivo de máscaras Dogon, mas também uma análise muito boa das ligações entre mitos, ritos, danças e pinturas ( como parte da sociedade de máscaras). Em artigos publicados em 1940, Griaule completará este estudo propondo análises completamente inovadoras sobre o mecanismo sacrifical e a noção de pessoa entre os Dogon.

 

Deus de água

 

Mas o culmen foi alcançado em 1946, quando Griaule encontra um velho caçador cego, Ogotemmeli, que lhe revela uma cosmogonia duma riqueza insuspeitada. Suas entrevistas são publicadas em 1948 sob o título Deus de água (Conversas com Ogotemmeli). Este livro é escrito num estilo animado, na encruzilhada da literatura, etnologia e a entrevista. Griaule está experimentando um novo estilo de escritura que respeita mais o discurso dos informantes, mas também é mais legível. Através deste clássico da etnologia, reeditado em paperback, Griaule dirige-se a um público amplo para revelar a extensão e a complexidade da mitologia e da religião dogon. É por isso que Deus da água, sem dúvida, ocupa um lugar único na 'literatura' etnológica. Após as revelações de Ogotemmeli, Griaule tenta penetrar ainda mais no 'profundo conhecimento' da sociedade Dogon, direcionando todas as suas pesquisas para a mitologia e o simbolismo. Infelizmente, ele morreu prematuramente em 1956, deixando um trabalho considerável, mas inacabado.

A sua colaboradora Germaine Dieterlen, no entanto, continuará o seu trabalho através da publicação em 1965, o primeiro volume da Raposa pálida, versão síntese monumental acadêmica da cosmogonia Dogon. Marcel Griaule deixa um legado duplo; a pesquisa que ele havia iniciado no país Dogon continuou por várias gerações, notadamente através de Geneviève Calame-Griaule, Germaine Dieterlen e Jean Rouch. Por outro lado, em um nível mais teórico, o trabalho da Griaule está na origem, na França, de uma forte tradição de antropologia religiosa, especialmente entre os africanistas. Esta corrente muito antiga e ainda fértil continua até hoje através do estudo de sistemas de pensamento e das representações simbólicas (redefinição de conceitos individuais, feitiço, sacrifício e totemismo, ou análise de adivinhação e rituais fúnebres). Desenvolvido na época por Griaule, todas estas questões são de fato tomadas e revisadas, a partir dos anos 1960 e 1970, para novos pesquisadores no mesmo movimento antropológico. Institucionalmente e historicamente, os representantes desta corrente estão relacionados, principalmente na École Pratique des Hautes Etudes (quinta secção), no Laboratório de 221 Centre national de la recherche scientifique (CNRS) 'Sistemas de pensar na África negra' e na Sociedade dos Africanistas.

A importância histórica e teórica da obra de Griaule é finalmente medida pela abundância de análises críticas ou exegeses que sua pesquisa gerou. A prestigiada expedição Dakar-Djibuti foi celebrada em um grande número de artigos e relatórios. Em 1933, uma edição especial do Minotauro foi dedicada a ele; e no ano seguinte, esta missão torna-se ainda um evento literário com a publicação do diário de viagem de Michel Leiris, escritor, antropólogo e secretário da expedição (África Fantasma, 1934).

 

Método etnográfico

 

Não se pode falar de uma 'tradição' francesa de trabalho de campo, como se refere (talvez muito facilmente) às escolas britânicas ou americanas. No entanto, se pelo menos em contraste, a etnografia de Griaule parece ser peculiarmente francesa. Podemos sugerir essa qualidade um tanto elusiva evocando brevemente dois precursores influentes. Em Paris, os mais importantes defensores do trabalho de campo durante a década de 1920 foram Marcel Mauss e Maurice Delafosse, que colaboraram com Levy-Bruhl e Rivet a fundar o Istitut d'Ennologie. Aqui, depois de 1925, uma geração de ' 'Etnógrafos africanistas foram formados. Nas primeiras três décadas do século, a África Negra estava entrando em foco, separada do Magreb' oriental '. Em 1931, quando o Journal de la Société des Africanistes foi fundado, tornou-se possível falar de um campo chamado 'Africanismo’ (modelado na mais antiga disciplina sintética do Orientalismo). A moda que focou na arte negra e na black music contribuiu para a formação de um objeto cultural, uma civilização. Les Noirs de l'Afrique e L'Ame noir, de Delafosse, contribuíram para esse desenvolvimento, juntamente com os escritos traduzidos de Frobenius. O trabalho de Griaule desdobrou-se dentro do paradigma africanista, movendo-se associativamente de estudos específicos de populações particulares a generalizações sobre o homem negro, civilização africana e metafísica (Griaule 1951, 1953). No Istitut d'Ethnologie, um fluxo regular de oficiais coloniais estudou o método etnográfico como parte da sua formação na École Coloniale, onde Delafosse era um professor até a sua morte em 1926.

 

 

Marcel Griaule começou sua carreira como aviador imediatamente após a Primeira Guerra Mundial. (Posteriormente, em 1946, como titular da primeira cadeira em etnologia na Sorbonne, ele daria uma palestra em seu uniforme de oficial da força aérea.) Um promotor enérgico do trabalho de campo , ele deu início a uma grande tradição de aventura e exploração (1948c: 119). Em 1928, encorajado por Marcel Mauss e pelo linguista Marcel Cohen, Griaule passou um ano na Etiópia. Ele retornou, ávido por uma nova expedição, e seus planos deram frutos dois anos depois na muito divulgada Missão Dakar-Djibuti, que durante vinte e um meses atravessou a África do Atlântico até o Mar Vermelho ao longo da margem inferior do Saara. Em grande parte uma empresa de colecta de cultura material para os museus, a missão também empreendeu longas estadias etnográficas no Sudão francês (Mali), onde Griaule primeiro fez contacto com os Dogon de Sanga e na Etiópia (região de Gondar), onde a expedição passou cinco meses. Dos nove membros da missão (alguns encontrados no caminho) havia André Schaeffner, Deborah Libchin e Michel Leiris, cada um dos quais faria contribuições etnográficas significativas. Graças em grande parte ao senso de publicidade de Georges-Henri Rivière - um amador de jazz bem relacionado contratado por Paul Rivet para reorganizar o Museu Etnográfico Trocadero - a Missão Dakar-Djibuti foi patrocinada pela alta sociedade parisiense. A Câmara dos Deputados votou uma lei especial, e Griaule e Rivière exploraram habilmente a moda do pós-guerra para as coisas africanas na solicitação de fundos e pessoal. Griaule, um dos primeiros entusiastas do avião, ficou fascinado ao longo de sua carreira com o instrumento tecnológico como auxilio à etnografia: fotografia convencional e aérea, aparelhos de gravação de som e até mesmo o projeto de um barco de pesquisa e laboratório para uso no Níger. A missão, incluiu entre suas muitas fotos, gravações e documentos, o saque de 3.500 objetos destinados ao Museu Trocadero, que em breve se tornaria o Musée de I'Homme ganhando aceitação na Inglaterra e nos Estados Unidos, com o financiamento do Instituto Internacional Africano feito por Rockefeller, demonstrou que os estudos intensivos de campo  e a colheita de objectos prestijosos para o Musée de l’Homme eram em si suficientes para justificar as principais subvenções económicas.

Colecção de artefactos exóticos

Assim, colecionar era uma necessidade financeira, e a missão trouxe de volta quaisquer objetos autênticos que demonstravam paixão do pós-guerra pela arte negra e fomentava o culto pelo artefacto exótico, e as estatuas esculpidas e máscaras da África Ocidental e Equatorial satisfazendo perfeitamente uma mania europeia alimentada pela estética cubista e surrealista. De 1935 a 1939, Griaule organizou expedições em grupo para o Sudão francês, Camarões e Tchad, no qual a colecta de objectos para os museus era organizada em visitas anuais ou semestrais à África Ocidental, delimitadas cada vez mais nos Dogon, durante estas visitas elaborou um “método” etnográfico distinto. Para Griaule, a coleção de artefactos fazia parte da documentação incentrada numa área cultural unificada, uma região incentrada na curva do Níger, e particularmente nos Bambara e Dogon - com quem ele passou cerca de três anos em dez expedições (Lettens 1971 : 504). As descrições de Griaule eram cartográficas e arqueológicas, bem como etnográficas; Ele estava preocupado com as variações nos traços culturais, a história das migrações e a sovraposição de civilizações na África Ocidental. Mas cada vez mais seus interesses se concentraram em padrões culturais sincrónicos. Com o tempo, ele estabeleceu a existência de uma área cultural que considerava três principais divisões da África subsaariana: o Sudão Ocidental, a África Bantu e uma zona intermediária entre Cameroon e o Chade. Cada região foi caracterizada por um estudo científico da tradição e cultura um modo de conhecimento inscrito na língua, habitat, tradição oral, mito, tecnologia e estética. Griaule discerniu princípios comuns sobre os três campos epistemológicos africanos, e isso permitiu que ele usasse os Dogon e seus vizinhos como exemplos privilegiados de homem negro - microcosmos do pensamento, civilização, filosofia e religião “africanos”.

A representação etnográfica feita por Griaule espelhou e encontrou confirmação nos estilos de pensamento Dogon, com suas correspondências simbólicas de microcosmo e macrocosmo, de corpo e cosmos, de detalhes cotidianos e dos padrões do mito. Várias abordagens diferentes estão incluídas no rótulo geral da “Escola Griaule”.

Ogotemmêli

O projeto total abrange cinco décadas, caindo aproximadamente em duas fases: antes e depois do Ogotemmêli. Em 1947, em uma lendária série de entrevistas, o sábio Dogon, Ogotemmêli, aparentemente agindo em instruções tribais impartidas por anciãos, Ogotemmêli instruiu Griaule na profunda sabedoria de seu povo (Griaule 1948a). A primeira década de pesquisa em Sanga foi documentada por escrito; agora com acesso ao conhecimento revelado por Ogotemmêli e outros informantes qualificados, a tarefa tornou-se exe- cutiva. O conhecimento elaborado de Ogotemmêli - reforçado e ampliado por outras fontes - parecia fornecer uma “chave” potente para a cultura Dogon (Griaule 1952c: 548). Visto como uma espécie de mitologia vivida, forneceu uma estrutura para compreender o mundo Dogon como um todo integrado. Essa estrutura imanente - uma “metafísica” como Griaule gostava de chamar - ofereceu uma organização puramente indígena dos complexos factos sociais totais da vida Dogon. As compilações completas dessa sabedoria, um sistema enormemente detalhado de correspondências simbólicas e narrativas, apareceram apenas depois de muito mais pesquisas e cruzamentos, que continuaram após a morte de Griaule em 1956. As obras-primas do segundo período da Escola Griaule são Le Renard pâle , co-autoria com seu colaborador mais próximo, Germaine Dieterlen (1965), e Etimologie et langage: La parole chez les Dogon por sua filha, a distinta etnolinguista Geneviève Calame-Griaule (1965). Nessas obras, ouvimos, por assim dizer, dois acordes completos de uma sinfonia Dogon: uma explicação mítica do cosmos, uma teoria nativa da linguagem e da expressividade. Mais do que apenas explicações nativas ou teorias, estes excelentes compêndios se apresentam como artes coerentes da vida, paisagens sócio-míticas da fisiologia e da personalidade, redes simbólicas encarnadas em uma infinidade de detalhes cotidianos. O trabalho de Griaule e seus seguidores é uma das conquistas clássicas da etnografia do século XX. Dentro de certas áreas de ênfase, sua profundidade de compreensão e integridade dos detalhes são incomparáveis.

Os Dogon

Mas dado o seu enfoque bastante incomum, a natureza extrema de algumas de suas alegações e o papel crucial e problemático dos próprios Dogon como agentes ativos no longo processo etnográfico, o trabalho de Griaule tem sido submetido a fortes críticas de vários pontos de vista. Alguns notaram seu viés idealista e sua falta de dinamismo histórico (Balandier 196). Psicólogos britânicos e sociais levantaram questões céticas sobre o trabalho de campo de Griaule. Os seguidores de Malinowski ou Evans-Pritchard perderam na obra de Griaule qualquer atenção sustentada à existência cotidiana ou à política como realmente se viveu, e em geral são cautelosos com uma visão perfeitamente ordenada da realidade Dogon (Richards, 1967; Douglas, 1967; Goody, 1967). Relendo o corpus Dogon de perto, outros críticos começaram, com base em contradições internas, a desvendar o equilíbrio da mitologia Dogon e questionar os processos pelos quais um 'sujeito absoluto' é constituído na interpretação etnográfica (Lettens 1971; Michel-Jones 1978). Na esteira do colonialismo, Griaule foi repreendido pela sua consistente preferência por um passado africano sobre um presente modernizador. Os africanos criticaram-no por essencializar padrões culturais tradicionais e por reprimir o papel da invenção individual na elaboração do mito dogon (Hountondji 1976). Depois de 1950, o trabalho de Griaule ressoou fortemente com o Movimento da Negritude, particularmente com a evocação de uma essência africana por Senghor. Mas, como a marca de negritude de Senghor rendeu à Césaire - uma concepção mais sincrética, pura inventiva da identidade cultural -, a metafísica africana de Griaule começa a parecer um alter ego a-histórico e idealizado para um humanismo ocidental totalizante. É impossível avaliar aqui muitas das críticas específicas dirigidas a Griaule, especialmente na ausência de um reestudo detalhado dos Dogon. Algumas advertências metodológicas são necessárias, no entanto, quando se trata de uma obra contestada. O historiador do trabalho de campo é dificultado por evidências limitadas; é sempre difícil, se não impossível, saber o que aconteceu num encontro etnográfico. (Isso é pelo menos parcialmente responsável pelo fato de que a história da antropologia tendeu a ser uma história da teoria, mesmo que a disciplina moderna tenha se definido por referência a seu 'método' distinto.) Geralmente, como no caso de Griaule, um deve basear-se fortemente nas próprias narrativas post facto do etnógrafo, relatos que servem para confirmar a sua autoridade. Um pode também basear-se nas suas prescrições metodológicas “Intelectuais”. Mas dizer que essas verdades Dogon são invenções específicas (em vez de partes ou distorções da “cultura Dogon”) é levá-las a sério como construções textuais, evitando tanto a celebração quanto a polêmica. A tradição Griaule oferece uma das poucas alternativas totalmente elaboradas para o modelo anglo-americano de observação participante intensiva. Só por essa razão é importante para a história da etnografia do século XX - particularmente com a recente redescoberta na América da “pesquisa de campo de longo prazo” (Foster 1979). Os escritos de Griaule também são importantes (e aqui devemos separar o homem da sua “escola”) por sua incomum rectidão em retratar a pesquisa como inerentemente agonística, teatral e repleta de poder. Sua obra pertence, evidentemente, ao período colonial, e graças ao tom dramático de Griaule e ao gosto pelo exagero, podemos perceber claramente que certas chaves são os símbolos, os papéis e os sistemas de metáforas que fortaleceram a etnografia durante os anos trinta e quarenta.

MANUAL DE ETNOGRAFIA

Não se pode falar de uma “tradição” francesa de trabalho de campo, como se refere (talvez muito facilmente) a escolas britânicas ou americanas. Há dois precursores influentes, em Paris os mais importantes defensores do trabalho de campo durante a década de 1920 foram Marcel Mauss e Maurice Delafosse - que colaboraram com Lévy-Bruhl e Rivet para fundar o Institut d'Ethnologie. Aqui, depois de 1925, uma geração de etnógrafos “africanistas” foi treinada. Nas primeiras três décadas do século, a África Negra entrou em foco, separada do Magreb “oriental”.  Em 1931, quando o Journal de la Société des Africanistes foi fundado, tornou-se possível falar de um campo chamado “africanismo” (baseado na antiga disciplina sintética do orientalismo). A moda vanguardista de L 'an nègre e black music contribuiu para a formação de um objecto cultural, uma civilização sobre a qual poderiam ser feitos estudos sintéticos. Les Noirs de l'Afrique e L'Ame noir, de Delafosse, contribuíram para este desenvolvimento, juntamente com os escritos traduzidos de Frobenius. O trabalho de Griaule desdobrou-se dentro do paradigma africanista, movendo-se associativamente de estudos específicos de populações particulares para generalizações sobre o homem negro,  a civilização africana e metafísica (Griaule 1951, 1953). No Institut d'Ethnologie, um fluxo regular de oficiais coloniais estudou o método etnográfico como parte da sua formação na École Coloniale, onde Delafosse era um professor popular antes de sua morte em 1926. Como um veterano de serviço prolongado na África Ocidental Delafosse conhecia as línguas e culturas africanas intimamente. Quando sua saúde foi minada pelos rigores constantes das viagens e da pesquisa, ele se retirou para a França, tornando-se o primeiro professor de línguas afro-riquenhas na École des Langues Orientales. Um erudito de grande erudição, ele fez contribuições para a história, etnografia, geografia e linguística africanas. Na Ecole Coloniale, onde os africanos tinham sido considerados como crianças inferiores, ele ensinava a igualdade fundamental (embora não a semelhança) das raças. Diferentes ambientes produzem diferentes civilizações. Se os africanos são técnica e materialmente atrasados, isso é um acidente histórico; sua arte, sua vida moral, suas religiões, todavia, são plenamente desenvolvidas e dignas de estima. Ele instou seus alunos para a etnografia e o domínio das línguas indígenas. Sua autoridade era a experiência concreta, sua persona a do pesquisador de campo - homem do mato, iconoclasta, humano, impaciente com a hierarquia e os artifícios da sociedade educada (Delafosse, 1909; cf. Deschamps, 1975: 97). Para uma geração de jovens oficiais coloniais com inclinação liberal, ele representou uma maneira autêntica e concreta de 'conhecer' a África e comunicar seu fascínio. Após a morte de Delafosse, a principal influência na primeira geração de profissionais de campo na França foi exercida por outro professor carismático, Marcel Mauss. Embora nunca tenha feito trabalho de campo, Mauss consistentemente lamentou o atraso da França nesse domínio (Mauss, 1913). No Instituto de Etnologia, ele ministrou um curso anual (Etnografia Descritiva) especificamente voltado para métodos de trabalho de campo. Mauss era tudo menos um estudioso abstrato e estudioso; qualquer um que olhe para suas “Técnicas do Corpo” (1934) pode ver por si mesmo um poder agudo de observação, um interesse pelo concreto e pelo experiencial (cf. Condominas, 1972). Mauss instou todos os seus alunos para a etnografia; entre 1925 e 1940, o Institut patrocinou mais de cem viagens de campo (Karady, 1981: 176). Diferentemente de Rivers, Malinowski e mais tarde Griaule, cujo ensino refletia suas próprias experiências no campo, ele não propôs um “método” de pesquisa distinto. Mas se ele não tinha experiência íntima, ele não se sentia compelido a racionalizar ou justificar sua própria prática. Versado nas tradições de trabalho de campo de várias nações, seu curso foi um inventário, classificação e crítica de possíveis métodos. Mauss forneceu um senso da complexidade dos “factos sociais totais” (Mauss, 1924: 274), e os diferentes meios pelos quais descrições, registros, relatos textuais e coleções de artefatos poderiam ser constituídos. Seu abrangente Manual d’Etnografia (1947), era uma compilação de notas do curso reunidas por Denise Paulme pouco antes de sua morte, deixa claro que a ideia de uma abordagem privilegiada era bastante estranha por ele. Mauss apoiou fortemente a tendência geral do trabalho de campo académico moderno, exortando “o etnógrafo profissional” a adotar “o método intensivo” (1947: 13).

As máscaras Dogon

O trabalho comparativo sério dependia da conclusão de descrições locais completas. Mas embora as recomendações do Manual reflitam um conhecimento próximo das técnicas americanas e britânicas, não há ênfase na observação participante individual. Mauss incentiva a pesquisa de equipe; Em geral, sua abordagem é documental e não experiencial e hermenêutica. Essa preocupação com o documentário seria refletida na introdução da primeira grande monografia de campo da Griaule: “Este trabalho apresenta documentos relativos às Máscaras dos Dogon, colectadas durante viagens de pesquisa entre as falésias de Ban. . . . ”(Griaule 1938: vii). É difícil imaginar um relato na tradição malinowskiana começando dessa maneira. Embora Griaule considere mais em Mascaras Dogons do que simplesmente exibir documentos coletados, a metáfora revela um estilo empírico particular (cf. Leenhardt, 1932; Clifford, 1982a: 138-141).

 

 

Escola sociológica Francês : Mauss

Para Mauss, que aceitou uma divisão de trabalho mais antiga entre o homem no campo e o teórico em casa, a descrição nunca deveria ser governada por preocupações explicativas (Mauss, 1947: 389). Para fornecer o tipo de informação útil para uma antropologia comparativa, o etnógrafo deve evitar construir explicações implícitas demais nos dados etnográficos no processo da sua constituição. Mauss não deu um status especial à ideia de que um retrato sintético de uma cultura (algo para ele excessivamente terminado) poderia ser produzido através da experiência de pesquisa de um sujeito individual, ou construído em torno da análise de uma instituição típica ou central. Sua noção limitante de “factos sociais totais” levou-o a recomendar a implementação de vários métodos documentais por uma variedade de servidores especializados. Trabalhando em um nível mais elevado de abstração, o sociólogo poderia ‘observar, medir e manter em equilíbrio' (1924: 279) os diferentes estratos de factos 'totais' - tecnológicos, estéticos, geográficos, demográficos, econômicos, jurídicos, lingüísticos, religiosos, históricos e interculturais. Mas a tarefa do etnógrafo, sozinho ou em uma equipe de pesquisa, era reunir o máximo possível de um corpo de textos, artefactos, mapas, fotografias e assim por diante - “documentos” precisamente localizados e cobrindo uma ampla gama de fenômenos culturais. Os pesquisadores de campo devem construir “séries e não panoplias”. Mauss usou termos antigos precisamente: uma panóplia é um complemento completo de armas, uma armadura com todos os seus apetrechos. O termo sugere uma integração funcional das partes implantadas e exibidas em torno de um corpo coerente e eficaz. Mauss não via a sociedade ou a cultura dessa maneira. Deve-se ter o cuidado de reduzir seu conceito de factos sociais totais a uma noção funcionalista da inter-relação de partes. O conceito indescrivível de Mauss, no entanto, articulou um pressuposto fundamental para os etnógrafos do século XX. Se todo “facto” é suscetível de múltiplas codificações, fazendo sentido em diversos contextos e implicando em sua compreensão o conjunto “total” de relações que constitui a sociedade em estudo, então essa suposição pode servir de incentivo para apreender o conjunto, concentrando-se em um dado. Doutro lado, isso é o que os pesquisadores de campo sempre fizeram, construindo totalidades sociais (“culturas” na tradição americana) através de uma concentração de elementos significativos. Surgiram muitas abordagens diferentes: o enfoque nas “instituições” chave (o Kula nas Trobriand de Malinowski, feitiçaria dos Azande de Evans-Pritchard); o avanço para as “performances culturais totalizantes” (iniciação de Spencer e Gillen no Arunta, Naven de Bateson, o jogo dos galos de Geertz); a identificação da estruturas privilegiadas às quais toda a cultura poderia estar relacionada ('método genealógico' de Rivers e 'estrutura social' de Radcliffe-Brown); ou até mesmo a tardia concepção de conhecimento iniciático de Griaule como a chave para uma representação unificada das culturas da África Ocidental. De formas diferentes, a nova geração de pesquisadores de campo acadêmicos estava procurando o que Griaule recomendaria, defendendo a sua prática de trabalho em equipe no campo - um “método rápido e seguro” capaz de captar sinteticamente uma realidade cultural sobredeterminada. (1933: 8). Assim, a crença de Mauss de que a totalidade da sociedade está implícita em suas partes ou estruturas organizadoras pode aparecer como uma espécie de estratégia para uma ampla gama de táticas de trabalho de campo (abordagens à representação social), sem as quais o trabalho de campo profissional de curto prazo seria questionável - particularmente a pesquisa visando retratar culturas inteiras. Como não se pode estudar tudo ao mesmo tempo, deve-se poder destacar partes ou atacar problemas específicos com a confiança de que eles evocam um contexto mais amplo. Mas há outro lado do total dos fatos sociais: a ideia é ambígua e, finalmente, preocupante. Se der o avale a descrições culturais parciais, não oferece orientação sobre qual código, chave ou exemplo luminoso deve ser preferido. Como a visão de infinitas interpretações de Nietzsche, a ideia de Mauss vê a realidade social e o mundo moral como construídos de muitas maneiras possíveis, nenhuma das quais pode ser privilegiada. A etnografia moderna tomou forma em um mundo destruído assombrado pelo niquilismo, e os próprios retratos de Mauss sobre a constituição da ordem coletiva estavam bem conscientes da possibilidade de desordem. O presente é uma alegoria de reconciliação e reciprocidade na esteira da Primeira Guerra Mundial. Como é sabido, a guerra teve um impacto devastador em Mauss; na sequela em 1940 o privaria da vontade de trabalhar e pensar. Com o colapso das narrativas-mestras evolucionistas, a ciência relativista da cultura trabalhou para repensar o mundo como um todo disperso, composto de culturas distintas, funcionais e inter-relacionadas. Ela reconstituiu a integridade social e moral, em especial. Se a etnografia argumentava, com efeito, que as “culturas” o sustentam, o fez em resposta a um sentimento difundido e moderno,  que “as coisas desmoronam”. Para um socialista comprometido como Mauss o estudo da sociedade foi uma recusa do niquilismo; suas construções de totalidade social serviam a fins morais e políticos, além de científicos. Mas ele era muito perspicaz e sábio para adotar qualquer método soberano para a constituição das totalidades. Ele se contentava com uma espécie de ciência - generosa, em vez de, como Nietzsche, sarcástica. Ele apresentou uma geração de etnógrafos com um surpreendente repertório de objetos para estudo e maneiras de unir o mundo: a etnografia era uma imersão de diferentes redes no oceano abundante, cada uma pegando seu próprio tipo de peixe. Educado no trabalho de Cushing, ele sabia que a tarefa de representar uma cultura era potencialmente infinita. “Você diz que passou dois anos e meio com uma etnia”, comentou a Meyer Fortes, “pobre homem, levará vinte anos para descrevê-la” (Fortes, 1973: 284). O Manual de Mauss não era um método , mas uma enorme lista de verificação; assim, não se pode falar de um 'maussiano', como se pode de uma etnografia 'Malinowskiana' ou 'Boasiana'. (Esse fato pode explicar, em parte, por que o trabalho de campo francês nunca assumiu uma identidade distinta e, de facto, foi invisível para antropólogos de outras tradições.) Seus alunos divergiram acentuadamente. Alfred Métraux seguiu uma distinta carreira de observação participante ao estilo americano. Michel Leiris, ao fazer contribuições originais para Dogon e etnografia etíope, nunca parou de questionar os conflitos subjetivos e as restrições políticas do estudo intercultural como tal. Maurice Leenhardt, cuja entrada tardia na Universidade de Paris foi muito encorajada por Mauss, representou um estilo de pesquisa mais antigo cuja autoridade estava enraizada em anos de trabalho missionário e não em treinamento académico. Charles LeCoeur, que participou do seminário de Malinowski na London School of Economics, morou entre os Teda, aprendeu sua língua e formalmente, pelo menos, conduziu trabalho de campo na I Anglais. Dos outros alunos de Mauss - praticamente todos os principais etnógrafos franceses anteriores a 1950 -, Griaule desenvolveu apenas um método sistemático e uma tradição distinta de pesquisa.

VICISSITUDES DOCUMENTÁRIAS

Duas estruturas metafóricas soltas governam a concepção de trabalho de campo de Griaule: um sistema documental (governado por imagens de coleção, observação e em ponderação) e um complexo iniciatório (onde os processos dialógicos de educação e exegese vêm à tona). O próprio Griaule apresentou as duas abordagens como complementares, cada uma exigindo e construindo a outra. Mas pode-se discernir uma mudança do documentário para a iniciatória à medida que sua carreira progrediu e seu envolvimento pessoal com os modos de pensamento e crença dos Dogon se aprofundou. Por uma questão de clareza analítica, os consideramos separadamente. Deve-se entender, no entanto, que ambas são tentativas de dar conta de uma experiência etnográfica complicada e em evolução - uma experiência trafegada por influências, históricas e intersubjectivas, além do controle das metáforas de Griaule. A noção de que a etnografia foi um processo de colecta dominou a Missão Dakar-Djibuti, com sua ênfase museográfica. O objeto etnográfico - seja ele uma ferramenta, uma estátua ou uma máscara - era entendido como uma 'testemunha' pecuniariamente confiável para a verdade de uma sociedade alienígena. A relação maussiana é evidente em um conjunto de “Instruções para Colecionadores” distribuído pela missão. Por causa da necessidade que sempre levou os homens a imprimir os traços da sua atividade na matéria, quase todos os fenómenos da vida coletiva são capazes de expressão em determinados objetos. Uma coleção de objetos sistematicamente reunidos é, portanto, uma rica reunião de evidências admissíveis . Sua coleção cria arquivos mais reveladores e seguros do que os arquivos escritos, pois são objetos autênticos e autônomos que não podem ter sido fabricados para as necessidades do caso (besos de la cause), e que caracterizam tipos de civilizações melhor que qualquer outra coisa. (Mauss 1931: 6-7). Apesar de serem ’Mortos’, os objetos descontextualizados, num Museu, podem ser restaurados à 'vida' por uma 'documentação' circundante (descrições, desenhos, fotos). Os elos que vinculam qualquer objeto ou instituição ao “conjunto de sociedade” podem assim ser reconstituídos e a verdade do todo é cientificamente elucidada de qualquer uma das suas partes. As recorrentes metáforas jurídicas  são reveladoras; se todas as partes de uma cultura podem, em princípio, ser feitas para produzir o todo, o que justifica a seleção particular do etnógrafo de revelar “evidências”? Algumas “testemunhas” devem ser mais confiáveis ​​que outras. Um corolário do valor colocado nos objetos como “autêntico e autônomo”, não “fabricado para as necessidades do caso”, é a suposição de que outras formas de evidência, os “arquivos” compostos com base na observação pessoal, descripção e interpretação, são menos puros, mais infectados com o contingente encontro etnográfico, seu choque de interesses e verdades parciais. Para Griaule, o trabalho de campo foi uma luta perpétua pelo controle (nos sentidos político e científico) desse encontro. Griaule assumiu que os interesses opostos do etnógrafo e do nativo nunca poderiam ser inteiramente harmonizados. As relações por vezes romantizadas pelo termo “relacionamento” eram realmente acordos negociados, resultados de um esforço contínuo e determinação do que poderia e não poderia ser conhecido da sociedade em estudo. O estrangeiro corria sempre o risco de perder a iniciativa, de concordar com um modus vivendi superficial. O que foi sistematicamente escondido em uma cultura não pode ser aprendido simplesmente tornando-se um membro temporário de uma comunidade moral comum. Isso só poderia ser revelado por um tipo de violência: o etnógrafo deve manter a pressão (Griaule 1957: 14).  Griaule pode não ter tido escolha: nas sociedades sudanesas, com seus longos processos de iniciação, era preciso forçar a revelação das tradições ocultas ou estar em cena por décadas. De todos os possíveis caminhos para as verdades ocultas, o menos confiável era o discurso - o que os informantes disseram em resposta a perguntas. Isso se deveu não apenas à mentira consciente e à resistência à indagação; Ele seguiu a partir de suposições dramáticas que foram um leitmotiv de seu trabalho. Para Griaule, a auto-apresentação de todas as informações (juntamente com a do etnógrafo) era uma dramatização, uma apresentação de certas verdades e uma retenção de outras. Ao penetrar nesses disfarces conscientes ou inconscientes, o pesquisador de campo teve que explorar quaisquer vantagens, quaisquer que fossem as fontes de poder, qualquer que fosse o conhecimento que não fosse baseado na interlocução que ele ou ela poderia adquirir (Griaule 1957: 92).

Griauie olhou inicialmente para a observação visual como uma fonte de informação que poderia ser obtida sem depender da colaboração oral incerta, e poderia fornecer a vantagem necessária para provocar, controlar e verificar os discursos confessionais. Acostumado a realmente desprezar as coisas (seu primeiro emprego na Força Aérea foi o de um observador aéreo e de um navegador), Griaule estava particularmente consciente das vantagens da visão geral, do mapeamento preciso dos habitats e do terreno circundante. Essa preocupação visual, aparente em todos os seus trabalhos metodológicos, emerge com clareza desconcertante em Les Saô légendaires , seu relato popular sobre o trabalho etnográfico e arqueológico em Tchad (1943: 53-76). Talvez seja um capricho adquirido em aeronaves militares, mas sempre me ressinto de ter que explorar um terreno desconhecido a pé. Visto do alto no ar, um distrito possui poucos segredos. A propriedade é delineada como se estivesse na tinta da Índia; caminhos convergem em pontos críticos; pátios interiores se entregam; a desordem habitada fica clara. Com uma fotografia aérea, os componentes das instituições se encaixam como uma série de coisas desmontadas e produzidas. O homem é bobo: ele suspeita de seu vizinho, nunca do céu; dentro das quatro paredes, paliçadas, cercas ou sebes de um espaço fechado, ele acha que tudo é permitido. Mas todas as suas grandes e pequenas intenções, seus santuários, seu lixo, seus reparos descuidados, suas ambições de crescimento aparecem em uma fotografia aérea. Numa aldeia que conheço no Sudão francês, lembro-me de ter descoberto quatro santuários importantes à custa de muitas viagens terrestres duras, juntamente com chavões, lisonjas, recompensas e promessas irrecuperáveis. Dezessete santuários apareceram em uma foto aérea graças à polpa de milheto espalhada em suas cúpulas. De repente, a abertura de meus informantes aumentou em um grau inacreditável. Com um avião, fixa-se a estrutura subjacente da topografia e da mente. (Griaule 1943: 61-62).

Não está claro se esta passagem deve ser lida como publicidade entusiasta de um novo método científico (Griaule 1937), ou como uma fantasia um tanto perturbadora do poder observacional. Griaule raramente tinha um avião à sua disposição no campo, mas adotou seu ponto de vista panóptico como um hábito e como uma tática. O simples fato de elaborar um mapa poderia fornecer uma visão geral, um princípio inicial da cultura inscrita na terra. Recontando a escavação de um funeral necessário permanece contra a vontade dos habitantes locais que consideravam as sepulturas como ancestrais, Griaule fornece uma fenomenologia extraordinária da luta do forasteiro branco para manter uma vantagem nas relações com o conselho nativo de anciãos. Porque sua tradição oral é uma fonte chave de informações para onde exatamente cavar, eles devem ser induzidos a falar (1943: 58). A Griaule está viva para todos os tipos de signos, em comportamento e especialmente no terreno, que podem eventualmente servir como entradas para o mundo oculto do costume. Suas perguntas visam provocar e confundir, para extrair respostas desprotegidas. Tendo mapeado arduamente as propriedades e habitações da região, ele é capaz de fazer perguntas inesperadas sobre locais incongruentes que são de fato sagrados - altares, uma estranha porta em uma parede, um curioso traço topográfico - vestígios de segredos escritos na superfície do local. habitat. O tomador de mapas tem uma autoridade desconcertante: ele já parece saber onde tudo está. Revelações seguem. Novos sites são escavados. Para Griaule, um mapa não é apenas um plano de trabalho, mas 'uma base para o combate', em que 'toda posição inscrita é uma posição conquistada' (1943: 66). Em toda a sua conta, ele está consciente do poder agressivo e disruptivo do olhar. Investigação, olhando para alguma coisa, nunca é neutra. Os pesquisadores se sentem sob vigilância: “centenas de olhos nos seguem. Estamos à vista da aldeia; em cada fenda na parede, atrás de cada celeiro, um olho é atento ”. na oposição, fica a observação científica: “Cavar um buraco é cometer uma indiscrição, abrir um olho no passado” . Todo inquérito é “um sítio a ser organizado” . Essa guerra particular de olhares termina com uma trégua nominal, um compromisso que permite a coleta de certos artefatos, enquanto alguns especialmente sagrados são poupados . Mas o cabo-de-guerra teatral realmente termina com um arranjo inteiramente em benefício dos forasteiros, que são capazes de completar sua escavação, remover numerosas relíquias e estabelecer regras básicas para posterior etnografia intensiva. Para Griaule, a documentação exaustiva de uma cultura era uma precondição para o encanamento de seus “segredos” por meio de interrogatórios controlados de longo prazo de informantes. Ele não acreditava, é claro, que a descrição completa fosse possível; mas muitas vezes - especialmente ao defender sua prática de trabalho em equipe contra o modelo anglo-americano de observação participante individual - ele trairia aspirações panópticas. Seu exemplo favorito era o problema de descrever uma cerimônia fúnebre de Dogon, um espetáculo envolvendo centenas de participantes. Um participante-observador individual perder-se-ia no combate, anotando impressões mais ou menos arbitrárias e com pouca compreensão do todo. A Griaule argumenta que a única maneira de documentar adequadamente tal evento é implantar uma equipe de observadores. Ele oferece, caracteristicamente, um mapa do local da performance e um conjunto de táticas para a sua cobertura - procedendo mais ou menos como uma equipe de televisão moderna relatando uma convenção política americana (1933: 11; 1957: 47-52). O observador número um ficará no topo de um penhasco não muito longe da praça da aldeia, com a tarefa de fotografar e observar os movimentos em grande escala do rito; o número dois está entre os homens que pressionam as mulheres de um lado; três misturas com um grupo de jovens portadores de tocha; quatro observa o grupo de músicos; cinco estão nos telhados, “carregados de vigilância nas asas com suas mil indiscrições, e indo freqüentemente, junto com o número seis, para a casa do homem morto em busca das últimas notícias.” O número sete observa as reações das mulheres e crianças para as danças mascaradas e combates rituais que ocorrem no centro do palco. Todos os observadores anotam os tempos exatos de suas observações, de modo que um retrato sintético do ritual possa ser construído. Isso só inicia a tarefa de documentação adequada. A linha sinóptica assim construída será posteriormente aumentada e corrigida por processos de “verificação” e “comentário”. As testemunhas devem ser questionadas sobre suas explicações de gestos obscuros. Serão preenchidos “buracos” no tecido, incluindo aqueles devido a contingências de uma performance específica - a ausência ou presença de determinados grupos ou indivíduos, o esquecimento dos atores, ou quaisquer divergências da “harmonia ideal” do ritual . Lentamente, ao longo de vários anos, construindo repetições, se possível, um tipo ideal de rito será laboriosamente construído. Mas esse enorme “dossiê” transborda em muitas direções, e “cada parte da observação se torna o núcleo de uma investigação que, mais cedo ou mais tarde, fornecerá uma vasta rede de informações”.

O método de Griaule

O método de Grietule de ethnographic, a partir do qual a conta acima é desenhada, fornece uma versão racionalizada de sua própria prática de pesquisa. Muitas vezes não está claro se os métodos propostos são aqueles que a Griaule realmente usou, ou recomendações ideais baseadas em uma experiência um pouco mais desordenada. Mas o Méthode dá uma boa noção das suposições e parâmetros gerais de seu trabalho de campo. Em Sanga, a Missão Dakar-Djibouti encontrou, de fato, um funeral de Dogon, um ritual dramático e confuso, com performances espetaculares de dançarinos mascarados. Griaule definiu sua documentação: seu trabalho subsequente seria centrado na sociedade secreta de máscaras, e vários de seus colegas de trabalho contribuíram com estudos relacionados (Leiris, 1948; De Ganay, 1941; Dieterien, 1941). Por meio de visitas repetidas e intenso trabalho colaborativo, foi construído um corpus organizado de “documentos”. O foco de Griaule na instituição de máscaras não envolveu uma representação siné- dica da cultura como um todo na tradição funcionalista (usando a sociedade de máscaras como uma “instituição” ideal-típica ou seus rituais como “performances culturais totalizantes”). Em vez disso, trabalhando a partir desse denso conjunto de fatos sociais totais, ele e seus associados construíram uma “vasta rede de informações” como contexto e controle do que os próprios nativos disseram sobre sua cultura. Inicialmente, em sua fase de “documentário”, Griaule usou as explicações dos informantes como comentários sobre o comportamento observado e coletou artefatos. Mas essa atitude mudou, especialmente depois do Ogotemmêli: uma vez devidamente testados e qualificados, os informantes poderiam confiar nas tarefas de pesquisa. Com o controle adequado, eles poderiam se tornar auxiliares regulares e, com efeito, membros da equipe. A rede de observação e documentação poderia, assim, ser dramaticamente ampliada (Griaule 1957: 61-64). O trabalho em equipe era uma maneira eficiente de lidar com fatos sociais totais, para produzir uma documentação completa sobre uma multiplicidade de assuntos tratados de diversas maneiras. Como concebido por Griaule, a equipe era muito mais do que uma colaboração improvisada de indivíduos. Ela incorporava o princípio subjacente a toda investigação moderna: especialização e divisão do trabalho. Como a realidade social era complexa demais para o pesquisador individual, ele deveria “confiar em outros especialistas e tentar formar com eles um grupo de pensamento, um elemento de combate, uma unidade tática de pesquisa na qual cada pessoa, mantendo suas próprias qualidades pessoais. , sabe que ele é um engenho inteligente de uma máquina na qual ele é indispensável, mas sem o qual ele não é nada ”(1957: 26). Alguns dos primeiros colaboradores da Griaule, como Leiris, Schaeffner e Paulme, não encontraram lugares duradouros dentro desse mecanismo produtivo - o escandaloso L'Afrique fantóme (1934) de Leiris foi uma clara violação da disciplina. Mas outros (De Ganay, Dieter Ien, Lebeuf e Calame-Griaule), se não precisamente 'engrenagens inteligentes', funcionaram livremente dentro do paradigma em desenvolvimento. Griaule falou de sua equipe ideal em termos de solidariedade orgânica e um espírito de corpo quase militar, e as obras da escola sugerem um empreendimento colaborativo eficiente. Mas, como mecanismo produtivo, a “equipe” nunca poderia ser controlada de maneira correta.

Informantes

E quando se incluem como agentes ativos os informantes, tradutores e autoridades tribais de Dogon - cuja influência no conteúdo e no tempo do conhecimento adquirido era crucial - fica evidente que a experiência documental colaborativa iniciada por Griaule em 1932, na década de 1950, sofreram metamorfose. Como, antes de Ogotemmêli, Griaule “escolheu”, “identificou”, “interrogou” e “utilizou” informantes? (1952c: 542-47; 1957: 54-61) Suas restrições metodológicas são particularmente reveladoras, pois, à medida que seu respeito pela tradição oral na África cresceu, ele passou a centralizar cada vez mais sua pesquisa em trabalhos próximos com um número limitado de colaboradores indigènes. O informante deve primeiro ser cuidadosamente identificado e localizado em um grupo específico ou conjunto de grupos dentro do tecido social. Desta forma, pode-se permitir exageros e omissões relacionadas à lealdade grupal, tabus etc. Ele ou ela - de fato, os informantes de Griaule, como ele observou, eram quase inteiramente homens (1957: 15) - têm que ser qualificados pronunciar-se sobre assuntos particulares, sejam tecnológicos, históricos, legais ou religiosos. Suas “qualidades morais” devem ser avaliadas: sinceridade, boa fé, memória. Embora muitos de seus informantes tenham sido influenciados significativamente por perspectivas “externas” (Lettens 1971: 520-35), Griaule pesou fortemente o apego à tradição, desconfiando dos cristãos, muçulmanos e indivíduos com muito contato prévio com os brancos (1957: 57). . Cada informante, Griaule assume, enuncia um tipo diferente de verdade, e o etnógrafo deve estar constantemente vivo para suas limitações, forças e fraquezas. Em seu Méthode ele discute diferentes tipos de “mentirosos”. De fato, durante todo o seu trabalho ele está preocupado com mentiras - embora não tão simples inverdades. Cada informante, mesmo o mais sincero, experimenta uma “necessidade instintiva de dissimular pontos particularmente delicados. Ele terá o prazer de aproveitar a menor chance de escapar do assunto e insistir em outro ”(1957: 58). Colaboradores nativos “mentem” em tom de brincadeira, por venalidade, por desejo de agradar ou por medo dos vizinhos e dos deuses. Informantes esquecidos ou informantes europeizados são tipos particularmente perigosos de “mentirosos”. Em uma “operação estratégica” etnográfica, o investigador deve romper as defesas e dissimulações iniciais. Cifren um informante individual deve ser isolado para interrogatório intensivo, de modo a remover as pressões sociais inibidoras. Quando seu depoimento é confrontado com versões diferentes obtidas de outras entrevistas, informantes durões enunciam verdades que não pretendiam revelar. Em uma ocasião, a Griaule se permite sonhar com uma situação “idéia!”: “Uma infinidade de informantes separados” (1943: 62). Por outro lado, às vezes pode ser lucrativo buscar indagações em público, especialmente sobre problemas delicados como a posse da terra, em que o pesquisador pode provocar disputas reveladoras com suas inevitáveis ​​indiscrições (1943: 66-68; 1957: 60). As táticas de Griaule são variadas; mas eles têm em comum uma postura ativa e agressiva não diferente do processo judicial de “interrogação” (1952: 542, 547): “O papel da pessoa que fareja fatos sociais é freqüentemente comparável ao de um detetive ou examinando o magistrado. O fato é o crime, o interlocutor o culpado; todos os membros da sociedade são cúmplices ”(1957: 59). Ele é fascinado pelas táticas da investigação oral, o jogo da verdade e da falsidade que pode levar a “labirintos” que são “organizados”. Como um psicanalista, ele vê os padrões de resistência, esquecimento e omissão não como meros obstáculos. mas como sinais de uma estruturação mais profunda da verdade: o informante, no primeiro contato, raramente oferece muita resistência, ele se deixa apoiar em posições que ele foi capaz de organizar no curso de sentir a situação, observando as peculiaridades, habilidades e estranheza de seu inter locutor. 'O valor dessas posições depende do que ele pode fazer deles; ele resiste da melhor forma possível. E se eles são levados à força? Depois de outras resistências semelhantes, ele irá se retirar para uma posição final que depende nem de si mesmo nem de seu “adversário”, mas do sistema de proibições de costumes. (1952c: 59-60) Para Griaule, a estrutura profunda das resistências não é específica de um encontro intersubjetivo, mas deriva de uma fonte geral. , a regras de 'costume'. Esta entidade hipostatizada é o último bastião a ser invadido. Mas, como veremos, não pode ser conquistado por ataque frontal, pelos processos táticos de observação, documentação ou interrogação.

A etnografia

Um processo “iniciatório” diferente entrará em cena. Projetado para os pesquisadores de campo iniciantes, os tratados de Griaule sobre técnica etnográfica permanecem amplamente dentro do paradigma do 'documentário'. Além disso, Griaule provavelmente não teve tempo suficiente para digerir as conseqüências metodológicas das revelações de Ogotemmeli ou da crítica coletiva do conhecimento colonial na década anterior à publicação do Métfiode. Provavelmente, é melhor ler esse compêndio de técnicas um tanto mecanicista quanto uma tentativa malsucedida de controlar um processo de pesquisa indisciplinado, nos termos de Georges Deverux (1967), uma passagem da ansiedade para o método. O envolvimento recíproco complexo da Griaule com os Dogon é dificilmente capturado em títulos de seções como “A detecção e observação de factos humanos”, ou no retrato de etnógrafos e colaboradores indígenas como construtores de redes de informação, colecionadores de “documentos”, compiladores de “Os dossiês.” A etnografia, na linguagem jurídica de Griaule, ainda se assemelha ao processo de elaboração - na lei francesa, o estabelecimento preliminar dos fatos de um caso, antes do jugamento propriamente dito (1957: 51). os etnógrafos usam os poderes de longo alcance da instrução juge (uma das metáforas favoritas de Griaule), para apagar a verdade (cf. Ehrmann, 1976). Em geral, respeitando a divisão do trabalho estabelecida por Mauss e suspeitando de abstrações e comparação sistemática transcultural, Griaule deixa matizes de teoria e explicação para os outros fora da briga.O juge d'instruction, tendo coletado bastante reliabl Os documentos, e tendo cruzado as versões de seus testemunhos dos fatos, tem em sua posse tudo o que ele precisa para determinar a verdade. Mas, em 1950, essas atitudes em relação à observação e ao interrogatório estavam se tornando geralmente suspeitas, e a metáfora documental inicial de Griaule não era mais adequada a um processo de pesquisa que estava tomando vida própria. Gradualmente, o entendimento de Griauie sobre o Dogon estava se tornando indistinguível a partir de suas próprias explicações cada vez mais elaboradas. A originalidade da atividade etnográfica que ele colocou em movimento foi que ela descobriu - e, em uma extensão indeterminada, provocou - uma sofisticada interpretação de sua cultura por um grupo de influentes Dogon.

IRONIES

Antes de considerar a segunda fase do trabalho de Griaule, vale a pena recuar por um momento de seus estilos e táticas de pesquisa para sugerir sua relação com a situação colonial. A Griaule nos fornece uma espécie de dramaturgia da experiência etnográfica antes dos anos cinquenta. Em uma passagem extraordinária - incluída nas discussões iniciais e tardias da metodologia - ele evoca a gama de papéis carregados de poder adotados por um etnógrafo que extrai informações de um informante. “Etnographe active”, ele escreve, é “a arte de ser uma parteira e um magistrado examinador”: Por vezes, um afável camarada da pessoa é interrogado, um amigo distante, um estranho severo, um pai compassivo, um patrono preocupado ; um comerciante pagando por revelações, uma a uma, um ouvinte afetando a distração diante dos portões abertos dos mistérios mais perigosos, um amigo prestativo mostrando um interesse vivo pelas histórias mais insípidas da família - o etnógrafo desfila em seu rosto uma bela coleção de máscaras. possuído por qualquer museu. (Griaule 1933: 10; 1952c: 547; 1957: 59) A passagem evoca um tema que infunde todo o trabalho de Griaule - que a etnografia é um empreendimento teatral. Sua dramaturgia não inclui, no entanto, um papel popular entre os pesquisadores de campo na tradição anglo-americana: a persona do aprendiz fervoroso, muitas vezes lançada como criança no processo de adquirir, de ser ensinado, conhecimento adulto. Talvez essa persona não tenha ocorrido a causa de Griaule, apoiada por intérpretes e colegas de trabalho europeus, ele nunca realmente experimentou a posição de ser um gago, indefeso em uma cultura alienígena. Foi somente depois de 1950, no final de sua carreira, que ele começou a adotar o ponto de vista de um estudante em relação à cultura Dogon. Mas esse papel sempre foi misturado com a autoridade menos vulnerável de iniciado, porta-voz e exegeta.

Pelo menos em seus escritos, Griaule nunca abandonou uma confiança básica, um senso de controle final sobre a pesquisa e seus produtos. Mas manter o controle sempre foi uma batalha, na melhor das hipóteses, uma relação de brincadeira. Griaule nunca apresentou trabalho de campo como uma realização inocente de rapport análogo à amizade. Tampouco naturalizou o processo como uma experiência de educação ou crescimento (criança ou adolescente se tornando adulto), ou como aceitação em uma família extensa (um papel de parentesco dado ao etnógrafo). Em vez disso, seus relatos assumiram um conflito de interesses recorrente, um drama agonístico, resultando em respeito mútuo, cumplicidade em um equilíbrio produtivo de poder. Os escritos de Griaule são incomuns em sua aguçada percepção de um diferencial de poder estrutural e um substrato de violência subjacente a todas as relações entre brancos e negros em uma situação colonial. Por exemplo, em Les Fiamb ears d'hommes, uma história de aventura que Griaule chamou de “uma descrição objetiva de certos episódios da minha primeira viagem à Abissínia” (1953: vi), ele friamente observa um “dado” da vida colonial: o os membros da sua caravana mostraram-se relutantes em tentar um complicado desvio do Nilo, “seguiu golpes, dados pelo Homem Branco e não retornados; pois um branco é sempre um homem do governo, e se você tocá-lo, as complicações acontecem ”(7-8). Um dispositivo estilístico revelador é implantado aqui, como em outros lugares nos relatos de trabalho de campo da Griaule (1948a): um uso da voz passiva e de termos genéricos para si mesmo - 'o Homem Branco', 'o europeu', 'o viajante'. o nazireu ”,“ o For eigner ”. A história dos espancamentos sugere uma série automática de eventos, aos quais todas as partes concordam. Um europeu em África não pode, não deve, evitar as partes reservadas para ele. Griaule não pensa em escapar aos privilégios e restrições de seu status atribuído - um sonho que obceca e paralisa Michel Leiris, seu colega da Missão Dakar-Djibuti. O diário de campo de Leiris (1934) e seus escritos posteriores, ambos etnológicos e literários, retratam uma lenta reconciliação com uma concepção teatral do seif. Mas sua aceitação é sempre ambivalente, em conflito criativo com o desejo de contato e participação imediatos (Clifford, 1982b). Griaule, pelo contrário, não tem escrúpulos sobre sua própria teatralidade. Uma vez que isso esteja claro, os aspectos intrigantes de sua prática tornam-se mais claros - por exemplo, sua “cobertura” ideal do funeral de Dogon. O elaborado plano panóptico de Griaule despertará a raiva de qualquer etnógrafo escolarizado em observação participante. A tripulação que ele imagina deve necessariamente perturbar e talvez orientar o curso da cerimônia, mas isso não parece preocupar Griaule. Ele ingenuamente imagina que sete observadores não exercerão uma influência considerável? A questão é irrelevante, pois Griaule nunca pensou em ser um participante discreto. Sua pesquisa foi manifestamente uma intrusão; ele não fingiu que seria diferente. Assim, em um grau importante, a verdade que ele registrou foi uma verdade provocada pela etnografia. Fica-se tentado a falar de uma “etnografia vérita” análoga ao cinema vérité, pioneiro do colaborador tardio de Griaule, Jean RoucH - não uma realidade objetivamente registrada pela câmera, mas provocada por sua presença ativa (Rouch, 1978). Suspeita-se que Griaule viu a cultura em si, como personalidade, como uma performance ou espetáculo. Nos anos que se seguiram à missão Dakar-Djibuti, Griaule e as suas equipas apareceram todos os anos em Sanga. A chegada dessas pessoas em estranhos familiares foi um acontecimento dramático. O tempo era da essência; informantes foram mobilizados, rituais agiram para as câmeras, e tanto quanto possível a vida dogon registrada. Na verdade, a pesquisa inicial de Griaule tendia a se concentrar em aspectos da vida cultural suscetíveis à demonstração e ao desempenho: máscaras, rituais públicos e jogos. É significativo a esse respeito que Sanga, a comunidade Dogon mais acostumada à etnografia, é hoje o principal centro turístico da região, rotineiramente realizando suas danças para pessoas de fora (Imperato 1978: 7-32). A propensão de Griaule pelo dramático infunde seu trabalho; e para o historiador isto coloca problemas de interpretação. Por exemplo, uma passagem acentuada, mas característica, em Les Saô légendaires exulta em um avanço. Tendo manobrado os interlocutores nativos em desistir de informações que não pretendiam divulgar, Griaule contempla a promessa de futuros trabalhos na área: Poderíamos fazer jumentos dos velhos hesitantes, confundir os traidores, abominar os silenciosos. Nós íamos ver mistérios saltando como répteis das bocas dos mentirosos bem capturados. Nós brincávamos com a vítima; nós esfregamos o nariz dele nas palavras dele. Nós o faríamos sorrir, cuspir a verdade, e nós deixaríamos de seus bolsos o último segredo polido pelos séculos, um segredo para fazer aquele que falou empalidecer de medo. (Griaule 1943: 74) Como alguém pode ler tal passagem? Griaule sempre gostou de provocar: uma passagem escrita para chocar em 1943 ainda é chocante e intrigante. Na narrativa à qual é uma espécie de clímax, observa-se com desconforto e com raiva crescente à medida que o etnógrafo intimida, persegue, manipula aqueles cuja resistência interfere em sua investigação, nativos que não desejam ver seus restos ancestrais coletados na interesses de uma ciência estrangeira. Mas Griaule não nos permitirá descartá-lo de imediato. Se agora percebemos essas atitudes e atos como um embaraço, é graças a Griaule que os vemos tão claramente. Ele esfrega nosso nariz neles. Como Griaule desempenhou papéis coloniais com entusiasmo e com certa ironia, as palavras citadas acima não podem ser colocadas nitidamente em seu contexto histórico e descartadas como atitudes infelizmente possíveis no período colonial. Era mais típico do período esconder tal violência do que trazê-la à tona. No entanto, se a violência é, em certo sentido, o argumento de Griaule, em nenhum lugar ele sugere uma crítica às confissões forçadas na etnografia. Pelo contrário, seus escritos metodológicos dão instruções sobre como provocá-los. Griaule não expressa sérias dúvidas sobre estabelecer o domínio, encontrar e explorar a fraqueza, desunião e confusão de seus anfitriões nativos. Assim, uma leitura histórica de tais passagens desajeitadas não pode entender Griaule como um participante típico ou um crítico autoconsciente dentro da situação colonial. Sua posição é mais complexa. Somos tentados a atribuir tais passagens ao “estilo” de Griaute - sua propensão para brincadeiras, metáforas carregadas, para provocação - mas isso apenas levanta a questão de como um estilo funciona como parte de uma atividade de pesquisa, e como ele joga contra um ideológico. O estilo de Griaule não é meramente, como alguns supõem, um faiblesse, um desvio distrativo e infeliz do negócio científico em questão (Lettens, 1971: 12, 491) .É, antes, uma resposta significativa a uma situação difícil. de papéis e possibilidades discursivas que podem ser chamadas de liberalismo etnográfico.Um debate recente complexo e contencioso sobre antropologia e império estabeleceu amplamente que os etnógrafos antes da década de 1950 aquiesceram em regimes coloniais (Leiris, 1950; Asad, 1973; Copans, 1974). era um dado contexto para o seu trabalho, e eles adotaram uma variedade de posições liberais dentro dele. Raramente “colonialistas” em qualquer sentido instrumental, direto, etnógrafos aceitavam sob restrições, enquanto, em vários graus, questionando-os. Essa situação ambivalente impôs certos papéis. O estilo de liberalismo etnográfico de Griaule pode ser entendido tanto como uma performance dramática quanto como um modo de ironia. Os observadores mais agudos da situação colonial, Orwell e Conrad, por exemplo, retrataram-no como um mundo ambíguo e carregado de poder, de realidades descontínuas e conflitantes. Como o jovem oficial distrital que sem querer atira em um elefante para não ser ridicularizado por uma multidão de birmaneses, e como todos os personagens de Heart of Darkness, os europeus deslocados precisam trabalhar para manter suas identidades culturais, por mais artificiais que possam parecer. Ambas as situações, colonial e etnográfica, provocam o sentimento enervante de estar no palco, observado e fora do lugar. Os participantes desse meio são apanhados em papéis que não podem escolher. Vimos a percepção aumentada de Griaule das máscaras usadas como parte do conflito de vontades, inteligência, blefes e estratégias do trabalho de campo. Ele não é único em enfatizar a importância da teatralidade e da gestão da impressão na etnografia, a noção de que as relações de pesquisa se desenvolvem “por trás de muitas máscaras” (Berreman, 1962). E a maioria dos etnógrafos, como ele, rejeitou a pretensão de ir nativo, de ser capaz de lançar um europeu fundamental. Mas apenas alguns retrataram com tanta clareza as dissimulações táticas e a violência irredutível do trabalho etnográfico (Rabinow 1977: 129-30). Diferentemente de um Conrad, Orwell ou Leiris, Griaule não parece oprimido por seu desempenho de papéis. Mas embora ele não seja crítico, ele é irônico. Se ele comparar a etnografia a um teatro de guerra ou a um procedimento judicial, não é necessário presumir que, no campo, ele agiu consistentemente como comandante de companhia ou magistrado eminente. Considerar as metáforas de Griaule pelo valor aparente é perder sua função analítica implícita. E é também deixar de lado suas outras personalidades: seu charme, seu temperamento, suas brincadeiras lúdicas, sua crescente simpatia e até mesmo amor pelos Dogon. Liberais etnográficos, dos quais existem muitos tipos, tendem a ser participantes irônicos. Eles procuraram maneiras de se destacar, ou separados, dos papéis imperiais que lhes são reservados como brancos. Houve variações frequentes no broussard de Delafosse. Muitos, de uma forma ou de outra, se identificaram publicamente com modos exóticos de vida e pensamento ou cultivaram uma imagem de marginalidade. O exagero de Griaule é outra resposta. O liberalismo etno-gráfico é um conjunto de posições irônicas, papéis dentro e fora da situação colonial. Sua dramaturgia completa continua a ser escrita. As tensões políticas e éticas visíveis nos escritos de Griaule só recentemente se tornaram sujeitos explícitos de análise. Um parágrafo penetrante escrito em 1968 por Clifford Geertz reflete o começo do fim da inocência no trabalho de campo: geralmente o senso de ser membros, ainda que temporariamente, inseguramente e completamente, de uma única comunidade moral, pode ser mantido mesmo diante de as realidades sociais mais amplas que pressionam em quase todos os momentos para negá-lo. É essa ficção - ficção, não falsidade - que está no coração do sucesso da pesquisa de campo antropológica; e, como nunca é completamente convincente para nenhum dos participantes, isso torna a pesquisa, considerada como uma forma de conduta, continuamente irônica. (1968: 154) No final dos anos sessenta, a mitologia romântica do relacionamento com o trabalho de campo começara a dissolver-se publicamente. Desde então, uma crescente reflexividade no pensamento e na prática etnográfica aprofundou o reconhecimento de sua estrutura irônica, sua dependência de ficções improvisadas e historicamente contingentes. Essa nova consciência possibilita uma leitura de Griaule que vê uma postura teatral e irônica como central para seu trabalho etnográfico.

INICIAÇÃO

Embora o senso de Griaule sobre a tensão moral e a violência inerente ao trabalho de campo fosse extraordinariamente agudo, ele desenvolveu, mesmo assim, uma ficção capacitadora do encontro recíproco com os Dogon. Essa ficção, não a falsidade, está mais claramente incorporada no trabalho depois do Ogotemmêli. Na pesquisa em curso de Griaule (intimamente ligada com a de Dieterlen) vê-se a sobreposição de uma ficção etnográfica (conhecimento iniciático de Dogon) por uma ficção de etnografia (trabalho de campo como iniciação). Para explicar essa duplicação, podemos retornar à irônica ficção de comunidade moral de Geettz, que ele vê como dissipando, pelo menos temporariamente, as tensões éticas inerentes ao trabalho de campo. Geertz submerge o mito do relacionamento etnográfico antes de restabelecê-lo de modo irônico. Como Griaule, ele parece aceitar que todas as partes do encontro reconhecem seus elementos de insinceridade, hipocrisia e auto-engano. Ele vê esse reconhecimento como uma pré-condição para uma ficção vivida (um drama, nos termos de Griaule) que é, em alguns sentidos muito bem guardado, mas real, genuíno. O quanto essa cumplicidade produtiva é realmente promulgada é sempre difícil de saber. Mas se, como sugere Geertz, essas ficções vividas são centrais para uma pesquisa etnográfica bem sucedida, então podemos esperar encontrá-las refletidas nos textos que organizam, narram e geralmente explicam as verdades aprendidas no trabalho de campo. De fato, muitas etnografias incluem alguns relatos parciais do trabalho de campo como parte de sua representação de uma realidade cultural. Mas se uma narrativa explícita ou implícita de trabalho de campo aparece ou não na etnografia, sua própria forma - a definição de seu tópico, o horizonte do que pode representar - é uma expressão textual da ficção de comunidade realizada que permitiu a pesquisa. Assim, e com diferentes graus de explicitação, as etnografias são ficção tanto de outra realidade cultural quanto de seu próprio modo de produção. Isso geralmente não é claro no trabalho tardio de Griaule e Dieterlen, onde a “iniciação” fornece a metáfora organizadora comum. Dizer que a etnografia é como uma iniciação não é recomendar que o pesquisador realmente passe pelos processos pelos quais um nativo alcança a sabedoria do grupo. A Griaule tem pouco uso para tal “comédia” (1952c: 549). A metáfora da iniciação evoca, antes, o aprofundamento da compreensão que se acumula na pesquisa de campo de longo prazo com visitas repetidas ao longo da carreira do antropólogo. Evoca, também, uma mudança qualitativa nas relações etnográficas que ocorre como a culminação do longo e persistente processo documental. A iniciação finalmente dá acesso a um estrato privilegiado de compreensão nativa, algo que Griaule alegou ser “uma demonstração, resumida mas completa, do funcionamento de uma sociedade”. O etnógrafo, em vez de tentar se misturar à sociedade em estudo, “desempenha seu papel. O papel de um estranho. ”Um estranho, mas determinado, forçado a insistir constantemente contra os costumes costumeiros, o etnógrafo passa a ser visto como alguém que, precisamente por causa de sua exterioridade em relação às instituições nativas, é improvável que as falsifique. “Se ele receber instruções e revelações que sejam equivalentes, e mesmo superiores àquelas desfrutadas pelos iniciados, o pesquisador deve permanecer ele mesmo. Ele terá cuidado para não tentar ganhar tempo telescópico a informação; antes, ele seguirá passos paralelos aos da iniciação, como é praticado pelos homens da sociedade ”(548). A narrativa de iniciação “paralela” (ou especificamente etnográfica) aparece proeminentemente em Le Renard pâk e Conversations with Ogotemmêli. A primeira década de trabalho documental em Sanga se desenrolara no mais baixo dos quatro estágios do conhecimento iniciático de Dogon. Todas as primeiras perguntas da equipe da Griaule foram respondidas em um nível de instrução oferecido pelos anciãos aos iniciantes - a parole de face. Mas os etnógrafos retornaram repetidamente. Eles provaram sua boa fé: Griaule, por exemplo, usou sua fotografia aérea para aconselhar o Dogon sobre questões cruciais de gerenciamento de água. Gradualmente, os pesquisadores persistentes abordaram níveis mais profundos e secretos de conhecimento cultural. Então - “Os Dogon tomaram uma decisão” (Griaule & Dieterlen 1965: 54). Os patriarcas locais se reuniram e decidiram instruir Griaule em la parole claire - o mais alto e completo estágio do conhecimento iniciático. Ogotemmêli começaria a tarefa. Outros continuaram quando ele morreu logo após suas famosas conversas com Griaule. Como um todo, essa narrativa é certamente muito clara, e evidentemente autojustificatória.3 Mas se a 'decisão' dos 'Dogon' foi ou não motivada exatamente dessa maneira, e qualquer que seja o status exato do discurso de Ogotemmeli (indivíduo especulação ou conhecimento cultural), o paradigma global de iniciação levanta questões importantes sobre a etnografia de curto e longo prazo. Não pode haver dúvidas de que as repetidas visitas de Griaule resultaram em um aprofundamento progressivo e qualitativo de seu entendimento. Estudo aberto e de longo prazo pode muito bem produzir resultados que diferem significativamente daqueles de jornadas intensas de um ou dois anos, seguidos, talvez, por uma visita posterior de retorno para medir a “mudança” (Foster et al., 1979). O envelhecimento dos pesquisadores de campo e dos informantes, a experiência acumulada do trabalho cooperativo ao longo de décadas, produz pelo menos o efeito de um conhecimento aprofundado. Conceber essa experiência como uma iniciação tem o mérito de incluir 'professores' indígenas como sujeitos centrais no processo. A instrução Dogon de Griaule in la parole claire também é uma crítica implícita à pesquisa anterior de 'documentários'; A maioria das etnografias geradas ao longo de um período de tempo relativamente estreito pode não ser considerada uma das primeiras: a narrativa de iniciação aborda questões que não buscam um certo nível de complexidade na representação do “ponto de vista nativo”. A iniciativa de Ogotemmeli não precisa ser retratado como uma conclusão (nas palavras de Griauie, um argumento) da pesquisa anterior.Também pode ser visto como um comentário sobre ele, e uma mudança de sua base epistêmica.E aqui o 'lado' dogon da história permanece problemático: direto faltam evidências, e a narrativa iniciática, com sua suposta teleologia - um progresso em direção ao mais completo conhecimento possível - deixa de ser útil. A intervenção de èli foi claramente uma mudança crucial no processo de pesquisa. Revelou a extensão do controle de Dogon sobre o tipo de informação acessível aos etnógrafos. Anunciou um novo estilo de pesquisa no qual a autoridade dos informantes era mais explicitamente reconhecida. Não mais testemunhas indignas de confiança submetidas a interrogatório, os 'dogrors' dogon, 'Ogotemmêli' e seus sucessores, eram agora interlocutores instruídos. Durante a fase 'documental' da pesquisa, o etnógrafo fora colecionador de observações, artefatos e textos. Agora, ele ou ela era um transcritor de tradições formuladas, um tradutor, exegeta e comentarista.No relato de Griaule de suas reuniões, Ogotemmêli não é interrogado da maneira descrita no Méthode de l'ethnographie. 'Le blanc', 'o Nazarite ”, como Griaule agora às vezes chama a si mesmo, tornou-se um estudante, o segredo é comunicado livremente, não confessado. No entanto, os paradigmas documentário e iniciático estão ligados por suposições subjacentes importantes. Para ver a etnografia como extrair confissões ou passar por iniciação, é preciso assumir a existência e a importância de segredos. A verdade cultural é estruturada, em ambos os casos, como algo a ser revelado (a palavra freqüente de Griaule é decelada: divulgada, divulgada, detectada, descoberta). Além disso, o novo paradigma incorpora a concepção teatral do trabalho de campo. Em uma iniciação “paralela”, o etnógrafo desempenha o papel de um iniciado, o informante, um instrutor. Uma relação dramática, reconhecida como tal por ambas as partes, torna-se a ficção capacitadora do encontro. De fato, se todas as performances são revelações controladas pressupondo uma 'região posterior' escondida da vista onde a performance é preparada e cujo acesso é limitado (Goffman 1959: 238; Berreman 1962; xxxii), então um modelo teatral de relacionamentos necessariamente pressupõe segredos. Assim, uma lógica subjacente do segredo une as duas fases da carreira de Griaule.1 Se a etnógrafa é um “juiz” implacável ou uma “parteira” auxiliar, a verdade sempre deve emergir, ser trazida à luz. E como iniciado, o pesquisador recebe Essa visão do surgimento da verdade pode ser contrastada com uma concepção de etnografia como um empreendimento dialógico em que tanto pesquisadores como os nativos são criadores ativos, ou, para ampliar um termo, autores de representações culturais. A experiência de Griaule com os Dogon pode ser melhor contada nessa segunda perspectiva, mas, para dizer isso, pressupõe uma crítica à autoridade iniciática.Parágodos construtivistas e dialógicos tendem a dispersar ou compartilhar autoridade etnográfica, enquanto narrativas de iniciação confirmam a competência especial do pesquisador. Iniciação pressupõe uma experiência de revelações progressivas e conectadas, de ficar atrás de meias-verdades e tabus, de eing instruído por membros autenticamente qualificados de uma comunidade. Essa experiência de aprofundamento da “educação” capacita o etnógrafo a falar como um insider, em nome da verdade ou realidade da comunidade. Embora toda a aprendizagem cultural inclua uma dimensão iniciática, a Griaule pressiona sua lógica ao limite: “prosseguindo por meio de investigações sucessivas entre camadas cada vez mais conhecedoras da sociedade, é possível reduzir consideravelmente a área de conhecimento esotérico de uma população, a única , para dizer a verdade, isso é importante, pois constitui a chave nativa do sistema de pensamento e ação ”(1952c: 545). Esta “chave nativa” começou a surgir para Griaule e seus colaboradores no final dos anos quarenta. Os livros de referência que anunciaram sua descoberta foram Dieu d'eau (Conversas com Ogotemmêli) e Essai sur la religion Bambara (1951), de Dieterlen. As duas obras revelaram um 'profundo pensamento entre os negros', 'uma intrincada rede de representações' (Dieterlen 1951: 227). As “inumeráveis ​​correspondências” dos Bambara e Dogon emergiram como um “quadro coerente”, uma “metafísica” (Griaule 1951: ix). Uma vez que Ogotemmêli, em trinta e três dias de conversa sinuosa, enunciara os contornos básicos do mito cosonômico de Dogon, restava um enorme trabalho de esclarecimento. Conforme registrado na conta do dia-a-dia de Griaule, seu discurso estava repleto de lacunas e contradições. O roteiro-mestre cultural que ele esboçou exigiria ex-formes elaboradas, checagem cruzada de outras versões de mitos e atenção à encenação do roteiro em praticamente todos os domínios da vida coletiva. Este trabalho foi para ocupar Griaule e seus colaboradores por décadas. Também ocuparia seu pequeno grupo de informantes-chave, extraídos dos estimados 5% de Dogon “completamente instruídos” na região de Sanga, bem como dos 15% da população que possuíam uma porção razoável do conhecimento secreto (Griaule 1952a). : 32). Há discordância sobre a natureza precisa das “revelações” Dogon produzidas nessa colaboração. Alguns os viram como especulações teológicas individuais de Dogon, ou como invenções mitopoéticas (Goody 1969: 241; Lewis 1973: 16; Copans 1973: 156). Griaule e Dieterlen, no entanto, rejeitam fortemente a noção de que o conhecimento que relatam é, em qualquer sentido significativo, a criação original de Dogon específico. Em sua opinião, a uniformidade do costume e a articulação comportamental generalizada do conhecimento esotérico tornam improvável que qualquer indivíduo possa fazer mais do que flexionar levemente as estruturas míticas duradouras. Mas colocar a questão como um debate entre a originalidade pessoal e a tipicidade cultural (cf. Hountondji 1976: 79-101) é provavelmente infrutífero, dada a nossa ignorância sobre informantes-chave. Baseia-se também numa falsa dicotomia: todos os autores, sejam africanos ou europeus, são originais apenas dentro de recursos simbólicos limitados e em relações restritas de produção textual. é tentador retratar as obras tardias da escola Griaule, nas palavras de Pierre Alexandre, como “etnografia de segundo nível - a da etnografia Dogon ”(1973: 4). Mas a noção de “níveis” é enganosa, e não faz justiça ao modo como a versão do costume de Griaule e as versões enunciadas pelos informantes de Dogon estão dialogicamente implicadas uma na outra. É difícil, se não impossível, separar claramente a etnografia Dogon da etnografia de Griaule. Eles formam um projeto comum: a textualização e a exegese de um sistema tradicional de conhecimento. O “texto” cultural não existe antes de sua interpretação; não é ditada por instruções completamente instruídas e depois explicada e contextualizada em um segundo “nível” por etnógrafos europeus. Griaule e Dieterlen evidenciam que não pode haver, de fato, uma versão completa da “metafísica” Dogon, se, na metáfora narrativa de Griaule, ela é “escrita” em toda a cultura - no habitat, nos gestos, na sistema de signos gráficos - esses vestígios são da ordem de um mecanismo e não de uma inscrição completa, na verdade, um Dogon “totalmente instruído” passará a vida inteira dominando a parole claire. Compreender toda a gama de suas correspondências simbólicas, sinais, mitos, ritos e gestos cotidianos requer um processo contínuo de poesia concreta. A “palavra” mítica é menos materializada, trocada, interpretada. E porque a ordem estável é irremediavelmente interrompida pelas forças da desordem, encarnada na raposa mítica, o cosmos e a sociedade são constantemente reinscritos. O encontro etnográfico é uma das ocasiões dessa reinscrição, mas com uma diferença significativa. Agora, a dialética Dogon da ordem e da desordem ocorre em um cenário mundial, levando à inscrição de um novo tipo de totalidade, uma essência Dogon ou cultura. Em Le Renard Pâle, vemos uma tentativa de estabelecer uma linha de base cultural, para separar, por exemplo, 'comentários' de informantes dos mitos e variantes registrados.Mas não está claro quão rigorosamente tal separação pode ser feita, pois, como Dieterlen Estas glosas demonstram a propensão de Dogon a 'especular sobre a história da criação', ilustrando 'o desenvolvimento nativo do pensamento com base em fatos míticos' (Griaule & Dieterlen, 1965: 56). O desenvolvimento do pensamento mítico, como qualquer pensamento, é estruturado e aberto. Mas a atividade da exegese depende da afirmação de um conjunto restrito de símbolos pela imaginação hermenêutica. Deve, em princípio, haver um corpus estável para interpretação. O conhecimento iniciático “completo” de Griaule - que nunca pode ser expresso em sua totalidade - funciona dessa maneira canônica. Ele fornece um ponto de parada para o processo de representação cultural. Com base neste original mestre-script, um discurso exegético potencialmente interminável pode ser gerado. La parole claire, como qualquer texto primitivo ou fundamento de autoridade, age para estruturar e interpretar o poder. O paradigma de iniciação de Griaule funcionou para transformar o papel do etnógrafo de observador e documentador da cultura Dogon para exegeta e intérprete. Ele preservou e reformulou, no entanto, os temas dominantes de sua prática anterior: a lógica do segredo, uma aspiração ao conhecimento exaustivo, uma visão do trabalho de campo como representação de papéis. Expressou também o sentido que se tem em toda a carreira de Griaule de seus colegas Dogon como agentes poderosos em o processo etnográfico: inicialmente táticos inteligentes e resistentes intencionais, depois professores e colegas. Ao atingir la parole claire e trabalhar como qualquer iniciante para compreender a encarnação da “palavra” no mundo experiencial, Griaule se torna (sempre em sua posição “etnográfica” paralela) um de um grupo restrito de “médicos” ou “metafísicos” que controlam e interpretar o conhecimento de Dogon. A Griaule é uma fonte interna, mas com uma diferença. Pois é como se os Dogon tivessem reconhecido a necessidade de um tipo de embaixador cultural, um representante qualificado que dramatizasse e defendesse sua cultura no mundo civil e além. Griaule, em todo caso, agia como se esse fosse seu papel. A postura do etnógrafo que fala como um insider em nome de seu povo é familiar - é um papel-estoque do liberal etnográfico. A Griaule adotou esse ponto de vista no início dos anos 50, com confiança e autoridade. Um defensor ativo e mediador na política colonial da região de Sanga, ele efetuou uma reconciliação entre as autoridades Dogon tradicionais e os novos chefes instalados pelo governo (Ogona d'Arou 1956: 9). Em uma variedade de fóruns, desde as páginas do Presesine Africaine até os congressos internacionais da UNESCO, até a Assembléia da União Francesa (onde ele serviu como Presidente da Comissão de Assuntos Culturais), ele pediu respeito pelas tradições da África. Fortificado pelas revelações de Ogotemmèli, ele retratou em detalhes elaborados um modo de conhecimento que rivaliza, ou supera, o legado ocidental dos gregos. Falando pessoalmente, na voz de um iniciado, ele poderia relatar que “com eles, tudo parece mais verdadeiro, mais nobre, isto é, mais clássico. Essa pode não ser a impressão que você tem de fora, mas quanto a mim, cada dia parece estar descobrindo algo mais belo, mais moldado, mais sólido ”(1951: 166). Percebe-se o trabalho de Griaule e entre seus colegas de trabalho - especialmente Germaine Dieterlen - um envolvimento profundo, algumas vezes místico, com o dogon sophie (Rouch 1978b: 11-17). Mas, enquanto Dieterlen tendia a apagar sua própria autoridade por trás da dogon, Griaule, que vivia para ver apenas os primórdios da 'descolonização', falava com sotaque francamente paternalista como defensor das culturas tradicionais africanas. Suas generalizações tardias são governadas por uma corrente familiar de sinédoques. Ogotemmèli e Sanga representam os Dogon, os Dogon para o Sudão tradicional, o Sudão para a África Negra, a África para “ihomme noir”. Griaule se move livremente de um nível para outro, construindo uma civilização elementar notavelmente diferente daquela da Europa. Mas a diferença é estabelecida apenas para ser desfeita em um humanismo totalizante (1952b: 24). Uma vez que a essência tradicional africana é caracterizada e defendida com simpatia, é então retratada, em última instância, como uma resposta ao 'grande princípio, às mesmas grandes incertezas humanas' que a ciência e a filosofia ocidentais engajaram (1951: 166). . O etnógrafo fala como participante de duas civilizações que por meio de sua experiência iniciática e conhecimento especial podem ser reunidos em um nível “humano”. No início dos anos 50, Griaule se apresenta como alguém que conhece a África; e ele sabe também o que é bom para a África. A compreensão etnográfica é crítica em um contexto colonial em mudança; ela permite “selecionar os valores morais que são de mérito e devem ser preservados”, para “decidir que instituições e que sistemas de pensamento devem ser preservados e propagados na África Negra” (1953: 372). A tradição deve ser bem compreendida para que a mudança possa ser adequadamente orientada, “é uma questão de pegar o que é rico e transpor para a nossa própria situação, ou para a situação que desejamos fazer para eles (1951: 163). O 'nós' de Griaule pertence a 1951 e a União colonial francesa, da qual ele era conselheiro. As riquezas culturais que de alguma forma serão preservadas ou transpostas estão sempre localizadas no domínio da tradição ou do costume “autêntico” - uma área mais ou menos livre de influências européias ou islâmicas. Mas o liberal etnográfico, que representa a essência de uma cultura contra as forças “externas” impuras, contraria, mais cedo ou mais tarde, uma contradição embutida em todos os discursos que resistem ou tentam ficar de fora da invenção histórica. Os críticos mais persistentes da defesa da África por Griaule foram os africanos educados, “volués”, que rejeitaram qualquer reificação de seu passado cultural, por mais simpático que fosse. Griaule tendia a explicar essas resistências como consequências infelizes de uma educação desequilibrada: “Você não pode estar simultaneamente na escola e no bosque sagrado” (1951: 164; Malroux 1957: 15). Os intelectuais negros que se opunham a seus eloqüentes retratos de suas tradições não eram mais autenticamente africanos, mas vítimas do “tipo de 'desviar-se dos menores', do qual todas as potências coloniais se entregaram” (1953: 376). Tais declarações não mais carregam a autoridade que a Griaule foi capaz de transmitir a elas no início dos anos 50 e foram de fato desafiadas na ocasião de sua enunciação (Griaule 1951, discussão: 147-66). Mais congenial hoje são as opiniões expressas no mesmo momento pelo colega inicial de Griaule, Michel Leiris. Um breve contraste final evocará a mudança da situação ideológica nos anos anteriores à morte de Griaule, uma situação em que a etnografia ainda está enredada. Leiris foi talvez o primeiro etnógrafo a confrontar diretamente as restrições políticas e epistemológicas do colonialismo no trabalho de campo (Leiris 1950). Ele via o etnógrafo como um defensor natural dos povos explorados e advertiu contra as definições de autenticidade que excluíam as évolués e as imperfeições do sincretismo cultural. Tanto Leiris quanto Griaule contribuíram com ensaios em 1953 para uma coleção da UNESCO intitulada interrelations of Cultures. As diferenças em suas abordagens ainda são instrutivas hoje. O “Problema da Cultura Negra”, de Griaule, argumenta que “as religiões tradicionais, assim como a estrutura social e legal e o artesanato técnico das raças negras, emanam de um sistema único e rígido de pensamento - um sistema que fornece uma interpretação do universo. , assim como uma filosofia que permite que a tribo continue e que o indivíduo leve uma vida equilibrada ”(1953: 361). Os exemplos de Dogon e Bambara são elucidados para ilustrar esse “substrato metafísico”, que Griaule apresenta como característica do “negro” ou da “cultura negra” (362). Leiris, ao abordar seu tema “Os negros africanos e as artes da escultura e da escultura”, evoca um problema historicamente específico da tradução intercultural. Começa por traçar a descoberta do 'art nègre' entre os avant-garde do início do século, os europeus inventam uma estética africana para seus próprios propósitos artísticos. Ele então lança dúvidas sobre seu próprio empreendimento, apontando o absurdo de um africano tentando um pequeno ensaio para lidar com toda a “escultura européia”. Ele prossegue baseando suas generalizações sobre a arte “africana”, não em qualquer presunção de uma essência comum, mas numa perspectiva contingente. Ele escreve como um ocidental percebendo similaridades. entre as diversas esculturas da África e até apresentá-las como expressões de uma “civilização”, compreendendo esses conjuntos como ilusões ópticas, em certo sentido, a aparente unidade das formas da arte negra é inerente apenas à percepção das formas comuns pelas quais diferem. A recusa de representar uma essência exótica - uma questão importante de tato epistemológico - baseia-se (em parte, pelo menos) nos modos como Leiris se habitua. carreira etnográfica divergido do de seu colega de trabalho na sion Mis Dakar-Djibouti. Leiris nunca sofreu qualquer 'iniciação' em uma forma exótica de vida ou crença. De fato, seu trabalho (especialmente L'Afrique fantôme é uma crítica implacável do paradigma da iniciação. Sua obra literária, amplamente dedicada a uma autobiografia heterodoxa e interminável, reforça o ponto etnográfico. Como poderia Leiris presumir representar outra cultura, quando teve problemas suficientes para se representar? Tal atitude tornou impossível o trabalho de campo sustentado. A confiança enérgica de Griaule na representação cultural não poderia estar mais longe da incerteza lúcida e torturada de Leiris. As duas posições marcam a situação de uma etnografia pós-colonial. Algumas autorizações de ficção de “encontro autêntico”, na expressão de Geertz, parecem um pré-requisito para a pesquisa intensiva. Mas as alegações iniciáticas de falar como um conhecedor que revela verdades culturais essenciais não são mais confiáveis. O trabalho de campo não pode aparecer primariamente como um processo cumulativo de coleta de “experiência” ou de “aprendizagem” cultural por um sujeito autônomo. Deve antes ser visto como um encontro dialógico, contingente, incontrolável, historicamente envolvendo, até certo ponto, conflito e colaboração na produção de textos. Os etnógrafos parecem estar condenados a lutar pelo verdadeiro encontro, ao mesmo tempo em que reconhecem os objetivos políticos, éticos e pessoais que prejudicam qualquer transmissão do conhecimento intercultural. Posicionados entre a encenação de Griaule e a recusa de Leiris desta situação irônica, e trabalhando nas fronteiras agora borradas do liberalismo etnográfico, os pesquisadores de campo lutam para improvisar novos modos de autoridade. Eles talvez encontrem algum encorajamento retrospectivo na tradição Griaule de invenção cultural etnográfica. Pois a história contém elementos que apontam para além da autoridade iniciática e do contexto neocolonial. Até hoje, o relato mais esclarecedor de como a pesquisa ocorreu na sequência do Ogotemmêli é o prefácio de Geneviève Calame-Griaule para Ethnologie et langage: La parole chez les Dogon (1965). Ela conta como “as visões extremamente precisas” que ela reuniu de seus interlocutores levou à elaboração de “uma verdadeira teoria dogoniana do discurso” (11). Ela apresenta seus quatro principais colaboradores, dando sugestões de seus estilos e preocupações pessoais. Aprendemos que um deles, Manda, era o equivalente dogon de um 'teólogo', e que ele guiava o etnógrafo para as relações de linguagem e a pessoa que se tornou o princípio organizador do livro. Até mesmo as descrições e interpretações do livro sobre o comportamento cotidiano foram obra de ambos, etnógrafos e informantes, muitos dos quais possuem extraordinária “sutileza em observação” (14). Enquanto Calame-Griaule ainda faz uma afirmação cautelosa de representar uma “orientação cultural” geral de Dogon, seu prefácio percorre um longo caminho para lançar o processo etnográfico em termos dialógicos específicos. A teoria da fala que Calame-Griaule compilou brilhantemente é inescapavelmente um trabalho colaborativo, continuando o encontro produtivo de seu pai com os habitantes de Sanga. E é uma autêntica criação da “necessidade do pensamento Dogon em se expressar por dialética, por uma troca de perguntas e respostas que se interpenetram e se entrelaçam” (17).

Bibliografia

 

Lévy-Bruhl, L. (2015). A mentalidade primitiva. Rio de Janeiro: Teodoro.

Mauss, M. (2003). Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify.

Mauss, M. (1969). Manuale di Etnografia. Milano: Jaca Book.

Meillet, A., & Cohen, M. (1924). Les Langues du Monde. Paris: Édouard Champion.

Clifford, J. (2019). Aesthetics and the Revolutionary City. London: Palgrave MacMillan.

Leiris, M. (1996). L’Afrique fantôme. In Miroir de l’Afrique (pp. 65–868). Paris: Gallimard.

Griaule, M. (1938). Masques Dogons. Paris: Institut d’ethnologie.

Griaule, M. (2002). Dio d’acqua. Incontri con Ogotemmeli. Torino: Bollati Boringhieri.

Griaule, M. (1957). Methode de l’ethnographie. Paris: Presses Universitaires de France.

Griaule, M. (1948). Fondement mythique de la société Dogon. Springer, 7(3), 188–189.

Lettens, D. (1971). La vie et l’oeuvre de Marcel Griaule. Bujumbura: Lavigerie.

Griaule, M. (2002). Dio d’acqua. Incontri con Ogotemmeli. Bollati Boringhieri.

Griaule, M. (1952). Le savoir des Dogon. Journal de La Société Des Africanistes, 22, 27–42.

Griaule, M., & Dieterlen, G. (1986). The pale fox. Continuum Foundation.

Calame Griaule, G. (1982). Etimologie et langage: La parole chez les Dogon. Madrid: Editora Nacional.

Hountondji, P. J. (1976). Sur la “philosophie africaine”: critique de l’ethnophilosophie. Paris: Maspero.

Foster, G. (1972). Tzintzuntzan, los campesinos mexicanos en un mundo en cambio. México: Fondo de cultura económica.

Delafosse, M. (1922). Les Noirs de l’Afrique. Paris: Payot.

Griaule, M. (1957). Méthode de l’Ethnographie. Presses Universitaires de France.

Mauss, M. (1969). Manuale di Etnografia. Jaca Book.

Griaule, M. (1943). Les Sao légendaires. Paris: Gallimard.

Leiris, M. (1996). L’Afrique fantôme. In Miroir de l’Afrique (pp. 65–868). Gallimard.

 

 

Quinta Lição: 29 de Novembro - Malinowski

 

 

MALINOWSKI

Biografia

Bronislaw Malinowski, foi uma criatura de seu tempo. Sua carreira profissional foi demarcada pelas duas Guerras Mundiais, aproximadamente entre 1912 e 1942. A importância de Malinowski como antropólogo, sua habilidade como escritor e o tempo decorrido desde suas contribuições mais importantes, há mais de meio século, justificam uma reavaliação de seu trabalho para o benefício de novas gerações de estudantes de antropologia aplicada.

Foi somente no final da década de 1930 que Malinowski enfocou efetivamente a antropologia prática, o termo que ele usou para antropologia aplicada, embora ele tenha começado esse trabalho na década de 1920. Nos Estados Unidos, a antropologia não se envolveria extensivamente na solução de problemas sociais até aquela época, mas houve esforços isolados para aplicar a antropologia a questões práticas, mesmo no século anterior - esforços de Lewis Henry Morgan, Alice Fletcher e outros. Um trabalho mais extenso foi feito no Bureau of Indian Affairs durante a década de 1930 e durante a Segunda Guerra Mundial, quando a Sociedade de Antropologia Aplicada foi fundada. Na Grã-Bretanha, antropólogos trabalharam com administradores coloniais e forneceram treinamento para burocratas estrangeiros desde o início do século (Herskovits 1936). A fundação do Instituto Internacional de Línguas e Culturas Africanas em 1926 (Instituto Internacional de Línguas e Culturas Africanas 1932) e, mais tarde, o Instituto Rhodes-Livingstone proporcionou novas oportunidades na Grã-Bretanha para o desenvolvimento do envolvimento antropológico aplicado com administradores e políticos. Essas foram as oportunidades apresentadas a Malinowski e seus alunos.

Bronislaw Malinowski, foi a figura mais ecêntrica e controversa que já apareceu no campo da antropologia. Malinowski não conhecia limites. Essa característica irrita os antropólogos profissionais que queriam estabelecer uma disciplina científica independente, mas ganharam a confiança das populações primitivas de uma maneira que nunca foi igualada. Ele ignorou a divisão académica do campo do comportamento humano nos departamentos de antropologia, sociologia e psicologia, e mudou livremente de um setor para outro de acordo com as necessidades do problema. Com o mesmo espírito, ele contactou os seus informantes no campo livre de premissas intelectuais e emocionais sobre qual era o caminho certo para trabalhar. Sua antropologia acerca do relacionamento entre indivíduo e instituições sócio-cultural era limitado a estas perguntas: funciona? Como isso funciona? Por que isso funciona? Com eles fundou a escola 'lista funcional' e iniciou a tradição 'observador, participante'. Malinowski era um 'participante' por natureza. Ele estava em casa no drama imprevisível dos encontros humanos. Sua casa costumava ser tão cheia de estudantes, amigos, colegas e estranhos que sua esposa alugava acomodações fora de Londres, onde ele poderia se refugiar periodicamente para escapar dessa confusão. Em Malinowski, por outro lado, uma casa lotada, um grande público ou um animado seminário forneciam as condições ideais para estudo e pesquisa. A discussão directa e a cooperação informal do seminário eram seu lugar favorito para ensino e pesquisa. Em contraste com o resto de sua vida, a infância de Malinowski foi uma infância solitária.

Biografia

Bronislaw Malinowski nasceu em 1884 em Cracóvia, Polônia, que naquela época fazia parte da Áustria. Seu pai era professor de filologia eslava na Universidade Jugiellon. O primeiro treinamento de Malinowski foi em físico-química e ciências naturais, e ele recebeu o doutorado em 1908 em física e matemática. Ele posteriormente estudou com Wilhelm Wundt, o pai da psicologia moderna. Chegando à Inglaterra em 1910, ele estudou por quatro anos com Edward Westermarck, Leonard T. Hobhouse, James G. Frazer, William H. R. Rivers (mais conhecido como W. H. R. Rivers) e Havelock Ellis. Em sua formação como antropólogo, Malinowski seguiu as obras de Franz Boas e Émile Durkheim, cada um dos quais aderiu a uma noção de holismo. Ele recebeu um doutorado em 1916 por um estudo de biblioteca sobre o parentesco australiano e deu uma palestra sobre o assunto na London School of Economics (Firth 1957: 3; Malinowski 1913a). No mesmo ano, ele acompanhou outros antropólogos à Austrália para participar das reuniões da Associação Britânica para o Avanço da Ciência e para conduzir o trabalho de campo. Ele foi apoiado por bolsas negociadas por C. G. Seligman enquanto esperava por fundos adicionais. Com o apoio do governo da Austrália, Malinowski foi para as ilhas da Nova Guiné, terminando nas Trobriands, onde realizou sua mais conhecida pesquisa de campo de 1914 a 1918.

Em 1918, Malinowski casou-se com Elsie Masson, filha de um professor australiano de química. Pouco depois de seu retorno à Grã-Bretanha, ele foi nomeado para a primeira cadeira de antropologia social na London School of Economics em 1924, cargo que manteve até 1938. Depois de visitar os EUA várias vezes, ele ensinou na Universidade da Califórnia em Berkeley, Universidade Cornell e Universidade do Arizona. Ele passou o inverno de 1938-39 em Tucson por motivos de saúde e deu palestras com frequência. A Universidade do Arizona ofereceu-lhe um cargo de professor, mas ele recusou a oferta para aceitar a bolsa Bernice P. Bishop Fellowship em Yale, que lhe permitiu fazer trabalho de campo sobre sistemas de mercado em Oaxaca (Malinowski e de la Fuente 1982). No ano seguinte (1939-40), ele foi nomeado professor em Yale, onde morreu em 1942.

A vocação antropológica

Ele era filho único e seu pai morreu quando ainda era criança. Naquele tempo nasceu um apego entre mãe e filho que continuou ao longo da vida. Antes de separaram da guerra, a mãe acompanhava Malinowski onde quer que ele fosse e aparecia com cuidadosas atenções. Foi de seus lábios que ele aprendeu as primeiras noções de antropologia quando ficou cego por um ano, a causa duma operação a seus olhos no início de sua carreira antropológica, foi sua mãe que durante a convalescência lhe lia o texto do Ramo de Ouro de Frazer. A Sua morte em 1918, quando ela era refém de soldados russos acampados em sua casa, constituiu uma tragédia da qual Malinowski mal retomou.

Malinowski nasceu em Cracóvia, Polônia, no dia 7, de Abril a 1884. Seu pai pertencia à pequena nobreza aristocrática, mas ele realizou uma atividade acadêmica como professor de filologia eslava na Universidade Jagelloni em Cracóvia. Malinowski completou seus primeiros estudos na escola Publique o rei John Sobieski. Daqui ele entrou na Universidade de Cracóvia, onde em 1908 ele obteve uma licenciatura em física e matemática. Seu diploma foi recompensado com as mais altas honras do Império Austríaco. Malinowski tinha uma carreira promissora em física, que começou com dois anos de estudo e pesquisa no laboratório de química física de Wilhelm Ostwald em Leipzig, foi interrompida quando por causa duma doença aos olhos a mãe lhe leu O ramo de ouro por Frazer. Antes de colocar o último volume desse trabalho, sua carreira como físico foi concluída, e ele se tornou um fã da antropologia: 'Porque assim que eu comecei a ler este grande trabalho', escreveu Malinowski, 'imediatamente imerso nele e me encantei ... e me dediquei a servir a antropologia de Frazer. Ao contrário de seu ídolo e mentor, Sir James Frazer, Malinowski não serve antropologia das bibliotecas pois após quatro anos de estudo, pesquisa e redação na London School of Economics, ele viajou para a Austrália como secretário de uma expedição financiada pela Associação Britânica para o Avanço da Ciência. Ele havia estudado com o maior pesquisador daquele período, CG Seligman, que tinha uma opinião tão elevada sobre as habilidades de Malinowski enquanto antropólogo, que ele havia se oferecido a sofrer uma redução do seu estipendio para que ele pudesse ser assumido pela universidade Escola de Economia de Londres. Além das influências de Seligman e Frazer, devemos nos lembrar de seus estudos com Westermarck, Rivers e Hobouse em Londres. Em 1913, ele publicou seu primeiro livro, A família, entre os aborígines australianos (The Aboriginal Family). Ele estava perfeitamente adaptado a esta expedição de pesquisa na Austrália e nenhum outro antropólogo foi capaz de explorar sua preparação e suas oportunidades também. Foi o desastre da guerra, no entanto, que deu à vida de Malinowski a característica de. ‘Desgraça’ e no mesmo tempo ‘sistemação’ são termos contraditórios para a maioria das pessoas, mas existem outros, como Malinowski, para quem a flexibilidade e a determinação estão tão conectadas que o acaso ocupa um lugar natural na cadeia causal de eventos. Sendo subdito austríaco, na eclosão da guerra, Malinowski teve de ficar preso na Austrália enquanto estava a vontade a fazer sua pesquisa. Em vez de resignar-se a uma ociosidade forçada, persuadiu o governo australiano a deixá-lo explorar o território durante seu internamento'. Foi tãao convencedor que o governo lhe forneceu os fundos para continuar seu trabalho, Malinowski permaneceu na Austrália por seis anos e fez três longas viagens de pesquisa, uma para Mailu (1915) e duas para as Ilhas Trobriand (1915-1916 e 1917-1918). Pesquisa de campo na Austrália foi uma experiência fundamental da carreira de Malinowski viveu como um nativo entre os nativos, ele experimentou diretamente as necessidades e os confortos da cultura índia. É famosa a aua célebre intolerância contra a antropologia acadêmica (baseada na reconstrução histórica) nasceu dessa experiência. Malinowski se casou com  Elsie Rosaline Masson em Melbourne, em 1919, filha do renomado professor de química Sir David Masson. Eles deixaram a Austrália logo após o casamento e foram para as Ilhas Canárias por um ano de relaxamento e trabalho silencioso. Malinowski, de fato, depois de receber a notícia da morte de sua mãe, ficou seriamente doente. Em 1921 os cônjuges Malinowski, que até então tinham tido uma filha, mudaram-se por dois anos para Cassise, onde Malinowski continuou seus estudos e preparou seu trabalho para a publicação. Então eles compraram uma casa no norte da Itália e de lá Malinowski periodicamente ia para Londres. Ele aceitou o cargo de leitor de antropologia social na Universidade de Londres em 1924 e da cadeira de antropologia no mesmo Universidade em 1927. A família, que tinha crescido com o nascimento de duas filhas, ele se mudou para Londres em 1929. Aqui Malinowski poderia estar mais próximo de seus alunos e seus colegas, e participar de, como era de seu agrado, a uma vida social ativa. Malinowski tinha visitado os Estados Unidos em 1926 e trabalhou durante o verão daquele ano na

Suas realizações

Em mais de 50 anos desde sua morte, as contribuições de Malinowski para o funcionalismo e o trabalho de campo atraíram mais atenção do que seus outros trabalhos (Kaberry 1957). Isso porque o cerne da antropologia, tanto nos Estados Unidos quanto na Grã-Bretanha, era focado na teoria e no conhecimento de primeira mão dos povos indígenas.  Ele foi lido fora da antropologia, principalmente em psicologia e psiquiatria, e foi um grande divulgador da área, com uma queda por títulos de livros e palestras que excitavam o público. Malinowski era mais conhecido por contribuições à metodologia de trabalho de campo , como professor, e por contribuições teóricas em funcionalismo, cultura e personalidade, mudança de cultura e magia e religião.

No início de sua carreira, Malinowski se concentrou em estudos de família e parentesco (1913a), totemismo (1926d), religião e mitologia (1926d), economia (1922), guerra (1926c), sexo (1929b) e psicanálise (1927a). Entre suas obras mais conhecidas estão a etnografia dos ilhéus das ilhas Trobriand, Argonauts of the Western Pacific (1922) e obras mais populares como The Sexual Life of Savages (1929b), Crime and Custom in Savage Society (1926c), Myth in Primitive Psychology (1926d) e The Father in Primitive Psychology (1927a).

Por volta de 1925, uma nova fase começou para Malinowski, à medida que ele se preocupava mais com as questões sociais, a mudança nativa e a antropologia prática. Seu interesse e trabalho nessas áreas da antropologia aplicada, foco deste ensaio, são menos conhecidos. Da perspectiva das ciências sociais aplicadas, suas contribuições mais influentes são os estudos do contato cultural e da mudança nativa, os esforços para definir a antropologia como uma ciência e o desenvolvimento de uma antropologia prática que se concentra no estudo dos problemas sociais dos povos aborígenes modernos. Universidade da Califórnia. No momento da sua segunda visita (1933) como professor na Cornell University, ele já era famoso como professor, antropólogo e cientista. Seus trabalhos foram traduzidos em meia dúzia de idiomas e alguns dos melhores antropólogos foram treinados com ele. Ele se tornou um conferencista popular, de grande fama, e conquistou a antropologia muitos leigos e muitos cientistas de outros campos. Em 1936 ele foi escolhido para representar a Universidade de Londres e a Academia Polonesa no terceiro centenário de Harvard. Aqui, ele foi saudado como 'um explorador, um antropólogo que tinha começado uma nova era no estudo dos costumes e hábitos da raça humana'. Nas suas conferências, havia uma grande multidão que vinha para ouvi-lo sobre a 'Cultura' e centenas de pessoas não conseguindo ter lugar tiveram de ser enviadas para casa. De volta à Inglaterra em 1937, Malinowski ficou doente. novamente e em 1938 ele foi para os Estados Unidos para passar suas férias no Arizona. Quando, em 1939, Malinowski se preparava para retornar à Europa, a Segunda Guerra Mundial eclodiu. Ele decidiu ficar nos Estados Unidos e teve um emprego na Universidade de Yale. Em 1940 e 1941 ele estudou os Zapoteca do Mexico. Em 15 de maio de 1942, Malinowski presidiu, como presidente, na abertura do Instituto Polonês de Artes e Ciências. Ele morreu repentinamente de um ataque cardíaco no dia seguinte em sua casa em New Haven, Connecticut.

 

Se é verdade, em geral, que o trabalho de um homem constitui sempre um certo tipo de expressão de sua personalidade, isso é verdade para  Malinowski em particular. Ele era um homem de grande entusiasmo e franqueza e despertou em outros reações fortes e apaixonadas. Sua personalidade e seu trabalho sempre foram objecto de intensa controvérsia. Seu sucesso em estabelecer relações com os nativos que estudou e em descobrir seus pensamentos e sentimentos mais íntimos - um sucesso graças ao qual suas descrições etnográficas tocaram a perfeição - deve ser atribuído, em grande parte, à natureza extremamente sensível de Malinowski. Sua curiosidade e seu senso humano eram dirigidos a todas as pessoas e eram tão espontâneos e intuitivos quanto analíticos. Seus gostos e desgostos eram igualmente fortes e espontâneos. Ele tinha um grande talento para fazer falar as pessoas. A filha mais velha, Jozefa, lembra-se de que, uma vez, em um café na Itália, Malinowski reuniu imediatamente a grande família do proprietário, pronta para lhe dar informações sobre ele e sua cidade. Mas se ficasse enjoado, levantava-se e ia-se embora, e a reunião terminava abruptamente como começara. Malinowski sempre evitou gracejos sociais que o impedia de se comunicar abertamente com o povo e, embora ele fosse chamado de excêntrico na sua classe social, essa liberdade, sem dúvida, contribuiu para conquistar a confiança daqueles que o interessavam. Como observador, prestou particular atenção àquelas nuances do comportamento humano que podem escapar a um pesquisador treinado e escrupuloso, mas menos dotado de sensibilidade, nuances que se revelam indispensáveis ​​para uma descrição precisa de um povo. De sua própria experiência, Malinowski estava ciente das razões ocultas que podiam influenciar o comportamento humano e a necessidade de identificá-las, e ele tentou fazê-lo em todos os seus relacionamentos, tanto pessoais quanto profissionais. Uma vez, por exemplo, surgiu uma briga entre ele e sua filha, que haviam se encontrado pela primeira vez depois de um ano e meio. No meio da discussão que vertia se ir almoçar em um clube de moda, como as meninas queriam, ou em um lugar calmo, onde Malinowski poderia ter tido toda a atenção delas, ele se retirou e calmamente analisou o argumento tentando descobrir motivos latentes. De acordo com Raymond Firth, um velho e amado aluno, Malinowski com frequência se comportava assim: 'e se a discussão chegava a um ponto crítico - porque às vezes era possível discutir ferozmente com ele - ele tinha um jeito muito desarmante de deixar de lado todas as emoções, e ‘explicar’ na hora, toda a questão analisando os seus motivos e os do interlocutor. Essa capacidade de análise objectiva e imparcial estava no coração dos dois extremos emocionais de Malinowski. No entanto, geralmente alegre, espirituoso e otimista, ele às vezes estava sujeito a profunda depressão. Ele era hipocondríaco imaginava de estar sujeito a doenças e enfermidades e defendia-se com dietas e exercícios. O pesadelo que mais o assustava era  de acabar em um hospital.

A revolta de Malinowski contra a ortodoxia começou muito cedo. Sua mãe era católica e ele foi estritamente educado na tradição católica. Certa vez, quando era ainda jovem e morava em Cracovia, um velho judeu que viajava de comboio no seu próprio compartimento perguntou-lhe por que 'acreditava' e Malinowski não encontrando uma resposta satisfatória, tornou-se agnóstico - e o manifestava sempre em situações embaraçosas para as filhas pois não quis que fossem baptizadas até que se tornassem suficientemente adultas para decidir com maturidade por elas próprias. Na escola religiosa que elas frequentavam, Malinowski, quando ia a visita-las, não vestia 'convenientemente', nem comparecia nas funções religiosas da capela, porque o incomodavam. Depois de uma transmissão da BBC em que ele proclamou seu agnosticismo, o Exército de Salvação deixou panfletos religiosos no limiar de sua casa. Embora não pudesse aceitar nenhuma religião formal, no entanto Malinowski afirmava sempre a importância da religião na sociedade. Numa passagem afirmou:

«Uma vida social sólida deve ser baseada num sistema francamente religioso de valores, um sistema que reflita a revelação que foi feita da existência duma ordem espiritual e moral».

Esse tipo de 'inconsistência' era comum em Malinowski. Ele era, por exemplo, um entusiasta defensor da 'educação progressista', mas não instruiu suas filhas dessa maneira e disse que não permitiria que elas fossem criadas nas escolas progressistas. O que era bom para a sociedade não era necessariamente bom para Malinowski. Como estudioso da sociedade, ele se considerava livre desses imperativos culturais que impediam uma análise objectiva da própria sociedade. Malinowski não se limitou a desprezar os hábitos e boas maneiras costumeiras, mas se alegrava em violá-los e há muitas anedotas sobre seu comportamento excêntrico. A filha lembra-se de que ele frequentemente ditava deitado na cama usando a jaqueta do pijama e as calças enroladas na cabeça; Firth lembra que Malinowski foi encontrado deitado no chão da Covent Garden Opera House durante a representação de Das Rheingold. Quando perguntado por que ele tinha um comportamento tão estranho, Malinowski respondeu: «vim para ouvir Wagner é não para ver as donzelas do Reno». Ao ouvir as histórias fragmentárias sobre a personalidade de Malinowski, poderíamos ter a impressão de um menino franco ou insocial: ele tinha muita energia e usava-a precipitadamente; ele era intensamente curioso; ele poderia ser terno ou severo, de acordo com seus verdadeiros sentimentos; ele sabia como penetrar nos sentimentos ocultos dos outros; e ele sempre foi puro. Essas características, juntamente com um  profundo senso humano, ao dizer de Marett, lhe abria o caminho para penetrar o coração do selvagem mais fechado, e constituíam motivo do seu sucesso lendário como pesquisador. Não sendo indissoluvelmente ligado à sua própria cultura, Malinowski era mais capaz de qualquer outro em compreender as concepções, atitudes e sentimentos daqueles que pertenciam a outra cultura. Ele parecia um verdadeiro cosmopolita. Apesar de sua aguda sensibilidade, Malinowski não era nem sentimental nem poderia tolerar uma atitude ingénua e irreal em relação ao mundo. Ele estava desdenhoso de qualquer tentativa de parar somente na fé e, embora suas intuições muitas vezes o levassem a novas concepções e directrizes de pesquisa frutíferas, ele sempre examinava meticulosamente seu trabalho e seus métodos a fim de eliminar a incerteza, a nebulosidade e a incoerência. Ele combinava as qualidades do poeta com as do cientista; enfim qualidades que são comummente atribuídas a esses dois tipos opostos. Malinowski era professor e palestrante de grande popularidade. Sua influência como professor e divulgador era pelo menos tão grande quanto seus escritos. O sucesso obtido como professor deveu-se, em muitos aspectos, às mesmas características pessoais que lhe garantiam resultados tão brilhantes na sua pesquisa. Ele tinha grande entusiasmo pela antropologia e quando defendia um ponto de vista controverso, seus alunos o consideravam um gladiador que lutava heróica e brilhantemente por um método, por uma ideia ou por uma interpretação nova ou impopular. Segundo um dos seus alunos, Audrey Richards, era a intensidade do seu trabalho que mais impressionava. Juntamente com a ingenuidade, Malinowski deplorou acima de tudo a impaciência ou indiferença face ao trabalho duro, e não as tolerava, de forma nenhuma, em seus alunos. Ele via a si mesmo e aos seus alunos como se fossem uma unidade, uma equipe que dedicaria todas as suas energias para resolver os problemas mais difíceis. Aqueles que não puderam ou não quiseram contribuir ficaram de fora. Foi fácil para Malinowski sentir um verdadeiro entusiasmo a frente de seus alunos porque ele ignorava a carreira da universidade, e suas aulas tratavam apenas dos problemas que o interessavam naquele momento. Dessa prática podia resultar uma organização insuficiente na coleta de dados etnográficos, mas teve a grande vantagem de os introduzir diretamente nos métodos e teorias da antropologia. Como sempre houve algo importante em jogo, nessas aulas e nesses seminários o zelo de Malinowski era grande, mesmo que imprevisível. Qualquer que fosse seu estado de espírito, ele estava sempre aberto e provocativo. Audrey Richards lembra que, se seus alunos estavam 'irritados com sua intolerância ou inspirados por seu entusiasmo ... nunca ficavam cansados’, Malinowski preferiu o carácter não-formal do seminário à formalidade das conferências públicas, embora ele fosse brilhante procurava sempre o 'problema de fundo’ que estava na base de toda investigação ou estudo e insistia que deveria ser descoberto numa 'situação humana fundamental’. Malinowski considerou esse o ’coeficiente de realidade'  muito importante para a compreensão da nossa própria sociedade. Foi, disse ele, a principal justificação da antropologia. Os estudos funcionalistas de Malinowski sobre a cultura, estudos que sempre infundiram vida nos seus objetos, atraíram seus seminários estudiosos de todo o mundo e vindo de muitas disciplinas. Administradores coloniais, leitores universitários e eruditos recém-iniciados sentavam-se lado a lado a ouvir Malinowski que falava em quatro ou cinco línguas diferentes. Não havia barreiras linguísticas e pessoais à comunicação. 'Nele não havia nada despropositado, afirma MF Ashley Montagu, um de seus primeiros pupilos '' ele imediatamente colocava à vontade seu interlocutor. Como palestrante, Malinowski atraia uma ampla audiência para a antropologia. Kluckhohn, que tem sérias reservas sobre as teorias fundamentais de Malinowski, diz que, graças a ele, 'milhares de profanos de muitos países se interessaram por uma antropologia cujos métodos, intenções e resultados se tornaram compreensíveis'. Em reuniões e palestras, Malinowski era geralmente o centro de um interesse animado, Richards citava as palavras de um missionário: «Convidar Malinowski para a sessão de abertura de uma conferência, acabava que metade da platéia discordará dele furiosamente, mas as discussões prosseguiam com entusiasmo desde o início» . E Braunholtz lembra que Malinowski', nunca deixava de estimular ou reavivar nossas discussões, que, por vezes, prolongavam-se até tarde. Porque ele era um orador experto e espirituoso, por vezes provocador, mas nunca chato. 'Para alguns, no entanto, especialmente entre os antropólogos por profissão, Malinowski não era uma figura tão grande e excitante. Kluckhohn afirma que para muitos, incluindo a maioria dos antropólogos profissionais americanos, 'Malinowski aparecia nada mais de que um Messias pretensioso para seus crentes’.

Funcionalismo e teoria

Malinowski foi um dos dois criadores, junto com A. R. Radcliffe-Brown, do funcionalismo. O funcionalismo de Radcliffe-Brown focava na sociedade enquanto sistema, sincrônico, integrado e funcional em oposição ao diacronismo dos evolucionistas e dos historicistas americanos. Sua teoria sustentava que actos, rituais, valores e outros elementos da cultura tinham como finalidade a de perpetuar o sistema social. Malinowski também se concentrava na integração funcional e no estudo sincronizado, mas deu mais ênfase ao indivíduo e às suas necessidades biológicas. As duas versões do funcionalismo foram derivadas do sociólogo francês Emile Durkheim. Malinowski conheceu a obra de Durkheim no início de sua carreira; uma de suas primeiras publicações em (1913b) foi Les Formes Elémentaires de la Vie Religieuse de Durkheim (1912).

Malinowski concordou com Radcliffe-Brown sobre a integridade funcional das unidades culturais, que ele chamou de instituições. O objetivo das instituições é atender às sete necessidades humanas básicas:

Cultura funcional

Malinowski afirmava que a cultura em todos os lugares tinha o mesmo aspecto –

No nível cultural, as instituições funcionam para

Ao enfatizar a base fisiológica e psicológica da cultura, Malinowski esperava dar um caráter universal à sua teoria. Isso diferia do funcionalismo de Radcliffe-Brown, que enfatizava as necessidades sociais em vez das biológicas; Radcliffe-Brown afirmou que a análise dos artigos de Malinowski deve focar nas necessidades funcionais da sociedade (um conceito raramente usado por Malinowski) e não no indivíduo.

Algumas das mesmas críticas dirigidas a Radcliffe-Brown e seus seguidores também passaram a caracterizar comentários sobre a variedade malinowskiana do funcionalismo. Ambas as variedades de funcionalismo ignoraram qualquer falta de consistência funcional em configurações culturais particulares e o fenômeno de mudança de função. Além disso, Malinowski foi acusado de ser muito empírico e, embora seu foco no indivíduo estivesse à frente de seu tempo, a abordagem das necessidades biológicas estava diminuindo na psicologia. O foco antropológico de Malinowski, abrangendo etnografia, metodologia, cultura e personalidade, mudança cultural e questões sociais, bem como política, também foi considerado muito amplo durante uma época em que o resto do campo tinha uma visão menos abrangente. Ao contrário de seu protagonista Radcliffe-Brown, Malinowski não foi acusado de ter uma ideologia conservadora que apoiava o status quo, o colonialismo e o capitalismo. A julgar pelo desejo de Malinowski de apoiar os nativos, estudar questões sociais e aconselhar administradores e formuladores de políticas, alguém poderia defender seu liberalismo.

Elizabeth Colson , que participou dos seminários de Malinowski na London School of Economics, afirma que o funcionalismo de Malinowski foi especialmente relevante para a antropologia aplicada e que ajudou a dar aos antropólogos legitimidade no trabalho para resolver problemas sociais.

«Fomos treinados [pelo funcionalismo de Malinowski] para procurar interconexões entre campos de ação de uma forma sistemática e perguntar 'Se isso mudasse, o que mais aconteceria?', Nenhuma diretriz ruim, seja um antropólogo aplicado ou acadêmico».

Método funcionalista

Na verdade, embora o funcionalismo nunca tenha sido exatamente uma teoria, ele forneceu um bom método de trabalho. Hoje, é claro, alguém usaria outros termos, já que cada geração precisa de seu próprio vocabulário - e assim podemos alegar que estamos desenvolvendo modelos de trabalho, ou escrevendo uma descrição densa, ou adoptando uma abordagem holística, em vez de empreender uma análise funcional. O termo antigo, entretanto, significava algo mais no contexto da antropologia aplicada, pois se algo podia funcionar, também podia deixar de funcionar, e isso exige investigação do que deu errado; e se algo está funcionando, é preciso perguntar o que acontecerá se tentarmos mexer em um sistema funcional introduzindo mudanças. Naquela época e lugar que homenageava o técnico e o engenheiro, o termo “funcionalismo” invocava associações que davam lugar ao antropólogo como técnico (Colson 1985: 192).

Ele foi acusado de limitar-se a 'capitalizar noções óbvias' e propor como novas concepções aquelas que outros antropólogos, por exemplo Boas, defenderam silenciosamente durante anos. Para esses críticos, o espírito e o toque de Malinowski, que tanto agradava o público popular, expressaram um gosto grosseiro: uma observação como 'o costume de comer os pais anciãos é um bom método para afirmar a velhice, enquanto exprime plenamente uma apreciação dos antepassados', foi considerado por alguns antropólogos expressão mais irreverente que não engraçada ou esclarecedora No entanto, não há dúvida de que, como pessoa, Malinowski teve uma grande influência na história da antropologia. Todo o seu trabalho - sua pesquisa direta, suas teorias, seus ensinamentos e suas revelações - refletiam a força de sua personalidade. Já no início os interesses de Malinowski eram amplos e variados. Sua experiência na química serviu como uma introdução às disciplinas da física, e ele nunca superou um certo desconforto devido à multiplicidade de suposições e inferências tão comuns nas ciências sociais. Suas primeiras leituras antropológicas (especialmente das obras de Frazer)  estimulavam entusiasmo pela antropologia. Em Londres, ele conheceu homens como Frazer, Westermarck, C.Seligman, W. H. R. Rivers, Haddon, Prince, Kropotkin, Havelock Ellis, Hobhouse e Marett. Entre estes, foi particularmente influenciado e desenvolvido por Westermarck, Seligman, Rivers e Haddon.

Malinowski e Durkheim

Malinowski ficou muito impressionado com o funcionalismo de Durkheim no estudo da sociedade, tanto quanto tentou exagerar a natureza social do homem e negligenciar as variações e inovações individuais do sociólogo francês e de seus seguidores. Ele tentou modificar o funcionalismo social de Durkheim com as teorias psicológicas de Pavlov, de Wundt e, mais tarde, de Freud. Mas a ideia principal de Durkheim - que por trás dos símbolos institucionalizados da sociedade deve sempre procurar realidades culturais - tornou-se a marca do trabalho de Malinowski. O primeiro entusiasmo pelas teorias psicanalíticas de Freud, Rivers, Jung e Jones não durou muito tempo. Ele descobriu que suas alegações eram 'exorbitantes', que seus argumentos eram 'caóticos' e que sua terminologia era 'complicada'. No entanto, ele se declarou seu devedor pela 'teoria dinâmica da mente' e teve em grande consideração os estudos deles sobre a psicologia da criança e a 'história de vida.' Ele também apreciava o tratamento do sexo sem preconceitos. É característico da receptividade de Malinowski que, embora permanecendo um behaviorista, ele, para vastas áreas de pesquisa, também fez uso extensivo das doutrinas psicanalíticas. Segundo Kluckhohn, Malinowski 'sabia traduzir de uma língua intelectual para outra com lucidez incomparável'. Estudos sobre família e parentesco, estudos que exigem a integração de diferentes teorias e diferentes métodos de investigação, adaptados muito bem aos interesses e habilidades de Malinowski insistiu em relegar a um papel subordinado os métodos da antropologia evolutiva na análise da cultura. Os processos culturais estão sujeitos a leis, mas as leis devem ser buscadas 'na função dos elementos reais da cultura', não nas 'sobrevivências' sobre as quais os evolucionistas reconstroem os estados e processos da cultura. Esse afastar-se da teoria evolutiva não foi uma inovação de Malinowski. O funcionalismo tornou-se popular em muitos campos na época de Malinowski e influenciou o trabalho de cientistas, de políticos, de filósofos e artistas. O próprio Malinowski liga a concepção funcionalista da cultura a Bastian e menciona muitos nomes e 'escolas' que contribuíram para essa concepção, incluindo Tylor, Robert Smith, Wundt, Frazer, Westermarck, Marett, Boas, Wissler, Kroeber, Lowie, Radin, Sapir, Benededict e sociólogos franceses, mas ele só reconhece a metodologia funcional e sistemática aplicada a W. Hoernle, Radcliffe-Brown e R. Thurnwald o merecimento de ter aplicado sistematicamente e exclusivamente à pesquisa etnologica o método funcionalista, com Lowie citando Bachofen, Fustel de Coulanges e Boas como aqueles que deram contribuições significativas ao estudo das culturas em sua condição de interferência' e prosseguiram dizendo que 'provavelmente os estudiosos sempre seguiram intuitivamente essa prática. Isso, no entanto, é um pouco como dizer que quando Newton formulou a lei da gravidade, ele não fez nada além de explicitar aquilo que todos conheciam 'intuituivamente'. Um pouco mais generoso é a conclusão de Lowie, que, enquanto os outros pregavam ou praticavam 'fé no funcionalismo', Malinowski fez os dois, embora ele possa ter  apreendido  dos outros o seu funcionalismo. Malinowski foi certamente o único que tornou o estudo completo da cultura um método fundamental da antropologia. O período excepcionalmente longo que ele passou nas ilhas Trobriand, vivendo como um nativo, convenceu-o de que uma cultura só pode ser entendida através de um conhecimento íntimo de como o indivíduo experimenta seu ambiente cultural. A metodologia de Malinowski baseou-se na concepção de que existem as leis científicas da cultura. É essencial em uma teoria científica e que os argumentos sejam explicitados e que podessem ser confutados com testes e análises plausíveis. Malinowski sempre tentou enunciar suas teorias para responder a essas exigências. Embora ele tenha definido a antropologia como a 'ciência comparada das culturas', Malinowski frequentemente criticou o uso do método comparativo feito pelos antropólogos evolucionistas, em particular, ele criticou o conceito de sobrevivência que desempenhou um papel tão importante na evolução da evolução. Ele não pôde aceitar a afirmação de que uma instituição poderia perder sua função e apontou que as supostas sobrevivências desaparecem assim que o conhecimento de uma sociedade e o específico com o texto cultural de uma dada instituição é aprofundado. Em um típica polémica, Malinowski indica como ‘as sobrevivências’ podem induzir em erro: 'o casamento no passado consistia não apenas em comer peixe e ovos cozidos juntos, nem em jogar arroz, nem em agitar ramos ou galhos verdes. Não há razão, então, para acreditar que desde que em algumas tribos a cerimônia de casamento é constituída pela encenação de um rato, um rato real estivesse com efeito nas origens do casamento '. Malinowski tinha em comum com Tylor o medo de que a antropologia se tornasse uma coleção de 'exotismos bárbaros' e insistiu que ela emergisse de sua ‘futilidade’  e de sua 'anedótica'. Mas, ao contrário de Tylor, Malinowski temia que precisamente a excessiva confiança nas sobrevivências contribuísse para perpetuar um equívoco das sociedades primitivas. A sociedade de Malinowski, foi constituída por um corpo de institutos ligados às necessidades reais de adaptação do homem, e é o estudo dessas instituições - sistemas econômicos e políticos, educação, direito, religião, ciências, organização familiar - e o relacionamento que liga o indivíduo a eles, devem ter precedência sobre a reconstrução histórica, tanto pelos evolucionistas quanto pelos difusionistas. Embora admitir que reconstruções evolutivas controladas e circunscritas e hipóteses difusivistas pudessem ser úteis como empreendimentos secundários, Malinowski era claramente contra os chamados estudos do 'espírito tribal'. Ele criticava Boas e seus alunos, por exemplo, Ruth Benedict. porque apoiavam um conceito de cultura tão geral e vago que tornava impossível qualquer tipo de avaliação científica. Malinowski não fez concessões nesse ataque: 'Já disse muitas vezes que não é legítimo esconder a própria incapacidade de tratar certas factos com rótulos místicos como 'o espírito da cultura' ou para descrever esse 'espírito' como apolíneo, dionisíaco, megalomane ou histérico (Benedict Ruth). 'E em outro ponto:' Poderíamos ter a sensação de que seria melhor pintar os guerreiros massai em cores exageradas, de modo a destacar 'O espírito marcial violento e licencioso dessa cultura.'

A crítica de Malinowski aos evolucionistas, difusionistas, defensores dos modelos culturais e a outros deve ser vista no quadro geral de sua propaganda em favor do funcionalismo individual em antropologia. Malinowski era um 'advogado': ele exagerou as fraquezas das escolas opostas e negligenciou ou minimizou suas contribuições, por isso é mais interessante considerar suas concepções positivas, em vez de persistir, como alguns o fizeram, nas críticas que dirigiu às escolas. adversários, que foi excessivo e às vezes infeliz.Em muitas passagens Malinowski definiu o método funcionalista Uma das afirmações mais claras de natureza geral é o seguinte: '

«a concepção funcional da cultura baseia-se no princípio de que todos os tipos de civilizações, todos trajes, todos os objetos materiais, todas as ideias, todas as crenças cumprem algumas funções vitais, têm algumas tarefas para desempenhar e desempenham um papel indispensável em um todo operacional»

 Segundo Malinowski, o funcionalismo está principalmente preocupado com realizações actuais da cultura humana e não das 'reconstruções ambiciosas mas discutíveis do passado'. As leis culturais - os, relacionamentos entre necessidades individuais e instituições sociais - só podem ser descobertas através de um estudo comparativo de culturas, um estudo no qual o indivíduo é considerado nas suas adaptações diárias, físicas e mentais. As crenças e advertências de Malinowski eram 'nunca esquecer o corpo humano de carne e osso, vivo e palpitante que está no centro de toda instituição'. A história de uma instituição, sua forma, distribuição, evolução e difusão - todos esses problemas são de importância secundária. As questões importantes são: como funciona uma instituição agora? Como ela atende às necessidades individuais e culturais de uma determinada sociedade, e como ela está vinculada a outras instituições? Malinowski define o funcionalismo como especificamente como 'a teoria da transformação das necessidades orgânicas - isto é, individuais - em necessidades e imperativos culturais derivados. A sociedade, governando coletivamente o aparato condicionador, forma uma personalidade cultural no indivíduo. 'O indivíduo humano tem certas necessidades fisiológicas básicas que exigem respostas coletivas e organizadas dos membros de uma determinada sociedade. Tais necessidades incluem a alimentação, abrigo, segurança, descanso e movimento, crescimento e reprodução. As respostas organizadas para estes 'imperativos primários' - a comissão para a nutrição; abrigo e roupas para o conforto do corpo; dispositivos e organizações de segurança; casamento e família para reprodução - representam outra ordem derivada de condições com as quais os membros da sociedade entram em contato. A aquisição de alimentos, por exemplo, requer um sistema econômico mais ou menos complicado, no qual a produção, o processamento, a troca e a distribuição de alimentos são regidos por certas regras sociais; abrigo adequado requer um esforço cooperativo e o acordo sobre a produção, manutenção e tipo; o acasalamento e a procriação devem ser regidos por regras sociais que definem os direitos e obrigações internos das pessoas ligadas umas às outras e àquelas externas aos outros membros da comunidade, etc. Assim, as grandes instituições da sociedade - econômicas, políticas, legais, educacionais e sociais - são consideradas por Malinowski como respostas ao problema da adaptação, reações coletivas mais ou menos diretas às necessidades fisiológicas fundamentais do homem. Existe uma terceira ordem de imperativos, os 'impérios integrativos' ou 'sintéticos' que derivam da criação de sistemas científicos, mágicos, míticos, religiosos e artísticos. Mesmo estes podem estar ligados, no entanto de uma forma menos direta, às necessidades orgânicas do homem. Entre todas as criaturas vivas, apenas o homem sabe acumular experiências, refletir sobre elas e usá-las para prever o futuro. Essas habilidades tornam o homem um herói trágico: colocam cada geração diante de novas possibilidades e novas oportunidades, mas também revelam a relativa impotência do homem e o abandonam à medida que ele se esforça para alcançar mais do que ele pode racionalmente esperar alcançar. Sistemas de conhecimento, tais como, e. Na ciência, eles servem para organizar e integrar as atividades humanas, de modo que, graças ao uso sábio da experiência passada, o presente e o futuro possam ser mais bem utilizados para as necessidades do homem. A lacuna entre conhecimento e possibilidades humanas causa angústia e hesitação, e neste ponto a magia que dá ao homem a coragem de agir, mesmo sem conhecimento perfeito, pode ser usada como um substituto para os sistemas. O mito exalta a tradição social, dotando-a de inegáveis e glorificados inícios. Assim, promove, suporta e integra uma organização social conveniente. A religião promove segurança individual e coesão social, santificando a vida humana e fazendo contratos sociais públicos de cooperação (com dogmas e ritos). Malinowski considera a arte como algo que satisfaz 'a necessidade do organismo humano de combinar diferentes impressões sensoriais' tanto com ritmos de movimentos físicos quanto com a descontinuidade de tons, cores e formas.

 

Método de Malinowski

Malinowski acreditava que seu funcionalismo seria das outras teorias sociais para a ênfase dada às necessidades físicas básicas. As raízes dos aspectos intelectuais, emocionais e estéticos do comportamento humano - 'o extremo superior' das atividades humanas, o principal interesse da maioria dos estudiosos - devem ser procurados nas necessidades fisiológicas do homem. Os imperativos sociais ou culturais, tanto sob a forma de prescrições morais e legais, de ritos religiosos, de normas e costumes económicos, quanto do gosto estético, são uma reinterpretação de impulsos e impulsos orgânicos, eles devem moldar as motivações de modo que seu comportamento inconscientemente satisfaça as condições de sobrevivência e harmonia cultural. Malinowski afirma a este respeito (em oposição a Frazer) que 'os propósitos sociológicos não estão presentes nas mentes do nativo e nunca poderia haver uma legislação tribal em grande escala'. É tarefa do antropólogo descobrir as funções específicas dos elementos de uma certa cultura no âmbito do esquema global descrito acima. Embora o trabalho de Malinowski não represente de maneira alguma a primeira superação da posição aqui ridicularizada, ele foi o primeiro pesquisador a explicar e disseminar o método de investigação envolvido em uma comunidade primitiva, um método que tornou possível deixar para trás valores culturais próprios. O objetivo de toda pesquisa de campo, segundo Malinowski, é 'apreender o ponto de vista do nativo, sua relação com a vida e perceber como ele vê seu mundo', ou, como frequentemente faz expressa, 'para entrar na pele do nativo Se por um lado é necessário banir qualquer ideia preconcebida de como uma cultura deve funcionar, por outro lado é necessário que o pesquisador tenha algum esquema teórico positivo com o qual' ofusque 'os problemas 'Para Malinowski, isso era o funcionalismo. Malinowski divide a pesquisa científica em três áreas:

 

Malinowski insistiu na documentação estatística concreta porque nele viu o método para obter toda esta informação, evitando o procedimento da entrevista preparada e do intérprete indígena. Para obter uma imagem completa, o pesquisador deve aprender a língua, conviver com as pessoas, compartilhar suas refeições e seus costumes, aprender o máximo possível,

sentir e pensar como elas. Esta é a doutrina do 'observador participante'. Para Malinowski, uma viagem ao local tinha que ser uma experiência pessoal profunda e, até onde sabemos sobre sua personalidade, não poderia ser nada diferente. Para ele, o estudo de uma cultura era uma fonte de intensa satisfação pessoal e não meramente a satisfação da curiosidade científica. Ele diz: 'estudar instituições, costumes e normas ou estudar comportamento e mentalidade semo desejo subjetivo de sentir em que essas pessoas vivem e imaginar a essência de sua felicidade significa desistir da maior compensa que podemos esperar do estudo do homem.  A justificativa desse método não se baseia na satisfação pessoal que proporciona ao observador, mas no fato de ser o único que permite o conhecimento íntimo de um povo. Malinowski afirma, por exemplo, ter descoberto a função da magia quando, assustado com um furacão na Malásia, observou o trabalho de um feiticeiro que ordenou que o furacão parasse e assegurou aos nativos que nenhum dano ocorreria à aldeia:

'Naquele momento eu entendi que aqui estava a verdadeira função da magia. Do ponto de vista psicológico isso leva a uma integração mental, a esse otimismo ea essa confiança em enfrentar o perigo que fez o homem vencer muitas batalhas com a natureza ou com seus inimigos humanos: de um ponto de vista social, a magia, dando domínio a um único homem, estabelece uma organização em um momento em que é de particular importância ação organizada e eficaz '.

 

Mais persuasivo, no entanto, desse testemunho pessoal são os exemplos com os quais Malinowski indica como a informação deve ou não ser coletada. 'Não pergunte a um nativo', ele escreve, 'como tratam e punem um criminoso? ... Um caso real, por outro lado, colocará os nativos no caminho da discussão, despertará expressões de indignação, fará com que eles tomem uma posição aberta - e tudo isso provavelmente conterá várias concepções e censuras morais bem definidas e revelará simultaneamente o mecanismo social acionado pelo crime cometido. ' O próprio Malinowski descreve algumas situações engraçadas: '... assim que souberam que eu queria enfiar o nariz em tudo, até onde um nativo de boas maneiras nunca sonharia em meter-se, acabaram me considerando como parte e peso de sua vida. , um mal ou um inevitável aborrecimento abrandado pelas doações de tabaco '. Embora a definição do método de Malinowski dada por Kluckhohn seja provavelmente apropriada ('a anedota bem documenta da, firmemente inserida em um contexto ramificado'), seria um erro atribuir-lhe uma falta de propósitos científicos verdadeiros. as leis culturais existiam e que descobri-las era a principal tarefa do antropólogo.

A tarefa exigia algo mais do que uma parte sensível e intuitiva, exigia do paciente e completa coleta e registro de imensas massas de detalhes etnológicos, tudo de acordo com um sistema ditado por considerações teóricas. Os relatórios e livros de Malinowski, com todos os mapas, cartas, fotografias e casos históricos anexados a eles, não isentam a massa de material sobre a qual foram construídos. Muito deste material nunca foi publicado. A pesquisa de campo de Malinowski limitou-se às ilhas Trobriand, que ele estudou com mais ou menos atenção durante seis anos. Embora criticado como 'alguém que está à margem da etnografia' (Lowie) e como alguém que tem apenas um conhecimento superficial de outros dados etnológicos (Kluckhohn), os métodos de pesquisa que Malinowski praticou e difundiu, têm um valor universal e elas foram amplamente adotadas, principalmente devido à sua influência. Precisamos conversar novamente sobre sua teoria geral da cultura antes de analisar as concepções de Malinowski e as teorias de religião, magia, mito e família. Malinowski considerou necessário definir e distinguir os vários elementos sociais. É verdade, como observamos, que outros pesquisadores empregaram, de maneira diferente, uma orientação funcional em seus estudos, mas deve-se notar que Malinowski foi o primeiro antropólogo a formular conscientemente e explicitamente uma base teórica para a antropologia funcionalistica. Ele define a cultura como aquela 'realidade mental que surgiu para satisfazer necessidades do homem numa medida maior de qualquer adaptação direta ao ambiente. Uma cultura pode ser dividida em instituições, que são referidas como 'um grupo de pessoas unidas por uma ou mais tarefas comuns ligadas a um ambiente específico, que lidam com algum aparato técnico e obedecem a um sistema de regras’. É somente através do estudo das instituições que o acadêmico obtém um quadro completo da organização social de uma cultura. As instituições são as unidades estruturais da cultura. Instituições - não os traços, formas, idéias ou complexos acidentais desses elementos - são o que se espalha e evolui, mantendo uma integridade básica. Elas existem, para satisfazer, indireta ou diretamente, as necessidades biológicas do homem, e devem ser estudadas, mantendo essa função em mente. O método funcionalista de Malinowski marcou um afastamento do endereço de muitos antropólogos anteriores.

Família

Concentrando a atenção no comportamento efetivo dos membros de uma comunidade, o método institucional de Malinowski deu origem a uma descrição e análise mais completas da sociedade. Em vez disso, por exemplo, de simplesmente justapor os dados relativos ao tipo de casa e àqueles sobre a vida familiar, as duas categorias de dados são consideradas em conjunto à luz das relações funcionais que existem entre elas. A instituição fundamental que modifica os impulsos instintivos do indivíduo para satisfazer as condições de sobrevivência da comunidade é constituída pela família. A família, para Malinowski, é uma espécie de placenta através da qual o indivíduo biológico adquire os produtos culturais acumulados, tornando-se um indivíduo social. Malinowski estava convencido de que o casamento monogâmico era a melhor base para funções familiares essenciais.

Ele permite a forma mais satisfatória de seleção sexual e encoraja o tipo de ligação pessoal através da qual os laços biológicos da família, especialmente entre pais e filhos, são gradualmente transformados em laços sociais. 'As relações afetivas da família', diz Malinowski, 'servem como um protótipo e como uma semente para as relações de fidelidade da linhagem, o espírito de vizinhança e o senso de pertença à linhagem’. Ele cita figuras autoritativas da antropologia e da psicanálise em apoio a essa visão, incluindo Lowie, Kroeber, Radcliffe-Brown, Freud e Fluegel. O reconhecimento dessa importante função familiar não foi, é claro, sua descoberta: Darwin, em particular, a valorizou muito intensamente. Função mediadora Ao focar sua atenção na família, Malinowski foi levado a testar as teorias psicanalíticas de Freud, embora considerasse inadequadas muitas formulações freudianas específicas, a doutrina geral repressiva de Freud, inadequadas e não apoiadas por dados etnológicos comparativos. , em sua opinião, apresentou a primeira teoria útil ia sobre as relações funcionais entre a vida instintiva do indivíduo e as instituições sociais. Quando mostrou que nas sociedades matriarcais da Nova Guiné Oriental faltava o complexo de Édipo, Malinowski afirmou ter verificado os principais pilares da psicologia freudiana. De fato, ele argumentou que quando as relações entre os indivíduos passam por mudanças radicais na família, elas devem mudar, se a teoria de Freud estiver correta, os desejos reprimidos. Nessas sociedades matriarcais, é o tio materno, em vez do pai, a figura masculina mais poderosa da família e o dono da autoridade. É ao tio não ao pai que o menino deve acontecer no poder e na autoridade. O pai, por outro lado, não é de forma alguma uma ameaça para o rapaz. Não é um instrumento de autoridade e raramente interfere nas atividades da criança; ele é um amigo que entende e ajuda. Mas ainda mais significativo, como estamos lidando aqui com o núcleo da teoria de Édipo, é que esses melanésios não conhecem a função do pai na concepção. Malinowski argumenta que, se a concepção principal de Freud estiver correta, esse complexo é um marco de medo, respeito, medo, ciúme, ódio e inveja característica do adolescente masculino deve ser dirigido contra o tio e que o tabu do incesto deve se relacionar com o relacionamento irmão-irmã. E isso, de acordo com Malinowski, é exatamente o que acontece. As provas dessas atitudes são encontradas não apenas na vida social comum, mas, e talvez isso seja mais importante, no folclore dessas pessoas, como aparece nos mitos, fábulas, lendas e magias. Há também um exame de sonhos e obsessões individuais. Como funcionalista, Malinowski apreciou a tentativa da psicologia freudiana de abrir um caminho para a compreensão das relações funcionais entre o folclore e a organização social. Ele esperava aplicar as principais teorias freudianas à antropologia e escreveu, em 1923, que 'a doutrina da repressão devida às influências sociais permite-nos explicar certos desejos típicos latentes ou' complexos 'que são encontrados no folclore em referência à organização de uma determinada empresa. Inversamente, também nos permite identificar o padrão de tendências instintivas e emocionais na estrutura da estrutura social ”. Sua ilusão subsequente à psicanálise decorreu do fato de ele ter observado nos psicanalistas uma adesão estrita aos detalhes das doutrinas de Freud, que muitas vezes os levaram a negligenciar suas teorias fundamentais.

Complexo de Edipo

Quando Ernest Jones afirmou que nas sociedades matriarcais a negação da paternidade dos pais, o ódio de seu tio e os tabus das relações entre irmãos tendem a desviar a atenção da rivalidade entre pai e filho, Malinowski reagiu sarcasticamente. Ele acolhe a análise de Jones como prova de sua própria conclusão de que 'no matriarcado o complexo para a família deve ser diferente do complexo de Édipo, que sob as condições do ódio matriarcal é removido do pai e é dirigido ao tio materno; que tentativas de incesto de qualquer tipo são voltadas para a irmã e não para a mãe ”. Atribuir isso à 'repressão do complexo de Édipo', como ele acredita que Jones fez, é um discurso perceptivo para Malinowski, ele pergunta, 'talvez haja um subconsciente e o que significa o conceito de repressão reprimida?' Malinowski não queria aceitar o complexo de Édipo, nem qualquer outra condição isolada como 'a única fonte - de cultura, organização e crenças - antes de todas as coisas e não causada por outro'. Para Malinowski, o complexo voltado para a família sempre foi uma 'formação funcional pendente da estrutura e da cultura da sociedade'.

Magia e religião

Magia e religião, embora ligadas às necessidades biológicas de um modo menos imediato que outras instituições sociais, são os 'pilares' da cultura ', diz Malinowski. A religião, em particular, era considerada por ele como uma força básica e integral da sociedade. A insistência com a qual o indivíduo nega sua mortalidade e tenta perpetuar suas paixões pessoais para além dela. vida terrena, tem sua origem, segundo Malinowski nos 'sentimentos humanos' determinados pela cultura. Esses sentimentos ou emoções são os elementos estruturais da coesão social e devem ser nutridos e mantidos pelas instituições da sociedade. A Religião, ao dar uma sanção sobrenatural e pública às crenças, atitudes e valores que constituem a ética da sociedade e possibilitam a coesão social, afirma e reforça os sentimentos humanos exigidos pela moralidade.

A religião, portanto, não vem de ilusão, especulação ou mal-entendido, mas surge como uma resposta às necessidades de sobrevivência cultural. É uma instituição integradora que condiciona e compensa os homens pelos sacrifícios individuais exigidos pela existência social. Malinowski contradisse seu ídolo, Sir James Frazer, sobre a função da magia na sociedade. A magia não representa a ciência primitiva, como Frazer acreditava, mas o reconhecimento dos homens de que a tecnologia e o conhecimento humano têm seus mitos definidos. Assim, diz Malinowski, 'as técnicas mágicas e práticas são completamente independentes e nunca se fundem'. É quando os eventos cruciais parecem completamente fora do controle e da influência humana que a magia é usada para fornecer satisfações ilusórias. A prática da magia é uma atividade constitutiva que, na ausência de qualquer solução realista para problemas vitais, dá pelo menos um suporte cultural psíquico ao indivíduo e ajuda a evitar o desânimo e a desintegração. é puramente subjetivo, mas não satisfaz nenhuma necessidade fisiológica real, como já foi dito, a magia também pode servir para organizar uma comunidade para enfrentar um período crítico em virtude do ferimento de autoridade e comando a um ou poucos homens. , magia e religião são, juntamente com o conhecimento racional nal, os fundamentos da cultura: 'Conhecimento, magia e religião são os mais elevados imperativos, e os mais derivados, da cultura humana ... Magia e, a fortiori, religião são as forças morais indispensáveis ​​de cada cultura humana. Surgindo da necessidade de remover o conflito interno do indivíduo e de organizar a comunidade, eles se tornam os elementos essenciais da integração espiritual e social. Eles lidam com problemas que afetam diferentemente todos os membros da comunidade e levam a ações das quais depende o bem-estar individual e coletivo. A religião e, em menor grau, a magia tornam-se assim os verdadeiros fundamentos da cultura '.

Não é fácil avaliar a importância de Malinowski. Sua personalidade tem sido tão controversa, que a maioria dos comentaristas está inclinada, ou obrigada, a tomar partido 'por' ou 'contra' suas contribuições. De um modo geral, suas relações etnológicas e seu trabalho pioneiro em métodos e técnicas de pesquisa têm sido considerados por quase todos os pesquisadores como uma das principais contribuições para a antropologia cultural. Mas com relação às suas concepções teóricas, há menos concordância. Nos Estados Unidos, Lowie e Kluckhohn foram os principais detratores de Malinowski. Lowie é o mais severo dos dois. Ele compara muitas idéias de Malinowski às de Boas e descobre que a última antecipou e, ao mesmo tempo, superou as intuições de Malinowski. O único 'resultado positivo' encontrado por Lowie é o uso que Malinowski fez de conceitos psicanalíticos em seu trabalho etnográfico. Ainda com relação às técnicas de pesquisa de campo, onde poucos contestam a importância e a prioridade de Malinowski, Lowie os encara para observar que suas técnicas 'se adaptaram aos modelos de Boas', tocando um nível polêmico nunca alcançado no Em outras partes de seu livro, History of Ethnological Theory (1937), Lowie escreve: 'Com uma atitude messiânica, Malinowski está sempre envolvido em suas duas passagens favoritas. Ou ele quebra as portas já escancaradas ou zomba com petulância do trabalho que não o atrai. 'E Lowie continua:' Malinowski enruga o nariz diante da tecnologia, mostra estudos de distribuição, ridiculariza as reconstruções do passado ... Em suma, o funcionalismo de Malinowski é abertamente anti-distributivo, anti-histórico e trata cada cultura como um sistema fechado, exceto por seus elementos correspondentes às necessidades da vida biológica. Tal condenação extrema por um líder sério e moderado deve em parte ser atribuída à personalidade provocativa de Malinowski. O mesmo Lowie atenua sua crítica, acrescentando que 'a prática de Malinowski, felizmente, não revela os crescimentos negativos de seus princípios'. Kluckhohn atribui a Malinowski uma grande capacidade literária e a capacidade de dar vida à missão. Ele também aprova as contribuições de Malinowski para o conhecimento da família, religião, economia e direito. A principal crítica feita por Kluckhohn é a falta de 'profundidade teórica', Malinowski não é suficientemente sutil para Kluckhohn, que se queixa de que Malinowski não vê a intrincada, tortuosa, preciosa linha que toma a realidade, e que suas integrações ocorrem 'em um nível bastante superficial' .É difícil avaliar uma crítica tão geral.  Físicos anteriores a Newton estavam muito enredados nas 'sutilezas' relacionadas ao movimento dos corpos na terra para ver o céu e trazer todos os corpos móvel sob uma única lei geral: é preciso olhar para o trabalho de Malinowski para ele e decidir se suas 'integrações' são realmente superficiais.

Herskovits adere à opinião de Lowie de que a maior contribuição de Malinowski é o real desenvolvimento e modificação da aplicação do trabalho de Freud aos dados culturais. Ele atribui a Malinowski o mérito de ter explicitado, se não descoberto, os métodos e procedimentos de investigação que facilitam um tratamento científico dos dados antropológicos. E por sua doutrina do 'observador participante' ele reconhece a Malinowski o mérito de um 'verdadeiro afastamento do uso, feito antes dele por muitos estudiosos, da cultura ...'. De um ponto de vista teórico, Herskovits destaca as intuições de Malinowski como as da família como 'um elo entre a dotação instintiva e a aquisição de uma herança cultural', e a considera uma intuição de considerável importância. Peter Murdock, cujas relações com Malinowski às vezes eram tempestuosas, coloca-o ao lado de Morgan, Tylor e Boas e o considera um dos maiores antecedentes das 'ciências comportamentais do homem', ao lado de Adam Smith, Marx, Summer. Freud e Pavlov atribuem a Malinowski o mérito de ter estabelecido o conceito de que as instituições sociais são respostas coletivas às necessidades humanas básicas, talvez a razão para essa variedade de opiniões entre os antropólogos seja que Malinowski tentou usar com outros setores, particularmente sociologia e psicologia: para muitos especialistas em ciências sociais, 'eclético' é uma qualificação negativa, e Malinowski, em seu estudo do homem e da sociedade, não respeitou nenhum limite territorial. Malinowski é importante, isso é em grande parte devido ao uso que ele fez de cognições e técnicas sociológicas e psicológicas. A fama e a influência de Malinowski são maiores na Inglaterra do que nos Estados Unidos. Na Inglaterra, Malinowski é, ao lado de Radcliffe-Brown, o representante do funcionalismo na antropologia. Seu modo empírico de proceder e suas formulações teóricas desordenadas levaram os estudiosos a olhar para seu trabalho em busca de técnicas de pesquisa e inspiração, mas mais no trabalho de Radcliffe-Brown para uma teoria satisfatória do funcionalismo. A posição de Malinowski na história da antropologia não foi definida. Em última análise, isso dependerá do curso que a antropologia tomará como disciplina científica no campo do comportamento humano. Se a antropologia continua a preocupar-se com a “preciosidade sutil” e a ter cuidado com o “integrador”, então Malinowski será um herói esquecido, se em vez disso a convicção de que a antropologia pode fornecer uma estrutura e uma perspectiva para o estudo sintético o homem em sua batalha para sobreviver e afirmar-se, então Malinowski será nomeado entre os grandes antropólogos: seu grande interesse e sua participação no drama diário da vida sempre o manteve em contato com os problemas fundamentais dos esforços da comunidade. humano para sobreviver e desfrutar dos prazeres da vida.

 

Malinowski como antropólogo aplicado

Depois de meados da década de 1920, a carreira de Malinowski fez a transição para refletir uma maior preocupação com as questões sociais, os problemas dos nativos dominados pelos poderes coloniais e o uso prático da antropologia. Essa mudança de foco começou, talvez, com seus escritos sobre as forças da lei na comunidade primitiva em 1925. No ano seguinte, ele escreveu uma carta a um editor sobre antropologia e administração (1926a) e um artigo sobre higiene social (1926b). Em 1927 surgiu um artigo sobre “Antropologia Útil e Inútil” (1927b) e finalmente em 1929 o artigo mais conhecido sobre “Antropologia Prática” (1929a). Os escritos de Malinowski sobre questões práticas continuaram nessa linha sobre administração (1930a), raça e trabalho (1930b), educação nativa (1936), mudança de culturas (1938a), a base científica da antropologia aplicada (1940a), regra europeia (1940b), guerra (1941), e o problema pan-africano (publicado postumamente em 1943). Um livro póstumo, The Dynamics of Culture Change , incluía ensaios sobre aplicação e problemas sociais (1945). O livro deu continuidade a temas previamente observados, como a necessidade de o antropólogo actuar como intérprete e defensor do nativo, a necessidade de estudar o 'nativo em mudança', a vantagem potencial em ver diferentes políticas administrativas como experimentos controlados e o uso de holismo e funcionalismo no estudo de problemas modernos na África.

O desenvolvimento da antropologia prática por Malinowski acompanhou desenvolvimentos semelhantes nos Estados Unidos, México e Holanda. Na Grã-Bretanha, como nos EUA, antropólogos vinham proclamando a utilidade da antropologia desde seu início em meados do século XIX. O ensaio de 1929 de Malinowski sobre antropologia prática foi dirigido ao 'Instituto' (presumivelmente o Instituto Internacional de Línguas e Culturas Africanas estabelecido em 1926), e seu objetivo, talvez, era obter financiamento para seus alunos. Malinowski e seus alunos posteriormente trabalharam em estreita colaboração com este instituto e administradores por muitos anos. No artigo de 1929, Malinowski afirmou que uma colaboração mutuamente estimulante poderia ser forjada entre antropólogos treinados cientificamente e 'homens práticos'. O terreno poderia ser dividido com segurança, com o primeiro estudando problemas práticos e o segundo (o estadista e o jornalista) compartilhando a responsabilidade pelas decisões políticas. O artigo terminava com uma lista de recomendações para o instituto (1929a: 37-38). Os problemas práticos a serem investigados como parte da antropologia do nativo em mudança incluem governo direto versus indireto, posse da terra, organização política, direito primitivo, economia, sistemas financeiros indígenas e tributação, princípios de educação indígena, problemas populacionais, higiene e mudança de perspectiva (com o que ele provavelmente quis dizer mudar a visão de mundo).

Uma das questões que preocupou Malinowski em 1929 foi o governo direto versus o governo indireto nas colônias britânicas. A regra direta teve uma série de consequências prejudiciais para o nativo: “trabalho forçado, tributação implacável, uma rotina fixa em questões políticas, a aplicação de um código de leis a um contexto inteiramente incompatível. [Na] educação [significava] ... fazer do africano uma caricatura do europeu ”(Malinowski 1929a: 24). Malinowski apoiou uma política de governo indireto porque era menos destrutiva. No entanto, o problema exigia estudo e a solução exigia uma mudança lenta e gradual.

Os estudos sobre a posse da terra foram importantes porque estavam ligados à ocupação de terras nativas pelos colonialistas e à questão de quanta terra deveria ser deixada para necessidades de subsistência. A posse da terra também foi associada a outros aspectos da cultura. O estudo deve ser feito não por inquérito, mas pelo mapeamento da propriedade e pela determinação dos requisitos mínimos de uso do nativo (1929a: 31-32). Outros problemas importantes de posse da terra estavam relacionados a direitos de conquista, prerrogativas históricas, direitos nativos, a demanda por terras máximas para uso europeu e a necessidade de salvaguardar os interesses nativos (1929a: 30).

Anteriormente, antropólogos e administradores haviam estudado organização política, mas seus relatórios eram inadequados ou mal enfocados, de acordo com Malinowski. Os reinos africanos eram promovidos e possuíam extensas tradições e genealogias, cerimónias e rituais, e sistemas bem desenvolvidos de finanças, organização militar e formações judiciárias. Ao introduzir a mudança, não havia necessidade de tocar a ordem nativa estabelecida; essas instituições poderiam continuar a funcionar como antes. O problema apresentado por estudos administrativos ou patrocinados pelo governo foi que materiais politicamente sensíveis nunca foram publicados. A designação de dois ou três antropólogos poderia resolver esse problema porque eles poderiam trabalhar mais rapidamente e com menos despesas (1929a: 31). A natureza do trabalho antropológico também deve ser mudada, no entanto. O trabalho anterior de antropólogos foi direcionado ao estudo da “antiguidade clássica”, mitologia ritual, superstição pitoresca e magia. Não havia considerado como a política primitiva realmente funcionava ou identificado as forças que estavam por trás da obediência ao rei ou seus ministros (1929a: 25).

Malinowski criticou estudos anteriores da lei primitiva por motivos semelhantes. A “escola continental” consistindo de J. J. Bachofen, A. H. Post, W. Kohler e Durkheim e outros retratou os nativos como demonstrando obediência cega e passiva. Ao contrário das descobertas dos evolucionistas do século XIX, os nativos tinham uma lei criminal e civil claramente definida, princípios de governo e direitos comunais à terra e direitos sobre objetos manufaturados e artigos de consumo, bem como sistemas de herança e sucessão a cargos ( 1929a: 26). A lei e a política nativas não podiam ser estudadas isoladamente; eles estavam ligados holisticamente a outros elementos da cultura, como família e organização comunitária, parentesco e descendência, organização de clã e grupo local e idioma. Os estudos anteriores foram dominados pelo sensacionalismo de costumes estranhos, como a couvade, a evitação da sogra, a dispensa da placenta e as relações estranhas entre primos. Malinowski acreditava que sabíamos mais sobre “formas anômalas de casamento ou exageros classificatórios de parentesco” do que sobre organização familiar (1929a: 27). Além disso, apenas os antropólogos eram competentes para lidar com essa questão porque não tinham interesses adquiridos. Eles estariam alertas para o problema em estudos anteriores de forçar a terminologia em termos emprestados do direito europeu.

Compreender a organização econômica nativa poderia fornecer visuais sobre vários problemas práticos, como condições de higiene, trabalho, educação, tributação, como a riqueza era capitalizada e a psicologia da dádiva e da troca (1929a: 32). Os antropólogos devem estudar a produção e o consumo primitivos, os tipos e fases da atividade econômica e as relações com a religião, magia e artes práticas - não “origens e estágios” ou “difusão e histórias” (1929a: 33). Questões de trabalho eram importantes, incluindo a abolição da escravidão e recrutamento ou trabalho forçado versus contratos de trabalho. Os assuntos que precisavam de investigação incluíam a aquisição de alimentos e materiais para moradia, roupas e armas e sua preparação e uso. Outros assuntos pertinentes incluíam o trabalho associado ao armazenamento e preservação de alimentos, o desenvolvimento de armadilhas e a produção de luxos, arte e monumentos, ornamentos pessoais, pintura, escultura e objetos rituais (1929a: 34). O estudo da economia e do trabalho poderia levar a ajustes mais apropriados, por exemplo, dos padrões de trabalho nativos para o trabalho de plantação na Melanésia (1929a: 34). (Presumivelmente, Malinowski quis dizer isso como um exemplo de um ajuste positivo no trabalho nativo, mas a declaração demonstrou uma ignorância dos efeitos deletérios do sistema de plantação.).

Os estudos de contacto cultural e nativo em mudança

Foi um passo fácil de ver o nativo “como ele é”, isto é, sem reconstrução, para uma preocupação com uma solução para os problemas sociais do nativo em mudança. Apesar do julgamento de alguns de que Malinowski falhou em desenvolver uma teoria (Firth, ed. 1957), deve-se admirar a integridade de suas observações. O desenvolvimento de estudos de “contato cultural” na Grã-Bretanha foi equivalente aos estudos de aculturação nos Estados Unidos (Beals, 1953), mas, ao contrário de sua contraparte americana, os estudos britânicos focalizaram explicitamente a aplicação prática. Malinowski evitou o uso do termo aculturação por considerá-lo vinculado a traços e complexos de traços e preferiu identificar a unidade básica da cultura como a instituição. Ele às vezes usava o termo “transculturação” por sugestão de Fernando Ortiz, que via a situação como um processo de mão dupla (Malinowski 1940a).

Mudança, para Malinowski, era um processo em que as sociedades se transformavam, seja pelo crescimento interno, seja rapidamente pelo contato de duas culturas diferentes. O primeiro processo levou à evolução cultural e o segundo à difusão. Sua referência à difusão não estava relacionada aos usos americanos ou europeus da transmissão de traços ou complexos de traços, mas à transmissão e mudança nas instituições (Kaberry 1945: vii-viii; Malinowski 1929a: 36). As contribuições de Malinowski, se tivessem sido comparadas e vinculadas a estudos de aculturação nos Estados Unidos, teriam fornecido um antídoto para alguns dos esforços mais mecanicistas para separar características de 'duas ou mais culturas em contato face a face' (Redfield, Linton e Herskovits 1936). Uma síntese das duas abordagens pode ter resolvido muitas das críticas aos estudos de aculturação que se seguiram nas décadas após o início da teoria nos EUA (Beals, 1953).

Malinowski convocou o estudo da mudança de culturas no contexto do contato ocidental (1938a). O estudo do nativo em mudança deve ser um campo separado, sustentou ele, dos estudos evolucionistas e difusionistas dos EUA e da Europa. Esse novo campo exigia a construção de novos métodos e princípios de pesquisa e de um novo ramo da antropologia (1938a: xii).

De acordo com Malinowski, estudar a situação de contato exigia três processos: identificar a natureza do contato e da mudança cultural, encontrar os melhores métodos de trabalho de campo adequados ao problema e traduzir os resultados teóricos em regras práticas de conduta para o administrador, missionário, empresário, ou professor.

Malinowski sugeriu que o antropólogo deveria abandonar os estudos de “antropometria, tecnologia detalhada [e] a árdua tarefa de colectar e rotular espécimes” (1938a: xvii). Em vez disso, deve-se adquirir conhecimento da política e economia mundial, finanças, política colonial, educação no exterior e objetivos e atividades missionárias. O trabalho de campo deve ser conduzido nos europeus na África como um foco especial, mas também nos nativos em mudança, bem como nos nativos inalterados em locais remotos. O contato resulta em três tipos de cultura: uma cultura tradicional em declínio, uma cultura europeia intrusiva e culturas sincréticas emergentes, como o campo de mineração e a favela urbana. Em uma breve “visão panorâmica”, Malinowski retratou as interações de representantes dessas culturas. Ele falou da “barra de cores”, das atividades dos missionários, da aceitação dos padrões culturais europeus por alguns africanos e de uma sociedade colonial isolada onde poucos conheciam os modos de vida indígenas (1938a: vii-x). Mesmo que o “assunto ameace desaparecer”, Malinowski acreditava que o estudo do nativo destribalizado e de outros segmentos da sociedade deveria ser incluído nesta nova ciência.

Lucy Mair e Monica Hunter, estudantes de Malinowski e colaboradores de uma coleção de 1938 baseada em seminários conduzidos por Malinowski na London School of Economics (Mair, ed. 1938), falaram em construir um 'ponto zero' cultural a partir do qual medir a mudança ( Mair 1938; Hunter 1938) e Schapera (1938) estudaram o contato de cultura sob o subtítulo “Reconstrução da Cultura Tribal”. Malinowski discordou deles e postulou que a reconstrução de uma cultura indígena do passado representaria uma cultura idealizada e não uma realidade viva (Malinowski 1938a: xxv). Ele advertiu contra a reconstrução de “um selvagem que não existe mais” (Malinowski 1938a). Na Melanésia, o nativo havia deixado de existir há uma geração, na África há duas gerações e na América do Norte há cerca de 100 anos. Malinowski insistiu que o foco deve estar no estudo do nativo em mudança “como ele é” e em como as instituições funcionam, não em como elas se originaram ou se difundiram (1929a: 28). O antropólogo deve evitar a 'visão altamente emotiva do passado como ele vive na mitologia atual da Idade de Ouro pré-europeia' ou como um 'Paraíso perdido' e 'treinar sua visão para a frente em vez de para trás' (1938a: xxvi) .

Meyer Fortes, Gunter Wagner e A. T. e G. M. Culwick, também contribuintes da monografia de 1938, sugeriram que focar na reconstrução do passado levou a uma política ruim. As memórias de antigos informantes foram descritas por Fortes como 'uma malha de mentiras' (1938), e pelos Culwicks como produzindo duas imagens distintas, mas errôneas, 'uma de uma utopia negra e a outra de um reinado de terror sangrento' ( 1938). Na verdade, um resíduo mais ou menos substancial do passado ainda sobreviveu em fragmentos em lugares secretos ou remotos, incluindo guerra, escravidão, bruxaria, adoração de ancestrais, retribuições criminais, costumes sexuais exóticos e tabus sexuais (Malinowski 1938a: xxviii-xxix) . O passado reconstruído não ensinou nada. A tradição viva com resquícios da sociedade passada não precisa ser reconstruída; pode ser observado em primeira mão durante o trabalho de campo.

Malinowski discordou de Schapera e Fortes em sua sugestão na mesma monografia de que as culturas africanas em contato devem ser vistas como partes integrantes de uma única sociedade. Ele não via o administrador, missionário ou professor como parte do sistema indígena. Eles representavam o componente europeu e permaneciam indiferentes, possuíam pouco conhecimento do sistema que estavam impactando e podiam até ter opiniões prejudiciais sobre ele. Eles devem ser estudados separadamente e, em seguida, as ligações entre os três sistemas demonstrados (Malinowski 1938a: xiii-xvii, xxxvi). Ele afirmou o valor da abordagem funcionalista, não no contexto de um único grupo, mas no estudo das instituições sobreviventes e suas adaptações a novas linhagens derivadas de influências europeias. O estudo funcional deveria ser conduzido não apenas de instituições sobreviventes, mas também de novas instituições europeias no contexto da cultura africana, incluindo minas, fábricas, tribunais de justiça e escolas (Malinowski 1938a: xxxvii).

Além disso, Malinowski censurou Schapera por sugerir que o estudo do impacto da civilização ocidental na cultura africana era um problema especial.

«Impacto, afinal, é uma relação. No estudo disso, não podemos recortar um lado e estudar o que permanece como um mero fragmento. Impacto e mudança são ação e reação. Eles são uma interpenetração mútua» (Malinowski 1938a: xxxv).

Malinowski sustentou que as três culturas que viviam na África não eram uma “mistura de elementos parcialmente fundidos”, como sustentado por Hunter (1938). Malinowski concordou com Fortes, que sustentava que o contato cultural 'não era uma bifurcação mecânica de elementos da cultura, como feixes de feno de uma cultura para outra ... [nem era] uma transferência de elementos de uma cultura para outra, mas ... um processo contínuo de interação entre grupos de culturas diferentes ”(Malinowski 1938a: xix, citando Fortes).

Malinowski então apoiou seu acordo com Fortes analisando o trabalho africano em minas, fábricas e plantações. A introdução de instituições e capital europeus exigiu uma nova organização do trabalho africano, e o novo sistema precisava ser tratado como um todo e não separado em componentes africanos ou europeus. Forças como preconceito e segregação, domínio político e económico, proteção especial dos padrões europeus e isolamento impactaram o uso de mão de obra na África. Malinowski identificou as condições especiais que criaram uma força de trabalho africana única.

Não existe um protótipo europeu para a legislação ou prática de barras de cores; para recrutamento na reserva; para o método de seguro-desemprego, devolvendo o trabalho supérfluo às áreas tribais em tempos de recessão. [Também não estão presentes em outros lugares o tipo de contrato de trabalho] com sanções penais unilaterais, ...

[e] os incentivos para assinar ... O trabalho africano, mais uma vez, não conhece negociação coletiva: é uma mercadoria que não pode estar em conformidade com as leis de oferta e demanda; difere do trabalho europeu legal, econômica e socialmente ... [e da] economia tribal ... Nenhuma classificação de elementos é possível; nenhuma fatura de volta para uma cultura pai. Temos aqui que lidar com um vasto fenómeno que em sua essência é definido por um conjunto de arranjos económicos, jurídicos e sociais que surgiram em resposta à ... exploração em grande escala dos recursos africanos pelos europeus, para fins ocidentais, e por meio do trabalho africano (Malinowski 1938a: xx-xxi).

Malinowski descreveu outras mudanças na cultura africana como produtos inteiramente novos das condições de contato entre os grupos europeus e antigos africanos. “A escola no Bush não tem antecedentes na Europa, nem ainda no tribalismo africano. A questão da educação de homens e mulheres para profissões de cuja prática eles são legalmente proibidos não ocorre nem na Europa nem na África Bantu ”(1938a: xxii). A ideia de que a cultura europeia é uma fonte de novos elementos para a África é contrabalançada pela seletividade da sua doação (cf. Foster 1960). Alguns dos itens não compartilhados com os africanos incluem: instrumentos de força física, como armas de fogo, aviões de bombardeio, gás venenoso e tudo que torna possível uma defesa ou agressão eficaz ... [bem como] [bem como] instrumentos de domínio político ... A soberania permanece [nas mãos dos conquistadores]. [Os africanos] não votam [e não são cidadãos iguais, mesmo] quando recebem Regra Indireta ... [Eles não recebem] a substância da riqueza e vantagem econômica ... exceto o salário inadequado ... Não os admitimos como iguais à Assembleia da Igreja, escola ou sala de estar (Malinowski 1938a: xxii-xxiii).

Essas passagens têm muito do som e da sensação da moderna antropologia crítica influenciada pelos preceitos neo-marxistas e da moderna antropologia aplicada. Eles também poderiam ser lidos como parte de qualquer um desses dois corpos de literatura, mesmo que escritos dois terços de um século atrás.

 

Trabalho de campo e metodologia

A obra mais famosa de Malinowski, pelo menos entre os antropólogos, é sua etnografia das Ilhas Trobriand. Ele também conduziu um breve trabalho de campo entre os Yaqui, Hopi e Navajo no Arizona, os Chagga da África Oriental e os Zapotecas de Oaxaca, no México. Ele costuma receber o crédito por ter estabelecido a noção de pesquisa de campo de primeira mão desde então, convivendo com os nativos, aprendendo a língua nativa e apresentando as informações coletadas dentro de uma estrutura holística. Sua prescrição para o comportamento adequado do pesquisador de campo e para a metodologia de pesquisa, encontrada na introdução de sua primeira monografia de Trobriand, é lida por todos os alunos que vão ao campo hoje (1922: 1-25). Aqui ele enfatizou a necessidade de uma boa formação em teoria, com um objetivo científico, explicitando os métodos de coleta de dados, consciência das condições emocionais durante o trabalho de campo, coleta de dados concretos como genealogias, seleção cuidadosa de informantes, uso de quadros sinópticos para mostrar ligações holísticas entre diferentes tipos de informação, e juntando os nativos nas atividades (mais tarde conhecida como observação participante).

O kula

Os Argonautas do pacífico ocidental marcam o nascimento da antropologia moderna, poi Malinowski consolida uma maneira toda nova de fazer etnografia. Se o antropólogo sai do âmbito restrito da especialização para enfrentar o campo é devido a Malinowski dotado de uma cultura refinada que parte para estudar os habitantes de ilhas longínquas e este facto torna-se para a ideologia oficial burguesa como um homem aventureiro que foge da civilização para ir aventurar-se em mundos desconhecidos. E ele é venerado pois possuía determinadas qualidades que permitiam-lhe de penetrar a vida das populações que estudava.

Os argonautas do pacifico ocidental é um livro que parte de um dado aspecto da vida dessas populações para depois se abrir a  outros.

O objecto dos Argonautas era uma actividade de troca praticado por certas comunidades das ilhas Trobriands: o kula.

Kula é um fenómeno económico importante na vida dos indígenas a ser enquadrado dentro da vida social e constituia um ritual de troca de dois objectos.

1) miçangas de conchas vermelhas colocadas em sentido horário

2) pulseiras de conchas brancas colocadas em sentido anti-horário

Os objectos pertencentes a uma categoria poderiam ser trocados somente com objectos de outra categoria. Eram objectos que circulavam em continuação e se trocavam no curso de visitas que os habitantes das Ilhas praticavam periodicamente. Essas visitas entravam dentro de um ritual:

1) preparativos para a partença

2) construção de pirogas

3) conversações sobre as trocas

4) formulas magicas

Emerge antes de tudo o facto que cada elemento deveria ser estudado dentro do seu contexto, e relacionado a fenómenos que dependiam do mesmo contexto, funcionais e coerentes.

Função do kula era manter a sociedade unida

Muitos de seus seguidores reivindicaram precedência para ele ao tornar a observação direta uma parte fundamental do trabalho de campo. Adam Kuper , por exemplo, afirmou que Malinowski, como fundador da antropologia social na Grã-Bretanha 'estabeleceu seu aprendizado distinto - trabalho de campo intensivo em uma comunidade exótica ... e virtualmente todos que desejavam fazer trabalho de campo na moda moderna foram trabalhar com ele' (Kuper 1983: 1). Na verdade, houve outros que foram pioneiros nessa técnica. Nos Estados Unidos, um extenso trabalho etnográfico estava em andamento desde antes da virada do século XX entre os historicistas americanos sob a tutela de Franz Boas. O próprio Boas havia conduzido trabalho de campo entre os Inuit por dois anos, começando no ano do nascimento de Malinowski em 1884. Diamond Jenness passou dois anos entre os Inuit de Bernard Harbour em 1914-1915, de onde veio seu livro The People of the Twilight. Muitas das características da metodologia de trabalho de campo malinowskiana também estiveram presentes no trabalho de exploradores anteriores, como Joseph Lafitau em 1724 e Merriwether Lewis em 1804, antropólogos naturalistas como Lewis Henry Morgan em 1851 e o etnógrafo Zuni Frank. H. Cushing em 1887 e muitos outros. Mesmo na Grã-Bretanha, a expedição de 1898 ao Cambridge Torres Straits, organizada por Alfred C. Haddon , com os membros da equipe Rivers, Seligman e J. L. Myers, envolveu extenso trabalho de campo. No entanto, Malinowski forneceu um exemplo amplamente lido da metodologia e deu-lhe uma ênfase e visibilidade nunca antes atribuídas.

Malinowski inculcou em seus alunos a necessidade de relatórios intensos, precisos e contemporâneos das observações de campo. Ele compartilhou com Boas uma abordagem empírica e as precauções sobre a generalização infundada. Informações derivadas do passado, ou de observações incidentais de missionários e viajantes, não poderiam produzir conclusões cientificamente válidas em sua opinião. Malinowski tinha 12 anos quando Boas lançou seu ataque aos evolucionistas e expôs as premissas do historicismo e a importância do trabalho de campo em primeira mão (Boas 1896). Como estudante de graduação e jovem profissional, ele deve ter lido os historicistas americanos que forneceram o único antídoto para o evolucionismo do século XIX na época. Mais tarde, ele aproveitou todas as oportunidades para ridicularizar e criticar os evolucionistas do século XIX, incluindo seus professores, e também os difusionistas - as versões heliocêntrica britânica e kulturkreiselehre austríaca, bem como os historicistas americanos. Malinowski referiu-se ao seu campo como antropologia social, um termo originado por Frazer em 1906, e como um ramo da sociologia distinto da etnologia, etnografia e antropologia cultural (Kuper 1983: 22). Os primeiros seminários de Malinowski foram realizados na London School of Economics em outubro de 1924. Os materiais de Trobriand eram a base de seu ensino, e ele usou o método socrático, propondo problemas e fazendo perguntas depois de ler partes de seus manuscritos para alunos reunidos. Ele usou uma série de gráficos e tabelas para apresentações sinóticas de culturas e como um guia para pesquisadores de campo. Lacunas no trabalho de campo foram identificadas e analisadas, e questões formuladas por meio desse método. Os gráficos formaram a base da discussão e teste das teorias. Seus seminários foram assistidos por outros professores ou pessoas convidadas, que foram questionados e encorajados a participar das discussões (Kuper 1983: 22-24).

Os alunos caracterizaram o relacionamento de Malinowski com eles como estimulante. Ele foi encorajador e elogioso com seus alunos, embora rude, intolerante e às vezes abrupto. Em um volume editado escrito para avaliar seu trabalho, os autores prestaram homenagem ao seu ensino e seu trabalho etnográfico pioneiro.

 

Conclusão

Houve muitos que elogiaram Malinowski e talvez um número igual que criticou seu trabalho. Uma biógrafa recente de Margaret Mead, outro ícone antropológico de sua época, comentou sobre a ambivalência demonstrada por seus pares em relação a Mead. A biógrafa falou do 'paradoxo de que, embora Mead fosse aclamada pelo público, sua reputação como antropóloga era frequentemente rejeitada por seus colegas acadêmicos - talvez por causa dos tópicos' femininos 'em que ela frequentemente se concentrava (como relações pais-filhos e socialização ), talvez por causa de seu foco teórico na cultura e personalidade, ou talvez simplesmente por causa do ciúme profissional ”(Lutkehaus 1998: 13). Essa afirmação também pode ser aplicada a Malinowski com sua popularidade com o público, seu foco em tópicos aplicados conforme delineado neste ensaio e seu trabalho pioneiro no funcionalismo e na prática da antropologia como alternativas ao puro ciúme.

Malinowski foi um pioneiro em muitos campos e certamente seu trabalho em antropologia aplicada esteve na vanguarda da disciplina na década de 1930. Herskovits (1936) saudou a nova direção que Malinowski havia traçado para a antropologia aplicada. Na década de 1940, uma base sólida para o desenvolvimento da antropologia aplicada foi lançada em muitos países, especialmente na Grã-Bretanha, Holanda, México e Estados Unidos. A retirada dos antropólogos para a academia após a Segunda Guerra Mundial permitiu que a antropologia aplicada caísse em um estado de abandono, no entanto. Se os antropólogos não tivessem se aposentado do ensino universitário, as incursões no desenvolvimento e na prática da antropologia que foram alcançadas nas últimas duas décadas teriam ocorrido muito antes.

Kuper elogiou e homenageou Malinowski no final de um capítulo agudo e equilibrado.

A grandeza de Malinowski reside em sua habilidade de penetrar na teia de teorias para o homem real, orgulhoso, hipócrita, terreno, [e] razoável; e transmitiu aos seus alunos uma consciência inestimável da tensão que sempre existe entre o que as pessoas dizem e o que fazem, entre os interesses individuais e a ordem social. Foi também Malinowski o primeiro a mostrar como o princípio da reciprocidade pode servir para vincular o indivíduo, em seus próprios interesses, à comunidade (1983: 35).

Kuper afirma que o livro de Malinowski Argonauts of the Western Pacific (1922) e sua discussão sobre a troca cerimonial estimulou The Gift (1954) de Mauss e, em última análise, foi a inspiração central para Lévi-Straus e a perspectiva estruturalista francesa (Kuper 1983: 35). Na conclusão de seu livro, Kuper continua esta homenagem:

Se se pode falar de uma revolução malinowskiana, é porque Malinowski mudou a relação entre teoria e etnografia na antropologia social. Para ser rude e esquemático, mas não enganoso, antes da Primeira Guerra Mundial a relação entre teoria e etnografia (e teórico e etnógrafo) era de senhor para servo ... Havia, em suma, uma divisão de trabalho. O antropólogo brâmane ponderou teorias em seu estudo e enviou suas perguntas; o Sudra-etnógrafo fazia o trabalho sujo e respondia mais ou menos passivamente às demandas do especialista (Kuper 1983: 193).

Se alguém substituir “antropólogo aplicado” por etnógrafo, o parágrafo acima reflete a relação entre a antropologia acadêmica e aplicada nos EUA até tempos recentes. O acadêmico como “colonialista” via o antropólogo aplicado como um agente que saía entre os nativos e reunia dados para a formação acadêmica da teoria nos confins seguros da torre de marfim. Malinowski abriu caminho para o reconhecimento dessa relação entre etnografia e antropologia aplicada e formação de teoria.

A publicação póstuma do diário de campo de Malinowski escrito durante seu trabalho de campo na Ilha Trobriand (Malinowski 1967) criou um alvoroço entre os cientistas sociais. Malinowski expressou em seu diário sentimentos que divergiam de sua imagem como pesquisador de campo, observador participante e defensor do nativo. Para ser justo, o diário reflete alguns dos problemas comumente experimentados por antropólogos que vivem isolados de sua própria sociedade. Leitura compulsiva de romances, preocupação com a saúde sem a presença da medicina moderna, saudade da música que está acostumada a ouvir, raiva e desprezo pelos informantes que quebram promessas, e sim, os anseios sexuais são o destino dos antropólogos da área. Malinowski explicou a seus alunos que manter um diário fora um mecanismo de escape do tédio e das emoções do campo que incluíam privação sexual e solidão (Kuper 1983: 13; Wax 1972). Ele teria gostado da controvérsia nas reuniões de antropologia provocadas pelo discurso presidencial de Francis L. K. Hsu em 1975, no qual ele parecia ter alegria em relatar publicamente parte do material revelado no diário. Malinowski teria ficado satisfeito em saber que seus escritos continuaram a criar inquietação entre seus colegas.

Talvez, Michelle Rosaldo forneceu uma perspectiva mais realista compartilhada por muitos etnólogos sobre o diário de Malinowski quando ela escreveu:

Embora meus diários de campo estejam repletos de evidências da agora escandalosa ambivalência de Malinowski, e nossa primeira viagem, em particular, tenha sido de longe a experiência mais emocional e psiquicamente exigente da minha vida, acho difícil lembrar velhos sentimentos de dor e confusão. Em vez disso, minhas memórias da vida de Ilongot são tocadas pelo elenco romântico que foi, é claro, parte do que me levou a buscar um ambiente tão “exótico”. Escrevendo neste momento, sinto-me dominado pela gratidão e saudade de um mundo que se caracteriza pelo calor, consideração e ludicidade de pessoas que nos toleraram e cuidaram de nós e, por fim, tornaram-se nossos queridos amigos (Rosaldo 1980: xiv).

É lamentável que o diário de Malinowski tenha aparecido quase vinte anos após sua morte. Alguém se pergunta se ele estivesse vivo se, refletindo sobre sua experiência, ele teria escrito uma passagem como a de Rosaldo que ela teria citado em 1980.

Bibliografia

Fim.

Frazer, J. G. (1973). Il ramo d’oro. Studio sulla magia e la religione. Milano: Boringhieri.

Malinowski, B. (1984). Una teoría científica de la cultura. Madrid: Sarper.

Malinowski, B. (1913). The Family among the Australian Aborigines. London: University of London.

Malinowski, B. (1948). Magic, Science and Religion and Other Essays. Glencoe: The Free Press.

Malinowski, B. (1976). Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Victor Civita.

Malinowski, B. (1973). Sexo e repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes.

Malinowski, B. (2015). Crime e costume na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes.

Malinowski, B. (2011). Mith in Primitive Psychology. London: Read Books.

Durkheim, É. (1996). As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulp: Martins Fontes.

Mair, L. (1984). Anthropology and Development. London: MacMillan.

Colson, E. (1974). Tradition and Contract. New York.

Malinowski, B. (1945). The Dinamic of Culture Change. New Haven: Yale University Press.

Stambach, A. (2010). Education, Religion, and Anthropology in Africa. Annual Review of Anthropology, 39, 361–379.

Malinowski, B. (1929). Practical Anthropology. Africa, 2(1), 22–38.

Malinowski, B. (1966). Argonauts of Western Pacific. London: Routledge.

Malinowski, Bronislaw. 1976. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Victor Civita.

Kuper, A. (1973). Antropólogos e antropologia. (Francisco Alves, Ed.). Rio de Janeiro.

Diamond, J. (1959). The People of the twilighy. Chicago: University Press.

Lafitau, J.-F. (1724). Moeurs dea sauvages ameriquains, comparéesaus moeurs dea premiers temps. Paris: Saugraisn et Charles Etienne Hochereau.

Morgan, H. L. (1980). A sociedade antiga. Lisboas: Editorial Presença.

Haddon, A. (1906). Magic and Fetishism. London: Archibald Constable.

Weaver, T. (2002). Malinowski as Applied Anthropologist. Society for Applied Anthropology.

 

 

Sexta Lição: 4 de Dezembro - Ruth Benedict

 

 

Ruth Benedict

 

Biografia de Ruth Fulton Benedict

Ruth Fulton Benedict nasceu em Nova York em 5 de junho de 1887, filha de Frederick Samuel e Beatrice Fulton. Ele nasceu em uma antiga família norte-americana onde seis de seus antecessores haviam lutado na Revolução. Seu pai era médico e morreu antes de ela completar dois anos: sua infância foi dura e pobre, mas ela teve uma boa educação. Em 1905. Foi para Vassar. onde seu maior interesse era a literatura inglesa. O pai, um jovem promissor em cirurgia e pesquisa médica, morreu antes que Ruth Benedict tivesse dois anos de idade, deixando sua esposa a sustentar as duas filhas. Quando Ruth Benedict tinha sete anos, sua mãe com as duas filhas deixaram a fazenda da família perto de Norwich (N.Y.) e se mudaram para o Médio Oriente, onde sua mãe havia aceite um encargo de professor. Quatro anos depois, voltaram para Nova York e se estabeleceram em Buffalo; aqui a mãe ocupava o lugar de bibliotecária na Biblioteca Pública.

Apesar de anos de dificuldades econômicas e privações, Ruth Benedict conseguiu um diploma em Vassar, onde sua mãe foi criada. Ela licenciou-se com nota máxima em 1909, mas, segundo Margaret Mead, sua amiga muito próxima, não tinha esperanças que o futuro lhe oferecesse um papel social ou intelectual significativo. Teve uma breve carreira como professora de inglês em uma escola feminina na Califórnia logo depois em 1914 casou com Stanley Rossiter Benedict, professor de química na Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York. Ela esperava ter filhos imediatamente (Bohannan, 1993, pp.175-186). Quatorze anos depois, ainda sem filhos, ela expressou seu desesperado desapontamento. Ruth Benedict era uma pessoa muito atraente.  Era surda e tornou-se hábil a interpretar o que lhe diziam a partir do movimento dos lábios.

Licenciou-se em 1909, no entanto, ela sentiu que sua educação tinha dado pouco significado social ou intelectual à sua vida. O ano seguinte foi para Europa com duas companheiras. Quando voltou dedicou-se ao ensino médio por três anos e pesquisou mulheres que se tornaram figuras literárias. Em 1914 ela se casou com Stanley Benedict, um bioquímico que lecionava no Cornell Medical College.

Vocação antropológica

Benedict tinha cerca de 30 anos quando conheceu a Antropologia, uma disciplina que lhe permitiu pela primeira vez colocar em perspectiva os contrastes entre diferentes povos e diferentes períodos históricos. De 1919 a 1921, ela foi aluna de Alexander Goldenwiser e Parsons na Nova Escola de Pesquisa Social. Por meio deles conheceu Franz Boas, que teve grande influência na sua obra. A influência de Robert Lowie que conheceu num curso no Museu Americano de História Natural, também é evidente, pois lhe pediu de publicar «A visão na cultura das planícies » (1922).

Ele fez seu primeiro trabalho de campo no verão de 1922 entre os Serranos , sob a direção de Alfred Kroeber. Este trabalho não foi fácil para Benedict, porque ela era surda e achava impossível aprender a ler a partir dos lábios os novos modelos fonéticos. Concluiu sua tese de doutorado sobre «O Conceito da Coluna Guardiã na América do Norte» em 1923, e seu primeiro empreendimento como docente foi como assistente de Boas, em uma classe de licenciatura na Universidade Barnard em 1922-1923. No ano seguinte, ele começou a lecionar na Columbia Graduate School.

A dedicação de Benedict à antropologia foi total somente quando ela finalmente soube que nunca teria filhos. Ela havia treinado como bolsista e se tornou uma etnóloga comparativa de primeira linha, sem experimentar nenhuma mudança repentina.

Em 1927, quando estudava os índios Pinta, ficou impressionada com o tremendo contraste entre sua cultura e a cultura Pueblo, que havia estudado antes. Os povos dão ênfase à harmonia; Os Puna, eram extremistas. Ela começou a ver a cultura não apenas como a matriz onde as personalidades se desenvolvem, mas como personalidade em grande escala. Ruth Fulton Benedict foi aluna de Boas na época em que ele se converteu ao particularismo histórico.

Obras de Benedict Ruth

Essa resignação patética para uma vida sem filhos veio justamente no período em que sua carreira na antropologia teve seu primeiro florescimento. Em 1928, publicou um seu ensaio sobre os Tipos Psicológicos nas Culturas do Sudoeste. Este ensaio foi preparado por dez anos de estudo antropológico e de pesquisa no campo, primeiro sob a direção de Elsie Clews Parsons e Alexander Goldenweiser, depois como aluna de Franz Boas e A. L. Kroeber. A partir de então, realizou grande parte de seu trabalho antropológico seguindo na elaboração a concepção básica e da metodologia científica. O fim de uma vida marcou para Ruth Benedict o começo de outra, como ela mesma imaginou em 1930. Defraudada pelos caprichos da morte e do nascimento, ela viveu o resto de seus dias com uma paixão constante e desapegada. Em 1922, com a idade de trinta e cinco anos, Ruth Benedict realizou sua primeira pesquisa sobre os indios Serrano da Califórnia, auxiliada por A. L. Kroeber. Alcançou a docência na Universidade da Columbia em 1923 e foi nomeada no mesmo ano leitora de antropologia. Em seguida, pesquisou sobre os Zuni (1924-25) sobre os Cochiti (1925) e sobre os Pima (1926). A experiência directa de Benedict com os Pina deu-lhe motivos para estudar e compreender as pessoas aplicando os seus 'modelos culturais' característicos. Esse foi o conceito que formulou pela primeira vez num ensaio sobre «Tipos psicológicos nas culturas do sudoeste» (1928), pois já havia familiarizado com um vasto público de leitores com os Padrões da cultura (1934). Além de investigações diretas sobre os índios do Sudoeste, na década de 1930, estudou, na década seguinte, os modelos culturais asiáticos, europeus e, utilizando informantes das áreas urbanas desses países. Seu livro sobre cultura japonesa: O crisantemo e a espada (1946) é o seu trabalho mais apreciado nessa área. Sua pesquisa de campo foi realizada durante os meses de verão, quando ela estava de féria da docência na Columbia University, onde não somente tinha o encargo de ensinar, mas também encobria responsabilidades administrativas. Durante a guerra, prestou-se a ajudar o governo americano como especialista em ciências sociais no Escritório de Informação Bélica. 

 

Padrões de cultura

Benedict aceitou a tese boasiana de que as culturas são entidades distintas e ao mesmo tempo unitárias e integradas, mas através da sua amizade com Margaret Mead ela percebeu a estreita relação entre a mentalidade dos indivíduos e o ethos cultural. Juntos, esses dois conceitos a levaram a estudar as relações entre uma determinada cultura e a psicologia de seus membros. Benedict publicou os resultados de sua pesquisa naquele que é seu livro mais famoso: Padrões de Cultura (1934). O tom que aparece em Patterns of Culture nasceu quando ela estava preparando um ensaio para o 23º Congresso dos Antropólogos Americanos em 1928, mas ela não escrevu o livro até 1931. Ela recorreu a Nietzsche para explicar os termos 'apolíneo' e 'dionisíaco' para descrever as diferenças entre a cultura Pueblo e outras culturas indígenas americanas. Ela chamou a cultura Dobu de 'paranóica' e a cultura Kwakiutl de 'megalomane'. Alguns de seus colegas a repreenderam, mas o livro se tornou um clássico. embora hoje seja visto com frequência em outros campos que não a antropologia, devido ao grande sucesso que teve —todos os seus pontos positivos tornaram-se aplicações à culturas existentes. A antropóloga americana estabelece em princípio o conceito de relativismo cultural e, através de um método de observação participante, estuda diferentes sociedades de forma a desnaturalizar práticas tidas como certas nas sociedades ocidentais, como a adolescência, a homossexualidade ou a diferenciação de género.

Para Benedict, um “modelo ” era a forma específica pela qual a cultura era integrada: isto é, coerente consigo mesma e com o temperamento geral dos seus membros (Malefijit, 1978, p. 229). Ela demonstrou este conceito em relação a outras culturas, nomeadamente: o Pueblo Zuni, o Kwakiutl da costa noroeste e o Dobu da Melanésia. Caracterizando seu ethos em termos nietzschianos, ela definiu o apolíneo o povo Zuni, contra emoções violentas e não agressivas; e prlo  contrário os dionisíacos eram os Kwakiutl e os Dobu, amantes do excesso e do poder iluminador do frenesi. Os vaidosos Kwakiutl também foram classificados como “megalomaníacos”, enquanto a cultura encharcada de magia dos Dobu era “paranóica”. Os Zuni eram; isentos desta crítica psicopatológica e Benedict claramente os preferia aos outros dois povos.

 

Os estudiosos que trabalharam na área depois dela demonstraram que suas caracterizações eram muito esquemáticas: os Zuni também eram às vezes violentos e embriagavam-se; e mesmo os Kwakiutl às vezes eram capazes de ser humildes. Mas a maioria dos pesquisadores concordou em confirmar a presença, em grande medida, das qualidades descritas por Benedict. Benedict indicou assim um método possível para explicar as semelhanças e diferenças culturais - convencida da possibilidade - de realizar comparações interculturais com base nesta nova forma de estudar uma cultura. Não é sem razão que Patterns of Culture se tornou provavelmente o livro de antropologia mais vendido de todos os tempos; e é por esta razão ainda mais desagradável do que foi descrito; dois: culturas em termos psicopatológicos. Não só é claramente ilógico pensar numa cultura como um todo como se fosse uma personalidade doente ou perturbada, mas também as imagens que utiliza são contrárias à ideia da igualdade do homem e ao valor das culturas primitivas como tais.

Considerada uma das figuras mais influentes e articuladas da antropologia americana, Ruth Benedict (1887–1948) foi treinada por Franz Boas e Elsie Clews Parsons e colaborou com a igualmente renomada antropóloga Margaret Mead, uma aluna sua com quem esteve por algum tempo envolvida romanticamente. Quando Benedict morreu repentinamente, aos sessenta e um anos, ela era popularmente conhecida por duas obras best-sellers: Patterns of Culture, que se tornou um modelo exemplar de integração das sociedades, e The Chrysanthemum and the Sword, um estudo da cultura japonesa. encomendado pelo governo dos EUA durante a Segunda Guerra Mundial. A contribuição duradoura de Benedict Ruth para a antropologia, no entanto, não pode ser apreciada apenas através das suas obras mais famosas. Igualmente inovadores foram os seus escritos não publicados ou pouco notados, que cobriram tópicos como os atributos interculturais das sociedades livres, as culturas nacionais da Tailândia e da Roménia, e a comparação da política de consenso asiática com os padrões políticos americanos. A biografia escrita por uma das últimas alunas de pós-graduação de Benedict, Virginia Heyer Young, baseia-se nessas obras, na correspondência e no trabalho colaborativo de Benedict com Margaret Mead, e em notas de curso não publicadas. Young encontra os padrões de ordenação nos ricos materiais que Benedict deixou em seus artigos e demonstra que Benedict estava embarcando em novas direções interpretativas na última década de sua vida – aplicando seus métodos de comparação holística às culturas contemporâneas e à dinâmica da coesão social. O trabalho de Benedict, de facto, antecipou as tendências da antropologia nas décadas vindouras, ao projectar uma estrutura de indivíduos não apenas moldados pela sua cultura, mas também utilizando a sua cultura para objectivos pessoais ou colectivos. O retrato cativante e matizado que Young faz de Benedict nos seus últimos anos leva-nos a perguntar que direção a antropologia americana poderia ter tomado se Benedict tivesse concluído o livro em que estava a trabalhar no momento da sua morte.

 

Raça: Ciência e Política

Após o aposentamento de Boas. Benedict, ainda professor assistente, ela dedicou-se a ajudar seus alunos a obter fundos para o trabalho de campo. Ela editou o Journal of American Folklore (1928-1939) e liderou viagens de pesquisa de campo de verão; uma para os Apache em 1930, outra para os Pés Negros em 1938. Seu primeiro ano de folga, em 1938-1939, foi dedicado a "Raça: Ciência e Política ", um livro que publicou baseando-se em um panfleto que ela tinha escrito para o Exército. Foi impresso, mas não foi distribuído porque ofendeu alguns congressistas. Como resposta. Ela escreveu um livro que satisfaz o que ainda é um dos melhores argumentos sobre o racismo. Durante este período Benedict também escreveu poesia, que mais tarde foi publicada sob o nome de Anne Singleton . Sob este pseudónimo, escreveu também poemas em que lutava pela liberdade de sentimentos e expressão. Um tema persistente em seu trabalho antropológico é aquele relacionado à conciliação da liberdade individual com a integração cultural. Uma sensação de desapego acompanhou Ruth Benedict por toda a vida. Embora muito compreensiva e sensível, ela sempre dava a impressão de estar distante do mundo em que vivia. Até mesmo sua figura física tinha um carácter etéreo.  Ela tinha grandes olhos cinzentos e penetrantes sob os cílios escuros e grossos, um rosto bonito e cabelo branco curto.  Era como com 'uma mulher sábia mítica, pertencente tanto ao passado como ao futuro. Os estudantes e colegas a reverenciavam e a estimavam. Ela foi especialmente útil para aqueles que estavam com problemas de realizar-se na vida. Em muitas ocasiões ela ajudou economicamente os estudantes que mal conhecia apesar de cultivarem interesses longe dos seus. Mesmo sendo objecto de veneração e gratidão, por causa dessas atitudes nunca descaiu na familiaridade. Pela sua dignidade simples, mas inatacável, impedia as pessoas de se aproximarem demasiado dela. Uma de suas primeiras paixões - antes de estudar antropologia - foi de integrar as personalidades em conflito com seu próprio ambiente cultural. Ela estava particularmente interessada na vida dos poetas.  Como estudante de Boas, ela tinha tido uma educação que era rigorosamente plasmada sobre as regras da integridade científica. No entanto, ela ainda tinha espírito poético suficiente, para não ser escravizada pelos rituais do método científico, um destino que seu professor Boas não conseguiu evitar completamente.

Crisantêmo e A Espada

A Segunda Guerra Mundial revelou para ela uma área de estudo completamente nova: a aplicação do pensamento antropológico às sociedades contemporâneas, não apenas em trabalho de campo, mas em entrevistas e documentos acerca da Romania, Alemanha e Holanda, e perto do fim da guerra ela se interessou pelo Japão. No verão seguinte à guerra, ela planejou ir à Alemanha para 'estabelecer e supervisionar uma série de estudos culturais' da comunidade alemã, mas as autoridades militares não a deixaram ir; Disseram que era por motivos de saúde. mas ela disse com bastante desprezo que era porque eles achavam que seria feio e causaria um escândalo .

Ela retornou a Columbia em 1946, depois de completar O Crisântemo e a Espada , que alguns antropólogos consideram sua obra-prima. É um livro sobre o Japão, que quase único nos anais da Antropologia. Leitura essencial para qualquer pessoa interessada na cultura japonesa, esta obra-prima insuperável abre uma janela intrigante sobre o Japão. O estudo de Benedict sobre a época da Segunda Guerra Mundial pinta um contraste esclarecedor entre a cultura do Japão e a dos Estados Unidos. O Crisântemo e a Espada é uma visão reveladora de como e por que nossas culturas diferem, tornando-se a introdução perfeita à história e aos costumes japoneses. Após sua publicação em 1946, O Crisântemo e a Espada alcançou um tremendo sucesso. Na altura, mais de meio milhão de soldados americanos permaneciam estacionados no Japão como parte das forças de ocupação, enquanto vários milhões lutaram durante anos contra esta pequena nação insular. No entanto, além do importante estudo de John Embree sobre uma aldeia japonesa, Suye Mura, e sua nação japonesa, não houve nenhum outro estudo de ciências sociais sobre o Japão digno de nota. Como o primeiro grande estudo a tentar descrever a idiossincrasia e a mentalidade japonesas, O Crisântemo e a Espada tornou-se imediatamente um clássico.  O livro Crisântemo e a Espada foi criado como resultado de pesquisas sobre a cultura japonesa, que Benedict realizou a pedido das autoridades americanas durante a Segunda Guerra Mundial. Embora escrito há meio século, numa realidade histórica e económica diferente, continua a ser um atual e interessante “guia do modo de pensar dos japoneses”. Graças à sensibilidade antropológica, Ruth Benedict conseguiu captar hábitos de pensamento e comportamento profundamente ocultos, moldados pela cultura, que mudam muito lentamente.

O mistério da nação Yamato vem a ser descoberta através da antropologia cultural.

O Japão é uma nação extremamente contraditória. As flores suaves (crisântemos) e as espadas fortes podem ser respeitadas como as mais belas, fortes e suaves ao mesmo tempo. ...'O Crisântemo e a Espada', escrito por Benedict, tem a influência mais profunda entre os ocidentais que estão profundamente curiosos sobre a cultura japonesa. Ela se concentrou em elaborar a dualidade da cultura tradicional japonesa e também perceber suas contradições.

A antropologia americana Ruth foi contratada pelo governo dos EUA no final da Segunda Guerra Mundial para conduzir uma análise sistemática da nação japonesa usando métodos de antropologia cultural, a fim de resolver a questão de saber se os Aliados deveriam ocupar o Japão e como os Estados Unidos deveriam administrar o Japão.

Benedict coleta informações de filmes de propaganda lançados pelo Japão naquela época, entrevistas com nipo-americanos e prisioneiros de guerra em campos de concentração e obras literárias japonesas para reconstruir a cultura japonesa e as expectativas para a reconstrução do Japão no pós-guerra. Sua delicada descrição livrou-se dos debates acadêmicos, e assim despertou a curiosidade dos leitores e a posterior tendência dos estudos japoneses nos Estados Unidos, mudando a situação de nada se saber sobre o Japão antes da guerra.

O caráter contraditório dos japoneses é como o belo crisântemo e a espada afiada, tão extrema e tão mágica. Este livro usa “crisântemo” e “espada” para revelar o caráter contraditório do povo japonês. 'Crisântemo' é o emblema da família real japonesa, e 'espada' é um símbolo da cultura bushido, e também simboliza a essência do povo japonês, bem como a dualidade da cultura japonesa (como o amor pela beleza, mas pelas artes marciais, cortesia mas agressividade, amor à novidade mas teimosia, obediência mas indisciplinado, arrogante e educado, etc.). A partir disso, analisamos então a hierarquia e os costumes relacionados da sociedade japonesa, e apontamos que a descontinuidade entre a educação infantil japonesa e a educação de adultos é um fator importante na formação da dupla personalidade.

Além disso, há também observações e visões perspicazes sobre fenômenos culturais como o imperador, a ética, o giri (diferentes favores), a comunidade, a religião, os costumes, etc. O texto começa com o estilo de vida japonês e acontecimentos típicos, e fornece análises poderosas em narrativas vívidas, com linguagem cheia de sabedoria e humor. É ao mesmo tempo instigante o fascino de ler. Este livro pode compreender de forma direta e precisa as 'raízes' do povo japonês. É um livro clássico para a compreensão da nação japonesa.

Na primavera de 1947, ela foi responsável por um grande projecto de pesquisa sobre as culturas contemporâneas, que incluiu estudos sobre a França. Alemanha, Polônia, Rússia e China pré-comunista. «O Estudo da Cultura a Distância» que entre outras coisas, discutiu e ilustrou a antropologia aplicada e sua importância nas relações dos governos nacionais.

O ano seguinte. Em 1948, ela foi demasiado tarde nomeada professora titular. Naquele verão, ele lecionou na Escola de Verão da UNESCO em Praga, depois visitou os países que estava estudando: a Tchecoslováquia, Polónia, França, Bélgica e Holanda. Cinco dias depois de regressar desta viagem, adoeceu e depois morreu de trombose coronária, em 1948.  Ela morreu no outono daquele ano de regresso a Nova York aos sessenta e um anos.

Sua amizade com Margaret Mead

Uma biografia exclusivamente reveladora de duas eminentes mulheres americanas do século XX. Amigas próximas durante grande parte de suas vidas, Ruth Benedict e Margaret Mead se conheceram no Barnard College em 1922, quando Mead era estudante e Benedict, professora. Elas defenderam a igualdade racial e sexual e a relatividade cultural, apesar do teor geralmente racista, xenófobo e homofóbico da sua época. Os best-sellers de Mead, Coming of Age in Samoa (1928) e Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935), e Benedict's Patterns of Culture (1934), Race (1940) e The Chrysanthemum and the Sword (1946), foram marcos estudos que garantiram o destaque e influência duradouros de seus autores no campo da antropologia e além. Benedict inadvertidamente expôs Mead a acusações de incompetência profissional.

A sua antropologia

Ruth Benedict era uma teórica com um único tema: ela trabalhava para conciliar a configuração cultural com o comportamento habitual. Segundo Benedict, cada cultura é um todo integrado que tem sua própria configuração. Cada indivíduo nessa configuração cultural tem as características dessa cultura e se comporta de acordo com esse modelo.

A melhor exposição dos pontos de vista de Benedict pode ser encontrada em seu Patterns of Culture (1934). Aqui ele define a antropologia como a disciplina que estuda as diferenças entre as tradições culturais. Pontos extremamente importantes são derivados dessa perspectiva. Primeiro, o que Boas e outros afirmaram acerca da 'cultura' torna-se central - não estamos mais tão interessados ​​em cultura quanto estamos nas culturas e parâmetros que moldam o homem. Segundo, 'uma cultura' é integrada. Toda a cultura, desse ponto de vista, foi feita por seres humanos, está em um determinado lugar e é diferente de outras culturas. Isso significa que cada cultura é mais ou menos integrada, o que por sua vez implica que uma cultura é mais do que a soma de suas partes.

A ênfase em culturas inteiras é uma parte muito importante do poder cultural relativista que as culturas devem ser estudadas. o que é melhor do que estudar a cultura por um lado e as características da cultura por outro. A configuração cultural enfatizada por Benedict Ruth leva o programa mais longe. Onde Boas enfatizou a recuperação da informação. Benedict propõe uma forma de ampliar a compreensão das culturas estudadas, integrando os dados relevantes em torno do conceito de configurações culturais.

O uso de modelos culturais por Benedict representa uma redução extrema nas características culturais. Quando. por exemplo caracteriza os Zuni como 'Apolíneos', uma cultura onde prevalece a moderação reduz os modelos culturais a tal ponto que é difícil explicar o comportamento humano por meio de paradigmas. Poderia ser considerado do ponto de vista lógico, uma simplificação subversiva, Benedict, Sua técnica para chegar a tal entendimento foi de usar a sua simplificação com modelos culturais como conceito principal para explicar a conduta individual. Um Desafio em levar em conta a diversidade de comportamentos possíveis que qualquer cultura possuia.

No entanto, deve-se enfatizar que, apesar de seu reducionismo extremo, a teoria dos modelos culturais de Ruth Benedict representa a primeira teoria não evolutiva, não comparativa, não biológica que tenta entender o comportamento humano com base na integração cultural.

O seu método antropológico

Sua tendência à integração e à generalização dirigiu Ruth Benedict desde o início a uma concepção orgânica da cultura. Uma lista e análise dos caracteres culturais distintos lhe parecia pouco útil para explicar a cultura. Juntamente com os funcionalistas, como Malinowski, ela insistiu na necessidade de estudar as culturas como uma totalidade mais ou menos orgânica. Mas, enquanto Malinowski partia do indivíduo e acreditava que os fenómenos culturais se originassem a partir das necessidades individuais, Ruth Benedict confiava nas 'configurações culturais' e considerava o comportamento individual, em grande parte como uma adesão a certos imperativos culturais. As sociedade possuem um 'impulso dominante' que apresenta certas situações humanas recorrentes - nascimento, morte e a necessidade de alimento e abrigo - de acordo com a própria situação. A morte, por exemplo, entre os índios das Planícies Orientais é para os que acompanham o caixão uma ocasião de dor violenta, desenfreada e generalizada, enquanto entre o Pueblo do Sudoeste a prescrição cultural que está em vigor é de esquecer o falecido o mais rápido e silenciosamente possível. Essas duas culturas têm ‘impulsos’ opostos que Benedict resumiu sob os termos nietzscheanos de dionisíaco (os das planícies) e apolíneo (os do sudoeste),

1) Dionisíaco caracterizado por frenesi e excesso,

2) Apolíneo caracterizado por harmonia e Ordem:

As práticas religiosas, de guerra e sexuais em ambas as culturas actuam de maneira a proporcionar oportunidades de entrar em suas respectivas tendências culturais, de modo que o significado e a função dessas e de outras instituições serão diferentes nas duas culturas; Se se verifica a variabilidade 'quase infinita' de qualquer traço cultural, segundo Ruth Benedict não há uma explicação científica. Ela acreditava que poderíamos dar uma interpretação funcional das culturas, mas nunca da cultura. Na verdade, nunca pode haver uma ciência da cultura: esta é a implicação principal do relativismo cultural radical de Benedict, e nisso pode estar diretamente ligada ao seu mestre Franz Boas. O primeiro trabalho de Benedict pode ser configurado como um esforço generoso em favor da concepção de relativismo cultural. Ela insiste que a liberdade individual pode ser mínima, mas há liberdade cultural ilimitada. Em sua defesa de uma definição relacionada de normalidade, Benedict escreve: 'Parece-me que pode haver culturas construídas solidamente e harmoniosamente em miragens, medos ou complexos de inferioridade, tais que se entreguem ao limite extremo da hipocrisia e das reivindicações '. Para Ruth Benedict é sempre possível indicar uma situação cultural existente ou possível, onde os dissidentes de qualquer cultura se sintam à vontade. Embora esta conclusão não tenha valor prático para qualquer indivíduo humano em contradição com a sociedade a que pertence, a Benedict parecia reconfortante saber que, em situações culturais apropriadas, seu comportamento teria sido apreciado. Em Padrões de Cultura, Benedict reuniu habilmente vários artigos e pesquisas de campo que ela havia escrito nos vinte anos anteriores. Ela também fez uso extensivo da pesquisa de Franz Boas (Kwakiutl) Ruth Leah Bunzel (Zuni) e Reo F. Fortune (Dobu). Os estudos sobre os Zuni, Dobu e Kwakiutl foram apresentados como documentação da sua concepção principal: a variação quase ilimitada dos padrões culturais. Durante sua experiência directa com os índios do sudoeste na década de 1930, Benedict ficou impressionada com a observação de que a cultura dos Pueblos diferia radicalmente daquela dos índios de America do Norte, embora não houvessem barreiras naturais. para isolá-los das populações vizinhas. Parece que os Pueblo estavam invisivelmente isolados das influências culturais de seus vizinhos. Enquanto o comportamento dos índios norte-americanos era amplamente caracterizado, de acordo com Ruth Benedict, a partir da êxtase e da orgia, os Pueblos contavam com a harmonia e a sobriedade. Os Pueblos e seus vizinhos se configuravam para  Benedict com a famosa formulação de Nietzsche da antítese Dionísio-Apolo tirada do mundo dos antigos gregos. Para marcar o contraste típico com os Pueblos, Benedict escolheu os Kwakiutl das tribos da costa noroeste, que tinham sido descritos com muitos detalhes por Boas. Todas as suas atividades, desde as danças religiosas da Sociedade dos Canibais até as trocas de seus sistemas económicos (potlach), revelaram impulsos básicos de violência e exaltação de si mesmos. Em qualquer tipo de relacionamento e qualquer tipo de actividade só foram possíveis duas consequências: o triunfo total ou a ignomínia do pária. Em termos clínicos, eram para Benedict, os 'megalómanos paranóicos'. O êxtase e a depressão que caracterizaram suas vidas são características dionisíacas e eram comuns à maioria dos índios americanos, com a notável excepção dos Pueblos do Sudoeste. Ruth Benedict, evidentemente, escolheu os Dobu da Nova Guiné como um caso histórico para sustentar sua tese de que uma cultura pode funcionar satisfatoriamente mesmo quando é dotada de características humanas que a civilização ocidental qualifica como as mais desprezíveis. 'Os Dobu, diz Benedict, 'vivem abertamente sem reprimir os piores pesadelos humanos sobre a perfídia do Universo. De acordo com sua visão do ta, a virtude consiste em escolher (cabro expiatório) uma vítima sobre a qual se possa desabafar a malignidade atribuída à sociedade humana e aos poderes da natureza. 'A perfídia e o engano são virtudes institucionalizadas dessa sociedade. e são praticadas nas formas naturais descritas acima. 'O homem bom' é aquele que ultrapassou as lutas de todos os dias atingindo um certo nível de prosperidade; e 'é indiscutível que ele roubou, matou crianças e seus amigos íntimos com a feitiçaria, e enganou sempre'. As culturas descritas em Configurações da Cultura ilustram o conceito de Benedict, segundo o qual a cultura pode ser considerada um conjunto de configurações culturais coordenadas pela ação de um único esquema geral predominante, de modo que uma cultura é semelhante a um indivíduo, pois é um exemplo mais ou menos coerente de pensamento e ação. Em «Termos psicológicos poderiam ser usados ​​para analisar e resumir características culturais. As culturas - ela diz - são a psicologia individual que, projetada na tela, adquiriu proporções gigantescas e uma longa duração».

Esse uso da psicologia coloca Benedict entre os antropólogos modernos que tentaram um método para o estudo do homem e da sociedade que prescinde da distinção entre as várias disciplinas. Deve-se notar, no entanto, que especialmente no seu primeiro trabalho os aspectos funcionais e de adaptação da teoria psicológica não se aplicam para explicar porque uma cultura é diferente da outra. O ethos característico de grupo de um povo é apresentado simplesmente como 'algo dado', quase da mesma maneira que aparece o 'estilo' de Kroeber nos seus ensaios sobre a moda de vestir roupas. Benedict realmente deu ao termo estilo uma conotação de aleatoriedade, como se sugerisse a presença de um 'nível psicológico' nas culturas. O pano de fundo do conceito de 'espírito tribal' de Benedict não é a psicologia, mas a tradição do Volkgeist da Escola Histórica Alemã. As obras de Wilhelm Dilthey e Oswald Spengler exerceram uma influência particular sobre ele. Atrás havia os grandes sistemas de pensamento de Kant e Hegel (Dilthey, 2007, p.57). Kant fala de um plano da natureza na história análogo às 'leis da natureza' da ciência. Parece que o homem acomoda este plano sem estar ciente disso, por Hegel não havia nenhum plano natural ou divino por trás dos eventos históricos, mas a razão e as paixões - o racional e o irracional - dos homens. Embora os eventos históricos vistos de fora não apresentem necessariamente conexões lógicas, os 'pensamentos' dos homens, que constituem seu pressuposto, os apresentam. O historicista, portanto, deve operar tanto do lado de fora quanto do lado de dentro. Ele deve penetrar nos eventos para descobrir os ‘pensamentos’ subjacentes que estão logicamente conectados - até que o 'espírito do tempo' (Zeitgeist) seja alcançado. Dilthey está na posição de Hegel é sobre a posição de Hegel quando ele fala da necessidade de compreender a 'atividade espiritual' específica de uma determinada cultura para entendê-la. Dilthey concebe sistemas filosóficos como expressões de várias atitudes culturais; atitudes que não podem ser resolvidas uma na outra. O Spengler destaca o caráter especial de cada cultura. A cultura expressa seu caráter em todos os detalhes de sua existência. Há, como em Dilthey, uma insistência na independência de cada cultura das outras. Auxiliado pela psicologia da forma sobre a importância das estruturas subjetivas, Benedict aplicou à antropologia cultural o conceito de volksgeíst tirado da tradição histórica germânica. Também em seu último trabalho, O crisantemo e a espada, onde ela usou a psicologia adaptativa para explicar a continuidade da cultura, seu método ainda é baseado no conceito de espírito tribal. É claro que este método é adequado a um poeta que tenta destilar para nós a essência de uma experiência ou de um complexo de eventos. O exagero e a omissão de uma premissa básica são necessários para obter um efeito artístico. No entanto, quando o cientista faz uso da poesia, é claro que existem algumas dificuldades. A crítica mais comum do trabalho de Benedict é que ela escolheu e exasperou as características culturais de uma sociedade que apoiou sua concepção sobre um 'espírito' particular e negligenciou as características que pareciam refletir um impulso oposto: coexistem espírito dionisíaco e apolíneo muitas vezes na mesma cultura como no mesmo indivíduo, embora um ou outro das configurações possa parecer predominante. Era a coexistência dessas tendências no mundo da Grécia antiga atirou o interesse de Nietzsche no livro O nascimento da Tragedia . Qualificar a cultura como apolínea ou dionisíaca podia ser útil para indicar a sua tendência geral, mas podia desviar se fosse usada como premissa científica para ordenar e interpretar o inteiro campo de comportamento cultural e individual duma sociedade. A própria Benedict tinha advertido contra os perigos deste método: 'seria absurdo', ela afirma, mas em Padrões de Cultura, 'comprimir toda cultura para predefini-la. O risco de deixar factos importantes de lado'. ilustrar a proposta principal é bastante severa, mesmo na melhor das hipóteses. A contribuição de Benedict está na sua tentativa de apreender um significado nos fenómenos culturais que se apresentam a um estudioso de culturas: ela não estava satisfeita, como Boas, em continuar registrando dados e adiar a explicação  indutiva do homem e na sociedade. Essa atitude a impacientou e apelou para o conceito de integração como ferramenta de pesquisa e compreensão das culturas.

 

Tem sido frequentemente notado que a insistência de Ruth Benedict na relatividade cultural contradiz sua preocupação em melhorar a sorte do género humano; uma preocupação que ela manifesta no seu trabalho teórico e nos seus esforços práticos em favor da liberdade e da tolerância. Ela esperava que basicamente uma ordem racional pudesse ser encontrada nos modelos de cultura que ainda eram cegos e inconscientes. O mecanismo social, no entanto, requer modelos e abordagens. Se 'os muitos padrões de vida diferentes e coexistentes são' igualmente válidos ', como parece que ela quer afirmar, então deve-se concordar completamente com Spencer e aceitar a tolice do homem como inevitável. No entanto, ela não aceitou essa implicação e falou com eloquência dos aspectos negativos inerentes a certos tipos de organização social: 'É possível examinar as diferentes instituições e derivar seu custo em termos de capital social, em termos de tipos indesejáveis ​​de comportamento eles são estimulados e em termos de sofrimento e frustração humanos. Se a sociedade deseja pagar esse custo pelos caracteres escolhidos e adequados, os valores se desenvolverão dentro desse quadro, tanto quanto possível. O risco é grande, e a ordem social não pode pagar esse preço, pode entrar em colapso causando desperdício inútil, revolução, desastre económico e emocional.

Mais do que qualquer outro de seus contemporâneos, talvez, Benedict destacou a fraqueza do funcionalismo de Durkheim, que afirmava que as instituições são coisas, elas estão conectadas umas às outras e só podem ser indicadores de outras instituições. Ela saiu desse círculo, apoiando a analogia entre grupos de instituições e padrões humanos. O valor descritivo desse método é indiscutível, mas parece insuficiente para explicar os fenómenos da dinâmica social. Tal sistema de avaliação nunca poderia ser combinado com o método psicodinâmico que ela tentou definir No «Crisântemo e a espada». A Benedict foi uma crítica severa e aguda da nossa cultura, mas, paradoxalmente, como principal instrumento de sua crítica, ela usou um relativismo cultural rígido. Somente uma preocupação excessiva pela tradição formal, no entanto, poderá nos enganar na avaliação da contribuição de seu pensamento. Suas intuições refletem as virtudes e fraquezas de natureza poética e devem ser complementadas pela contribuição mais prosaica - e mais rigorosa - de outros sociólogos.

Bibliografia

 

Bohannan, P., & Glazer, M. (1993). Antropología. Lecturas. Madrid: McGraw-Hill.

Benedict, R. (1922). The Vision in Plains Culture. American Anthropologist, XXIV(1), 1–23.

Benedict, R. (1926). Serrano Tales. The Journal of American Folklore, XXIX(151), 1–17.

Benedict, R. (1931). Tales of The Cochiti Indians (Bulletin o). Washington: Smithsonian Institution.

Benedict, R. (1982). Padrões de cultura. Lisboa: Livros do Brasil.

Benedict, R. (1972). O Crisântemo e a Espada. Padrões da Cultura Japonesa. São Paulo: Perspectiva.

De Waal Malefijit, Annemarie. 1978. Immagini dell’uomo. Storia del pensiero antropologico. Milano: Armando Armando.

Young, Virginia Heyer. 2005. Ruth Benedict: beyond relativity, beyond pattern. Lincoln: University of Nebraska Press.

Benedict, R., & Weltfish, G. (1889). The Races of Mankind. Public Affairs Pamphlet, (85), 1–31.

Singleton, A. (1945). Mirage Love. London: G.G. Swan.

Benedict, R. (1943). Recognition of Cultural Diversities in the Postwar World. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, CCXXVIII, 101–107.

Benedict, R. (1972). O Crisântemo e a Espada. Padrões da Cultura Japonesa. São Paulo: Perspectiva.

Dilthey, W. (2007). Introduzione alle Scienze dello Spirito. Milano: Bompiani.

Spengler, O. (1973). A decadência do Ocidente. Rio de Jabeiro: Zahar.

Nietzsche, F. (1992). O nascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Séptima Lição: 6 de Dezembro - Margaret Mead

 

Biografia de Margaret Mead

Até meados da década de 1920, os antropólogos americanos se concentraram nas culturas nativas americanas ou árticas e subárticas. A primeira 'saída' da antropologia americana do continente americano talvez se deva a Margaret Mead (1901-1978). Mead, que foi aluno de Boas, de fato fez sua primeira busca nas Ilhas Samoa, um arquipélago da Polinésia, no período entre 1926 e 1927. (Fabietti, 2011, p. 115).

Datas importantes: cronologia

1901 16 de Dezembro: nasce Margaret Mead.

1918 Margaret termina o liceu e conhece Luther Cressman, seu primeiro marido.

1919 Margaret começa os estudos na Universidade DePauw, no estado de Indiana, mas desiste um ano depois.

1920 Margaret vai para o Instituto Barnard, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque.

1923 Margaret obtém a licenciatura em Psicologia e escolhe a Antropologia para o seu doutoramento.

Setembro: Margaret Mead casa com Luther Cressman.

1925 Agosto: Margaret chega a Samoa.

1926 Margaret conhece Reo Fortune na sua viagem de regresso à Europa onde passa o verão com Luther. Regressa a Nova Iorque, escreve Crescer em Samoa e começa a trabalhar como Conservadora Assistente do Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque.

1927 Margaret e Reo encontram-se na Alemanha e decidem casar.

1928 Outubro: Margaret Mead e Reo Fortune casam na Nova Zelândia e viajam para Manus, na Nova Guiné. É publicado Crescer em Samoa.

1929 Margaret regressa a Nova Iorque e escreve Crescendo na Nova Guiné.

1930 Margaret inicia com Reo o trabalho de campo entre os índios Omaha.

1931 Setembro: Margaret e Reo partem para a Nova Guiné e iniciam o trabalho de campo entre os Arapesh.

Setembro: Margaret e Reo deslocam-se para Mundugumor.

Dezembro: Margaret encontra-se pela primeira vez com Gregory Bateson.

1933 Fevereiro: Margaret e Reo iniciam o trabalho de campo entre os Tchambuli. Quando abandonam a Nova Guiné, separam-se e ela regressa a Nova Iorque e escreve Sexo e comportamento em três sociedades primitivas.

1935 Julho: Reo e Margaret divorciam-se. Ela e Gregory Bateson planeiam uma viagem de campo ao Bali.

1936 Margaret e Gregory casam em Singapura e partem para o Bali.

1938 Margaret e Gregory trabalham oito meses em Iatmul, Nova Guiné.

1939 Margaret e Gregory regressam a Nova Iorque. Margaret fica grávida. A segunda Guerra Mundial inicia-se e prolonga-se até 1945. Margaret e Gregory começam a escrever O carácter do Bali.

8 de Dezembro: Nasce a sua filha Catherine.

1941 Margaret é convidada para trabalhar para o Governo em Washington.

1942 É publicado O Carácter do Bali.

1943 Margaret vai à Inglaterra proferir conferências.

1952 Margaret vai à Austrália proferir conferências.

1953 Margaret regressa a Manus, onde permanece até Dezembro.

1954 Para além do seu trabalho no Museu Americano de História Natural, Margaret é nomeada professora auxiliar de Antropologia, na Universidade de Columbia.

1957 Margaret faz uma segunda viagem de campo ao Bali.

1964 Margaret faz uma viagem de regresso a Manus.

1966 Margaret faz uma viagem de campo a Montserrat, índias Ocidentais.

1967 Margaret regressa a Tambunam, Nova Guiné.

1972 É publicada a autobiografia de Margaret, O Inverno da amora silvestre. 1975 Margaret faz mais uma visita a Manus.

1978 15 de Novembro: Margaret Mead morre com setenta e seis anos   (Pollard 1994: 61-62).

Margaret Mead foi provavelmente a mais famosa antropóloga de seu tempo, e ainda mais provavelmente a mais controversa. Autor de mais de mil e quinhentos livros, artigos, filmes e peças ocasionais; um incansável oradora que viaja pelo mundo para instruir e persuadir; um pesquisador de campo de experiência extraordinariamente extensa e variada; um organizador hiperativo de projetos, conferências, programas e carreiras; e possuía um fundo aparentemente interminável de opiniões sobre todos os assuntos sob o sol que ela estava disposta a compartilhar com qualquer um que pedisse, e muitos que não o fizeram; ela não deixava ninguém que entrasse em contato com ela ou suas obras indiferentes a qualquer um deles.

Até mesmo a morte, que veio do câncer de pâncreas no inverno de 1978, um mês antes de seu aniversário de setenta e sete anos, ainda não envolvia os debates que circulavam sobre sua pessoa e seu trabalho. Ela antecipa as instancias dos estudos acerca do género que se desenvolverão 50 anos mais tarde.

MEMÓRIAS BIOGRÁFICAS

As memórias são retiradas de vários aspectos de seu trabalho; de um livro de memórias que afeta sua filha, Mary Catherine Bateson, uma antropóloga, em 1984; e de uma biografia popular mamute, repleta de fatos, de Jane Howard, também em 1984. As seguintes memórias são fortemente dependentes dessas últimas obras, complementadas - até mesmo coloridas, talvez, pois são muito vívidas - com certas lembranças de minha autoria.

A CARREIRA

Apesar de toda a complexidade de sua pessoa e da variedade de seus interesses, a biografia de Mead é contada com simplicidade, pois uma vez que ela encontrou seu caminho - no início dos anos 1920 - ela nunca divergiu dela. Impulsiva, improvisional, peripatética, ela pode ter sido, assim como socialmente não ortodoxa, mas levava uma vida dirigida, desejada e implacável.

Nasceu na Filadélfia em dezembro de 1901, a primeira de cinco filhos, de Emily Fogg e Edward Sherwood Mead. Seu pai foi professor de economia na Wharton School of Finance da Universidade da Pensilvânia. Sua mãe tinha sido professora antes do casamento (e posteriormente fez algum trabalho para um mestrado em sociologia), assim como sua avó paterna, Martha Ramsay Mead, que morou com a família durante a infância de Mead. Depois de uma educação primária Quaker na Filadélfia e a escola secundária pública nas proximidades de Doylestown, Mead frequentou a De Pauw University, Greencastle, Indiana. Ela ativamente não gostava de De Pauw e partiu depois de um ano para se transferir para o Barnard College. Ela se formou em psicologia na Barnard, finalmente escrevendo um ensaio de mestrado em testes de inteligência de crianças italianas e americanas. Por seu trabalho de doutorado, ela se mudou, em 1923, para antropologia na Universidade de Columbia, sob Franz Boas e Ruth Benedict, escrevendo uma biblioteca sobre a estabilidade cultural na Polinésia. Em 1925 - apesar das dúvidas de seus professores e da maioria de suas amigas - ela viajou, com 23 anos de idade, sozinha e enervada, para Samoa em sua primeira viagem de campo.

Em um padrão que ela repetiu várias vezes e de fato nunca abandonou completamente, duas obras - uma popular, tendenciosa, esquemática e discutida em excesso; um técnico, separado, detalhado e geralmente negligenciado - resultou deste estudo de campo de nove meses: Coming of Age in Samoa (1928) e The Social Organization of Manu'a (1930). Em 1928-1929, Mead trabalhou em Manus, nas Ilhas do Almirantado, ao longo da costa norte da Nova Guiné, durante oito meses, dos quais vieram o popular Crescer na Nova Guiné (1930) e o parentesco técnico nas Ilhas do Almirantado (1934). Depois de um trabalho de verão entre os índios Omaha, em Nebraska, em 1930 (do qual resultou um estudo, The Changing Culture of Indian Tribe [1932]), Mead viajou para a Nova Guiné, onde trabalhou em três grupos diferentes - o Tchambuli (ou Chambri), o Mundukumor (ou Biwat) e o Arapesh - entre dezembro de 1931 e a primavera de 1933. Mais uma vez, duas grandes obras resultaram: uma para o mundo, argumentativo e controverso, Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935), e um para o comércio, sistemático e pouco notado, The Mountain Arapesh (1938-1949). De março de 1936 a março de 1938, mais outras seis semanas em 1939, Mead trabalhou em Bali, na New Holland, nas Índias Orientais, produzindo talvez seu melhor estudo individual, o ensaio Balinese Character: Uma Análise Fotográfica, Bateson e Mead (1942). Finalmente, em 1953, ela realizou um reestudo de seis meses de Manus, que surgiu em 1956 como Novas Vidas para o Velho: Transformação Cultural - Manus 1928-1953. Efectuou várias curtas visitas , pelo menos meia dúzia delas entre 1964 e 1975 sozinha, a Mead realizou assim quase seis anos de extensa pesquisa de campo em nada menos que sete culturas escreveu livros substanciais (e numerosos artigos) sobre todas elas).

Não que ela estivesse ociosa enquanto realizava isso. Já em 1926 foi nomeada curadora assistente de etnologia do Museu Americano de História Natural em Nova York, cargo que ela manteve até sua morte, e cujas obrigações como colecionadora, documentadora, conservadora e designer de exposições, ela levou muito a sério. Ela acrescentou mais de três mil itens ao inventário do museu, planejou vários dioramas, fez centenas de fotografias e vários filmes, arrecadou (e, sem contribuir insignificantemente) fundos e finalmente criou, aparentemente por pura insistência os esplêndidos Povos do Salão do Pacífico, que abriram em 1971 .

 

Entre os cientistas interessados na questão "natureza ou educação", contava-se o Professor Franz Boas, chefe do Departamento de Antropologia da Universidade de Columbia, em Nova Iorque. Entre os seus alunos, nos anos 20,  destacava-se Margaret Mead.  Aos 23 anos, Margaret era licenciada em Psico­logia e estava prestes a concluir o doutoramento em Antropologia. Tendo passado cinco anos a estudar, queria dedicar-se à investigação. O ver­dadeiro trabalho tinha de ser feito "no campo", vivendo com os povos a estudar; isto colocou a Boas um problema.

Uma prova de força

Nascida em Dezembro de 1901, Margaret Mead tinha vivido até aí uma vida protegida de classe média. O pai era professor universitário e a mãe uma veterana das boas causas, tais como a luta pelos direitos civis dos negros e das mulheres e pela melhoria da situação dos imi­grantes nos Estados Unidos. Margaret nunca viajara, nunca se hospedara num hotel e não falava línguas estrangeiras. Durante toda a vida, nunca tinha estado só. Casara enquanto estu­dante e o marido, Mead foi casada três vezes: primeiro, em 1923, com Luther Cressman, um estudante de teologia, de quem se divorciou em 1928; segundo, em 1928, com o antropólogo neo-zelandês Reo Fortune, com quem trabalhou em Manus, entre o Omaha e a Nova Guiné, e de quem se divorciou em 1935; e em terceiro lugar, em 1936, ao antropólogo inglês Gregory Bateson, com quem ela trabalhou em Bali e na Nova Guiné, e de quem ela se divorciou em 1950. Todos os seus três maridos sobreviveram, assim como sua filha Mary Catherine Bateson Kassarjian. na época da morte de sua mãe, reitora de ciências sociais na Universidade Reza Shah Civar, no Irã; uma neta, Sevanne Kassarjian; e uma de suas irmãs, Elizabeth Mead Steig. Quando ela morreu, o povo de Manus celebrou sete dias de luto e plantou um coqueiro.

Não obstante, Margaret estava determinada a continuar no "campo” os estudos que iniciara na Universidade sobre a cultura da Polinésia, no Pacífico Sul. A "civilização" em breve acabaria com os velhos costumes, daí que Margaret qui­s observá-los e estudá-los.

Boas ficara horrorizado. Não queria ser res­ponsável por autorizar Margaret a deslocar-se para ilhas onde poderia encontrar perigos terrí­veis ou doenças mortais e onde se pensava haver canibais e caçadores de cabeças. Que iria dizer ao marido e aos pais se alguma coisa lhe sucedesse? As ilhas que Margaret escolhera, Tuamotu, na Polinésia, eram as mais distantes, só com esporádicos contactos com o mundo exterior.

Actualmente, não é de estranhar que uma jovem viaje. Contudo, nos anos 20, uma mulher a viajar sozinha era algo sem precedentes, do mesmo modo que seguir uma carreira era algo de inédito para uma mulher casada. Nessa altu­ra, era suposto que uma mulher casada cuidasse da casa e dos filhos e Margaret parecia determi­nada a quebrar estas regras.

Boas sugeriu-lhe o estudo da cultura dos índi­os americanos que era, no seu entender, igual­mente interessante e menos perigoso, pois seria feito num meio ambiente mais próximo de casa e, se alguma coisa corresse mal, as reservas índi­as tinham boas comunicações.

Margaret com vinte e quatro anos, no 1925 parte para Tau ilha do arcipelago das Samoa e regressa no 1926. Um ano antes, numa conferência de antropólogos no Canadá, tinha tomado a decisão de começar o trabalho de campo logo que pudesse. O que ouvira na conferência convenceu-a que não havia tempo a perder se se queriam estudar as culturas em vias de extinção.

Desejo de viajar

Franz Boas, ao sugerir o trabalho entre os índios, teria talvez em mente atrair Margaret para uma carreira universitária. Mas os seus esforços foram em vão. Margaret afirmava que a cultura índia americana tinha sido corrompida pelo contacto com os brancos.

Pelo contrário, no Pacífico Sul, as mudanças pouco ou nada se tinham feito sentir. Margaret queria ir para lá onde ainda existisse uma cultura ancestral, não influenciada pelas ideias moder­nas as ilhas Tuamotu eram um exemplo disso.

Franz Boas sabia que Margaret era uma aluna brilhante que merecia uma oportunidade de ter a sua própria carreira. Queria que ela investi­gasse um tema actual - o comportamento dos adolescentes.

No entanto, Margaret desejava fazer um estu­do mais abrangente, procurando saber qual a influência das alterações trazidas pela civiliza­ção numa cultura ancestral. Este desejo acompanhá-la-ia toda a vida.

Boas e Margaret chegaram a uma solução de compromisso. Apesar de não estar interessada no estudo dos índios americanos, ela abandona­ria o projecto de Tuamotu, se ele concordasse em deixá-la ir algures para o Pacífico Sul. Ao mesmo tempo, ela abandonaria a sua ideia inici­al e iria estudar o comportamento dos adoles­centes, especialmente o das raparigas.

Ida para Samoa

Depois de alguma pesquisa, a escolha recaiu sobre Samoa, um arquipélago no Pacífico Sul. Descobertas no século XVIII, a 1 500 quilóme­tros a Sul do Equador, as ilhas tinham-se torna­do importantes postos comerciais. Mais tarde, tornaram-se locais de abastecimento para os navios que por ali passavam.

Em 1925, o arquipélago tinha sido dividido em dois. A Samoa ocidental, hoje independente, era administrada pela Nova Zelândia, enquanto que a metade oriental, a Samoa americana, era, e ain­da o é, território dos Estados Unidos da América. A marinha dos Estados Unidos possuía em Pago Pago, na ilha de Tutuila, uma base com hospital e estação de rádio.

Esta era a razão pela qual Boas concordara com a ida de Margaret, pois, se houvesse algum problema, ela poderia recorrer à ajuda da mari­nha dos Estados Unidos. Cada três semanas havia transporte regular de passageiros para Pago Pago e os civis podiam mandar ou receber mensagens via rádio.

A 31 de Agosto de 1925, Margaret Mead chega a Samoa a bordo do navio Sonoma, após uma viagem de três mil milhas desde o Havai.

A pesca era ainda uma indústria vital em Samoa. Nesta aldeia piscatória as redes são penduradas para secar. Poucas semanas após a chegada de Margaret às ilhas, um furacão destruiu muitas casas e barcos. O trabalho de campo de Margaret parou porque todos estavam muito ocupados a reconstruir as casas, a reparar os barcos e a fazer novas redes

«Nas mais remotas partes do mundo e antes do contacto com a civilização ocidental estavam a desaparecer modos de vida sobre os quais nada se sabia. Era urgente pesquisar esses modos de vida agora - agora mesmo - ou estariam perdidos para sempre. Isto não poderia esperar» 

Mergulho nas profundezas

Actualmente, um cientista que se propusesse realizar uma expedição deste tipo incluiria no seu grupo especialistas em diferentes áreas, equipamento variado, incluindo uma provisão de medicamentos, instrumentos de medição, computadores, gravadores, equipamento de filmagem, geradores eléctricos e o seu pró­prio meio de transporte.

O equipamento de Margaret era elementar e consistia, para além dos seus pertences, um lápis, blocos de apontamentos, uma máquina fotográ­fica e uns óculos suplementares. Sozinha, não teria oportunidade de discutir as suas pesquisas e só o poderia fazer correspondendo-se com Franz Boas ou com Ruth Benedict, sua amiga de longa data.

Naquele tempo, os cientistas não recebiam nenhum treino respeitante aos métodos de observação e registo das descobertas e ninguém lhes perguntava se suportariam a solidão do tra­balho de "campo" e como reagiriam face ao perigo.

Mergulhava-se o investigador no abismo e des­cobria-se se sabia ou não nadar. "Muitos dos que agora são professores ensinam os seus alunos do mesmo modo como foram ensinados", escreveu mais tarde Margaret Mead, je se não desespera­rem, adoecerem ou morrerem, tornar-se-ão ver­dadeiros antropólogos. É um sistema ruinoso para o qual não tenho tempo". Mais tarde, Margaret dedicaria grande parte do seu tempo ao treino dos trabalhadores de "campo" e a aju­dá-los a lidar com os problemas que se lhes poderiam deparar.

Embora longínquas, as ilhas do Pacífico não eram totalmente desconhecidas na Europa e na América do Norte. Marinheiros, missionários e exploradores davam notícias da vida nas ilhas. Mais recentemente, os Mares do Sul, como era então designado o Pacífico Sul, tinham-se torna­ do um local de peregrinação romântica para

«O trabalho de campo é muito antigo se o encararmos como a exploração de viajantes curiosos e de naturalistas que se aventuraram para descobrir e trazer testemunhos de locais estranhos, deformas desconhecidas de vida animal e vegetal e sobre o modo de viver de povos exóticos. »

 

Mesmo uma tentativa de demarcar as principais áreas, além da etnografia da Oceanic como tal, na qual Mead fez suas principais contribuições provavelmente será controversa, pois ela tinha uma maneira de fazer com que todos, desde nutricionistas até cineastas, sentissem que seu interesse estava no centro sua preocupação, antes de todos os outros. No entanto, a partir de uma perspectiva imparcial, quatro áreas parecem ser aquelas sobre as quais a durabilidade de sua reputação irá repousar: a antropologia psicológica; antropologia aplicada; método etnográfico; e um complexo de preocupações centradas nos papéis de gênero, na socialização infantil e na família, que agora talvez seriam chamadas de estudos femininos, uma categorização que ela teria encontrado e, no final de sua vida, cada vez mais achara constritiva.

A antropologia psicológica foi um tema importante em seu trabalho desde seu primeiro estudo de campo em grande escala - dos samoanos em meados da década de 1920, preocupado em enfraquecer a concepção de Sturm und Drang da adolescência - até a última, a Sua preocupação continuou após a guerra e contribuiu para a promulgação da Lei de Nutrição Infantil de 1978. Cinco dias antes de sua morte, ela enviou um telegrama “Querido Jimmy” ao presidente Carter de sua cama no hospital, pedindo-lhe que o assinasse.

Seus interesses práticos permeiam todo o seu trabalho e determinam sua direção fundamental. Conflito racial, cuidados infantis, relações conjugais, direitos das mulheres, desenvolvimento tecnológico dos países do Terceiro Mundo, saúde mental, educação, abuso de drogas, lacuna de geração, política externa americana, ambientalismo, envelhecimento e desarmamento nuclear vieram - e repetidamente - sob ela olhar, meio-etnográfico, meio-moralista, inteiramente apaixonado. E (com algumas observações bastante citáveis ​​à parte), ela tinha coisas úteis, novas e desafiadoras, bem provocativas, para dizer sobre todas elas. Sua fundação, em 1944, do Instituto de Estudos Interculturais, para “estimular. . . pesquisa . . . mais propenso a afetar as relações interculturais e internacionais ”, e ao qual ela dedicou a maior parte de sua renda considerável, é apenas a expressão mais clara da centralidade da dimensão aplicada na concepção de Mead sobre o que ela era:“ construir um novo mundo. . . através de uma ciência disciplinada das relações humanas ”(Balinese Character, xvi).

A preocupação de Mead com questões metodológicas estava com ela desde o início, filha intelectual de Franz Boas que ela era, mas foi poderosamente estimulada por ataques a ela, como ela se tornou proeminente, como

1) “impressionista”,

 2) “intuitiva”,

3) “subjetiva” e ,

4) para ela o mais doloroso de todos, “não científico”.

Mead estava totalmente comprometida (com Ruth Benedict, por exemplo, não estava) com a visão de que a antropologia era ou deveria ser uma ciência pura e simples, assim como as outras. A maioria de suas discussões metodológicas e empresas veio em reação a acusações de que, ou de qualquer maneira ela era menos que completamente objetiva, logicamente rigorosa, resolutamente empírica. (“Toda vez que escrevo algo sobre «como eu realmente faço», uma vez ela reclamou comigo, «eles usam isso para mostrar que eu não sou confiável». Retornar a Manus em meados da década de 1960, onde o assunto era “o estranho aparecimento de um grupo de selvagens outrora duas vezes no palco mundial, uma vez inconsciente de seu papel, agora plenamente consciente disso” (New Lives for Old, 186 ), e o tema de um de seus últimos trabalhos, uma peça de resumo retrospectiva publicada postumamente em 1979, “A Evocação de Respostas Psicologicamente Relevantes no Trabalho de Campo Etnológico” ( Spindler , 1978, pp. 88—139).

Havia essencialmente três fases sobrepostas deste trabalho:

1) primeira, aquela representado por Crescendo na Nova Guiné , com seu ataque a estágios fixos de crescimento cognitivo (as crianças eram “realistas”, os adultos “animistas”), assim como pelo estudo samoano, no qual as universalidades propostas do funcionamento psicológico foram superadas por contra-casos particulares;

2) a segunda, usualmente referida como pesquisa de “cultura e personalidade”, na qual mecanismos culturais particulares (provocações, panos) eram procurados para dar conta de traços psicológicos particulares (afetividade, raiva reprimida);

3) e a terceira, habitualmente tida como trabalho de “caráter nacional”, no qual sociedades inteiras (russa, francesa, americana) eram caracterizadas em termos psicológicos (paranóicas, reservadas, otimistas).

Se a primeiro delas sofria de uma tendência à direção da tese, a segunda, de uma concepção bastante mecânica da relação entre a socialização infantil e o caráter adulto, a terceira de uma certa ambiciosidade excessiva, juntos, eles estabeleceram, especialmente no Manus, Estudos balineses e americanos, as fundações de praticamente todos os trabalhos subsequentes nessa área.

Antropologia aplicada

A segunda área, a antropologia aplicada, era, em muitos aspectos, a preocupação dominante de Mead, determinada a fazer com que sua ciência atendesse às necessidades humanas. Levou-a a um grande número de actividades de 'ciência política' relacionadas com o governo, incluindo a direção, como secretária executiva, do Comitê. Quanto ao complexo de questões centradas na família, socialização, papéis de gênero e status das mulheres, elas estavam mais profundamente enraizadas na vida pessoal extraordinariamente complexa de Mead do que qualquer outro aspecto de seu trabalho: em sua relação com sua mãe, sua avó, suas irmãs, sua filha e sua neta; em suas amizades formadas pela faculdade, ao longo da vida com um número extraordinariamente talentoso de profissionais e mulheres artísticas;

Antropologia feminista

em seu longo e profundo relacionamento íntimo com Ruth Benedict; em suas primeiras investigações sobre a liberdade erótica das meninas samoanas, o domínio conjugal das mulheres Tchambuli e a inconstância emocional das mães balinesas. Finalmente, em suas relações ambíguas nos últimos anos de sua vida com o movimento feminista renascido nos Estados Unidos, Mead foi aclamada por alguns como uma heroína que havia conseguido chegar ao mundo de um homem em seus próprios termos. No entanto, ela foi ridicularizada por outros como uma “Abelha Rainha” e uma “Tia Tom” que  “desempenharam um papel considerável em nos deixar tão preocupados com o 'cumprimento'. '' Profissionalmente, o ponto culminante dessa preocupação foi sua feminilidade, e sua vivência, a cada um de seus pontos de vista. Mas, apesar de tudo, ela provavelmente escreveu mais sobre casamento, família, gênero, sexualidade, infância e criação de filhos do que sobre qualquer outro conjunto de questões - muitas delas influentes, a maior parte delas controversas, todas sinceras.

Conceito de cultura

«Toda cultura (...) cria seu próprio tecido social distinto (...) e pode forçar todo indivíduo nascido em próprio interno para assumir um tipo de comportamento, para o qual nem idade nem sexo ou atitudes particulares constituem elementos de diferenciação. Mas cultura também pode se apegar a evidências diferenças de idade, sexo, força, beleza ou até mesmo fatos incomuns, como uma tendência espontânea para visões e sonhos, e fazer tantos temas culturais dominante»

Samoa

muitos escritores e artistas europeus. O pintor impressionista Gauguin passara os últimos 12 anos da sua vida no Taiti, numa das ilhas Windward e nas ilhas Marquesas.

A imagem tradicional dos polinésios era a de um povo simples, amigável, de faces sorridentes e movimentos graciosos. O poeta inglês Rupert Brooke, que também viveu em Samoa, descre­veu os seus habitantes como "o povo mais amo­roso do mundo, andando, correndo e dançando como deuses e deusas". Não admira que alguns dos colegas de Margaret a invejassem e lhe dis­sessem que estava a "partir para o céu. "

Primeiras impressões

Foram de desapontamento as primeiras impressões de Margaret aquando da sua chegada a Pago Pago. O porto era barulhento, cheio de aviões da marinha, e as bandas dos navios toca­vam "ragtime". Era deprimente ver como a mari­nha dos Estados Unidos influenciara os habitan­tes de Samoa através da introdução da sua cultu­ra e dos seus valores. As mulheres não vestiam os seus trajes tradicionais mas "uns horrorosos trapos americanos às riscas"e Margaret sentiu-se envergonhada pela influência do seu país.

Ilha de Tau

Durante as semanas seguintes, visitou a maior parte das aldeias em Tutuila. As que se situa­vam nos percursos dos autocarros tinham sido

"muito influenciadas pelos artigos e pelos visi­tantes americanos e não eram a imagem fiel da sua cultura original”. Além disso, nenhuma das aldeias tinha raparigas adolescentes em número suficiente para constituírem uma base de inves­tigação. "Devido a estas desvantagens" escreveu Margaret a Boas, "decidi ir para Ta'u, uma das três ilhas no arquipélago de Manu, a cerca de 100 milhas daqui". Aí, viveria com a única famí­lia branca da ilha.

Edward Holt, encarregado do dispensário da marinha dos Estados Unidos, vivia numa casa de estilo europeu com a mulher Ruth e os filhos. Havia um quarto vago para Margaret e uma pequena casa nas proximidades, onde poderia entrevistar as raparigas das quatro aldeias de Ta'u. Em Novembro, após ter apren­dido a linguagem de Samoa, partiu para Ta'u, onde pretendia passar os próximos seis meses.

Margaret sentiu-se mais feliz em Ta'u embora o clima fosse muito mais quente. A ilha estava 150 quilómetros mais próxima do Equador que Pago Pago e era impossível trabalhar a meio do dia. Ta'u era "muito mais primitiva e menos cor­ rompida do que qualquer outro lugar de Samoa" e, pouco tempo depois, Margaret observaria e gravaria as danças polinésias.

A dança era parte importante da rotina nocturna observada por Margaret em Samoa. Primeiro, banhavam-se no mar. Depois das orações nocturnas as crianças começavam a dançar e após o jantar a dança continuava. Sozinhos ou em grupos inventavam as suas próprias danças enquanto que os adultos elogiavam ou criticavam os seus esforços.

«Não há maneira de saber de antemão como será este povo. Mesmo havendo fotografias, na altura em que contactarmos com eles podem estar diferentes... Não sabemos onde vamos viver ou se será bom ter botas de borracha, botas contra os mosquitos, sandálias para manter os pés frescos ou meias de lã para absorver o suor.»

Almas gémeas

Margaret pretendia encontrar-se com Luther, seu marido, em França, tencionando passar algum tempo juntos antes do seu regresso aos Estados Unidos.

Um dos seus companheiros de viagem era um jovem psicólogo neo-zelândes, Reo Fortune, em viagem para Inglaterra, com uma bolsa de estu­do da Universidade de Cambridge. Os comerci­antes e turistas que com eles viajavam a bordo do navio Chitral não constituíam grande motivo de interesse para os dois estudiosos, daí que tenham passado a maior parte do tempo juntos a trocar ideias.

Quando o Chitral chegou à Europa, Margaret e Reo já estavam apaixonados. A princípio, Margaret tentou ignorar o óbvio. Na Europa passeou com Luther, mas os seus pensamentos iam para ós meses que passou em Samoa e para as conversas com Reo durante as semanas de viagem. Pouco a pouco, percebeu como os seus interesses e projectos eram diferentes dos do marido.

"Crescer em Samoa "

De regresso a Nova Iorque, Margaret Mead começou a escrever o livro "Crescer em. Samoa", relato do seu trabalho de campo, enquanto Luther iniciava a carreira como pro­fessor universitário.

Enquanto escrevia, Margaret sentia-se cada vez mais incerta em relação ao futuro. Já seu casamento com Luther parecia vazio e sem sen­tido. Entretanto, na Universidade de Cambridge as coisas não tinham corrido bem para Reo Fortune que planeava agora fazer investigação no Pacífico Sul. No verão de 1927, de visita a Reo na Alemanha, Margaret concor­dou em casar e ir com ele para a Nova Guiné, se entretanto conseguissem arranjar fundos sufici­entes. Depois, regressou a Nova Iorque para se despedir de Luther. "Passámos uma semana juntos" escreveu ela "num silêncio de acusações e sentimentos de culpa".

Margaret sofrera uma desilusão. Para um investigador é muito importante ver o seu tra­balho publicado e, apesar do apoio de Boas, o primeiro esboço de "Crescer em Samoa" tinha sido recusada pela Harper, uma importante edi­tora americana. Recuperando aos poucos desse golpe, mandou o rascunho para William Morrow, um novo editor, que concordou em publicá-lo desde que ela acrescentasse mais capítulos explicando o que os resultados signifi­cavam para os americanos tão preocupados com a "juventude rebelde".

Os acontecimentos sucediam-se rapidamente na vida de Margaret. Reo obtivera um subsídio e começara a trabalhar na Nova Guiné. Margaret candidatara-se e obtivera uma bolsa para realizar um ano de pesquisa. O seu plano era estudar as crianças e, ao mesmo tempo, tratar do divórcio e escrever os capítulos exigidos "por Morrow. No fim do Verão de 1928 Margaret Mead, com 26 anos de idade, dá início a um capítulo da sua vida.

"Crescer em Samoa"estava ainda a ser impres­so è viria a ser um "best-seller". De tal modo que William Morrow ordenou logo uma segunda impressão.

Adolescência feliz 

"Crescer em Samoa" é um estudo detalhado dos costumes sexuais e familiares dos adolescen­tes de Samoa. Contém descrições das músicas, das danças rituais, das roupas e ornamentos dos habitantes da aldeia. Havia, contudo, falhas ine­vitáveis no relato de Margaret. Como mulher não estava autorizada a assistir às reuniões dos homens, onde eram discutidos os assuntos políti­cos, religiosos e económicos e daí resultaram falhas no seu conhecimento da estrutura comu­nitária; posteriormente, tais falhas seriam alvo de críticas.

Após o furacão em Ta'u, todos os esforços dos habitantes se concentraram na reconstrução das casas. Muitas das cerimónias sociais e rituais a que Margaret tencionava assistir tiveram de ser canceladas, o que levou a que a maior parte da informação obtida fosse proveniente das rapari­gas entrevistadas e não de encontros informais com os habitantes da aldeia.

Margaret Mead tinha encontrado em Samoa uma sociedade onde a vida era fácil e simples. "O ambiente de Samoa era simples e facilitava o desenvolvimento mas era marcado por uma indi­ferença generalizada."Desde os primeiros meses de vida, quando uma criança passa despreocupadamente das mãos de uma mulher para as de outra, a lição consiste em evitar a preocupação em excesso e em não depositar grandes esperan­ças na família. Nos Estados Unidos, as tensões familiares e pessoais ocorrem com maior intensi­dade durante a adolescência. Pelo contrário, em

«Estamos gratos a Miss Mead por ter levado a cabo uma identificação tão completa com a juventude de Samoa, permitindo-nos ter uma imagem lúcida e clara das alegrias e tristezas encontradas pelos jovens numa cultura tão diferente da nossa... Muito do que atribuímos à natureza humana não é mais do que a reacção às restrições impostas pela civilização (…)
Estamos habituados a considerar todas as acções que são parte da nossa própria cultura, modelos que seguimos automaticamente,como sefossem comuns a toda a humanidade... A cortesia, a modéstia, as boas maneiras, a conformidade com modelos éticos estabelecidos, são universais, mas aquilo que, os constitui não o é. É instrutivo saber que os modelos diferem de muitas maneiras. É ainda mais importante saber como o indivíduo reage a esses modelos».

Quando Margaret publicou o seu primeiro livro "Crescer em Samoa", muitos americanos sentiram-se ofendidos pelo seu elogio a um tipo de vida familiar muito diferente e pela crítica implícita à maneira de viver americana.
Uma das questões colocadas por Margaret em "Crescer em Samoa"foi se as sociedades ocidentais teriam empreendido um verdadeiro esforço para compreender os jovens. Nos anos 20, mais do que actualmente, esta era uma típica cena escolar, onde adolescentes aborrecidos, confinados às carteiras, ansiavam pelo toque de saída.

Em Samoa a adolescência é "a idade da máxima descontracção" decorrendo sem conflitos e pressão.

Famílias alargadas

Margaret considerava que a inexistência de tensões era devido ao modo como as crianças eram criadas. Em grandes famílias, de quinze ou vinte elementos, ninguém tinha exigências em relação a um filho em particular. A criança "pertencia" ao grupo e não aos pais, não sofren­do por ter pais pouco afectuosos ou demasiado indulgentes, como por vezes acontece. No "sim­ples e caloroso" ambiente familiar de Samoa havia sempre afecto para dar.

O ideal da pequena família, em que cada membro depende do outro, é muito querido dos americanos, daí que estes tivessem criticado Margaret pelo seu elogio aos costumes de Samoa. Mas o pior estava ainda para vir, especi­almente para os pais que se preocupavam com a conduta sexual dos adolescentes. A maneira simples e calorosa das famílias de Samoa reflectia-se na vida sexual dos adolescentes, que con­sideravam o sexo como um jogo, com habilida­des a ser aprendidas com o maior número de parceiros temporários. Não se concebia o amor de um modo romântico, nem em termos de "conquista" da mulher pelo homem sendo ine­xistentes as preocupações religiosas. Pelo con­trário, nos Estados Unidos, os adolescentes recebiam mensagens confusas acerca do sexo. Se, por um lado, os seus instintos e corpos lhes diziam que estavam prontos a iniciar uma vida sexual, por outro, a sociedade condenava o sexo antes do casamento e antes dos vinte anos.

Para os adultos preocupados com o controlo da vida sexual dos adolescentes rebeldes, as ideias de Margaret eram como um fósforo lan­çado num barril de pólvora. Mas aquilo a que um crítico chamara "Imagem do amor livre polinésio por Miss Mead" era ao mesmo tempo atraente e repulsiva.

A ideia de "amor livre"- livre de vínculos a um parceiro em especial - era muito falada nos anos vinte, embora fossem mais os que falavam do que os que na realidade experimentavam. No entanto, a aparente aprovação de um modo de vida que derrubava tudo o que "cada americano decente" tinha aprendido sobre sexo, amor e casamento, tinha constituído um choque. Contudo, Margaret Mead não sugerira que todos os adolescentes americanos fossem enco­rajados a realizar orgias, apesar de, alguns dos seus críticos acreditarem ou dizerem acreditar que essa era a sua intenção.

Também criticavam a sua vida privada. Que mulher era ela que, apesar de casada, usava o nome de solteira? Que esposa americana decen­ te deixava o seu marido e vivia seis meses entre selvagens?

"Um acontecimento marcante"

O que mais interessava a Margaret era a opi­nião de antropólogos respeitados. A qualidade do seu trabalho de campo tinha sido questiona­ da, mas a publicação de "Crescer em Samoa"foi saudada com alegria. Bronislaw Malinowski, um antropólogo de renome, avisara Margaret da impossibilidade de obter resultados em tão cur­to espaço de tempo. Mais tarde reconheceu o erro e considerou "Crescer em Samoa" um "acontecimento marcante".

A maior proeza de Margaret Mead terá sido talvez a de levar a antropologia para fora da escola, tornando-a acessível ao público em geral.

"Crescer em Samoa" foi e ainda é uma leitura agradável e pela primeira vez não só estudantes como pessoas vulgares podiam contactar com a antropologia. O estudo de Margaret acerca do modo como as relações familiares variavam entre os diferentes povos permitiu uma nova visão das pessoas.

Nova Guiné

Margaret estava a trabalhar na Nova Guiné quando leu as críticas ao seu primeiro livro. Em Outubro de 1928 casara com Reo Fortune na Nova Zelândia, tendo viajado para as ilhas Almirantado na costa noroeste da Nova Guiné, arquipélago de cerca de 40 ilhas, das quais Manus é a maior.

De 1885 a 1914, as ilhas foram ocupadas pela Alemanha. Após a Ia Guerra Mundial foram administradas pela Austrália e até recentemente alguns dos seus habitantes eram canibais e caça­ dores.

Margaret e Reo instalaram-se em Peri, na ilha de Manus. Esta segunda viagem de campo foi muito mais agradável do que a primeira. Não só tinha a companhia e o amor de seu marido, mas também a oportunidade de discutir com ele o seu trabalho. Beneficiava ainda do talento fotoUma característica das tribos da Nova Guiné eram as complicadas cerimónias fúnebres Tradicionalmente, muitas eram canibais e caçadoras, mas nos anos 20 estas práticas eram consideradas ilegais. Contudo, as cerimónias fúnebres continuavam, expondo efígies da morte como a representada, fotografada por Reo Fortune, segundo marido de Margaret, em Kenakatem, no Rio Yuat.  gráfico de Reo, algo que ela não possuía. As suas fotografias de Samoa tinham ficado mal focadas, manchadas, sendo muito difícil distin­guir as figuras de primeiro e segundo plano. Sob a orientação de Reo, as fotografias da Nova Guiné melhoraram, embora ela nunca se tenha tornado um especialista.

Manus contrastava vivamente com Samoa. As pessoas viviam em cima das árvores em casas construídas sobre estacas. Nunca tinham sido visitados por missionários ou comerciantes. Nenhum estranho tinha aí desembarcado até 1875 e poucos desde então. Os habitantes conheciam pouco do mundo exterior. As suas vidas giravam à volta da inundação mensal das marés que lhes fornecia o peixe.

Ao contrário de Samoa, em Manus o modo de vida não era descuidado nem fácil. Os seus habitantes eram grandes guerreiros. Se fizessem algo de tão trivial como chocar acidentalmente com uma mulher, acreditavam que os deuses viriam de noite para os punir, danificar as suas casas ou estragar o peixe. Não havia danças e cantares nocturnos, como em Samoa. As adoles­centes eram mantidas rigidamente dentro de casa e sexo era algo sobre o qual era melhor não falar nem sequer pensar. Como consequência - outro contraste em relação a Samoa - as mulhe­res eram parceiras relutantes e os homens des­preocupados e brutais.

O crescimento das crianças

O verdadeiro interesse da viagem de Margaret eram as crianças. Tal como antes, pre­ ocupava-se em saber quanto do que a criança necessita para viver nasce com ela ou quanto é que ela absorve da sociedade enquanto vai cres­cendo. A questão "natureza ou educação" era de novo colocada.

Nos anos 20 assistiu-se ao incremento nos EUA e na Europa, da educação "progressiva" baseada no princípio de que as crianças são em si mesmas criativas. De acordo com os educado­ res progressistas, as crianças aprendem melhor quando são livres para aprender ao seu próprio ritmo.

Este era um argumento defendido pela cor­rente "natureza". Se estivesse correcto, então as crianças de Manus, que brincavam sozinhas durante a infância, deviam ter imensa criativida­de e capacidade de invenção. Tal não acontecia. Margaret descobriu que as suas brincadeiras eram repetitivas e sem sentido, não levando à aprendizagem e não sendo por elas muito apre­ciadas,

A monotonia das suas vidas continuava à medida que iam crescendo. Os adultos viviam só para o trabalho, não se preocupando com a arte, a música, a dança ou a amizade. Para além da necessidade de sobreviver, a vida parecia ter pouco interesse para eles.

Margaret sentiu que o vazio da vida dos habi­tantes de Manus era devido ao facto dos mais velhos não se interessarem por eles quando cri­anças. Os adultos não eram um exemplo do interesse pelos prazeres da vida. Por outras palavras, a qualidade de vida das crianças, e mais tarde dos adultos, dependia da influência dos mais velhos, ou seja, da educação.

O Senhor Margaret Mead

Em 1929, de regresso a Nova Iorque, Reo continuou o estudo da religião de Manus, enquanto Margaret retomava o lugar no Museu de História Natural. Reo Fortune tinha sido um colaborador excepcional na Nova Guiné, mas em Nova Iorque começaram a surgir algumas  falhas na sua relação. Reo tinha sido criado na Nova Zelândia, onde ainda imperavam as ideias vito­rianas. Margaret queixava-se que ele não a aju­dava na cozinha ou nos trabalhos domésticos mas que se ressentia com o tempo que ela dedi­cava a essas tarefas. Isto levou a que ela se sentisse prejudicada por ser mulher. "Crescer em Samoa" dera-lhe reconhecimento profissional, enquanto que Reo permanecia ignorado. Constrangido, afirmava brincando que devia ser apresentado aos amigos como o "senhor Margaret Mead".

Entretanto, outras preocupações surgiam. A Grande Crise de 1929 atingira os EUA e muitas pessoas perderam os seus bens e empregos. O baixo salário de Margaret no Museu de História Natural deixou de ser pago. Falava-se noutra guerra mundial.  Planeavam voltar à Nova Guiné mas, entre­ tanto, o segundo livro de Margaret "Crescendo na Nova Guiné" tinha sido publicado e larga­mente elogiado. Contudo, um crítico afirmara que Margaret não tinha entendido o sistema de organização familiar de Manus. Furiosa, atrasou por três meses a partida, escrevendo a sua defesa. Era o primeiro aviso acerca das críticas que mais tarde lhe seriam feitas. Em Setembro de 1931, Margaret, quase com 30 anos, e Reo partiram para a Nova Guiné. Planeavam estudar o povo da montanha de Arapesh, os habitantes do rio Mundugumun e os do lago Tchambuli - três sociedades das mais primitivas e isoladas.

Homens e mulheres

A atitude de Reo para com ela e o facto da mãe de Margaret ter sido uma das primeiras feministas devem ter influenciado o seu desejo de ver como os homens e as mulheres das sociedades primitivas desempenhavam os papéis masculinos e femininos.Haveria actividades e interesses "naturalmente" masculinos e outros "naturalmente" femininos, que eram decididos pelo costume e pela tradição? Mais uma vez era levantada a questão sobre a o relacionamento entre natureza e cultura

Em Arapesh, entre o povo da montanha, a separação entre Margaret e Reo aumentou. Enquanto ela aceitava o povo, Reo ficava furioso com os seus criados e ameaçava bater-lhes, pelo que Margaret intercedia em favor deles. "Reo veio" escreveu mais tarde " de uma cultura em que os rapazes eram disciplinados fisicamente e em que os homens batiam nas mulheres, enquanto que na minha tradição familiar nunca nenhum homem levantara a mão sobre uma mulher ou uma criança". Era outro sinal da distância que os separava.

Deprimida

A comunicação com os Arapesh era difícil e Margaret começou a sentir-se deprimida. Parecia que a luz que tinha iluminado a sua vida profissional tinha desaparecido. Nada acontecia em Arapesh e por isso não havia nada em que basear as suas pesquisas. O seu segundo easamento desmoronava-se. A crítica hostil a "Crescendo na Nova Guiné" ainda a preocupava. Os oito meses em Arapesh foram um dos pontos mais baixos da sua vida.

Em 1932, deslocaram-se para o rio Iuat e para o povo Mundugumor. Este era um "grupo de ferozes canibais que viviam na margem mais alta do rio". Tinham fama de saquear as aldeias mais próximas e de raptar as mulheres. "Reo decidira que desta vez ele se encarregaria da cultura e eu da língua, das crianças e da tecnologia". Mas só encontraram uma pessoa possuidora de informações. Os mosquitos eram assustadores. "Era um trabalho extremamente duro e inglorioso». E acima de tudo com pouco interesse para Margaret.

Os homens e as mulheres eram ferozes, possessivos e rejeitavam qualquer tipo de afecto ou amizade. As mulheres queriam filhos e os homens filhas e os recém-nascidos do sexo "errado" eram lançados vivos ao rio. Margaret reagira com horror a tudo isto, horror esse que aumentara quando vira que Reo concordava com alguns aspectos desta cultura - para ela - revoltantes.

Os Tchambuli

Pouco antes do Natal de 1932, ao deixarem o rio Iuat, Reo e Margaret estavam desiludidos. Os resultados do trabalho de campo tinham sido escassos e desencorajantes e eles sentiam que precisavam de tentar algo de novo, algures na Nova Guiné. Tinham lido acerca do trabalho de Gregory Bateson, um antropólogo britânico que estava a estudar o povo Iatmul ao longo da costa da Nova Guiné. De acordo com a regra estabelecida, um investigador não "invadia" o campo do outro, mas Margaret e Reo travaram conhecimento com Gregory Bateson na esperança de que este lhes sugerisse um novo caminho a seguir.

Bateson levou-os ao lago Aimboum, que tinha fama de ser o mais belo da Nova Guiné. Os Tchambuli eram cerca de quinhentos e viviam em três pequenas aldeias, muito pouco se conhecia a seu respeito. Eram o povo ideal para ser estudado.

Não podia haver maior diferença entre o modo de vida dos Mundugamor e o dos Tchambuli. Os habitantes do lago gostavam de música, arte, dança, teatro e de organizar festas. Havia sempre algo a acontecer.

Isto tornou aqueles tempos muito interessantes mas para Margaret havia ainda algo mais interessante. Os papéis dos homens e das mulheres Tchambuli eram o oposto dos da sociedade americana. Eram as mulheres que trabalhavam, enquanto que os homens dedicavam muito do seu tempo a actividades artísticas, como a escultura, a dança e a pintura.

Reuniam-se em "clubes" para desempenhar essas actividades, dos quais afastavam as mulheres. Eram as mulheres que dirigiam a sociedade e os homens sentiam-se felizes por isso. Margaret escreveu que "o que as mulheres pensavam, diziam ou faziam constituía a base de pensamento de cada homem." Ela não precisava de salientar a diferença em relação aos Estados Unidos, pois que lá eram as mulheres que se preocupavam com o que os homens pensavam e faziam.

Margaret e Reo separam-se

Enquanto Reo e Margaret permaneciam com os Tchambuli, Gregory Bateson trabalhava numa aldeia próxima, passando os três muito tempo juntos. Gregory vivia ali há um ano e meio, conhecia bem a língua e Margaret estava contente em poder utilizá-lo como "caixa de ressonância" das suas ideias. Pouco a pouco foi-se apercebendo de que recorria mais vezes a ele do que ao marido. As discussões afastavam-se do tema central do trabalho de Margaret - papéis e comportamentos masculinos e femininos. "Nessa altura", escreveu mais tarde Margaret, "Gregory e eu tínhamos estabelecido um tipo de comunicação na qual Reo não tinha lugar".

Tal como acontecera cinco anos atrás com Margaret, Luther e Reo, um novo homem, mais interessante e compreensivo, afastava o anterior. Quando, na Primavera de 1933, os três deixaram a Nova Guiné, seguiram rumos diferentes; Margaret embarcou para Nova Iorque, Reo para a Nova Zelândia e Gregory para Inglaterra. Era óbvio que o segundo casamento de Margaret tinha terminado e que o terceiro seria com Gregory.

Papeis sexuais tradicionais

O trabalho de campo entre os Arapesh, os Mundugamor e os Tchambuli foi a base do terceiro livro de Margaret, intitulado "Sexo e Comportamentos em Três Sociedades Primitivas ", publicado em 1935.

As pessoas esperavam que o novo livro contivesse ideias inovadoras e não ficaram desapontadas. A ideia de que os homens e as mulheres não eram obrigados a adoptar os papéis a eles atribuídos pela sociedade ocidental encantou as feministas. O papel tradicional de mãe atribuído ao sexo feminino era, conforme escreveu Margaret, "um desperdício dos dotes de inúmeras mulheres que poderiam exercer muito melhor outras funções que não a de criar crianças num mundo já super-povoado." O papel tradicional masculino era "um desperdício para muitos homens que poderiam exercer melhor os seus dotes pessoais em casa do que no emprego". Margaret questionava o modelo aceite pela sociedade americana onde os homens eram o "ganha-pão" da família e as mulheres "donas de casa", o que melindrou muitos americanos.

«O trabalho de campo é algo de muito difícil. Para o realizar correctamente, temos de afastar da nossa mente qualquer pressuposto, mesmo sobre outras culturas na mesma parte do mundo em que se está a trabalhar... No trabalho de campo não podemos tomar nada como garantido».

 

Olhos azuis ou castanhos

Margaret interrogava-se se a classificação das pessoas pelo sexo faria mais sentido do que a que era feita, por exemplo, pela cor dos olhos. Assim, a sociedade poderia decidir que todos os que tivessem olhos azuis seriam "gentis donas de casa" enquanto que os de olhos castanhos teriam a importante função de "ganha- pão". Desta maneira, algumas pessoas seriam levadas a exercer funções para as quais não eram talhadas, sugerindo que os homens e as mulheres da sociedade ocidental eram compelidos a desempenhar papéis nos quais não se integravam.

Margaret foi mal entendida por alguns leitores, tal como já acontecera aquando da publicação do seu primeiro livro. Pensou-se que aconselhava os jovens americanos a copiar os hábitos sexuais dos jovens de Samoa e que negava as diferenças entre sexos, o que estava completamente fora de questão.

O seu trabalho como antropóloga consistia em relatar o modo como as diferentes sociedades se organizavam, procurando saber se, através das suas investigações, poderíamos aprender algo, afastando a ideia de que não havia diferenças entre o homem e a mulher. A questão fundamental residia em saber qual a justificação para os diferentes papéis que a sociedade ocidental lhes atribuía. Somente trinta anos após a publicação de "Sexo e Comportamentos..." é que a ideia de homem "ganha-pão" e mulher "dona de casa" foi posta em causa nos Estados Unidos e foi Margaret Mead quem, pela primeira vez, a colocou.

Quando escreveu o livro, Margaret estava consciente que as questões que colocava eram relevantes para a sua vida pessoal, pois quando estivera noiva de Luther Cressman planeara ter uma família de pelo menos seis filhos, embora problemas médicos tivessem posto fim a esse sonho. Contudo, continuou a interessar-se por crianças e nada a fazia mais feliz do que trabalhar com elas, apesar de mais tarde ter escrito que o seu "interesse pelas crianças não se adequava ao estereótipo da mulher americana, possessiva, diligente e mãe". Os seus críticos preocupavam-se, pois não sabiam o que fazer com ela, o que não era de admirar pois ela própria também o não sabia.

Divórcio e terceiro casamento

Margaret e Reo divorciaram-se em Julho de 1935. Margaret em Nova Iorque e Gregory Bateson em Cambridge começaram a planear uma viagem de "campo" que poderiam realizar já como marido e mulher. A escolha recaiu sobre o Bali, antiga colónia holandesa, no Oceano Índico, hoje Indonésia.

Esta viagem iria ser muito diferente das anteriores. Bali tinha mais de um milhão de habitantes, falando todos a mesma língua, não se comparando com as poucas centenas de pessoas estudadas aquando da permanência na Nova Guiné.

A arte e a cultura do Bali eram já bem conhecidas nos Estados Unidos e na ilha viviam muitos europeus e americanos. Não havia nem o isolamento nem a pressa das anteriores viagens de "campo", pois Margaret e Gregory permaneceram lá dois anos. A 13 de Março de 1936 casaram em Singapura, partindo depois para o Bali. Nesta viagem de campo utilizaram equipamento mais sofisticado e, pela primeira vez, câmaras de filmar, aproveitando os dotes fotográficos de Gregory.

Bali

Para Margaret, Bali era uma terra mágica. "Bali foi um paraíso para nós", escreveu ela. "Cerimónias todos os dias, se não nesta aldeia, noutra a curta distância. Investigadores, secretárias e escriturários estavam prontos para fazer perguntas. O pessoal doméstico também ajudava e quando, à noite, regressávamos, o jantar estava à espera, quente e delicioso..." A riqueza da cultura do Bali surpreendia-os e agradava-lhes. Havia concertos, óperas e grandes festas nas quais as raparigas com trajes tradicionais dançavam como robots.

"Reagíamos a isto" escreveu Margaret, "trabalhando a uma velocidade febril". Dos dois anos no Bali resultaram não menos de 28 000 fotografias, colecções de pinturas, esculturas, desenhos de crianças e bobines de filme sem conta. Mas o mais valioso foi que Margaret e Gregory desenvolveram um sistema de referência e indexação simultânea que permitia identificar de onde é que cada objecto era proveniente, quem cantava ou dançava, e os nomes das pessoas e dos instrumentos que se tocavam.

Nuvens de guerra

Margaret e Gregory regressaram à Nova Guiné para aí passarem um ano; contudo era provável que o Bali fosse o lugar onde Margaret queria passar o resto da sua vida.

Em 1938, antes de partirem, planearam uma expedição ambiciosa que abrangeria um vasto número de ciências que cabiam dentro do "chapéu" da antropologia. Haveria uma organização educacional para ensinar aos membros da expedição a língua e a cultura do Bali. Escolheram o prédio onde deveria funcionar o "quartel general" e alugaram-no por três anos.

Em 1939, os exércitos de Hitler estavam já em marcha na Europa. Era óbvio que uma segunda guerra mundial não estava longe. No navio que trouxe Margaret e Gregory os passageiros britânicos falavam nos recrutamentos. Gregory, como inglês que era, sentiu ser seu dever regressar a Inglaterra se a guerra rebentasse. Dois anos antes do envolvimento dos Estados Unidos na guerra, muita gente pensava, incluindo Margaret, que uma vez iniciada a guerra ela seria mundial.

Não era a ocasião de planear mais viagens ou de assentar acampamento no Bali. No decorrer da segunda guerra mundial, Bali foi ocupada por tropas japonesas e se Margaret e Gregory aí estivessem teriam sido enviados para um campo de prisioneiros.

O resultado imediato da viagem de campo a Bali foi o trabalho "Costumes do Bali", com mais de setecentas das vinte e cinco mil fotografias tiradas no Bali e que constituiu um exemplo de como os resultados das pesquisas de campo deveriam ser apresentados. Realizaram também quatro filmes de vinte minutos.

Margaret tem um bebé

Entretanto, Margaret tinha algo mais com que se preocupar. Estava grávida. Há quinze anos tinham-lhe dito que nunca poderia ter um filho e desde então tinha abortado várias vezes. Finalmente estava grávida e não cabia em si de contente.

«Antes do nascimento da sua filha, Margaret declarara que tomaria conta dela durante os seis primeiros meses, mas pouco depois percebeu que não podia ser Super-Mãe, trabalhar no museu, cuidar do bebé e estar acordada todas as horas da noite.»

Phyllis Grosskurth, em "Margaret Mead. Uma vida de controvérsia."

 

Tinha 38 anos, idade em que o nascimento do primeiro filho era difícil, mesmo perigoso, daí que a tenham aconselhado a ter calma. Margaret Mead tinha até então estudado o desenvolvimento das crianças e nas suas viagens de campo vira nascer muitos bebés. Contudo, ela descobrira que era tão preocupada com o seu filho como qualquer mulher que é mãe pela primeira vez. Verificou se havia antecedentes familiares no que diz respeito a doenças. "Havia membros da minha família" lembra Margaret "que não achavam atraentes ou simpáticos e sabia que os meus filhos podiam sair iguais a eles. Era o reaparecimento do argumento "Natureza ou educação " da maneira mais íntima possível. Margaret via o futuro nascimento como um acontecimento interessante do ponto de vista pessoal e profissional. Foi ainda mais longe e conseguiu que um amigo filmasse o nascimento, "atrasando-o" para que pudesse ser utilizado um novo flash.

Mary Catherine Bateson, Cathy para a família, nasceu a 8 de Dezembro de 1939, três meses antes de rebentar a segunda guerra mundial. "Criar Cathy" escreveu Margaret, " era uma aventura excitante do ponto de vista intelectual e emocional". Era a oportunidade de pôr em prática as ideias provenientes de anos de observação de pais e filhos. No entanto, ela sabia que corria o risco de Cathy ser encarada mais como um exemplar vivo do trabalho de campo do que como uma filha de pais amorosos.

Embora Margaret tivesse uma reputação mundial como antropóloga, nem ela nem Gregory tinham tido oportunidade de poupar dinheiro. Antes de Cathy nascer, Margaret dava ocasionalmente aulas e retomara esta actividade, conjugando-a com o trabalho em "part-time" no Museu Americano de História Natural, para ganhar o seu sustento e pagar à ama. Quando, em 1941, os Estados Unidos entraram na guerra, havia imenso trabalho para os investigadores estudarem as alterações ocorridas na vida das pessoas. Para os americanos que se alistavam, bem como para as mulheres e crianças que ficavam em casa a segunda guerra mundial constituía a maior mudança alguma vez imaginada. Tanto Margaret como Gregory foram chamados a ajudar as pessoas a suportar os problemas originados pela guerra. Contudo, esse não era o verdadeiro trabalho antropológico que Margaret concebia como sendo o centro da sua vida. Entretanto, a guerra continuava e não havia hipótese de regressar ao Pacífico Sul.

De novo no campo

Só em Junho de 1953 Margaret se sentiu de novo livre para voltar ao seu primeiro amor, o trabalho de campo. Era de novo uma mulher divorciada e Cathy tinha treze anos. Desde 1939, grandes modificações ocorreram no Pacífico Sul, tendo as movimentações de tropas japonesas e americanas mudado para sempre a maneira de viver e as ideias de muita gente.

Muitas das ilhas estavam ainda sob controlo de países europeus, da Austrália e dos Estados Unidos. Após o fim da guerra surgiram os movimentos de independência para libertar as ilhas do jugo colonial. Havia protestos, greves e, por vezes, um estado de guerra aberta e terrorismo. Em 1949, o governo holandês deu independência ao grupo de ilhas que constituíam a Indonésia. Bali estava finalmente livre.

Estes acontecimentos tinham alterado os lugares que Margaret tão bem conhecia dos anos 30. Contudo, certas mudanças foram para melhor. Desde os anos 30, tinha sido desenvolvido novo equipamento para ajudar o trabalhador de campo. Havia geradores eléctricos portáteis, nova iluminação fotográfica e o mais importante - o gravador portátil. Já não era necessário, como acontecera no Bali antes da guerra, usar equipamento pesado, de baixa qualidade sonora e tempo limitado de gravação. Também as câmaras tinham melhorado.

A rapidez e a facilidade de viajar era outra das vantagens. Era importante para Margaret, com uma filha para cuidar, que uma viagem que há vinte anos atrás levava dois meses, se pudesse fazer agora em dois dias.

"O mundo num pires"

Margaret, agora com 51 anos, na sua primeira viagem pós-guerra escolhera regressar à aldeia de Peri, em Manus, nas ilhas Almirantado. Tendo lá estado pela última vez em 1925, interessavam-lhe as mudanças ocorridas no espaço de uma geração e o modo como os habitantes tinham reagido.

Margaret Mead depressa percebeu que as mudanças ocorridas em Manus tinham sido maiores do que imaginara. Em Peri, nos anos vinte, as pessoas não tinham conhecimento de nada para além das suas aldeias. A sua imagem do mundo era de "um pires gigante rodeado de água por todos os lados." A passagem do tempo era assinalada pela inundação mensal que lhes trazia o peixe, base da sua subsistência. Não sabiam nada da sua história à excepção do que tinha acontecido no tempo dos seus pais e avós.

As mudanças começaram em 1929, pouco depois de Margaret ter deixado a aldeia. Manus nunca ouvira falar de cristianismo e num curto espaço de tempo, missionários católicos chegaram e converteram o povo de Manus, dando-lhe uma educação elementar, à base do ensino de histórias bíblicas.

Durante a segunda guerra mundial, Manus e o resto das ilhas Almirantado foram ocupadas pelos japoneses. Em 1946, as forças americanas recuperaram-nas e, após um período de ocupação americana, as ilhas regressaram ao domínio australiano. Para o povo de Manus, esta rápida sucessão de acontecimentos era semelhante ao virar do avesso do seu mundo por duas ou três vezes.

Manus tinha sido base do transporte de tropas para e do Extremo Oriente. Margaret calculava que mais de um milhão de homens brancos tinha passado pela ilha, o que constituía uma experiência surpreendente para qualquer povo primitivo.

Fascínio e inveja

O povo de Manus olhava fascinado não só para os soldados como para o seu equipamento: aviões, tractores, holofotes, torpedeiros. Os jovens olhavam com fascínio e inveja. Viam como um tractor com um condutor podia fazer num dia o trabalho que um grupo de homens fazia num mês, usando ferramentas manuais. Gostavam da comida enlatada e outros bens que eram distribuídos pelas forças americanas - coisas deliciosas que podiam obter sem trabalhar!

Os jovens falavam. Haveria que realizar mudanças. Chega de trabalhar com ferramentas manuais que magoam as costas. Chega de cerimónias antiquadas organizadas pelos anciãos da aldeia, fechados num passado pobre e sem esperança.

Os americanos partiram, deixando uma reserva de latas de comida e outros bens que eram extremamente valiosos para quem tinha vivido toda a vida no extremo de pobreza. Chapa ondulada, contraplacado, prateleiras metálicas, revestimentos em lona, cadeiras, mesas, velas - a lista era interminável. Inevitavelmente, as reservas foram diminuindo.

Mas esperem um momento! Donde tinham vindo?

Alterações em Manus

Antes dos anos 40, em muitas destas ilhas, a civilização não ia muito além da Idade da Pedra, mas as alterações provocadas pela segunda guerra mundial tinham posto estas comunidades em contacto com os bens e com o equipamento americano. De súbito, sem aviso e sem razão aparente, chegaram aos habitantes da ilha milhares de anos de civilização, trazendo coisas que eles nunca tinham visto, ouvido ou sonhado. E, de repente, os aviões dos brancos tinham desaparecido.

Quando em 1953 Margaret Mead regressou a Manus, os habitantes vestiam roupas ocidentais. Em Peri, as casas sobre a lagoa tinham sido demolidas e havia novas casas, com cozinhas e janelas do estilo europeu, construídas sobre estacas. Bidões deixados pelos americanos foram usados para armazenar água. Novas aldeias tinham sido construídas e cada uma tinha uma praça central que servia de ponto de reunião e um conselho com um presidente eleito. Havia planos - mas só planos, porque não havia dinheiro para os transformar em realidade - para hospitais, clínicas, escolas e bancos.

Tudo isto acontecera depois do fim da guerra quando ali não havia ninguém para observar, pelo que ninguém sabia ao certo o que acontecera. Falando com os habitantes, Margaret tentou refazer a história.

Durante a ocupação americana, pensou, os habitantes das ilhas "foram apanhados num espectáculo de tendas de campanha, de trabalhos com os tractores e de grandes planos de construção". Eles além de invejarem a tecnologia americana tinham também grande admiração pelo comportamento dos americanos. "As suas intermináveis disputas, em relação a um simples pote de barro partido, contrastavam com a prontidão dos americanos em gastar todo o dinheiro, tempo e equipamento para salvar a vida de um só soldado". Também repararam que os soldados negros americanos eram vestidos, alojados e pagos tal como os brancos. Sentiram que havia consideração pelos "homens de África".

Progresso, mas...

Sob este aparente sucesso, havia uma nota de tristeza. Tudo o que tinha sido alcançado fora devido aos materiais americanos abandonados. Estes foram usados até 1953 e Margaret Mead sentiu que o povo de Manus estava a correr à frente de si próprio.

"O seu desejo da modernidade", referiu "ultrapassa as suas possibilidades. Sabem ver as horas e marcar um encontro para a uma da tarde. Mas apenas existem três relógios na aldeia e é mais provável que um encontro comece a horas quando é marcado pelo sol. Aprenderam as datas mas não têm calendários, e por isso há discussões sobre em que dia estão. Querem bons materiais mas não sabem escrever a encomenda e não têm maneira de enviar dinheiro."

Um antropólogo é um repórter. Não cabia a Margaret julgar se as mudanças que observara em Manus eram boas ou más, embora tivesse, como muitos, um apego sentimental ao passado desaparecido. Em 1959, muitos dos adultos de Manus eram crianças quando lá estivera em 1929, tendo crescido num mundo de superstição, medo e pobreza.

Era fácil, a alguém oriundo de Nova Iorque, dizer que tentar construir um futuro sem a influência dos americanos era uma tarefa impossível. Mas o povo de Manus fazia o seu melhor - segundo lhe pareceu - com a sorte e os deuses que se lhes deparavam. Excitados, queriam que tudo acontecesse de uma vez. Margaret pensava que ao cooperar com as mudanças sociais no Pacífico, o Ocidente procurara caminhar lentamente desejando escolher " os aspectos do nosso modelo social a copiar". Mas em Manus "era um povo retrógrado, que fazia ele próprio as suas escolhas, seleccionando todo o modelo e achando que cada pormenor estava correcto."

O regresso a Manus constituiu uma mudança nos interesses profissionais de Margaret. Se antes se interessara pelas mudanças lentas e naturais, de 1953 em diante empenhou-se em ajudar o ocidente a compreender a necessidade de mudança nos países subdesenvolvidos, como Papua e Nova Guiné, e na melhor maneira de utilizar a ajuda monetária e técnica.

A reforma parcial

O regresso a Manus foi a última viagem de campo em que Margaret fez a maior parte do trabalho sozinha. Tinha então mais de cinquenta anos e mesmo com as vantagens das viagens modernas, as condições de vida em lugares remotos eram duras. Margaret tinha de pensar em lançar no mundo a sua filha Cathy. Satisfazia a sua sede pelo trabalho de campo através da correspondência regular com amigos e estudantes que lá trabalhavam. Com o passar dos anos, havia construído uma vasta rede de contactos em várias áreas, como a psicologia, o desenvolvimento infantil, a educação e a medicina.

Em 1960, Catherine casou e Margaret sentiu-se então livre para se dedicar a si própria. Entre 1964 e 1975 fez uma série de visitas aos locais onde trabalhavam membros da sua equipa. Escreveu vários livros e desempenhou vários cargos académicos em "part-time", sendo procurada para apresentar conferências tanto no país como no estrangeiro.

As visitas eram muitas vezes viagens ao "fundo da Rua da Memória". Foi o que aconteceu quando, em 1964, regressou a Manus e encontrou outra vez Lokus que tinha sido seu empregado em 1928. Agora, com mais de cinquenta anos, ele era chefe de cozinha e encarregado de uma casa. Parecia um velho a quem faltava a vista e o ouvido, mas com uma memória apurada, lembrando-se de pequenos pormenores da primeira visita de Margaret. "Cada acontecimento ", escreveu ela, depois de regressar, "está firmemente preso ao passado partilhado".

Onze anos após a sua última visita, o progresso tinha dado mais um passo em frente. Mais de trinta crianças de Manus tinham frequentado escolas fora da aldeia e eram agora estudantes, professores ou enfermeiras. "A nova educação abrira as portas para o mundo", escreveu Margaret, mas isso tinha também um lado negativo. As raparigas que tinham ido estudar eram consideradas como "bens estragados" aquando do seu regresso. Ninguém queria casar com elas, pois não era considerado correcto viver entre estranhos.

A democracia tinha progredido e a Nova Guiné tinha agora um parlamento eleito, embora naquele tempo o território ainda estivesse sob administração da Austrália. A sede de educação tinha resultado numa diminuição de homens. "Se os jovens vão embora, quem irá tomar conta dos velhos?" referiu Margaret, salientando o caso de um jovem que tinha ido estudar para a Austrália e que tinha regressado triunfante a Peri. De seguida tinha recebido uma mensagem chamando-o para uma entrevista em Port Moresby na Áustrália o que, segundo Margaret, "só poderia significar uma nova bolsa de estudo ou uma boa oportunidade que, contudo, não era entendida pelos seus familiares."

 

Opiniões contraditórias

Os livros de Margaret Mead - especialmente os primeiros, desafiadores e "best-sellers" - tornaram-na famosa. Era ouvida e respeitada por todos os que se relacionavam com o seu trabalho, tal como professores, especialistas na educação de crianças, sociólogos, psicólogos e outros. Mas os seus livros também eram lidos com interesse por pessoas que se sentiam fascinadas ao comparar a maneira como as pessoas se relacionavam em Samoa ou Nova Guiné com a sua própria experiência familiar e comunitária.

Desde que Margaret fez o seu primeiro trabalho, os filmes produzidos por antropólogos - especialmente os passados na televisão - estudaram os processos familiares de povos distantes. Mas em "Crescer em Samoa” e em "Crescendo na Nova Guiné" Margaret Mead mostrou pela primeira vez o que era viver numa sociedade sem tecnologia e sem uma compreensão moderna do mundo.

Desde o início, Margaret foi criticada. Primeiro por aqueles que se opunham à questão "natureza ou educação". Mais prejudicial foi a cobertura do seu trabalho pela imprensa. Aquilo que escreveu sobre "Crescer em Samoa" foi de tal modo simplificado para o entendimento dos leitores que ficou completamente distorcido e se transformou em arma política. Uma caricatura trocista de um jornal, numa época de eleições presidenciais nos Estados Unidos, apresentava-a como candidata enfeitada com uma caveira humana ao pescoço.

Questões acerca de Samoa

Em 1932, com a eleição de Franklin Roosevelt para presidente, uma nova onda de transformações ocorreu nos Estados Unidos. Surgiram programas de emprego, segurança social e educação - conhecidos, no seu conjunto como o "New Deal". As novas ideias, nas quais se incluíam as de Margaret, eram benzidas e floresciam na sociedade.

Após a segunda guerra mundial tudo mudara tanto a nível pessoal como colectivo. Os americanos estavam apavorados com a propagação do comunismo. Pensadores liberais, actores, realizadores de cinema, escritores e académicos como Margaret estiveram sob suspeita - injusta - de quererem atacar a maneira de viver americana. Talvez tenham sido estas as razões que a levaram, em 1953, a voltar ao trabalho de campo, longe das tempestades políticas.

Mas uma tempestade maior estava a preparar-se. Envolvia um antropólogo neozelandês, Derek Freeman que desde 1940 trabalhava na Samoa Ocidental. Embora fosse um seguidor de Margaret e da escola de pensamento "educação" , foi questionando pouco a pouco as descobertas e os métodos de pesquisa de Margaret.

A área da sua investigação era diferente da de Margaret, mas os habitantes de Samoa asseguraram-lhe que não havia grande diferença nos modos de vida das duas metades do arquipélago. Quando em Novembro de 1934 deixou Samoa, sabia que um dia teria de questionar publicamente a imagem da vida que Margaret tinha apresentado de Samoa.

Em 1964, Derek Freeman e Margaret encontraram-se e numa longa e privada conversa Derek pô-la ao corrente das suas ideias.

 

«Eu tinha resolvido o modo pelo qual tinha sido publicitada, discutida e satirizada... Eu tinha assumido, para mim própria e na resposta que dava aos outros, que eu não tinha o direito de me ressentir das atitudes expressas publicamente por pessoas que me eram desconhecidas e que me conheciam somente através do que os meios de comunicação, correcta ou incorrectamente, me atribuíam». (Mead, 1984)

 

Era o começo de uma longa correspondência que se prolongou por dez anos. Não era ele o único crítico da visão de Margaret. Nos anos 70, estudantes universitários de Samoa que se encontravam nos Estados Unidos e na Austrália pediram-lhe para rever o livro sobre Samoa. Recusou, escrevendo no prefácio da nova edição que "Crescer em Samoa" era "verdadeiro em relação ao que pude ver em Samoa e ao que fui capaz de relatar do que vi e de acordo com o estado do conhecimento do comportamento humano em meados dos anos vinte." Pedir-lhe para rever as suas impressões cinquenta anos mais tarde era como pedir a alguém que tivesse tirado uma fotografia a uma aldeia em 1925 que a retocasse em 1970 e aí incluísse casas que desde então tivessem sido construídas.

Em 1978, Derek Freeman tinha terminado o rascunho do seu livro, que submeteu à apreciação de Margaret. Ela não respondeu e, poucos meses mais tarde, um mês antes de completar setenta e sete anos, a 15 de Novembro, morreu. A dúvida sobre se Margaret teria ou não aceite o desafio permanece. Vivia uma velhice descansada, com os netos à sua volta, não lhe agradando as discussões académicas. Mas nunca saberemos como se teria defendido das sérias críticas que Derek Freeman fez acerca do seu trabalho em Samoa.

 

Margaret Mead tinha razão?

O livro "Margaret Mead e Samoa" foi publicado na América em 1983 e causou uma reacção imediata. "Crescer em Samoa" foi, e ainda é, o livro de antropologia mais vendido de todos os tempos. Gerações de estudantes - incluindo o próprio Derek Freeman - foram ensinados para o encararem como um modelo de investigação antropológica.

Margaret tinha passado apenas dez semanas a aprender a língua de Samoa. Isto significava, segundo Derek Freeman, que ela só teria conhecimentos superficiais da língua quando entrevistou o grupo de raparigas de Samoa. Escolhera viver numa casa de uma família de um oficial da marinha americana, os Holts, e isto, de acordo com Freeman, identificava-a como fazendo parte da administração naval que os habitantes de Samoa tanto temiam. Em vez de entrevistar as raparigas de Samoa nas suas casas nas aldeias, fazia-o numa casa de estilo americano.

Um paraíso na Terra?

Por estas e outras razões, Derek Freeman afirmou que Margaret nunca tinha compreendido a verdadeira situação de Samoa. Samoa estava longe de ser o paraíso terrestre que Margaret tinha descrito, onde não existiam ódios e tensões e onde os nativos eram felizes e viviam só para o amor. Samoa era uma sociedade violenta e quanto ao "amor livre" os habitantes de Samoa eram fiéis a uma conduta sexual que era tão severa como em muitas comunidades americanas. O que mais havia incomodado os habitantes de Samoa foi a imagem de eles serem sexualmente ocasionais.

Freeman sugerira que os informantes de Margaret em Samoa a tinham divertido com histórias de "amores ocasionais debaixo das palmeiras " e salientou que Margaret, com vinte e três anos, era mais nova do que algumas das jovens entrevistadas e que, afirmou, elas a tratavam como «uma delas»

Freeman concluiu que o trabalho de Margaret em Samoa tinha sido aceite sem restrições por Franz Boas, Ruth Benedict e outros, porque era a confirmação das suas próprias teorias.

Realidade ou ficção?

O livro de Derek Freeman colocou um ponto de interrogação na carreira de Margaret. Não havia maneira de saber se o que ela relatou sobre Samoa em 1925 era a "verdade" e de certo modo pouco importa pois a Antropologia não é uma ciência de factos.

Um químico sabe que se expuser um pedaço de ferro ao ar húmido, surgirá sempre uma camada de ferrugem. A Antropologia preocupa-se com a observação de modelos de comportamento humano. Nem sempre os comportamentos são os mesmos e nem sempre são observados do mesmo modo.

Isto pode ser confirmado pela nossa própria experiência, pois se ouvirmos alguém relatar um acontecimento no qual estivemos presentes, notaremos diferenças entre o que é descrito e aquilo que observámos.

Pode ser considerado correcto que Margaret Mead tenha compreendido mal alguns aspectos e só temos a palavra dela como garantia de que era verdadeiro o que relatou. Mas mesmo que a imagem que ela deu de Samoa nos anos vinte tenha sido distorcida, o livro permanece válido em muitos outros aspectos. Mostra detalhadamente como o trabalho de campo era feito naquela altura e como as famílias e as comunidades se organizavam numa sociedade longe das influências modernas.

 

Fora do museu

A Antropologia teve início no século dezanove. A exploração de outras terras tinha mostrado às civilizações ocidentais a grande variedade de modelos de comportamento entre as várias sociedades. A Antropologia estava preocupada com o modo como as diferentes raças e grupos se adaptavam ao seu meio ambiente, como imaginavam o resto do mundo e como a sua linguagem e a sua arte, ou seja, a sua cultura, reflectia as suas ideias.

Até ao início do século XX poucas pessoas conheciam as descobertas e teorias dos antropólogos pois os objectos descobertos permaneciam fechados nos museus e as teorias não tinham saído dos cadernos de apontamentos.

Os antropólogos do século XIX tinham tendência a considerar as pessoas em estudo como "especímenes", como se fossem borboletas ou peixes. Era como se o povo em si não tivesse nenhuma contribuição a dar. Eram poucas as tentativas de aprofundar o seu pensamento.

Margaret Mead conjugou uma aproximação académica com uma visão humana da pesquisa. Desenhou enormes quadros de parentesco mostrando as relações entre os habitantes que estudara e guardou minuciosos relatos dos acontecimentos importantes ocorridos nas suas vidas. Tratara os habitantes como pessoas, com as suas próprias histórias para contar. Interessava-se pelas pessoas como seres humanos e não como objectos de estudo.

Margaret levou a Antropologia para fora dos museus e tornou a sua compreensão acessível a todos.

 

Abrindo-se ao mundo

Margaret Mead não inventou palavras como grupos consanguíneos, família extensas, tabus e outras expressões antropológicas hoje vulgarmente utilizadas. Mas o facto de serem tão usadas e compreendidas deve-se principalmente à sua escrita e, em particular, aos seus primeiros livros. Ao lermos os seus testemunhos dos acontecimentos diários nas culturas primitivas, podemos saber como interpretar o modo como se desenvolviam as suas relações. Margaret Mead diz-nos que acontecimentos eram importantes e como reagiam a esses acontecimentos, tais como o casamento, o nascimento ou a morte.

Numa carta de 1967, Margaret escreveu:

«Somente através da vivência intensa das relações face a face é que a vida e a cultura de um povo pode ser compreendida. É através dos registos destas vivências que podemos esperar entender a necessidade humana de continuidade, experiência e intimidade. A intimidade tem a sua origem na repetição familiar de risos, velhas disputas, refeições em comum sob o mesmo crepúsculo e nas crianças que ouvem relatos do que aconteceu antes dos seus pais nascerem»

O dom de Margaret Mead

Na cultura ocidental, com as suas diversões modernas, sabemos como isto é verdadeiro. Este tipo de intimidade está presente nas festas de Natal e só o dom de Margaret nos poderia ter transportado até a acontecimentos do outro lado do mundo e a povos que do mundo só conheciam a sua aldeia. Sem ela saberíamos muito pouco ou mesmo nada.

Outro aspecto importante do trabalho de Margaret é realçado pelas suas experiências nas viagens a Peri, onde ela pôde verificar as mudanças ocorridas no decorrer de três gerações. As transformações causadas em Manus pela segunda guerra mundial reflectiram-se em muitos outros países. As suas observações e comentários, considerados impopulares por oficiais do governo, foram relevantes para a compreensão dos problemas de qualquer país subdesenvolvido que tenta ocupar um lugar no mundo moderno. Colocam questões como: A que velocidade devemos avançar? A que aspectos da velha cultura nos devemos manter fieis de modo a não perder a estabilidade? O que é mais importante, agricultura ou indústria, educação ou saúde? E, mais importante de tudo, o que trará o progresso?

O eterno argumento

Voltando ao princípio: natureza ou educação? É difícil imaginar como, no princípio deste século, os académicos se opunham tão fortemente em relação a este argumento.

A causa talvez tenha a ver com o facto do estudo da hereditariedade nos seres humanos - transmissão dos caracteres de pais para filhos - ser então recente e parecer uma solução coerente para muitas questões. É hoje aceite entre cientistas que o modo como um indivíduo se comporta é, por um lado, hereditário e, por outro, proveniente da educação. Pode ser que posteriores investigações acerca do DNA, o "portador" da mensagem hereditária das células revelem algo mais acerca da "natureza". Com o tempo, o conjunto de conhecimentos do campo antropológico poderá revelar mais sobre os padrões de cultura.

Todo o cientista sabe que é perigoso pensar que a última resposta já foi dada. Na Antropologia ainda há muito por descobrir, mas Margaret Mead foi uma das que indicou aos antropólogos o sentido correcto

 

 Bibliografia

Fabietti, U. (2011). Storia dell’Antropologia. Bologna: Zanichelli.

Pollard, M. (1994). Margareth Mead. Lisboa: Replicação.

Mead, M. (1928). Coming of Age in Samoa. A Psychological Study of Primitive Youth for Wester Civilization. New York: William Morrow.

Mea. (1966). The Changing Culture of an Indian Tribe. New York: Capricorn.

Mead, M. (2000). Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva.

Mead, M. (1949). The Mountain Arapesh. The Americam Museum of Natural History, 43.

Bateson, G., & Mead, M. (1942). Balinese Character. New York: Academy of Sciences.

Geertz, C. (1989). Margaret Mead, 1901-1978. National Accademy of Science, 329–354.

Bellucci, S. (2009). Margaret Mead. La costruzione culturale dell’identità di genere. Antrocom, 5(1), 29–34.

Spindler, G. D. (1978). The Making of Psychological Anthropology. Berkeley: University of California Press.

Mead, M. (1930). Growing up in New Guinea. New York: Blue Ribbon Books.

Mead, M. (1984). Blackberry Winter: My Earlier Years. New York: Pocket Books.

Freeman, D. (1983). Margaret Mead and Samoa. Cambridge: Harvard University Press.

 

Oitava Lição: 13 de Dezembro - Edward Evans-Pritchard

 

                                           Edward Evans-Pritchard

O ponto de vista da antropologia

 

 O olhar de longe como ensina Levi-Strauss exerce o seu poder de demarcação com tanto mais supremacia quanto a barreira da morte rouba aos que estudamos o direito de resposta. Este jogo de forças desigual reflete-se numa «visão triunfante da antropologia», como se os seus praticantes contemporâneos fossem necessariamente mais esclarecidos e mais conhecedores do Homem e dos objetivos legítimos da Ciência do Homem do que o foram os clássicos – também chamados de modernos –, alegadamente cúmplices ou pelo menos vítimas do seu próprio comprometimento ideológico com os poderes e os saberes do colono. O erro cometido pelos etnógrafos era infligir aos povos que estudavam: “essencializar, totalizar, estereotipar, alterizar... inventar uma coisa que nunca existiu de forma a dominá-la”. A antropologia clássica exemplificada pelas obras de Malinowski, Boas, Radcliffe-Brown, Lévi-Strauss, Evans-Pritchard e outros se focalizava de forma característica em sociedades ‘tribais’ (Nuers, Azande) vistas no presente etnográfico como unidades mais ou menos homogéneas, estáticas e isoladas” (Eriksen 1993: 8). Nessa breve amostra de clássicos, o nome de Franz Boas é o único que representa a antropologia cultural americana.

Imagine de apanhar comboios, em seguida, um navio e depois de uma semana uma canoa, até que alcançar a capital Cartum, no Sudão e, em seguida, subir em um barco e realizar outros dez dias de viagem e finalmente penetrar para o interior do país num prazo de três semanas. Este é o tipo de viagem que teve que enfrentar Edward Evans Pritchard que foi o primeiro a estudar o ritmo quotidiano de uma população africana.

 

 Hoje, seria suficiente um poucas horas de avião, mas há 60 anos, era a única possibilidade que se oferecia nessas áreas de gente remotas e, em seguida, teve que fazer sete semanas de viagem a pé ou por outros meios . Eram tempos diferentes até mesmo para as ideias que corriam sobre as pessoas que habitavam as áreas mais remotas do continente africano e que eram consideradas selvagens e sem interesse cultural. As narrações feitas pelos administradore coloniais pelos viajantes e missionários alimentavam estas ideias. Foi precisamente neste tempo, e neste contexto que se insere a antropologia de Evans Pritchard; ele era interessado a estudar sobretudo os mecanismos mentais e comportamentais das pessoas, pois ele estava convencido de que as crenças e superstições e as tradições dessas populações não deveriam ser consideradas como índice de primitividade mas, ao contrário, eram o resultado de complexos processos mentais. Afinal, também os romanos que foram grandes engenheiros e grandes estadistas e filósofos tinham uma vida cheia de superstições e rituais para repelir o mal, e mesmo nos EUA muitos consultam o horóscopo para decidir da própria vida.

 

 Em 1926 a África negra era considerada uma terra ainda selvagem habitada por populações com a retrógrada crença ridícula do feitiço. De facto o trabalho de Evans foi pioneristico

 

 1) foi um dos primeiros antropólogos a sair das bibliotecas para viajar entre as populações a serem estudadas e aprender a sua língua, algo fundamental foi o inserimento lento na vida diária do nativo para entender os aspectos mágico-religiosos da cultura.

 

 2) Uma escolha ainda mais admirável quando se tem em conta que, naquele momento, foram muito poucos os medicamentos disponíveis, as instalações de saúde para uma cura eficaz de doenças e picadas de cobras ou insectos, talvez tivesse que confiar na terapêutica local.

 

 «Uma coisa que muitos me pedem, é se eu tivesse acreditado na feitiçaria  praticada pelo povo Azande, tenho que dizer que dentro de mim e vivendo no meio deles, eu tinha acabado de aceitar mas quando eu estava na Inglaterra no meio do meu próprio ambiente racionalmente rejeitava práticas semelhantes, mas entre eles, parecia-me que não tinha outra opção se não acreditar»

 

 palavras escritas por Evans Pritchard

 

 1902: Frequentou a escola pública em Winchester, em seguida, a universidade de Oxford no Extern College onde estudava História, mas encontrando-se no berço da antropologia britânica sentiu-se fortemente atracto pelo sentido de aventura que permeava o estudo dos povos exóticos. A sua experiência entre culturas diferentes da nossa deu como resultado, a compreensão do comportamento e padrões mentais aparentemente irracionais que revelavam um sistema cultural complexo com lógicas internas a serem estudadas. Esta convicção foi criada em um período em que a antropologia com Radcliffe Brown tentava ter dar-se métodos e leis próprios da ciência. Ele foi aluno de Seligman, que substituiu no ensino em Oxford fazendo recurso ao funcionalismo-estrutural de Radcliffe Brown, a sua questão  de base foi formulada no sentido de compreender o funcionamento de uma sociedade.

Feitiçaria, Oráculos e Magia entre os Azande

Os Azande vivem num território que cobria uma área que foi dividida em três países, em consequência da colonização por três nações diversas: Inglaterra, França e Bélgica. Tal fato é comum na África: as fronteiras políticas, determinadas pelos domínios das potências européias, agruparam povos heterogéneos, frequentemente inimigos, e desmembraram povos unidos por culturas seculares. Esquartejados entre o Zaire, o Sudão e a República Centro-Africana,

Nesta Obra Pritchard examina a questão da “racionalidade” das formas de conduta social que parecem ser baseadas em crenças em entidades e poderes inexistentes. Para introduzir o problema, vamos nos concentrar no famoso estudo antropológico de Evans-Pritchard, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (1937) que continua sendo o livro mais famoso. Pois as desgraças dos Azande – especialmente quando envolve a morte – não pode ser ‘coincidência’. Está ligada à feitiçaria:

“desgraça e feitiçaria são praticamente a mesma coisa para um zande, pois é apenas em situação de desgraça ou de antecipação da morte que a noção de feitiçaria é evocada. Em certo sentido, podemos dizer que feitiçaria é má sorte, sendo o procedimento de consultas aos oráculos e apresentações de asas de aves o canal socialmente prescrito de resposta ao infortúnio, e as noções de feitiçaria - em quanto actividade - fornecem a base ideológica necessária para tornar a resposta lógica e coerente.

Como descrever, sem deturpá-la, uma realidade totalmente estranha às vivências e à formação do observador? Como integrar-se sem despersonalizar-se? Até onde é possível penetrar na compreensão do outro? O que garante a validade da observação e o alcance das descrições? Num discurso impregnado por um sentido de humor tipicamente britânico, o autor aborda as questões fundamentais. Ao mesmo tempo que afirma a necessidade do respaldo teórico para saber "o que" e "como observar", dá uma grande lição de humildade: «Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para a terra zande, mas os azande tinham; de forma que tive que me deixar guiar por eles» ( Evans-Pritchard, 2005, p.300). Deixar-se guiar significa ouvir o que os outros têm para contar, sem recorrer de antemão aos próprios sistemas de explicação. O observador  participante tem de viver em dois mundos ao mesmo tempo: o seu próprio, com seus hábitos de viver e pensar; e o do grupo observado, sem procurar remeter os hábitos do grupo que observa às suas próprias categorias, nem tampouco cair na tentação de «transformar-se em nativo".

«Na minha própria cultura, dentro da atmosfera de pensamento em que nasci e fui criado, rejeitava, e rejeito, as noções zande sobre a feitiçaria. Na cultura deles, dentro do horizonte de ideias em que então vivia, eu as aceitava; e de certa forma acreditava nelas" (Evans-Pritchard, 2005, p. 303).

Quem não possui aptidões para sustentar ao mesmo tempo dois sistemas opostos, tornando-se, nas próprias palavras de Evans-Pritchard "um duplo marginal, alienado de dois mundos", não deve dirigir-se para a antropologia cultural. O autor aborda também os problemas dos informantes, mostrando que todo conhecimento é necessariamente parcial. Erra quem generaliza a partir de algumas poucas observações. É preciso multiplicar os pontos para chegar às informações. Mas seria tolice afirmar que alguém estranho possa entender perfeitamente os sistemas de crenças que nem sempre se apresentam consistentes nos próprios representantes da cultura observada. Por mais que se domine a língua, qualquer tradução oferece apenas uma aproximação do discurso original. Pritchard ilustra plenamente essa humildade e esse respeito pelo discurso do outro. Evans-Pritchard relata, em tom extremamente simples, tudo aquilo que pûde observar do universo zande, dominado pela feitiçaria. A feitiçaria zande tem muito a ver com aquilo que conhecemos aqui em Angola:

«os azande acreditam que o feitiço é uma substância existente no corpo dos feiticeiros ( ... ). Eu nunca vi a substância-feitiço humana, mas ela me foi descrita como sendo um saquinho ou um inchaço enegrecido e oval, dentro do qual costumam ser encontradas uma variedade de pequenos objetos» (Evans-Pritchard, 2005, p. 38).

Grande parte da vida dos Azande é dedicada à identificação dos trabalho dos feiticeiros, mediante o recurso a diversas técnicas de oráculo. Todo homem pode ser feiticeiro sem saber, e fazer o mal mesmo sem querer. Daí um complicado sistema de ritos para assegurar-se da boa vontade eventual do feiticeiro. 

 

A contribuição de Evans Pritchard foi aquela de delimitar os seus estudos à vida mental das populações ditas primitivas examinando as suas convicções e tratando-as não como exemplos de pensamento elementar, mas inserindo-as em sistemas complexos processos mentais. Por ele, então, crenças e práticas mágicas na sociedade azande participam da ordenação do mundo e da regulação das relações sociais. Mas por que os Azande, que empregam noções de “senso comum” e se comportam “racionalmente” na maior parte do tempo, adotam crenças em entidades como feiticeiros, que para Evans-Pritchard são claramente absurdas?

 

Ele contrasta três tipos de noção: mágica, de senso comum e científica. Por que os Azande, segundo EP, têm tão poucas crenças científicas ou, mais pertinentemente, por que não conseguiram desenvolver um corpo de conhecimento a partir de noções de senso comum que pudessem dizer-lhes por que suas noções místicas são fantásticas e centradas em torno a não-entidades existentes?

Cinco explicações

I. Obstáculos estruturais sociais;

II. Razões “categóricas”;

III. Limites no modo de experimentação;

IV. Nenhuma tecnologia da razão;

V. A 'mentalidade' mágica.

Feitiçaria, oráculos e magia do sistema de noções místicas que ordenam e dão sentido à experiência da desgraça e da morte. (Hirst e Wooley)

 

1. Feitiçaria (mangu)

 

•os feiticeiros (boro mangu) possuem uma substância de feitiçaria com qualidades psíquicas (esta é uma substância física localizada no abdômen e que pode ser denunciada pelo nganga num ritual que implica a celebração de um oráculo);

 

•A feitiçaria é herdada;

 

•O feiticeiro (talvez inconscientemente) pratica feitiçaria causando desgraças: danos à propriedade, acidentes, doença e morte.

 

2. Oráculos (soroka)

 

•Através da adivinhação, o oráculo revela a origem da feitiçaria (incluindo identificar o nome de um feiticeiro causador de doença, etc.);

 

•O oráculo mais confiável é o benge, um veneno administrado às faltas;

 

•Ao questionar o benge, o feiticeiro adivinha a origem da feitiçaria e o tipo de medidas (incluindo magia) para enfrentá-la.

 

3. Magia (ngua)

 

•O feiticeiro é ao mesmo tempo adivinho e nganga (boro ngua);

 

•Os rituais d Magia envolvem o uso de medicamentos;

 

• Isso pode envolver magia de vingança, retaliação contra um feiticeiro.

Estes sistemas tinham uma estrutura lógica com postulados fundamentais que levavam a conclusões

 

 1) A feitiçaria conduz à morte

 

 2) A morte é a prova da feitiçaria

 

 3) o recurso ao nganga confirma que foi o feitiço

 

 4) a magia serve para vingar a morte

 

 

 Desde então, o primitivo pensamento já não é algo de pré-racional ou pré-lógico mas é colocado em relação à sociedade que o exprime como um conjunto coerente de conceitos ligados entre eles por uma própria lógica. Esse tipo de comportamento para Evans-Pritchard era estruturado de forma lógica, mas para a compreensão da dinâmica era necessário entrar na lógica prática do povo Azande para os quais a partir de determinadas premissas decorriam certas consequências. O problema da racionalidade dos Azande não poderia ser colocado em termos de verdadeiro/falso, mas, em termos de coerência interna ao sistema de crenças. A partir de então, abandonou-se a teoria da natureza pré-lógica e pré-racional do pensamento religioso, mas critica-se Evans-Pritchard pelas seguintes razões

 

 1) ele quis a qualquer custo determinar o caráter coerente do sistema de pensamento primitivo que, até então, era considerado irracional

 

 2) coerência não pode ser o único critério para avaliar um sistema de pensamento, Mas também o contexto e a utilização prática dos conceitos

 

 3) analisando como e quando os conceitos são usados, se pode saber o seu sentido cultural tendo a capacidade de traduzi-los

 

 4) antropologia como uma tradução da cultura tornou-se possível depois de 1950 graças a Evans- Pritchard

 

 fala dele Mary Douglas

 

«para ele foi um engano de pensar que as diferenças entre o nosso modo de pensar e o dessas sociedades primitivas fosse devido à sua menor capacidade racional. Não era verdade que as suas funções mentais eram menos desenvolvidas ou as suas emoções tão fortes tanto a sobrepor-se à racionalidade. Ele estava convencido de que havia uma outra razão que podia explicar a razão pela qual eles tinham religiões diferentes da nossa».

 

 Os alunos e os antropólogos franceses alemães e britânicos iam em partes do mundo onde a nacionalidade era representada pelas colônias. Desta forma, eles encontraram nacionalidade e apoio por parte dos administradores, bem como aquele dos povos indígenas que podiam falar a sua língua. Mas a presença colonial não sempre mostrava-se útil pois os administradores os comerciantes e missionários não demonstravam sensibilidade à cultura indígena, em especial na área em que Evans Pritchard iniciou o seu trabalho no campo.

«Eu nunca prestei muita atenção aos administradores do norte do Sudão porque eram sempre muito orgulhosos de si mesmo e tomavam uma atitude etnocêntrica, falavam do Sudão como do "país dos negros governados pelos azuis"; o azul era a cor de seus uniformes. No entanto, quando eu fui no sul do Sudão, encontrei funcionários muito diferentes no comportamento acima descrito. eu conheci vários e estabeleci com eles um relacionamento de respeito mútuo e me aceitaram entre eles mesmo não sendo obrigados a fazê-lo».

Dada a grande presença colonial britânica na África foi uma escolha lógica para Pritchard aquela de ir estudar os povos da bacia do Nilo e no Sudão. A antropologia daqueles anos ensinava que o trabalho de campo não era aquele de ir para países estrangeiros a visitar as populações locais no terreno, mas

 

 1) viver com eles

 

 2) falar a sua língua

 

 3) adaptar-se à sua cultura

 

 os detalhes da vida cotidiana eram interessantes e também as celebrações.

 

 Em 1926: Evans estava pronto para começar o trabalho no terreno, o primeiro estudo intensivo de uma população africana. tratava-se da etnia dos Azande que ainda hoje são pessoas que vivem em lotes de terra distribuídos em uma área que pertence à RD do Congo, à República Centro Africana e ao Sudão. Evans-Pritchard percebeu que, para ser capaz de penetrar na vida social tinha que viver entre eles, e assim construiu para si uma cubata. Mas naqueles tempos as mais difíceis dificuldades de superar no campo consistiam na viagem para chegar ao lugar onde realizar o trabalho de campo.

«Para chegar à área de trabalho em 1926 gastei uma semana de comboio e navio até chegar no Egito muitos dias de comboio e de barco até Cartum, em seguida, 10 dias de barco a motor para subir com o Rio Nilo e, finalmente, 3 semanas de viagem a pé até o centro da terra do povo Azande estão no Sudão. Ao todo quase de 7 semanas».

 Passou mais de um ano e meio entre o povo Azande e descreveu a disposição das suas aldeias, a divisão em clan, as suas culturas e alimentos. Obviamente não passou despercebida  a sua organização social, mas também a pratica da guerra e as suas tradições. Mas o que o distingue dos outros antropólogos foi o estudo sobre o sistema característico das ideias, a sua definição e a comparação com o nosso, gravou a sua vida cultural com fotos e notas sobre o que pensam sobre os temas por eles considerados importantes.

«A nossa incapacidade de compreender o modo de pensar do povo Azande depende da diversidade de seu pensamento ou porque se expressam numa língua para nós incompreensível? Quais são as motivações dos seus comportamentos? Qual é o seu conceito de realidade? Como eles traduzem as suas motivações em conceitos? Tenho procurado sempre de responder a estas perguntas a fim de assegurar que a minha narração pudesse ser realmente uma descrição e não simplesmente um registro de fatos».

 

 Naqueles tempos era difundida a opinião entre os europeus que os povos, como os Azande tivessem uma mentalidade primitiva é provavelmente inferior àquela do homem civilizado. Estas alegações eram baseadas sobre a presença entre os povos dos fenómenos da bruxaria e da magia. As duas palavras feitiçaria e magia foram utilizadas com superficialidade por administradores coloniais pelos missionários, e por alguns antropólogos para descrever as ideias julgadas por eles ridículas e desviantes e decididamente primitivas, mas Evans-Pritchard não encontrou ridícula a fé do povo Azande na bruxaria. As suas reflexões eram bastante lógicas. Foram o ponto de partida e pressupostos a serem muito diferente dos nossos. Para entender o que eles queriam dizer por feitiço começou a fazer perguntas sobre as pessoas que suspeitas de terem sido vítimas. A única fonte de bruxaria para o povo Azande era representada por outros seres humanos considerados agentes inconscientes da feitiçaria. Estes foram identificados por oráculos e com procedimentos que confirmavam o culpado e desculpavam um suspeito. A primeira etapa foi em geral, a Iwa ou oráculo da tabuinha. Usada também hoje ainda pode identificar a causa  da infelicidade e os possíveis remédios. Ao ouvir as histórias dos oráculos Evans-Pritchard descobriu que o pensamento do povo Azande começava a fazer sentido. Entre os Azande, encontramos uma hierarquia de oráculos, o oráculo do veneno ou Mbendje. Trata-se de um veneno à base de estriquinina que é administrado a um frango a resposta depende do tipo de aplicação e pelo fato de que o frango morra ou menos. os Azande têm provavelmente perdido hoje parte do seu universo místico original. O livro de Evans-Pritchard permanece como testemunha de uma cultura que talvez hoje não exista mais, e como ponto de partida para uma meditação sobre conflitos estruturais das jovens nações africanas.

Os Nuer

É bem sabido que, nos anos 80, a obra de Evans-Pritchard passou a ser vista por muitos como um expoente da antropologia no auge do colonialismo e se tornou um objeto apetecido das desconstruções pós-modernistas. A famosa trilogia, e em particular The Nuer , foi eleita como ilustração de um estilo etnográfico que manipulava o leitor e escondia as condições muito especiais em que fora realizado o próprio trabalho de campo. O resultado final criava a miragem de uma realidade cultural circunscrita e intemporal – o “presente etnográfico” funcionalista – em vez de revelar as conturbadas vicissitudes da existência nuer sob o domínio britânico . Naquela época, ele havia desafiado a ideia que se tinha das sociedades africanas, formadas nas imagens difundidas por Hollywood ou nas histórias de escravos brutais de Kipling e Conrad comandados por um líder com três penas na cabeça e um osso no nariz. Seus contos de uma sociedade unida eram uma novidade e ele afirmou que não tinha nenhuma autoridade estabelecida para representar a tribo. O trabalho de Evans é particularmente importante por ter sido disponibilizado aos serviços secretos do Sudão e aos serviços coloniais da África Oriental. Este estudo permitiu-lhes uma maior compreensão das estruturas sociais sobre as quais governavam ajudando assim as populações envolvidas. o contraste entre Evans-Pritchard e Lévi-Strauss é muito forte; na verdade, enquanto Lévi-Strauss tenta tornar as coisas misteriosas, complexas e intrincadas, Evans-Pritchard tem uma verdadeira paixão pela clareza, lucidez, por mostrar as coisas em plena luz e descrevê-las com um estilo brilhante. Defini seu I Nuer como um livro de geometria antropológica, precisamente porque está cheio de esquemas e diagramas - que servem para tornar tudo mais claro - mas também de esplêndidas fotografias. De acordo com sua visão, ele não tenta assimilar os outros à cultura britânica, mas tenta mostrá-los, torná-los compreensíveis para a cultura britânica ou ocidental em geral; ele quer vê-los como uma população que tem seu próprio peso e espaço. Ele quer vê-los assim e quer descrevê-los assim, e é assim que ele tenta torná-los vivos diante de nossos olhos: ele não tenta mostrar que eles são iguais a nós em todos os aspectos, mas que estão nos aspectos fundamentais, que comprovam as nossas próprias paixões, ainda que se manifestem de forma diferente em diferentes países. Ele explica, por exemplo, que a coragem e a covardia existem em todos os lugares, mas as formas que esses dois sentimentos assumem diferem de acordo com as pessoas e o lugar. Em vez de tornar tudo vago e misterioso, Evans-Pritchard tenta, portanto, ser o mais claro possível, para nos transmitir - mas sobretudo para a sociedade inglesa de seu tempo - a impressão de que somos capazes de compreender diferentes culturas. Ao contrário da visão de Lévi-Strauss, que acaba não entendendo (quando finalmente chega àquelas pessoas não consegue entendê-las), Evans-Pritchard quer nos assegurar que nossas categorias de pensamento - embora sejam diferentes das de outros povos - são perfeitamente capaz de acolhê-los e colocá-los num quadro coerente. Trata-se, portanto, de duas visões quase antitéticas - ainda que não inteiramente, visto que mesmo em Lévi-Strauss há o desejo de compreendê-las; as duas abordagens são, no entanto, profundamente diferentes, assim como o estilo é diferente: suas descrições fazem parte da realidade que tentam ilustrar. Em Evans-Pritchard há uma forte sensação de clareza, como se de uma janela aberta para o mundo se olhasse as coisas diretamente, sem complicações, e tentasse deixar tudo o mais claro e claro possível. É, portanto, evidente que nenhum dos dois métodos é completamente puro.

Bem no início do livro, Evans-Pritchard relacionou a má vontade de alguns dos seus interlocutores com o contexto colonial. Deixou claro que, no período da sua estadia,

«os nuer demonstravam uma hostilidade fora do vulgar, uma vez que a sua recente derrota e as medidas tomadas pelo governo para assegurar a submissão final tinham provocado um profundo ressentimento». (Evans-Pritchard 1999, p. 11)

Esclareceu inclusive que os Nuer o viam «não apenas como um estrangeiro, mas como um inimigo».

Evans tinha fama de poder esclarecer as razões das dificuldades encontradas na administração colonial dos nativos. Em 1930, o governo anglo-egípcio pediu-lhe para fazer uma pesquisa sobre um povo egípcio que estava causando problemas. Essas pessoas ainda vivem hoje nos pântanos do Delta do Alto Nilo para os funcionários coloniais era uma tribo guerreira que resistiu à tentativa de governá-lo, mas para Evans era uma sociedade complexa e fascinante.

«Os Nuer são muito inclinados a lutar, muitas vezes os assassinatos ocorrem, na verdade é raro ver um adulto sem cicatrizes de golpes de pau ou de lança. um Nuer lutará imediatamente se se considerar insultado ou muito sensível e suscetível».

Pelas descrições da sua vida, fica claro como Evans se identificava com os Nuer.

«O nuer é o produto de uma sociedade rígida e igualitária. É profundamente democrático e usa a violência. seu espírito indomável acha insuportáveis quaisquer restrições e não reconhece nenhum homem como seu superior. Cada Nuer se considera tão bom quanto seu próximo e o manifesta em todas as suas ações. Andam com o orgulho dos senhores da terra porque se consideram como tal. Em sua sociedade não há senhores nem servos, mas apenas semelhantes que se consideram a mais nobre criação de seu Deus, seu respeito mútuo contrasta com o desprezo pelos outros povos».

 Quanto aos Azande Evans Pritchard consideravam sua natureza agressiva como resultado da hostilidade do meio em que vivem,

«um povo como os Nuer depende muito do meio em que vive, são pastores e os única actividade a que se dedicam é o cuidado do gado. As razões não são apenas de tipo alimentar, mas toda a visão do mundo é uma função de serem pastores. O gado é o seu bem mais valioso. E com alegria arriscam a vida em defesa do rebanho ou para saquear o dos vizinhos».

Os Nuer têm uma relação particular e elaborada com seu gado, sua vida depende disso e eles a desfrutam emocional e intelectualmente. Os meninos se chamam pelos nomes de seus touros favoritos. Os mesmos nomes dos animais descrevem o tipo de cor, o padrão do coiro, a forma dos chifres etc., canções sobre a beleza de seus animais são compostas que são cantadas para os mesmos animais e, claro, o folclore Nuer de histórias de gado esplêndido. Em alguns casos pode representar um elo em suas relações sociais e certamente caracteriza as relações de parentesco. Quando um homem morre, o rebanho é dividido entre as crianças que cuidaram dele durante toda a vida. A pecuária também está no centro de tais processos sociais. É usado para pagar indemnização e em reparação por algum delito. Se um homem quer se casar ele tem que recompensar a família de sua esposa pela perda de uma filha, a recompensa é um presente de gado. Evans disse que o rebanho era uma linguagem real, através da qual os Nuer pensavam. Os Nuer são poetas como a maioria dos povos pastores e a maioria dos homens e mulheres compõe canções que são cantadas para acompanhar as danças e são compostas para o prazer de seu criador e cantadas na solidão dos pastos. Quando de bom humor os jovens cantam glorificando seus parentes, seus entes queridos e o gado onde quer que estejam. Seus escritos sobre os Nuer se tornaram os mais famosos da antropologia, mas quais são as razões desse sucesso?

Os Nuer hoje

Cinco anos após a visita de Evans-Pritchard aos Nuer, para alguns deles a vida é significativamente diferente, pode-se dizer que a mudança envolveu apenas alguns aspectos da vida dos Nuer. Agora eles estão divididos em duas realidades. É um grupo intelectual urbano que utiliza uma série de benefícios da civilização, como cuidados de saúde para homens e mulheres e animais para atividades agrícolas, etc. Mas em termos de estrutura social e modos de vida não houve grandes mudanças porque quando Evans foi para a terra dos Nuer em 1930, a economia básica era a vaca que atualmente desempenha o mesmo papel que ele descreveu no livro Os Nuer. Em 1935 Evans Pritschard retorna a Oxford para uma série de palestras sobre sociologia africana.

«Quando a guerra estoirou, tentei me alistar na Guarda Republicana Galesa, mas a universidade me impediu dizendo que eu desempenhava um papel reservado na universidade, então fui para o Sudão com a desculpa de continuar minha pesquisa etnográfica e, em vez disso, alistado na força de defesa auxiliar do Sudão era o que eu queria e podia fazer».

 O conhecimento de Evans da área de fronteira entre o Sudão e a Abissínia permitiu-lhe causar sérios danos ao inimigo ao comando de uma tribo pertencente aos Anouak. Embora as relações com as tribos com as quais lutou fossem excelentes, não se pode dizer que o fossem também com seus superiores. Durante uma de suas missões na Síria, ele brigou com seus superiores e foi enviado de volta ao norte da África no período de El Alamein. Mais tarde, tornou-se governador do distrito de Cirene, na Líbia.

«Eu não tinha futuro como administrador, pois amava a vida dos beduínos, achava que ser oficial de ligação era mais adequado à minha natureza, então passei mais de dois anos vagando em camelos e cavalos no deserto e às vezes no floresta, não acho que fiz muito pelo esforço de guerra, mas pelo menos não fiz nada para atrasá-lo embora não pudesse concluir nenhum estudo nessa situação conheci Cirenaica e seus povos e sua história a ponto de escrever mais tarde o livro dos Sanussi da Cirenaica»

Os Sanusi da Cirenaica

Se trata de um livro de importância histórica: o estudo antropológico da estrutura tribal dos beduínos. No final da guerra Evans voltou à antropologia acadêmica. A essa altura, Malinowski estava morto e o palco estava limpo. Uma nova geração estava prestes a assumir cargos universitários de prestígio. Em 1946, Evans-Pritchard sucedeu Radcliffe-Brown em Oxford. Em 1950, houve a virada oficial em sua trajetória hermenêutica: em uma famosa palestra no Exter College Hall, em Oxford, Evans Pritchard propôs uma nova metodologia para a antropologia social, uma metodologia, como já mencionado, mais próxima das ciências históricas. A proposta foi bem recebida pela nova geração de estudiosos ingleses, incluindo Max Gluckmann, Mayer Fortes e Jack Goody. É difícil dizer exatamente a que se deve essa virada teórica. Provavelmente algumas razões devem ser identificadas no fato de que Evans-Pritchard, depois dos Azande, pôde estudar os Nuer do Sudão e os beduínos da Líbia, dois casos etnográficos que exigiram maior consideração da dimensão histórica do que as sociedades usualmente estudadas por antropólogos da tradição britânica...

Actividade académica

Pritchard tornou-se professor de antropologia social em Oxford, que no período pós-guerra desenvolveu uma reputação como um excelente centro de estudos antropológicos do pós-guerra graças a Evans. A antropologia exerceu sua influência na política colonial precisamente no momento em que a independência começava a ser reivindicada em todo o império. Os serviços prestados à antropologia foram reconhecidos imediatamente. Seu trabalho sobre feitiçaria causou um debate entre os filósofos sobre o que poderia ser considerado racional em uma sociedade, enquanto seus contos de organização tribal intrigavam os teóricos políticos. Além disso, o interesse pelo aspecto religioso dos povos estudados influenciou os teólogos. Na verdade a religião permeou sua vida e se converteu ao cristianismo durante a guerra, manteve sua fé até sua morte em 1973. Sua genialidade como antropólogo estava em sua capacidade de se abrir para os populistas para deixá-los falar, destacando o que ele achava importante no chamado primitivo atenção dos antropólogos científicos aos povos indígenas no campo. Fazendo do objeto de estudo a autoridade tradicional e o antropólogo um simples tradutor intérprete. O estudo da sociedade humana percorreu um longo caminho desde que Spencer estudou a sociedade aborígene australiana. Hoje a antropologia abandonou esse tipo de estudo, mas continua seguindo esse tipo de pesquisa de Spencer para pesquisar essas novas informações no campo. Boas na América destacou todos os aspectos da sociedade e a necessidade de conhecer sua língua. No entanto a antropologia não se tornou a ciência exata que William Rivers desejava, mas seu trabalho trouxe uma abordagem científica para a análise de uma sociedade do campo, com Malinowski o trabalho no campo tornou-se total imersão na sociedade em estudo e produziu obras-primas de descrição ... antropológico. Mead identificou o potencial popular e popular da antropologia e seus livros confirmaram esse interesse. Evans Pritchard desviou a antropologia da busca de leis universais do comportamento humano e inventou a figura do antropólogo como intérprete, uma espécie de cientista cuja tarefa era interpretar e traduzir cultura em cultura. 'Na antropologia social não se estuda como simples observador, mas participa dela, não é apenas um membro ou do público, mas também está em cena, para compreender os Nuer é preciso aprender a pensar como os Nuer para sentir como eles, para ser um Nuer você não precisa de nenhuma técnica científica para fazer isso. Precisamente isso dá ao antropólogo algo especial, porque ele tenta interpretar o que vê não só com a cabeça, mas com toda a sua personalidade, até mesmo com o coração' da historiografia e, portanto, da filosofia da arte e estuda as sociedades mais como sistemas morais do que como sistemas naturais.

Bibliografia

Radcliffe-Brown, A. R. (1975). El método de la antropología social. Barcelona: Anagrama.

Evans-Pritchard, E. (2005). Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar.

Hirst, P., & Woolley, P. (1984). Social Relations and Human Atributes. London: Tavistock.

Evans-Pritchard, E. (1999). Os Nuer. São Paulo: Perspectiva.

Delgado Rosa, F. (2011). O fantasma de Evans-Pritchard: diálogos da antropologia com a sua história. Etnográfica, XV(2), 337–360.

Kipling, R. (2016). Os livros da Selva. Lisboa: Penguin companhia das letras.

Conrad, J. (2008). No coração das trevas. São Paulo: Hedra.

Evans-Pritchard, E. (1949). The Sanusi of Cyrenaica. Oxford: Clarendom Press.

Evans-Pritchard, E. (1965). Theories of Primitive Religion. Oxford: Clarendom Press.

 

Nona Lição: 20 de Dezembro - Alfred Reginald Radcliffe-Brown

 

                                           Alfred Reginald Radcliffe-Brown

 

Biografia

A vida

Alfred Reginald Radcliffe-Brown nasceu em 17 de Janeiro 1881, em Birmingham, na Inglaterra. De origem operária, deixou a escola aos 17 anos para trabalhar na biblioteca de Birmingham. Na insistência de seu irmão, Brown iniciou os estudos de medicina da Universidade de Birmingham. Embora tivesse aspirava a uma licenciatura em ciências naturais, Brown foi convencido por um tutor para entrar Cambridge Trinity College, adquirindo diploma em “Ciência Mental e Moral”. Contudo, logo após, afastou-se da orientação de seus mestres, notadamente Rivers.

Após a licenciatura, em 1906 a 1908, realizou seu primeiro trabalho de campo nas ilhas Andaman, no golfo de Bengala, a leste da Índia, redigindo uma tese marcada pelo estilo difusionista, que procurou reeditar em 1913-14 e finalmente publicada em 1922 “Os ilheus das Andaman” , com um novo prefácio reeditado em 1933 - considerado seu único trabalho de grandes proporções. Na época, quando a tese fora publicada, foi muito bem recebida nos meios acadêmicos. Outra pesquisa de campo sua foi outro grande um levantamento dos sistemas de parentesco entre os diferentes grupos aborígenes da Austrália Ocidental, realizado em 1910-1912. Alfred Reginald Radcliffe-Brown pertencia à geração de Malinowski, mas o seu contexto familiar não era intelectual, mas sim da classe operária inglesa. Ele nasceu em Sparkbrook, Birmingham, em 1881. Quando tinha cinco anos, faleceu-lhe o pai, deixando a sua mãe na penúria. Ela trabalhava como “dama de companhia”. “Rex” era aluno bolsista na King Edward’s School, em Birmingham, mas antes dos 18 anos deixou a escola por um emprego na biblioteca daquela cidade. Seu irmão mais velho, Herbert, encorajou-o a prosseguir nos estudos e sustentou-o enquanto cumpria um ano de ciências pré-médicas na Universidade de Birmingham. Ganhou depois uma bolsa de estudos no Trinity College de Cambridge, e em 1902 começou a preparar-se para os exames finais em Ciências Morais. O desejo de Brown era fazer exames de Ciências Naturais em Cambridge, mas o seu director de estudos insistiu em que era preferível apresentar-se em Ciências Mentais e Morais. (Kuper , 1978, p. 52). Foi encorajado pelos seus professores, especialmente Rivers, a mudar-se para Cambridge e a estudar antropologia, tornando-se, em 1904, o primeiro aluno de Rivers em Antropologia.  [...] Em 1926 mudou o seu nome, do registro no cartório, para Radcliffe-Brown, incorporando o nome de sua mãe; Fundou a Antropologia Social na Cidade do Cabo e em Sidney, e recriou-a à sua própria imagem e semelhança em Chicago e Oxford.

Antes de tudo uma distinção teórica entre compreensão ideográfica e nomotética

Tudo se resolve na distinção, entre questão ideográfica e questão nomotética. A questão ideográfica é explicada por Radcliffe-Brown como aquela que tende a documentar determinados factos das vidas passadas e presentes, ao passo que o objetivo da questão nomotética é chegar a proposições gerais ou afirmações teóricas. A etnografia, então, é especificamente uma modalidade da ideográfica e diácronica que diferencia a história da arqueologia que é baseada não na observação directa e participante da gente viva, mas em registros escritos ou em materiais e achados da cultura material de um povo que certificam as atividades das pessoas no passado. A Antropologia, ao contrário, é um campo da ciência nomotética, reflexiva, sincrónica. Radcliffe-Brown, declarou no seu livro Introdução à estrutura e função na sociedade primitiva — uma frase famosa que, a antropologia social, considerada por Durkheim como um ramo da Sociologia comparativa, é um estudo teórico ou nomotético, que tem como objectivo fornecer generalizações conclusivas aceitáveis baseadas nos dados etnográficos (Radcliffe-Brown, 1973, p. 3).  Esta distinção entre antropologia e etnografia foi reafirmada repetidas vezes.  No 'Método comparativo em antropologia social', mais conhecido como a sua revisão da teoria do totemismo, Radcliffe-Brown insistiu que 'sem estudos comparativos sistemáticos a antropologia se tornará apenas historiografia e etnografia' (Radcliffe-Brown, 1973, p. 16). E o objetivo, portanto, da comparação, é passar do particular para o geral, do geral para o mais geral e, finalmente, do geral para o universal numa maneira indutiva (Radcliffe-Brown, 1973, p. 22). 

Trabalho de campo

Ele realizou trabalho de campo de 1906-1908, nas Ilhas Andaman, a leste da Índia, e publicou um relatório de campo, muito bem recebido, no estilo difusionista (Eriksen & Nielsen, 2010, p. 58); [...] a observação direta era de escassa utilidade, e tinha que depender das recordações dos informantes. [...] Na época em que a sua monografia foi publicada (1922), [...] no que dizia respeito à pesquisa de campo, contentou-se em descrever o trabalho como um estudo de aprendizado, e apoiou-se maciçamente nos relatos etnográficos de um antigo residente das ilhas, E. H. Man, embora divergindo de suas interpretações especulativas. Foi para o campo como etnólogo e seu objetivo inicial, refletido em seu primeiro relato, era reconstituir a história dos andamaneses e dos habitantes em geral (Kuper, 1978, p.58);

Quando Radcliffe-Brown partiu para a Austrália em 1910 [...] ficou uma vez mais evidente que o seu trabalho era etnografia “de levantamento e de aproveitamento de dados”, [...] era estéril em comparação com o tipo de trabalho de campo de que Malinowski estava realizando nas Trobriand. [...] A preocupação central de Radcliffe-Brown em seu trabalho australiano foi com o sistema de parentesco e casamento, algo que ele não tratara com muita autoridade em seu estudo de Andaman (KUPER, 1978, p. 60 e 61).  A maioria do trabalho de Radcliffe-Brown nas Ilhas Andaman foi realizado na Grande Andaman, isto por razões de dificuldade linguística. Acampou durante três meses na Pequena Andaman e fez um grande esforço para aprender a língua, até que finalmente desistiu, desesperado. Na Grande Andaman trabalhou inicialmente em indostânico, o qual era geralmente – ainda que de modo imperfeito – entendido pelos adultos mais jovens, e, depois de certo tempo, nos dialetos locais. Contudo, considerou que só conseguira realizar progressos substanciais na parte final de sua estada, quando descobriu um informante inteligente que falava inglês. [...] O arquipélago de Andaman tinha então uma população inferior a 1.300 habitantes e na época do estudo de Radcliffe-Brown já tinha sido tristemente afetado por epidemias de sarampo e sífilis, após a instalação de uma colônia penal e o início da colonização européia (Kuper, 1978, p.57);

Quando Radcliffe-Brown partiu para a Austrália em 1910 levou Grant Watson com ele, [...] a Sra. Daisy Bates, etnógrafa amadora e filantropista, [...] e um marinheiro sueco, Olsen, que seguia como criado. [...] O primeiro destino da expedição era o local de um corroboree a leste de Sandstone, e o grupo estava começando a instalar-se para “iniciar a parte principal dessa tarefa, que consistia em organizar sistematicamente os fatos pertinentes ao sistema matrimonial de quatro classes”, quando foi interrompido por uma batida policial. Entretanto, depois desse incidente, os aborígenes mostraram-se relutantes em continuar suas cerimônias. 

 

Radcliffe-Brown decidiu partir e, depois de uma discussão acalorada, abandonou a Sra. Bates, deixando-a entregue a sua sorte. Levou o resto do grupo para a Ilha Bernier, local de um hospital em regime de isolamento sanitário para aborígenes contaminados por doenças venéreas. Os ocupantes tinham sido em sua grande maioria sequestrados e removidos à força para à ilha, e Radcliffe-Brown prosseguiu com esses infelizes informantes as suas pesquisas sobre os tradicionais sistemas matrimoniais aborígenes. Após um ano no campo, Watson partiu; acompanhado de Olsen, Radcliffe-Brown continuou estudando outras comunidades aborígenes estabelecidas em redor de postos missionários ao longo do Rio Gascoyne. As suas investigações na Austrália Ocidental foram guiadas em parte por sua conclusão, decorrente de um estudo da literatura, de que seria lícito esperar o aparecimento na área de uma certa variação de estrutura típica e essa conjectura foi recompensada por sua descoberta do sistema Kariera em 1911 (Kuper, 1978, p.59 e 60).

A ocupação da cátedra em Oxford permitiu-lhe estabelecer uma ascendência sobre a Antropologia Social britânica que durou até à sua morte em 1955 (Kuper, 1978, p. 53 e 56). Entre os seus professores estavam Myers e Rivers, ambos psicólogos médicos e veteranos da expedição aos Estreitos de Torres, o empreendimento pioneiro em Cambridge na área da pesquisa antropológica de campo. O curso abrangia Psicologia e Filosofia, incluindo a Filosofia da Ciência, que era lecionada em parte por Alfred North Whitehead. [...] Guiado por Rivers e Haddon, Brown realizou um estudo das Ilhas Andaman em 1906-8. [...] A sua monografia inicial sobre Andaman concentrou-se em problemas etnológicos e refletia as propensões difusionistas de Rivers. Entretanto, não tardou em converter-se à concepção durkheimiana da sociologia [...] ao voltar-se para Durkheim, ele fazia parte de um movimento bastante generalizado na Grã-Bretanha nessa época. [...] Tal como o anarquismo de Kropotkine, para o qual Brown fora atraído enquanto estudante, a sociologia de Durkheim continua uma visão essencialmente otimista da possibilidade de auto-realização do homem numa sociedade metodicamente ordenada (Kuper, 1978, pp.52-54).

Influxo de Durkheim

Radcliffe-Brown foi seguidor de Durkheim ao considerar o indivíduo principalmente como produto da sociedade. Enquanto Malinowski preparava seus alunos para irem a campo e procurarem as motivações humanas e a lógica da ação, Radcliffe-Brown pedia aos seus que descobrissem princípios estruturais abstratos e mecanismos de integração social [...]. Os “mecanismos” que Radcliffe-Brown esperava identificar eram de origem durkheimiana, análogos talvez às representações coletivas de Durkheim. Mas Radcliffe-Brown alimentava esperanças explícitas de transformar a antropologia numa ciência “real”, um objetivo que provavelmente não fazia parte dos planos de Durkheim. Em A Natural Science of Society, seu último livro (baseado numa série de palestras proferidas em Chicago em 1937 e publicado postumamente em 1957), ele explica a natureza dessa esperança (Eriksen e Nielsen, 2010, p. 59 ); Radcliffe-Brown sofreu a influência das teorias sociológicas de Durkheim antes da I Guerra Mundial, e os anos produtivos de sua carreira foram dedicados à aplicação dessa teoria às descobertas dos etnógrafos; uma atividade que ele compartilhou durante a maior parte de sua vida com Mauss, sobrinho de Durkheim [...] mas ele também permaneceu um evolucionista na tradição de Spencer (Kuper, 1978, p. 52 e 65);

Radcliffe-Brown compartilhou sempre do ponto de vista de Durkheim e Roscoe Pound, um ponto de vista relacionado “não com as funções biológicas mas com as funções sociais, não com o ‘indivíduo’ biológico abstrato mas com ‘pessoas’ concretas de uma sociedade (Kuper, 1978, p. 82).

Seguindo Durkheim e outros, definiria a função social como um certo modo socialmente padronizado de agir ou pensar que é relacionado com a estrutura social e para cuja existência e continuidade contribui. Na definição de Durkheim a função de uma instituição social é a correspondência entre ela e as necessidades da organização social (...) a sociologia de Durkheim continua uma visão essencialmente otimista da possibilidade de auto-realização do homem numa sociedade metodicamente ordenada; mas, ao mesmo tempo, o socialismo de Durkheim minimizava a ‘guerra de classes’, e isso talvez tivesse atraído também Radcliffe-Brown ... foi convertido ao ponto de vista durkheimiano pelo significado e finalidade com os quais os costumes devem ser entendidos no seu contexto contemporâneo todos os costumes e todas as crenças de uma sociedade primitiva desempenham algum papel determinado na vida social da comunidade, tal como os órgãos de um corpo vivo desempenham alguma função na vida geral do organismo’. O propósito dos sentimentos pelos quais a conduta do indivíduo é regida em conformidade com as necessidades da sociedade. A teoria da função desses costumes cerimoniais foi diretamente tomada de Durkheim e aplicada  de modo quase mecânico. A sociologia de Durkheim foi a mais importante influência sobre o pensamento maduro de Radcliffe-Brown”, ele aplica o pensamento de solidariedade às sociedades primitivas a solidariedade social baseava-se no reconhecimento da semelhança mútua. Em sociedades que desfrutavam de uma complexa divisão de trabalho e, portanto, eram de maior escala e mais altamente centralizadas, a solidariedade dos membros derivava de seu sentido de dependência mútua. Uns dos objetos de estudo de Durkheim que Radcliffe-Brown partilha é o estudo das relações sociais. O objeto de estudo era o sistema social ou processo social. Eram sistemas ‘de relações reais de encadeamento entre indivíduos’ ou, mais precisamente, entre indivíduos que ocupam papéis sociais, entre ‘ pessoas (...) O seu melhor trabalho refere-se ao ‘totemismo’ e ao parentesco. No totemismo, um grupo específico, dentro de uma sociedade, adopta uma atitude ritualística em relação a uma espécie animal ou a um objecto natural. Durkheim argumentava que certos grupos são o objetos de sentimentos de fidelidade” (Kuper, 1978. p. 51-84)

Actividade Professional

Professor em Oxford de 1937 a 1946, ele transpôs a leitura do social de Emile Durkheim para o contexto da antropologia inglesa e deu origem ao chamado funcionalismo estrutural.

  O resto de sua vida profissional foi retomado com o ensino e a escrever trabalhos teóricos. Radcliffe –Brown viajou muito no início de sua carreira, assim como Boas. Em 1921 a 1926 criou um novo departamento de Antropologia Social na cidade de Cabo. Em 1931 ele deixou Sydney no mesmo ano, ele publicou The Social Organization of Australian Tribes (A organização social das tribos australianas) , após uma breve visita à Inglaterra, entrou na Universidade de Chicago por seis anos., com apoio de Rockefeller. Em Sydney, ele fundou a influente revista Oceania. Até que em 1937 regressa à Inglaterra tornando-se o primeiro professor de Antropologia Social em Oxford, departamento organizado pelo próprio.  Em 1946, afastou-se de Oxford, para assumir a cátedra de Sociologia em Faruk, Alexandria. Nos anos posteriores, foi professor visitante em Yenching, na China, no período de 1935 a 1936 e em São Paulo, Brasil, nos anos de 1942 a 1944. Em 1946 após a aposentadoria, ele se mudou para a África do Sul, onde leciona antropologia social da Universidade de Grahamstown.

Por força da personalidade e intelecto, Radcliffe-Brown moldou o curso de antropologia britânica em toda a década de 1940. Considerando a influência de Bronislaw Malinowski e de outros antropólogos importantes britânicos da época, procuravam estabelecer um alto padrão de trabalho de campo e colecta de dados, mas influência de Radcliffe-Brown foi mais teórica. Suas principais argumentações são explícitas de maneira fragmentada, por meio de artigos curtos. Seus postulados básicos evoluíram lentamente durante um período extenso de produção escrita, notando suas variações por meio da própria escrita.

1. O método na antropologia.

Em pontos sistemáticos eis resumidas as preocupações metodológicas de Radcliffe-Brown

1) A distinção entre as pesquisas históricas e etnológicas (a "má história" dos evolucionistas diffusionistas), e aquelas sociológicas é mantida nas suas generalidades pela antropologia social;

2) O método indutivo e a busca de generalizações ( 'leis') sobre as características dos sistemas sociais;

3) a necessidade de comparação;

4) a possibilidade alias a necessidade da formação de uma "antropologia aplicada. A 'distinção', o que nem sempre é "oposição", entre etnologia e antropologia social cria dois campos de investigação autónomos, e uma muito útil da delimitação do "âmbito da pesquisa".

A antropologia social inglesa é caracterizada progressivamente pelo fato que devem ser colocados em consideração, os factos históricos de uma sociedade, como factores de contexto; por isso devemos renunciar decididamente à quantidade de hipóteses "conjecturais da história”

 

A suas argumentações são contidas, em artigos curtos. Radcliffe-Brown fundou uma abordagem teórica antropológica conhecida como estrutural-funcionalismo

Ou seja a análise dos sistemas sociais tidos como mecanismos integrados, nos quais todas as partes funcionam para promover a harmonia do todo.

O Método comparativo

Para falar de "método comparativo" em Antropologia, devemos nos referir ao método usado por James Frazer no seu Golden Bough. Mas para comparar os aspectos particulares da vida social podemos recorrer  à Etnologia ou à Antropologia Social. Boas tencionava reconstruir a história de uma sociedade com o intento de conhecer em profundidade os fenômenos sociais humanos. Assim, o método comparativo na Antropologia Social é o método daqueles que têm sido chamados de "antropólogos de gabinete", desde que trabalham em bibliotecas. Sua primeira tarefa é procurar por "paralelos", aspectos sociais similares que aparecem em sociedades diferentes, no presente ou no passado.

Em Cambridge, há sessenta anos, Frazer representava a Antropologia de gabinete, usando o método comparativo, enquanto Haddon insistia na necessidade de estudos "intensivos" de sociedades particulares através de sistemáticos estudos de campo por observadores competentes. O desenvolvimento dos estudos de campo levou a por de lado método comparativo. Quando se deve estudar qualquer aspecto da vida social no seu contexto, em relação a outros aspectos do sistema social deve-se aprender a encará-lo no contexto mais amplo das sociedades humanas em geral. O que a escola de Cambridge de Antropologia ensinava há quarenta e cinco anos atrás não era que a Antropologia de gabinete devia ser abandonada, mas sim que devia ser combinada com estudos intensivos de sociedades primitivas particulares em que qualquer instituição, costume ou crença particulares da sociedade fossem examinada em relação com o sistema social total como uma parte inserida num todo mais amplo. Sem estudos comparativos sistemáticos' a Antropologia se tornará apenas historiografia e etnografia. A teoria sociológica deve ser baseada na comparação sistemática e continuamente testada por ela.

 A existência de instituições, costumes ou crenças similares em duas ou mais sociedades pode ser tomada pelo etnólogo, em certos casos, como indicativa de alguma conexão histórica. O que se procura é uma sorte de reconstrução da história de uma sociedade, povo ou região.

Tarefas da antropologia social

Radcliffe-Brown considerava a antropologia social um ramo das ciências naturais. O método da antropologia social era de tipo indutivo e consistia sobretudo em identificar os mecanismos que operavam nas sociedades e permitiam o seu funcionamento; depois na comparação desses mecanismos; e finalmente, se possível, na sua generalização no direito. Esse método orientou o pesquisador para uma colecta exaustiva de dados e para sua colocação sistemática em um todo que, pelo destaque de suas relações, tornou-se significativo. Na Sociologia Comparativa ou Antropologia Social o propósito da comparação é diferente: constitui seu objetivo explorar as variedades de formas da vida social como base para o estudo teórico dos fenómenos sociais humanos Franz Boas, escrevendo em 1888 e 1896, afirmou que na Antropologia há duas tarefas a serem empreendidas.

1) A primeira é "reconstruir" a historia das regiões ou povos particulares.

2) A segunda ele a descreve como segue:

"Uma comparação da vida social de diferentes povos prova que os fundamentos do seu desenvolvimento cultural são notavelmente uniformes. Disso se conclui que há leis que determinam este desenvolvimento. A sua descoberta e talvez  segundo é o mais importante objetivo da nossa ciência. No desenvolvimento desses estudos, percebemos que a presença do mesmo costume, e da mesma ideia, que ocorrem entre povos para os quais não podemos estabelecer qualquer conexão histórica, de modo que uma origem comum não pode ser afirmada.

Já no fim da sua vida publica  Method in Social Anthopology: Selected Essasys (1958), onde utiliza dos conceitos trabalhados pelo autor ao longo de sua carreira, como “processo social” e “estrutura social”, por si unidos no conceito de “função”. Em 1955, Radcliffe-Brown retorna à Londres gravemente doente e morre em outubro do mesmo ano.

2. Conceito de função

Radcliffe-Brown fundou uma abordagem teórica antropológica conhecida como funcionalismo estructural.  Entretanto, sublinha para a análise social que os sistemas sociais são como mecanismos integrados, nos quais todas as partes funcionam para promover a harmonia do todo. Dentre seus obras teóricas destacam-se: Estrutura e função na sociedade primitiva (1952) e

As funções atribuídas a cada elemento também permitiram a formulação de novas hipóteses de pesquisa e sua verificação. The social Organization of Australian Tribes ' (publicado na revista Oceania entre 1930 e 1931) é justamente considerado um sucesso memorável do método indutivo aplicado por Radcliffe-Brown. A partir de uma hipótese formulada a partir de postulados derivados da literatura, o antropólogo inglês conseguiu identificar a existência de um determinado sistema social (o kariera) em uma região específica do noroeste da Austrália.

Função

“O conceito de função aplicado a sociedade humanas baseia-se na analogia entre vida social e vida orgânica.” (p.220) “O conceito de função tal como é aqui definido implica, pois, a noção de uma estrutura constituída de uma serie de relações entre entidades unidades, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital constituído das atividades das unidades integrantes”(p.223) “... função é a contribuição que determina a actividade e a proporciona à uma actividade total da qual faz parte. A função de um dado costume social é a contribuição que este oferece à vida social total como um particular que funciona dentro dum sistema social total.” (p.224) “Portanto, o que aqui chamo de fisiologia social trata não apenas da estrutura social, mas de toda espécie de fenômeno social. Moral, direito, boas maneiras, religião, governo e educação, tudo isto são partes do complexo mecanismo pelo qual uma estrutura social existe e perdura.” (p.241)

3. Objecto da antropologia

O principal objecto da antropologia era para Radcliffe-Brown o estudo da realidade social. Essa realidade configurou-se como uma 'estrutura', ou seja, como uma rede de relações sociais e pessoais em que cada traço exercia sua 'função' específica em relação ao todo. Para Radcliffe-Brown, o conceito de função tinha um valor epistemológico muito diferente daquele que possuía em Malinowski, para o qual 'função' era sobretudo indicar o papel desempenhado por uma instituição na satisfação de uma necessidade primária ou secundária; essa diferença marcou o factor discriminante entre o funcionalismo de Malinowski e o funcionalismo estrutural de Radcliffe-Brown.

Pesquisa antropológica

A investigação antropológica social deveria, antes de mais nada, privilegiar o momento sociológico institucional da realidade em detrimento dos aspectos psicológicos e culturais em sentido amplo. Foi aí que o antropólogo social, ao contrário do antropólogo cultural, teve que direcionar seu interesse de pesquisa. Com base nesse modelo de investigação, Radcliffe-Brown fez uma distinção entre Etnologia e Antropologia; e depois entre a antropologia evolutiva, que fez com que as transformações da sociedade derivassem de leis extrínsecas à própria sociedade (os estágios hipotéticos do desenvolvimento da humanidade) e a antropologia social.

4. Sistemas de parentesco

O estudo dos sistemas de parentesco foi o sector do conhecimento antropológico ao qual Radcliffe-Brown ligou seu nome. Para Radcliffe-Brown, as instituições de família e casamento, terminologias e parentesco como um todo eram partes de uma estrutura global. No estudo do parentesco, as considerações de ordem psicológica não tinham peso explicativo sobre a função que as instituições ligadas ao parentesco desempenhavam na garantia da continuidade da estrutura social. Desde Morgan os antropólogos estavam conscientes de que o parentesco era uma chave para compreender a organização social em sociedades de pequena escala. O que ainda não estava muito claro era o que essa chave iria abrir. O uso durkheimiano, por parte de Radcliffe-Brown, da antiga idéia de Maine do parentesco como sistema “jurídico” de normas e regras tornou possível explorar cabalmente o potencial analítico do parentesco (Eriksen & Nielsen, 2010, p. 60).  

 

A especificidade de Radcliffe-Brown era o sistema de parentesco e foi esse o campo em que teve maior liberdade para desenvolver os seus próprios insights, uma vez que Morgan e Rivers tinham-se baseado em explicações históricas de parentesco e a escola de L’Année Sociologique negligenciara inteiramente o tópico [...] O eixo central do sistema de parentesco era a família – uma noção que Radcliffe-Brown tomou de Westermarck (Kuper, 1978, p.74 e 75);

 

Radcliffe-Brown concebeu um sistema de parentesco e casamento como um conjunto de usos sociais interligados que se baseavam no reconhecimento de certas relações biológicas para fins sociais. Ao investigar esse sistema concentrou-se em dois de seus aspectos:

1) os usos que governam as relações entre parentes e

2) os termos usados para se dirigir a parentes ou fazer-lhes referências. Todo e qualquer sistema classificatório funcionava segundo uma combinação de três princípios básicos:

1) princípio de “a unidade do grupo sibling”: irmãos e irmãs compartilhavam de um sentimento de solidariedade e eram tratados como uma unidade pelas pessoas de fora;

2) princípio de unidade do grupo de linhagem: as sociedades que operam com terminologias classificatórias de parentesco também possuem comumente linhagens (grupos solidários formados pelos descendentes numa linha de um só ancestral);

3) princípio de geração. A análise desses princípios pode ser vista em seu estudo das relações de gracejo (Kuper, 1978, p. 75-77). 

Radcliffe-Brown e sua escola foram criticados por anti-historicismo justamente por terem negligenciado os aspectos culturais e psicológicos do fenómeno social total, dificultando a compreensão dos processos de transformação da sociedade.

Nem todo o aparato teórico de Radcliffe-Brown foi poupado de julgamentos severos. Os críticos do funcionalismo observaram que o próprio adjetivo 'funcional' usado por Radcliffe-Brown não tinha um caráter 'neutro' (como, em vez disso, o adjetivo 'funcional' tem), mas na linguagem comum denotava uma realidade vista sob uma luz positiva.

Essa particularidade semântica revelou um caráter ideológico implícito da operação conceitual da antropologia social inglesa. Declarar um sistema funcional apenas porque era funcional significava sancionar positivamente toda realidade social que funcionava. Nesse uso linguístico incorreto, foram reconhecidas implicações ideológicas em um sentido conservador. Alfred Kroeber sublinhou o peso particular que os funcionalistas deram aos aspectos de integração e equilíbrio em relação aos de dinâmica social e conflito.

Na atenção especial dispensada pelos funcionalistas à análise dos problemas relacionados ao controle social e aos sistemas de parentesco, sistemas que presidiam à distribuição do poder econômica, social e político das unidades tribais analisadas, reconheceu-se uma influência do poder político inglês. As análises poderiam afetar diretamente os órgãos de gestão do poder colonial, no espírito da regra indireta. Escreveu Os ilhéus das ilhas Andaman onde define a função social dos fenómenos religiosos Adaman Islanders (1922) dá grande importância aos aspectos ecológicos da cultura. Aprimora a análise histórica dos etnemas que têm relações mútuas e penetram na cultura e na sociedade

Define o objeto da antropologia a partir de um método que o justificou

Controvérsia com Schmidt sobre o método de estudo para ele se basear no sentido histórico

 Enquanto Radcliffe enfatiza o significado social dos elementos culturais e sua função na estrutura da sociedade.

 Do que conclui que o seu era um método que divergia do método histórico-cultural da escola de Viena e o termo Antropologia SOCIAL foi cunhado com um novo significado, não mais histórico, mas a ciência natural, a cultura e a sociedade com leis que a pesquisa científica deve descobrir .

Elementos da estrutura social

a) casamento

b) sistemas de parentesco

c) instituições políticas que

d) ritos e religião

O entrelaçamento destes elementos forma o tecido social

5. Funcionalismo de Radcliffe-Brown.

- A função de um elemento cultural não pode ser atribuída a motivações psicológicas ou biológicas, mas é interpretada em termos estruturais como a contribuição de cada elemento social para a sobrevivência da sociedade. Cada sociedade é, de facto, composta por um conjunto de partes interdependentes - costumes e instituições - que têm como finalidade a manutenção e continuidade da própria sociedade. Nela, todo comportamento só tem sentido se se referir ao conjunto de comportamentos que compõem o sistema social.

“A vida social da comunidade é definida aqui como o funcionamento da estrutura social. a função de toda atividade recorrente, como a punição de um crime ou uma cerimónia fúnebre, é o papel que desempenha na vida social como um todo e, consequentemente, a contribuição que oferece para manter a continuidade da estrutura”.

- estrutura social = textura das relações que realmente existem entre os indivíduos

O conceito de estrutura social tem como referente uma realidade empírica visível que consiste nas relações realmente existentes e observáveis ​​entre os membros de uma sociedade.

- o objetivo da antropologia não é apenas a explicação do funcionamento das sociedades, mas o estudo comparativo das próprias sociedades para chegar à formulação das leis gerais em que se baseiam os fenómenos sociais, seguindo um método científico semelhante ao das ciências naturais . Na versão estrutural-funcional de Radcliffe-Brown, a antropologia, enquanto ciência natural da sociedade, deve chegar à formulação de leis gerais por meio da comparação.

6. Contribuições da antropologia de Radcliffe Brown.

Positivas. A grande contribuição do funcionalismo foi reconhecer a importância do contexto na explicação dos fatos sociais. Em vez de explicar a sociedade com base em seu estágio de desenvolvimento, sua história ou a influência de outras culturas, a explicação é buscada na própria sociedade, em sua 'coerência estrutural e funcional'.

A pesquisa de campo deu origem, então, a um grande número de pesquisas aprofundadas realizadas com

seriedade metodológica. Aspectos problemáticos. O método funcionalista era bem adequado para uma sociedade fechada e estática como as Ilhas Trobriand, mas mostrou-se excessivamente estático para outros contextos e fenómenos culturais. Daí a crítica de que os funcionalistas não conseguiram apreender a dimensão dinâmica

de culturas e mudanças sociais.

Além disso, o funcionalismo parece alimentar uma visão das sociedades como entidades autônomas e auto-suficientes, impermeáveis ​​ao contato cultural.

7. A escola britânica

As figuras de Radcliffe-Brown e Malinowski constituíram o ponto de referência, pelo menos até o final da década de 1950, para toda uma geração de pesquisadores que, com pesquisas metodologicamente rigorosas, deram uma sólida consistência científica à antropologia social britânica.

Sem dúvida, a condição colonial em que se encontravam quase todas as populações estudadas favoreceu esses estudos.

Entre os representantes mais autorizados da antropologia social, lembramos Edward Evans-Pritchard (1902-1973), Meyer Fortes (1906-1983),

Siegfried Nadel (1903-1956),

Edmund Leach (1910-1989)

e Raymond Firth.

Estruturalismo e antropologia social

Crítica ao funcionalismo malinowskiano segundo Radcliffe Brown (estruturalista)

 

O estruturalismo (que tem como objeto de estudo o conhecimento das estruturas sociais das comunidades humanas) teve Radcliffe Brown como seu maior expoente. O estruturalismo tornou-se uma questão atual quando Radcliffe Brown atacou Malinowski (em um discurso no Royal Anthropological Institute em Londres 1940), chamando-o de irresponsável e negando a existência de uma escola funcional. M. havia usado mal, confundindo função com uso. Para Radcliffe Brown, o conceito de função nas ciências sociais implica a ideia de sociedade como um organismo vital, composto de unidades ou partes únicas, mantidas em relação por uma rede de relações mútuas, interagindo entre si.

 

O conceito de estrutura na antropologia social segundo Radcliffe Brown.

 

Radcliffe Brown considerava a antropologia social um ramo das ciências naturais, é a “ciência natural da sociedade”: as sociedades são sistemas naturais que devem ser estudados segundo os métodos comprovados pelas ciências da natureza e a antropologia social não é profundamente diferente da sociologia, mas sim uma “sociologia comparativa”. . Os fenômenos sociais, para Radcliffe Brown, são uma classe definida de fenômenos naturais, todos estão ligados à existência de estruturas sociais, e o estudo destas últimas constitui o objeto de estudo da antropologia social, que tem como objetivo pesquisar as relações associativas entre organismos vivos. Os fenômenos sociais não são o resultado imediato da natureza dos seres humanos individuais, mas o resultado da estrutura social da qual os fenômenos estão conectados. Radcliffe Brown especifica o que ele entende por estruturas sociais:

 

   1. Grupos sociais persistentes como nações, tribos, clãs que têm continuidade, apesar das mudanças nas pessoas que pertencem a eles.

   2. Relações sociais entre pessoa e pessoa: ex. os de parentesco.

   3. a diferenciação dos indivíduos em classes a partir de seu papel social.

A sociedade se mantém coesa por força de uma estrutura de regras jurídicas, estatutos sociais e normas que circunscrevem e regulam o comportamento. Na obra de Radcliffe-Brown a estrutura social existe independentemente dos atores individuais que a reproduzem. As pessoas reais e suas relações são meras funções da estrutura, e o objetivo último do antropólogo é descobrir sob o verniz de situações empiricamente existentes os princípios que regem essa estrutura. [...] A articulação feita por Radcliffe-Brown entre teoria social durkheimiana e materiais etnográficos e suas ambições no interesse da disciplina geraram um programa de pesquisa novo e atraente a quem afluíram pesquisadores talentosos, fato que por sua vez aumentou o prestígio da teoria (Eriksen & Nielsen, 2010, p. 59 e 60);

[...] a “estrutura social” [...] não é uma abstração. Ela consiste na “soma total das relações sociais de todos os indivíduos num dado momento do tempo. Embora não possa ser naturalmente vista em sua integridade em qualquer momento dado, podemos observá-la; toda a realidade fenomenal aí está”. [...] A forma estrutural está explícita em “usos sociais”, ou normas sociais, os quais se reconhece geralmente como obrigatórias e são largamente observados. [...] Um uso ou norma social “não é estabelecido pelo antropólogo... é caracterizado pelo que as pessoas dizem sobre as regras numa dada sociedade e pelo que fazem a respeito delas”. [...] Nascem novos membros da sociedade, o velho chefe morre e é substituído, pessoas se divorciam e voltam a casar; mas persistem os usos sociais. A estabilidade da forma estrutural depende da integração de suas partes e do desempenho por essas partes de determinadas tarefas que são necessárias à manutenção da forma. São essas as “funções” das partes do sistema. (Kuper, 1978, pp. 68-70);

[...] função é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da qual é parte (Radcliffe-Brown, 1973, p. 224). Para Radcliffe Brown, o conceito de estruturas sociais pode ser usado para abordar 3 tipos de problemas:

 

a) relativo à morfologia social: consiste em identificar estruturas sociais, detectar diferenças e semelhanças entre elas e classificá-las.

 

b) Relativo à fisiologia social: consiste em examinar as formas de funcionamento das estruturas sociais.

 

c) Relativo ao desenvolvimento: consiste em examinar como se formam novos tipos de estruturas sociais.

Propriedades das estruturas sociais

Para Brown, as estruturas sociais têm algumas propriedades

 

1) Garantir a continuidade da existência da sociedade.

 

2)  Eles são dinâmicos: os indivíduos nascem e morrem, mas a estrutura permanece a mesma.

 

3)  Referência à extensão da área ocupada: é raro encontrar comunidades que não tenham contato com o mundo exterior e que tenham uma área bem definida. Para Radcliffe Brown é preferível estudar comunidades limitadas em tamanho.

 

4)  Formação da personalidade social: cada pessoa é ao mesmo tempo cidadão, empregado, filho, marido, etc. O conjunto dessas posições constitui sua personalidade social.

 

Propósito da funcionalismo estrutural

 

Radcliffe Brown afirma que a antropologia estruturalista tem dois propósitos:

   1. chegar a um conhecimento morfológico dos tipos únicos de estruturas sociais das comunidades humanas (identificação de estruturas sociais).

   2. estabelecer uma morfologia comparativa dos diferentes tipos de estruturas sociais.

Esses 2 objetivos estão relacionados à dependência mútua. O antropólogo social quer saber como os fenómenos estruturais são preservados e transmitidos ao longo do tempo, quais são os mecanismos que mantêm viva uma rede de relações sociais. Ao abordar problemas de fisiologia social (como funcionam as estruturas sociais), o antropólogo deve considerar todos os tipos de fenómenos sociais: moralidade, direito, formas de comportamento.

 

O estudo dos valores sociais como parte do estudo das estruturas sociais

 

O estudo das estruturas sociais não pode ignorar o estudo dos interesses ou valores que são os fatores determinantes das relações sociais. Para Radcliffe Brown, o estudo dos valores sociais (um interesse comum de 2 ou mais pessoas por algo) é parte fundamental do estudo das estruturas sociais.

 

Difusão da escola estruturalista inglesa

 

O maior grupo de seguidores de Radcliffe Brown era inglês. Na América, alguns autores de Chicago ligados a Radcliffe Brown parecem atenuar a ênfase colocada por este na analogia entre estrutura orgânica e estrutura social. Murdock classificou o material etnográfico de cerca de 250 sociedades.

 

O estruturalismo de Lévi Strauss

 

Segundo Radcliffe Brown, a antropologia social é uma ciência indutiva: observa fatos, formula hipóteses, submete-as ao controle da experiência para descobrir as leis gerais da natureza e da sociedade (observação empírica). Lévi-Strauss afirma que é preciso ir além da observação empírica e contesta que a estrutura pertença à ordem dos fatos. O conceito de estrutura social para Lévi-Strauss não se refere à realidade empírica, mas a modelos construídos sobre ela. As relações sociais são a matéria-prima utilizada para a construção de modelos que tornam manifesta a estrutura social. Lévi-Strauss já não rejeita o conceito de cultura como Radcliffe Brown, pelo contrário, este constitui um ponto de partida para a antropologia estruturalista. O conceito de cultura para Lévi-Strauss responde a uma realidade objetiva. Para ele, cultura é todo fragmento da humanidade que, do ponto de vista da investigação, apresenta diferenças significativas em relação aos demais. (América do Norte e Europa são culturas diferentes; Mulemvos e Alvalade são unidades culturais dentro da mesma cultura).

 

O objectivo final da pesquisa estrutural é buscar constantes relacionadas a divergências.

 

Fenómenos de parentesco: são um fenómeno do mesmo tipo que os fenómenos linguísticos. Assim como os fonemas, são elementos de sentido, ou seja, adquirem sentido apenas na condição de integração em sistemas, são processados ​​pelo intelecto em nível inconsciente. Mas há diferenças profundas:

 

* Fonemas: a função da linguagem é clara, mas a maneira pela qual a linguagem consegue isso tem sido ignorada há muito tempo.

 

* Sistemas de parentesco: constituem sistemas, mas não se conhece o uso pretendido.

 

A)  sistema de denominações: termos com os quais se expressam as diferentes ordens de relações familiares.

 

B) sistema de atitudes: como os indivíduos sentem que devem se comportar. Entendemos sua função (garantir a coesão do grupo), mas não entendemos a natureza das conexões que existem entre as diferentes atitudes e não entendemos a necessidade. Tal como acontece com a linguagem, conhecemos a função, mas o sistema nos escapa (como acontece com a linguagem). O sistema de atitudes constitui uma integração dinâmica do sistema de denominações.

 

C) Os sistemas de parentesco, as regras de casamento e filiação formam um todo ordenado cuja função é manter a continuidade do grupo, cruzando as relações consanguíneas com os parentes por afinidade. Por meio desses mecanismos, garantir-se-ia um caráter estático à sociedade e não se explicariam as transformações. Estas, por outro lado, são explicadas por Lévi-Strauss ao reconhecer a natureza dialéctica da relação entre terminologia e comportamento. As regras de comportamento constituem uma tentativa de superação das regras de parentesco, assim nascerá um novo sistema, mas ao mesmo tempo emergirão nele contradições que provocarão uma reorganização da terminologia. Esta situação repercute nas atitudes e estas repercutem no sistema terminológico e o ciclo dialético continua indefinidamente. Lévi-Strauss fala da poligamia como uma resposta política e coletiva e individual e econômica.

 

Para Lévi-Strauss, a sociedade é um conjunto de estruturas correspondentes a diferentes tipos de ordens.

 

Atenção especial de Lévi-Strauss e dos estruturalistas foi dada aos factos religiosos. Radcliffe Brown insistiu em encontrar correlações entre diferentes tipos de religião e diferentes estruturas sociais. Lévi-Strauss espera poder dar vida a a uma análise comparativa de modelos em etnologia religiosa.

 

Perspectivas da antropologia estrutural segundo Claude Lévi-Strauss

O trabalho do antropólogo hoje é semelhante ao de um botânico que deve classificá-los e ordená-los a partir de pedaços de plantas. A tarefa da antropologia estrutural é construir os modelos de desenvolvimento das formas sociais humanas, apreender as causas de natureza estrutural que permitem ou bloqueiam o desenvolvimento. Essa ambição deriva da intuição da aplicação de métodos matemáticos aos fatos da estrutura social.

Bibliografia

Kuper, A. (1978). Antropólogos e antropologia. (Francisco Alves, A c. Di). Rio de Janeiro.

Eriksen Hylland, T., & Nielsen, S. F. (2001). A History of Antropology. Stantford: Pluto Press.

Radcliffe-Brown, A. A. (1972). il metodo nell’antropologia sociale. Roma: Officina.

Radcliffe-Brown, A. R. (1931). The Social Organization of Australian Tribe. Melbourne: MacMillan.

Radcliffe-Brown, A. R., & Forde, D. (1968). Sistemas políticos africanos e de parentesco. Lisboa: Gulbenkian.

Kroeber, A., & Kluckhohn, C. (1952). Culture. A critical Review of Concept and Definition. Cambridge: Museum.

Radcliffe-Brown, A. R. (1922). Andaman Islanders. Cambridge: University Press.

Radcliffe-Brown, A. R. (1975). El método de la antropología social. Barcelona: Anagrama.

Radcliffe-Brown, A. R. (1973). Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes.

Lévi-Strauss, C. (1982). As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes.

Décima Lição: 27 de Dezembro - Claude Lévi-Strauss

 

                                           Claude Lévi-Strauss

 

Quem é Lévi-Strauss

Lévi-Strauss é, sem dúvida, o estudioso que primeiro aplicou a investigação estrutural (ver estruturalismo) à antropologia e, mais particularmente, às disciplinas histórico-sociais.

Lévi-Strauss começa a elaborar seu próprio método a partir da sua obra As estruturas elementares do parentesco. Nele afirma que o núcleo que organiza os sistemas de parentesco é a regra sobre a qual se baseiam os laços matrimoniais em diferentes culturas e sociedades. Para explicar esse facto, Lévi-Strauss recorre ao método estrutural, retirado da linguística e já experimentado no campo da fonologia.

Em controvérsia com a abordagem histórico-evolutiva, Lévi-Strauss atribui à antropologia a tarefa principal de definir as características dos diversos sistemas culturais, remontando-as a um conjunto restrito de princípios estruturantes.

Tal abordagem derruba radicalmente a perspectiva tradicional. Assim, a evolução social não se explica colocando em questão a vontade dos homens e suas intenções, mas por meio da lógica e da capacidade de evolução inerentes ao sistema, que representam propriedades objectivas das estruturas, não dependem dos indivíduos e permanecem fundamentalmente desconhecendo-os. .

Na prática do estruturalismo, como pretendia Lévi-Strauss, dois princípios fundamentais podem ser isolados:

 

1. Uma estrutura que faz parte do real, mas não das relações visíveis. Toda realidade étnica é, portanto, composta de estruturas que devem ser claramente distinguidas das relações sociais individuais que podem ser observadas empiricamente; essas estruturas elementares constituem um nível real, mas não directamente perceptível.

 

2. O estudo científico das realidades étnicas deve orientar-se para a determinação dessas estruturas e seu funcionamento: é o estudo sincrónico delas que dá conta do desenvolvimento histórico da sociedade e não o exame diacrônico de seu desenvolvimento que oferece uma explicação do estruturas presentes nas realidades étnicas.

Vida

Discípulo inconstante de Durkheim e filósofo por extração, abandonou a sociologia e a filosofia para se dedicar ao estudo das sociedades primitivas. Nascido na França em 1908, ele tem 96 anos. Graduou-se na Sorbonne em Paris Nascido em 1908 em Bruxelas de pais franceses, viveu em Paris, onde se formou em filosofia em 1931; em 1935 ganhou um concurso como funcionário da embaixada francesa no Brasil, encarregado do património cultural mudou-se para o Brasil, onde permaneceu até 1939, realizando expedições à Amazônia e Mato Grosso. Renúncia à carreira diplomática para estudar as populações ao estado primitivo. Claude Lévi-Strauss é sem dúvida um dos grandes pensadores do século XX. Nasceu em 1908 e depois de estudar filosofia, voltou-se para a etnologia: em 1935, partiu para o Brasil como professor de sociologia na Universidade de São Paulo. Nos anos seguintes, estudará as tribos indígenas da Amazônia. É a história de suas viagens dentro dessas sociedades ditas 'primitivas' que ele contará, em 1955, no livro que o tornou famoso, Tristes Tropiques .

Em 1939 voltou para a França, depois por causa da ocupação alemã refugiou-se nos Estados Unidos, onde lecionou em Nova York, entrou em contato com a antropologia americana e fez amizade com Jakobson, Kroeber e Lowie e Franz Boas que assistiu nos últimos momentos da sua morte.

Lévi-Strauss etnógrafo

 Considera-se estas expedições como representativas daquele momento de passagem, que se pode chamar um novo campo de racionalidade da antropologia, em que a cultura (material e simbólica, incluindo os diferentes campos de conhecimentos) passava a ser o objecto da sua prática científica. A primeira expedição realizou-se à Serra do Norte, Mato Grosso, em 1938, tendo terminado no Pará. Foi chefiada pelo, então, jovem etnólogo Claude Lévi-Strauss, que escreveu, como resultado, o famoso “Tristes Trópicos” (1955). Ele foi acompanhado do também pelo iniciante antropólogo do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Luiz de Castro Faria, que publicou, sessenta anos depois, o diário daquela viagem: “Um outro olhar. Diário da Expedição à Serra do Norte, Mato Grosso, 1938” (Castro Faria, 2001).

Obras

Retornando à França em 1948, em 1950 lecionou na École Pratique des Hautes Etudes e a partir de 1954 Antropologia Social no Collège de France; em 1973 foi eleito para a Academia Francesa. Suas principais obras são: As estruturas elementares do parentesco (1949), Tristi trópicos (1955), Antropologia estrutural (1958), Totemismo hoje (1962), O Pensamento Selvagem (1962, dedicado a Merleau-Ponty), Mitológico (O cru e o cozido, 1964, Do mel às cinzas , 1966-67; A origem das boas maneiras à mesa , 1968; O homem nu , 1971), Antropologia estrutural dois (1973) e Olhar de longe (1983).

Exilado em Nova York durante a guerra, entre 1941 e 1945, dedicou-se a uma reflexão teórica sobre os sistemas matrimoniais e fez disso o tema de sua tese, que sairia em 1949: as estruturas elementares do parentesco. Com este livro, e com os quatro volumes da série de Mitologias, ele adquire uma influência considerável e o estruturalismo de que é o teórico irradiará em todos os campos de pesquisa: entre filósofos, sociólogos, historiadores, bem como entre especialistas da área. história das religiões ou crítica literária.

Durkheim De Saussure e Mauss

Segundo Lévi-Strauss, a linguística de Saussure que ele estuda representa “a grande revolução copernicana no campo dos estudos humanos”, mas no fundo de seus estudos antropológicos está a tradição da escola de Durkheim. Ele havia mostrado que os fenômenos socioculturais não podem ser explicados como expressões de instintos ou escolhas individuais voluntárias e conscientes, mas em termos de representações coletivas. Os conceitos básicos da religião, como Deus, alma, espírito ou totem, têm sua origem na experiência com que os homens sentem a força e a majestade do grupo social e são produto de uma espécie de mente coletiva. Aluno de Mauss Seguindo o estudo das representações coletivas, o aluno e sobrinho de Durkheim, Marcel Mauss (1872-1950), havia identificado, no Ensaio sobre o dom (1924), a tríplice obrigação, enraizada na mente, na base da troca arcaica, humana, dar, receber e retribuir, que é um princípio de reciprocidade, do qual dependem as relações de solidariedade entre indivíduos e grupos, através da troca de dons preciosos. Ligado a esses problemas está o trabalho fundamental de Lévi-Strauss,

 

Organização social e parentesco (1947)

1949 Estruturas elementares de parentesco

Natureza e cultura: a questão da proibição do incesto.

Claude Lévi-Strauss mudou a etnologia contemporânea e criou um método associando análise estrutural e contribuição psicanalítica, para interpretar os mitos, descobrir os sistemas de pensamento ou explicar o funcionamento social. Em 'As Estruturas Elementares do Parentesco', o autor analisa a proibição do incesto como meio positivo de assegurar a comunicação e o intercâmbio das mulheres entre os grupos, e vê nisso o critério de passagem da natureza à cultura.

As estruturas elementares do parentesco é o título da tese defendida por Claude Lévi-Strauss defendendo a teoria da aliança. Constitui uma obra significativa graças à qual se tornou doutor de estado. Com a ajuda pontual do matemático André Weil ele traz à tona o conceito de estrutura elementar de parentesco, baseado na noção do Grupo de Klein . Desde então, passam a ser associados a esse tipo de estrutura: sistemas que prescrevem ou preferem casamentos com um tipo de pai; os sistemas que determinam cada membro do grupo como pai, com a distinção de cônjuges possíveis ou proibidos. Essas estruturas incluem duas modalidades principais de casamento: casamento simétrico ou troca restrita; casamento assimétrico ou troca generalizada. O que distingue o homem do animal? O homem não é apenas um ser natural (biológico), mas um ser cultural, ou seja, vive em sociedade. Lévi-Strauss argumenta que tudo o que é universal é natural no homem, e o que depende da regra, da norma, é cultural. (a antiga oposição dos gregos entre φυσει e νομω). O homem é, de fato, o único ser que impõe normas a si mesmo, que exige norma por norma.

Proibição do incesto

Como as culturas são diferentes, as normas são diferentes. Mas um facto chamou a atenção dos antropólogos antes de Lévi-Strauss: existe uma norma universal, uma proibição universal, a do incesto. As tentativas de explicação foram avançadas. Por exemplo, vimos uma forma de princípio da lei natural: o homem prova uma repugnância natural à ideia de se casar com a mãe ou o pai. Através da análise do complexo de Édipo, Freud nos disse que essa primeira explicação não se sustenta. Também queríamos explicar a proibição do incesto com a existência de riscos genéticos: casamentos entre parentes aumentam o risco de doenças. Mas esses riscos não são grandes o suficiente para serem empiricamente visíveis e só podem ser conhecidos em sociedades onde a biologia científica se desenvolveu, mas não é o caso das sociedades ditas primitivas.

Deve-se acrescentar também que se a proibição do incesto é universal, a definição de incesto varia de acordo com o grupo considerado. Em algumas sociedades, por exemplo, o casamento entre primos cruzados (casar com a filha do irmão da mãe ou com a irmã do pai) é permitido enquanto entre primos paralelos (casar com a filha do irmão do pai ou da irmã da mãe) é estritamente proibido. . Aqui, no entanto, o risco genético é idêntico em ambos os casos.

Com sua universalidade, a proibição do incesto parece depender da natureza, mas com a diversidade de suas modalidades, com o fato de descender da norma, parece antes depender da cultura.

Cultura versus natureza

Natureza-cultura. A partir dessa relação parental, todas as irmãs da mãe são mães, assim como todos os irmãos do pai são pais, também existem as relações familiares. Levy Strauss estabelece que entre as regras da família Bororo estão estabelecidas, entre as quais a proibição de acasalamento, só se pode casar com certas pessoas. Essa é uma conquista que fundamenta os relatos de parentesco. Lévi-Strauss vê nesse contexto a dialéctica particular entre natureza e cultura: o que faz do homem natural um ser cultural. O que importa na proibição do incesto é menos o aspecto da proibição contido na lei do que a obrigação do corolário que ela acarreta: não ter o direito de casar com alguém da família implica a obrigação de casar com alguém de outra família. O casamento aparece então como uma troca, uma troca que constitui a base social aos olhos de Lévi-Strauss. Mas um fato complica as coisas. No casamento 'não se recebe daquele a quem se dá, e não se dá a quem se recebe. Cada um dá a um parceiro e recebe de outro ». Na realidade, existem ciclos muito complexos que trazem o equilíbrio das trocas apenas ao final de muitas gerações. Lévi-Strauss desenvolve as estruturas elementares do parentesco ao demonstrar que, globalmente, a troca se realiza sempre ao fim de algumas gerações. Assim, em algumas sociedades um homem não tem o direito de se casar com qualquer mulher. Alguns muito próximos são proibidos para ele (é a norma da exogamia). Mas muitas vezes acontece que o homem tem que escolher sua esposa dentro de um círculo bem definido (é a norma da endogamia). Não há, portanto, escolhas deixadas à iniciativa pessoal.

Para entender melhor o que é uma estrutura de troca, vamos tomar como exemplo um sistema de relacionamento, o do Aranda na Austrália. Esta sociedade está dividida em quatro grupos (que chamaremos de A, B, C e D), cada um destes grupos que se dividem em

dois: A1, A2, B1, B2, C1, C2, D1 e D2). Existem, portanto, 8 grupos no total. Cada indivíduo pertence a uma dessas oito classes e só pode se casar em uma classe. As regras de casamento e filiação podem ser estabelecidas na tabela

Se um homem pertence à seção a) ele se casa com uma mulher da seção b) os filhos pertencem à seção c):

 

a) b) c)

A1 B1 D2 D2

A2 B2 D1 D1

B1 A1 C1 C1

B2 A2 C2 C2

C1 D1 B1 B1

C2 D2 B2 B2

D1 C1 A2 A2

D2 C2 A1 A1

 

À primeira leitura, nossa tabela parece ininteligível. No entanto, pode-se extrair um modelo esclarecedor que explica bem uma estrutura de troca: (veja a tabela ao lado)

Troca matrimonial

Há dois ciclos de mulheres sem comunicação (cada menina pertence à mesma classe que sua bisavó) e quatro ciclos de homens também sem comunicação (cada menino pertence à mesma classe que seu avô). Tudo se desenrola de uma forma que cada grupo recebe tanto quanto dá. Veja como é esclarecedor o desenvolvimento da estrutura.

É preciso ver que as estruturas de troca transcendem o indivíduo e o fazem agir inconscientemente. O indivíduo da empresa Aranda ignora por que deve cumprir essas obrigações. É o etnólogo que faz parecer que a estrutura de troca obriga a casar neste ou naquele clã.

A troca matrimonial é certamente apenas uma das trocas sociais. Você também pode trocar palavras (e a linguagem também define o homem, segundo Lévi-Strauss) e mercadorias. Mas o aspecto económico do comércio prevalece apenas em nossas sociedades. Em muitas sociedades, parece secundário à troca simbólica. Em muitas sociedades existe uma verdadeira economia da dádiva que implica tanto a obrigação de dar (sob pena de desprezo social), como a de receber (um presente recusado é sinal de desprezo) e finalmente a obrigação de retornar no final de um determinado tempo (e, portanto, estabelecer a troca). O presente transforma o outro em parceiro e agrega um novo valor simbólico ao objeto dado. Permite que grupos potencialmente hostis mantenham relações pacíficas.

As estruturas elementares do parentesco. Seu objetivo é identificar a lógica subjacente a todos os sistemas de parentesco além de sua variedade, ou seja, a estrutura invariante em relação à qual todos eles são transformações. Segundo Lévi-Strauss, a proibição do incesto é a base de todos os sistemas matrimoniais, que impedem a consanguinidade: o uso de uma mulher, proibido dentro do grupo parental, torna-se disponível para outros. Graças à proibição do incesto, torna-se possível a troca de um bem precioso, a mulher, entre grupos sociais e, portanto, o estabelecimento de formas de reciprocidade e solidariedade que garantem a sobrevivência do grupo. Estas são as relações invariáveis ​​necessárias em toda sociedade, à luz das quais se torna possível estudar as várias formas que assumem as relações de parentesco, identificando duas categorias essenciais de sistemas matrimoniais,

1) a troca limitada, entre primos, de tipo prescritivo,

2) e a troca generalizada, tipo preferencial. .

Átomo de parentesco = unidade parental mínima sem a qual nem endogamia, nem exogamia nem parentesco são possíveis

1) mãe

2) pai

3) filho

4)  irmão da mãe

a. representa o grupo que desistiu da mulher

b. tem autoridade sobre o bana ba nkazi

As estruturas elementares de parentesco são sistemas que prescrevem o casamento com alguns e o proíbem com outros.

A estrutura mais básica é

1) casamento entre primos cruzados: é o modelo porque concorda com o modelo de sociedade dualista

2) organização dualista: dicotomia no grupo que sempre encontra esposa no grupo de parceiros

 

A antropologia, como a geologia, a psicanálise, o marxismo e sobretudo a linguística, torna-se assim uma ciência capaz de apreender as estruturas profundas, universais, intemporais e necessárias, para além da superfície dos acontecimentos, sempre enganadora, e para além da aparente arbitrariedade dos elementos que compõem cada sociedade

Estrutura

Com a análise estrutural, Lévi-Strauss aplica um tratamento matemático aos fatos sociais dos quais deve derivar a formulação da lógica interna dos modelos culturais. Ao identificar esta lógica, é possível chegar a um conhecimento autêntico do corpo social, permitindo-nos antecipar observações ou mesmo prever com raciocínio factos que podem então ser verificados. A aplicação do método estruturalista ao estudo dos mitos é de particular importância. Essas estruturas são acessadas não pela descrição puramente empírica das diversas situações factuais, mas pela construção de modelos. São sistemas de relações lógicas entre elementos, sobre os quais é possível realizar experimentos, ou transformações, a fim de identificar o que escapa à observação imediata. Os modelos nunca têm uma correspondência perfeita com a realidade, mas também não são simples constructos puramente subjetivos ou dotados apenas de valor metodológico: têm valor objetivo, porque evidenciam as estruturas que formam a espinha dorsal lógica da realidade.  A estrutura, de fato, não é uma forma pura e simples, mas 'é o próprio conteúdo capturado em uma organização lógica concebida como propriedade da realidade'. Um arranjo de partes constitui uma estrutura, quando é um sistema regido por uma coesão interna, que se manifesta quando suas transformações são estudadas, não históricas, mas de acordo com regras lógicas: graças a esse estudo, é possível rastrear propriedades semelhantes em sistemas aparentemente diferentes.

Definição de estrutura

Para definir uma estrutura, é preciso colocar-se, como faz a linguística, no nível das regras gramaticais e sintáticas, não no do vocabulário, ou seja, dos elementos isolados. Nesse sentido, a estrutura de que fala Lévi-Strauss é distintamente diferente da estrutura

1) estrutura social, de que falam os antropólogos britânicos, em primeiro lugar Alfred Radcliffe-Brown (1881-1955), para quem é o conjunto de relações sociais, empiricamente observáveis, entre indivíduos, que permitem o seu funcionamento e estabilidade. Para RB, a estrutura é o elemento básico interligado em uma rede de relações sociais.

2) Segundo Lévi-Strauss, porém, a estrutura é uma categoria do espírito. O pensamento humano funciona graças à oposição de termos como

a. Alto-baixo

b. Direita - esquerda

c. Cru - cozido

 

Basta ver a maquete da aldeia Bororo.A vila circular de Kejara é tangente à margem esquerda do Rio Vermelho. Este flui aproximadamente na direção leste-oeste. Um diâmetro da aldeia, teoricamente paralelo ao rio, divide a população em dois grupos: os Cera ao norte, os Tugarè ao sul. Parece que o primeiro termo significa 'fraco' e o segundo 'forte'. Seja como for, a divisão é essencial por dois motivos: primeiro, um indivíduo sempre pertence à mesma metade de sua mãe; em segundo lugar, ele só pode se casar com um membro da outra metade. Se minha mãe é Cera, eu também sou e minha esposa será Tugarè.

As mulheres vivem e herdam a casa onde nasceram. Na época de seu casamento, um nativo macho atravessa a clareira, ultrapassa o diâmetro ideal que separa as duas metades e se instala do outro lado. A casa dos homens temperou esse distanciamento porque sua posição se estende pelo território das duas metades. Mas as regras de residência explicam que a porta que leva à área de Tugarè se chama Porta Cera. De fato, seu uso é reservado aos homens e todos os que residem em um setor são originários do outro e inversamente.

O princípio das metades não rege apenas o casamento, mas também outros aspectos da vida social. Sempre que um membro de uma metade se encontra exercendo ou cumprindo um dever, isso é feito em benefício ou com a ajuda da outra metade. Assim, os funerais de um Cera são suportados pelos Tugarè e reciprocamente. As duas metades da aldeia são, portanto, companheiras no mesmo jogo, e todos os atos sociais e religiosos envolvem a assistência da outra parte, que desempenha o papel complementar ao por ela apoiado. Esta colaboração não exclui a rivalidade: há um orgulho da metade a que se pertence e há ciúmes mútuos.

Imaginemos então uma vida social a exemplo de dois times de futebol que, ao invés de tentarem contrastar suas respectivas estratégias, se dedicaram a servir um ao outro e mediram a vantagem pelo grau de perfeição e generosidade que cada um conseguiu alcançar.

Passemos agora para um novo aspecto: um segundo diâmetro, perpendicular ao anterior, corta a metade novamente ao longo de um eixo norte-sul. Toda a população nascida a leste deste eixo é chamada de 'a montante', e a que nasce a oeste é chamada de 'a jusante'. Em vez de duas metades, temos, portanto, quatro seções, o Cera, o Tugarè pertencentes ao mesmo título, metade de um lado e metade do outro.

Além disso, a população é agrupada em clãs. São grupos de famílias que se consideram parentes pelo sexo feminino, a partir de um ancestral comum de natureza mitológica.

Como se as coisas não fossem complicadas o suficiente, cada clã compreende subgrupos hereditários, sempre na linha feminina. Portanto, existem famílias 'vermelhas' e outras 'pretas' em todos os clãs. Além disso, parece que ao mesmo tempo cada clã foi dividido em três níveis: superior, médio e inferior.

É composto por três seções uma

1) topo

2) médio

3) inferior

as trocas matrimoniais ocorrem nesses três níveis não comunicantes, a sociedade é fundada nesses três níveis, essa é a estrutura que se esconde por trás desse modelo

As instalações são

1) Inconsciente, o fenômeno empírico é apenas uma combinação de elementos logicamente possível: para explicá-lo, é necessário reconstruir preliminarmente o sistema global do qual ele é apenas uma variante. Da escola durkheimiana, Lévi-Strauss retoma a ideia da natureza psíquica dos fatos sociais: são sistemas de ideias objetivas, ou seja, de categorias que juntas constituem o espírito humano em sua universalidade, mas esses sistemas não são conscientes. mas elaborações inconscientes. O fundamento último é dado pelo espírito humano inconsciente, que se revela através dos modelos estruturais da realidade

2) livre de conteúdo

 O objetivo da antropologia passa então a ser a contemplação da arquitetura lógica do espírito humano, para além de suas muitas manifestações empíricas. A atividade inconsciente coletiva tende a favorecer uma lógica binária, ou seja, uma lógica que constrói categorias por meio de contrastes ou oposições binárias. No que diz respeito à linguagem, a fonologia mostrou que na base do sistema de sons significativos existe um pequeno número de sistemas de contraste. A oposição binária é aquela que funda todas as outras, seja qual for o nível em que se situa a representação. E é esta atitude que faz o homem passar do estado de natureza ao de cultura. Os dados fundamentais e imediatos da realidade mental são

1) dualidade

2) alternância

3) oposição

4) simetria

Esse mesmo tipo de lógica também preside à construção dos mitos. Os mitos segundo Lévi-Strauss não são expressões de sentimentos ou explicações pseudocientíficas de fenômenos naturais ou reflexos de instituições sociais, mas também não são nem mesmo sem regras lógicas. Como é possível explicar o fato de que os conteúdos dos mitos são contingentes e parecem arbitrários, embora tenham fortes semelhanças em diferentes regiões do mundo? Segundo Lévi-Strauss, a resposta está no fato de que o mito é a expressão da atividade inconsciente do espírito humano e se estrutura como uma linguagem. Assim como a função significativa de uma linguagem não está diretamente relacionada aos sons, mas à maneira como os sons se combinam entre si, também os mitos são formados por unidades constitutivas mínimas, cujas combinações ocorrem segundo regras precisas e dão origem a significados. unidades (fonemas). Nesse sentido, os mitos não são criações puramente individuais e a tarefa de um estudo científico dos mitos é mostrar não como os homens pensam e constroem os mitos, mas “como os mitos são pensados ​​nos homens, e sem seu conhecimento”.

Vita familiar e Sociale dei Nambikwara (1948)

Como todo etnólogo, Lévi-Strauss começa escrevendo uma monografia dedicada a uma população com quem conviveu e que estudou no campo com o método de observação participante, os Nambiquara de Mato Grosso no Brasil central; ele fará um relatório sobre sua estadia nos Tristes Trópicos. Mas sua ambição é maior, ele quer fazer a sociologia comparada funcionar apresentando 'uma introdução a uma teoria geral dos sistemas de parentesco'. Para ele, é a proibição do incesto que fundamenta a possibilidade de qualquer sociedade, pois essa proibição

1) tanto para a natureza um fenómeno universal

2) do que à cultura. Por que governar

 As soluções para satisfazer essa proibição definem a natureza da troca matrimonial, que é 'a transição do fato natural da consanguinidade para o fato cultural da aliança'. As estruturas elementares de parentesco podem ser produzidas pela troca restrita, com a qual as mulheres de um grupo são dadas aos homens de outro grupo e reciprocamente, ou pela troca generalizada, que envolve muitos grupos. Impedir o acesso às mulheres do seu próprio grupo significa torná-las disponíveis para outros grupos. Graças a uma cultura etnográfica impressionante (que também diz respeito aos sistemas indiano e chinês), o antropólogo demonstra que a troca generalizada é a norma da troca.

Lévi-Strauss, à primeira vista, coloca-se em dois registros.

1) Enfatiza, antes de tudo, uma síntese teórica e analítica do parentesco. É com a troca de mulheres entre grupos específicos que a sociedade e a raça humana são construídas e perpetuadas. E a exogamia se apresenta como expressão ampliada da proibição do incesto, permitindo que grupos humanos estabeleçam relações comunicativas

2)  O segundo campo de investigação é muito mais ambicioso, pois propõe um novo método, inspirado na fonologia estrutural (ou fonêmica, é um ramo da linguística que estuda como os sons de uma língua se organizam para formar enunciados. ) e também à psicanálise, para explicar os mecanismos simbólicos e, consequentemente, sociais.

3) É na realidade a uma teoria geral da troca e da comunicação que o antropólogo visa: troca de signos, mulheres e bens e assim permitir, com combinações estruturadas, construir inconscientemente relações sociais de natureza religiosa (mitos e rituais), e familiar.

Fortalecido por sua experiência e conhecimento da antropologia americana e anglo-saxônica, Lévi-Strauss dissemina essa disciplina na França e conclui que 'o antropólogo é o astrônomo das ciências sociais: ele se compromete a descobrir o significado comum de fenômenos muito diferentes, com respeito à sua ordem de grandeza e distância, em comparação com aqueles que afetam o observador de perto ». Mais tarde, Lévi-Strauss dará à sua conduta científica o nome de 'antropologia estrutural'.

Existe uma estrutura fundamental que ocorre tanto no casamento entre primos quanto nas regras da exogamia, essa estrutura de troca é a reciprocidade. Para compreendê-lo, é preciso referir-se às estruturas fundamentais do espírito. Este princípio vem do inconsciente ele atua

1)  com a transição da natureza para a cultura

2)  datado com a proibição do incesto e a obrigação da exogamia

 Para Lèvi-Strauss, por exemplo, a universalidade da proibição do incesto torna-se compreensível se colocada em relação ao conceito de reciprocidade. Privar-se das próprias mulheres, na verdade, significava abrir um canal de comunicação com outros grupos que, pela regra da exogamia, assegurava o estabelecimento de relações de comunicação contínuas entre os diferentes grupos, relações baseadas no princípio da reciprocidade.

O antropólogo Claude Lévi-Strauss foi quem, com o uso do modelo da linguística estrutural nas investigações de estruturas e mitos de parentesco e com suas teorias gerais sobre o conceito de estrutura, mais contribuiu para a formulação e disseminação do que se convencionou chamar de O estruturalismo de Levy Strass dá uma virada na metodologia e na análise antropológica

1)  ILLUMINISMO via o outro como objeto de curiosidade primitivo e exótico, o bom selvagem é extremamente diferente

2)  Romantismo e Hegel com a fenomenologia do espírito, veja em termos evolutivos quem é mais ou menos civilmente desenvolvido

3)  Boas e os americanos dizem não! Cada realidade cultural tem sua própria história, diferente de outra cultura (relativismo), fruto de uma concepção científica típica da relatividade de Einstein

4)  Malinowski estuda a cultura como um organismo vivo: aceitamos Trobrianders com o kula seu sistema cultural é funcional: a sociedade é um organismo social é um conjunto de instituições, funciona como um motor, o motivo é o kula

5)  Radcliffe Brown: família, escola e estado são estruturas sociais A ideia de compreender e evidenciar os mecanismos pelos quais uma sociedade funciona e se perpetua ao longo do tempo é a base do paradigma de A.R. Radcliffe Brown, sobre o estudo da Andamanese, de Evans-Pritchard sobre os Nuer, de Fortes sobre os Tallensi.

No entanto, esses tipos de estudos podem ser considerados de tipo estrutural, voltados, ou seja, ao estudo de uma estrutura social trazida à luz diretamente pela realidade observável, e não estruturalista, que tende a ir além dessa esfera da realidade para busca de estruturas ocultas (as estruturas inconscientes), capazes, ao contrário, de explicar as reais motivações por trás dos fenómenos sociais. A escola, por exemplo, é uma estrutura um aparato que determina o andamento da formação institucional do indivíduo. Em todo este sistema de história, o fio condutor é a descrição histórica, a observação participante, o relato antropológico, a transmissão do documento antropológico.

O problema é muito simples é a diversidade entre humanos e animais. Ambos estão na natureza, os homens superam os primatas e superam a condição de natureza para passar à de cultura. Através da elaboração e invenção simbólica da linguagem, os homens se comunicam. Uma elaboração simbólica muito mais elevada, mais complexa e mais ampla. damos o salto mortal triplo e quádruplo, somos animais na natureza com transição para uma complexa elaboração simbólica. Construímos cultura e o fazemos graças ao fato de termos um inconsciente em nossa mente que nos permite classificar a realidade, nosso computador nos permite ter um banco de dados, um programa que possui caixas e classificações dentro das quais as coisas podem ser relacionadas e comparadas . Quando Levy Strauss se propõe a estudar os Bororo como eles conhecem e reconstruir a realidade, esse não é um problema que pertence à história da cultura. As formas de conhecer e organizar a realidade não são problemas que dizem respeito à história, se quero conhecer o jogo de xadrez não tenho que estudar a história do jogo mas as regras que devem ser aplicadas.

«Também os jogos complicados como os de cartas e o de dama ou de xadrez, nos quais o número de combinações, teoricamente finito,  é tão elevado que, para todos os fins úteis e colocando-se na escala humana  tudo se passa como se fosse ilimitado. Em princípio, esses jogos são indiferentes à história lá, porque as mesmas configurações sincrónicas e diacronicas poderia reaparecer mesmo que fosse depois de milhares de anos, desde que os jogadores imaginários se dedicassem à eles. enquanto permanecer imerso em tornar-se o conjunto de suas combinações é muito grande para ser atualizado a não ser em fragmentos» (Lévi-Strauss , 1982, p. 37).

Devo me perguntar o problema da estrutura da mente humana que funciona de acordo com constantes funcionais. Eu recebo o quadrado de um binômio com regras apropriadas, se eu quiser resolver uma equação de segundo grau eu tenho que aplicar as regras particulares que me permitem prosseguir. Eu tenho que passar de uma abordagem metodológica ideográfica histórica diacrônica variável para uma abordagem nomotética. Então, se eu quiser estudar uma empresa como a Bororo, tenho que destacar sua estrutura, não sua história. O fenómeno de Muxima é estudado não apenas fazendo história, mas descobrindo por que os homens peregrinam. São elementos estruturais que determinam a instituição da peregrinação  em todas as culturas. Existe um aparato mítico segundo o qual Deus descansa após 6 dias, não apenas no mundo judaico, mas também em outros contextos culturais. Levy Strauss faz uma grande mudança cultural metodológica, retomada hoje por Geertz na antropologia interpretativa.

Levy Strauss coloca um problema iluminista como os homens sabem? Apreende o sistema cognitivo dos homens e recupera a problemática de tipo kantiano: como os homens sabem. A abordagem estruturalista é a mais adequada. A história também é necessária, mas sobretudo a constante estrutural funcional e não a variável histórica, para identificar a constante kantiana: o conhecimento é uma síntese entre sensações e categorias. Não conhecemos a essência, mas o fenômeno. Levy Strauss não está interessado em história mas quer conhecer o númeno que é a constante funcional, parte disso para dizer que para conhecer, os homens rotulam tudo de acordo com a cultura, através da simbolização, dão um nome e passar da natureza para a cultura. Dependendo da cultura, o nome muda. O significante é variável e serve para estabelecer uma relação com o significado e classificar a realidade como pessoas, sujeitos, coisas. No processo de classificação que os homens estabelecem entre as elaborações simbólicas mais importantes que os homens fazem para passar da natureza à cultura, há uma constante universal, a da elaboração do tabu do incesto. A primeira classificação é o parentesco. Ou seja, as relações parentais (pai-mãe). A primeira relação é com a mãe e seu sexo, onde flui o leite (o primeiro alimento cru), onde não há intermediação do cozimento.

Pensamento selvagem

Desde meados da década de 1940, Lévi-Strauss manifestará a intenção de interpretar a vida das sociedades e culturas em termos de lógica inconsciente. Não há mais oposição, como disse Levy Bruhl entre

1) ensamento pré-lógico  pensamento lógico

2) pensamento místico  pensamento racional

3) pensamento primitivo pensamento civilizado

As leis do pensamento são as mesmas porque todos têm as mesmas estruturas através da linguística estrutural entendeu-se que os fenómenos fundamentais da vida do espírito, aqueles que a condicionam e determinam, são colocados no plano do pensamento inconsciente. O inconsciente é o mediador entre mim e os outros. Certamente, hoje às vezes é difícil separar essa perspectiva daquela do método, tanto analítico quanto explicativo, chamado estrutural. Mas é óbvio que as propriedades do que ele descreverá como 'pensamento selvagem' são tanto estruturadas quanto estruturantes. A primazia da forma inconsciente advém do fato de ela funcionar como linguagem, portanto, como estrutura, mas também pelo fato de expressar uma forma de leitura, senão de construção, do mundo. Essa visão, talvez sumária e metafórica do papel do inconsciente, explica-se pela própria natureza da realidade, institucional (parentesco) ou material (estética dos objetos), sobre a qual trabalha o antropólogo.

Quando Lévi-Strauss se dedicou, desde 1955, à estrutura dos mitos, é a análise do fenômeno totêmico, e em particular a crítica das teorias vítimas da 'ilusão' que ele representa, que o levará a utilizar , em 1962, a expressão do 'pensamento selvagem'. Use esta frase ironicamente porque não indica

1) rozzo

2) grossolano

3) que mal entende

mas um pensamento fundado nas mesmas operações lógicas que o civilizado constitui a base comum sobre a qual todas as expressões do pensamento tomam forma.

  descrever o funcionamento do pensamento no estado bruto, 'natural', 'selvagem' de alguma forma, como o que também pode ser observado nas sociedades em que o pensamento científico se desenvolve, e não qualificar apenas o do chamado selvagem povos. Esse pensamento é 'racional': seus propósitos explicativos têm um significado científico. De facto, o pensamento selvagem

«codifica, isto é, classifica rigorosamente – contando com oposições e contrastes – (casais opostos) o universo físico, a natureza viva e até o homem quando se expressa por meio de suas crenças e instituições. Encontra seu princípio em uma ciência do concreto, uma lógica de qualidades sensíveis como a encontrada em algumas atividades como a bricolagem ».

Essas reflexões são ao mesmo tempo a conclusão de mais de quinze anos de pesquisa e a manifestação de uma preocupação que, há trinta anos, se identifica cada vez mais com a obra de Lévi-Strauss, a da análise dos mitos indígenas da América - uma análise que leva a um questionamento sobre o estatuto do etnólogo e seu método, duplo, 'mito-poético' do objeto que estuda.

 Os elementos da reflexão mítica são colocados a meio caminho entre imagens ligadas à percepção e conceitos, de modo que o pensamento mítico permanece ligado às imagens, mas, trabalhando com analogias e comparações, pode dar origem a generalizações e construir novas séries combinatórias de elementos básicos, que permanecem constante. Dessas estruturas, o pensamento mítico utiliza para produzir um objeto que tem a aparência de um conjunto de eventos, ou seja, uma história. Em particular, o sistema mítico e as representações que ele suscita estabelecem correlações entre condições naturais e condições sociais e elaboram um código que permite passar de um sistema a outro de oposições binárias pertinentes a esses planos. O material é fornecido pelas classificações, por exemplo, de animais e plantas, que tanto participam do pensamento primitivo: elas não estão apenas ligadas à necessidade prática de permitir uma melhor satisfação das necessidades, mas surgem da necessidade intelectual de introduzir um princípio da ordem no universo. Nesse sentido, Lévi-Strauss afirma, em O Pensamento Selvagem,

1)  a existência de um pensamento autêntico mesmo nos primitivos, que é a base de todo pensamento e

2) Não é uma mentalidade pré-lógica, como defendia Lucien Lévi-Bruhl (1857-1939), caracterizada exclusivamente por uma participação afetiva e mística com as coisas, claramente distinta do pensamento lógico.

3)  A única diferença, segundo Lévi-Strauss, se dá pelo fato de que o pensamento 'selvagem', como também se expressa nos mitos, está mais ligado à intuição sensível e, portanto, mais atento à salvaguarda da riqueza e variedade de coisas e memorizar. O último capítulo de O pensamento selvagem é uma polêmica contra a Crítica da razão dialética de Sartre. Ao definir o homem a partir da dialética e da história, Sartre de fato privilegiou, segundo Lévi-Strauss, a civilização ocidental isolando-o de outros tipos de sociedades e de povos 'sem história'. Em Raça e História, Lévi-Strauss reconheceu que toda sociedade vive na história e muda, mas que diferentes são as maneiras pelas quais várias sociedades reagem a isso. As sociedades primitivas sofreram transformações, mas depois resistem a tais modificações: nesse sentido, são sociedades frias, ou seja, com baixo grau de temperatura histórica, e sua história é fundamentalmente estacionária. Distinguem-se, portanto, de sociedades calorosas, como a ocidental, perpetuamente em fluxo e caracterizadas por uma raia cumulativa, que tem os conflitos como custo de sua instabilidade. Olhando para o futuro, Lévi-Strauss espera uma integração entre esses dois tipos de sociedade e as formas correspondentes de cultura e pensamento. Ele, portanto, rejeita qualquer forma de etnocentrismo, pois cada cultura realiza apenas parte do potencial humano. Isso significa abandonar todas as formas de humanismo e estoicismo, ou seja, rejeitar a equivalência, dominante no mundo ocidental, entre as noções de história e humanidade: a história é apenas uma das escolhas possíveis que os homens podem fazer.

Os homens primeiro trocam palavras para se entenderem. LS trata da complexidade de um tema que será publicado em O pensamento selvagem [1962] a troca se dá por meio de sistemas simbólicos de comunicação a partir da divisão feita por DE SAUSSURE entre significado e significante. Um determinado conteúdo cultural é elaborado em um nível mental e comunicado aos indivíduos pela sociedade. Isso se torna uma herança cultural e social, uma herança coletiva, a concepção da transição das palavras individuais para a linguagem coletiva. Tudo isso foi levado em conta no pensamento selvagem, onde LS elabora a teoria do inconsciente estrutural estabelecendo a homologia entre

ordem formal

Estrutura mental

ordem objetiva

Estrutura social que ordena a realidade desordenada

Conheço a realidade como a ordeno, faço com que a realidade da planta corresponda ao nome que lhe dou. Primeiro vêm as estruturas sociais, uma ordem simbólica que se torna homóloga: ex. pai, irmão. A sociedade é estruturada e organizada por essas estruturas mitopoéticas do inconsciente coletivo (que produzem simbologias míticas) mais próximas do homem, são produzidas em nível inconsciente e também são classificadas. A desobediência de Adão e Eva é assumida e retomada e tornada sua por Cristo que se torna homem conhecido, na morte assume o negativo e o transforma em pecado original, superando a situação das criaturas. Este é um exemplo de uma elaboração mítica e de um mitema, de uma estrutura que se aplica a uma realidade. Os mitos são conteúdos culturais que se explicam, são um rótulo de si mesmos, isso se refere ao processo de mitopoiese que os homens realizam em seu encontro com a natureza reelaborada e reapresentada na cultura. Aqui está a primeira grande dicotomia e par opositivo fundamental: natureza-cultura presente em todos os sistemas culturais e em particular no totemismo, onde dissemos que os homens pensam em opostos, e pensando em opostos eles organizam mentalmente a realidade, classificam-na, esse processo organizacional de a mente é possibilitada pelo inconsciente estrutural, lembramos que Durkheim havia falado do inconsciente coletivo enquanto em Levy Strauss há o encontro estrutural e há uma homologia entre ordem formal e estrutura mental e a ordem das estruturas sociais ou realidade que considerada e classificada pelos homens, a homologia é uma correspondência de fato quando pronuncio a palavra pai quero dizer a palavra pai. Por um lado, há esse sistema de elaboração conceitual e classificação da ordem social e da correspondência entre os símbolos: os famosos rótulos que cada um de nós dá, os nomes que um de nós dá às coisas e, sobretudo, ao grupo social em em que nos encontramos e a ordem mental. No entanto, o inconsciente estrutural e, portanto, a mente humana também produzem noções, rótulos, conceitos produzidos por uma função que não necessariamente classifica as coisas apenas como coisas conceituais, externas à realidade.

O Mito

Temos como objeto de nosso pensamento não apenas a realidade externa, mas também a realidade interna, o objeto da consciência, entre os objetos que a mente humana produz estão os mitos: Júpiter, o Olimpo do mundo clássico, os mitos que são comuns aos clássicos Olympus eles não têm correspondência de objeto. O que são mitos?

São uma produção do inconsciente estrutural que serve para se explicar: o mito nada mais é do que a palavra Júpiter que basicamente explica seu próprio significado sem que haja algo de objectivo que lhe corresponda: Júpiter, Netuno, Minerva, Juno, Apolo, Mercúrio são uma classificação mítica produzida pelo inconsciente estrutural.  Servem Para que? É a mente que explica seu próprio conteúdo. Eles se explicam. Não são explicações de uma realidade objectiva, mas são explicações de uma realidade da consciência, de uma realidade que é o próprio inconsciente estrutural, que se explica. Nos mitos estão os elementos fundadores dos próprios mitos: os elementos estruturais. Um mito é uma composição de elementos estruturais que são os mitemas. Torna-se fácil usar o sistema de nossa fé. Partindo da génese, tomamos o elemento mítico e paradigmático da árvore da ciência do bem e do mal que é uma expressão simbólica para justificar que não se pode gerir a procriação per se apenas com a sua vontade. Tudo isso em nossa concepção religiosa está se desenvolvendo e se complicando, não por acaso o elemento da árvore do bem e do mal porque tudo o que é bom redimido pela figura de Jesus A desobediência dos dois ancestrais. Jesus então o homem Deus redime na lógica da elaboração mítica. NB uma coisa é acreditar que outra é o ângulo dado a esses conteúdos uma divindade que se torna homem é redimida. Na história das religiões há outras humanidades que se divinizam e se humanizam, basicamente no budismo que pode ser considerada uma religião sui generis Deus, mesmo como exemplo de vida, Buda não é outro senão o filho do absoluto expresso simbolicamente e visivelmente pelo elefante branco que fecunda grávida uma princesa indiana, de quem nascerá Buda que fundará os sete caminhos da verdade . Voltando à mitopoiese, os mitemas são estruturas que estão ligadas entre si, estruturas culturais. Encontramos a resolução da desobediência de Adão e Eva com o cristianismo na figura de Cristo. O homem divino que assume os pecados da humanidade e os resolve com o sacrifício da cruz. Essas mesmas concatenações de mitemas e estruturas míticas são encontradas nas mesmas concepções religiosas de contextos religiosos mais simples ou mais complexos. Nem todos concordam com o budismo como religião, mas como uma escolha de vida.

Mitema

Os mitemas são aqueles elementos do mito que constituem as regras do jogo de xadrez, são elementos que ligados aos mitos se tornam constantes, dentro da grande dicotomia que existe entre natureza e cultura. É na contribuição entre natureza e cultura que se constroem os mitos. Porque constituem a explicação que o inconsciente estrutural, a mente dá de si mesma e do objeto de consciência que a mente estrutural tem de si mesma: o que no espiritismo se chama autoconsciência. É a consciência de si mesmo como objeto. Não exatamente como autoconsciência, e não apenas isso, mas refletindo sobre os objetos puros de nosso pensamento e, assim, dando as explicações que são os mitos.

Estruturas elementares de parentesco: teoria sobre

1) tabu do incesto

2) origens da cultura

3) troca matrimonial

uma prática que tem o caráter de universalidade por estar presente em todas as culturas e sociedades. A proibição do incesto marca a transição da natureza para a cultura. A exogamia permite que grupos humanos estabeleçam uma relação de comunicação baseada no princípio da troca mútua:

átomo de parentesco:

1) mãe

2) pai

3) filho

4) irmão da mãe

Estruturas elementares de parentesco def .: sistemas em que a nomenclatura permite determinar imediatamente o número de parentes consanguíneos e aqueles adquiridos semelhantes antes

Análise de mitos

Os mitos são constituídos por grandes unidades constitutivas chamadas mitos, os mitos são comparados aos fonemas da linguística.Os mitos têm importantes funções sociais relacionadas à coesão do grupo. O mitema tem sentido a partir da relação de correlação e oposição do mito com outros mitos, a função do mito seria oferecer mediações lógicas quando uma sociedade percebe oposições que parecem difíceis de superar. Uma vez que os mitemas foram isolados, as variáveis ​​podem ser estabelecidas dentro das diferentes versões. Os mitos são o resultado de um contínuo fazer e desfazer dos agregados que os compõem.

O pensamento mítico elabora estruturas. Lévi-Strauss mostra que o mito pode ser dividido em mitos, à maneira dos linguistas que dividem a linguagem em morfemas, unidades elementares. Uma vez classificados e relacionados os mitos, ele afirma que os mitos são jogos lógicos que mobilizam as estruturas universais do espírito humano. O mito vale mais para as estruturas subjacentes do que para os personagens que encena. Assim, 'se os mitos têm um significado, ele não pode ser referido aos termos isolados que entram em sua composição, mas à forma como esses elementos se combinam'.

Lévi-Strauss estabelece uma gramática geral dos mitos que não leva em conta diferenças de tempo, lugar, linguagem e visa explicar quase todos os mitos conhecidos. Busca mais definir o próprio pensamento mítico do que descobrir o significado de um ou mais mitos conhecidos. Pouco importa então se o mito tem ou não um sentido, o que importa é que o instrumento que o faz seja ele próprio suscetível de um estudo racional.

O universo dos mitos

De certa forma, os mitologemas são apenas a longa e complexa verificação da hipótese do pensamento selvagem, pois 'mitos significam o espírito que os elabora em meio ao mundo do qual ele próprio faz parte'.

1) Mitos não têm significado primário, nem em seu enredo nem em seu simbolismo.

a.

 2) É a sua interação com a natureza, bem como as relações entre eles (“os mitos são pensados ​​uns dos outros”) que lhes permitem produzir significados.

3) É, portanto, esse adiamento e essa comparação do mito (ou conjunto de mitos) com o mito que constitui a matéria-prima do antropólogo.

a. O ponto de partida é um mito dos índios Bororo do Brasil Central: o mito M1, conhecido como referência, do periquito e do ninho, chamado por Lévi-Strauss “ar do descobridor dos pássaros”;

b. a última, M813, 2.000 páginas adiante, é um mito Apinaye - etnia pertencente ao grupo linguístico jê da região amazônica.

c.  Entre os dois são relatados os mitos de mais de uma centena de populações, desde Guarany do sul do Brasil até Salishs do noroeste do Canadá.

O método de demonstração funciona em três níveis:

1) o de um dado mito,

2) o de um conjunto de mitos vizinhos com suas alternativas

3) e finalmente o de todos os mitos possíveis que validam a lógica estrutural e binária do pensamento selvagem graças aos procedimentos

a.  da oposição,

b.  homologia,

c.  de simetria,

d.  inversão ou novamente

e.  de equivalência.

A tarefa principal é, portanto, de natureza etnográfica,

1)  pois é preciso reconhecer com precisão as categorias empíricas (cru, cozido, podre, fresco, úmido, queimado etc.) que também se tornarão ferramentas conceituais.

2) A comparação sistemática, o uso de signos lógico-matemáticos (na forma de equações, transformações ou isomorfismos sobre os quais o antropólogo tem poucas ilusões) permitem identificar mitemas que validam esta ou aquela hipótese particular:

a. os mitemas são os menores elementos do mito, relatos curtos da sucessão de eventos na narrativa.

É claro que os mitos não são apenas máquinas abstratas; produzir um sentido: a origem da cozedura dos produtos alimentares, a razão desse hábito matrimonial, o local ritual desta ou daquela espécie, etc. Esse significado não parece evidente para quem produz ou transmite mitos; o trabalho de desconstrução, por um lado, o estabelecimento da cadeia referencial de elementos míticos e mitos, por outro, relaciona-se com o saber e “saber fazer” do antropólogo. A lógica mítica só existe porque o analista tenta reduzir ao máximo a incerteza.

Assim, os efeitos sociais e estéticos dos mitos são considerados, em certo sentido, secundários. No entanto, os cerca de mil mitos desta obra devolvem uma cultura pujante e um mundo intelectual de indiscutível originalidade. Resta-nos admirar o imaginário destas populações e a qualidade dos documentos etnográficos recolhidos por Lévi-Strauss.

História e etnologia

Neste trabalho, Lévi-Strauss observa que é necessário integrar o estudo de outras civilizações que não a nossa com uma abordagem completamente diferente, como a permitida pela etnologia.

Segundo Lévi-Strauss, a diferença fundamental entre história e etnologia não é nem de objeto, nem de finalidade, nem de método: elas têm o mesmo objeto (a vida social), a mesma finalidade (uma melhor compreensão do homem) e um método em que varia apenas a dosagem dos procedimentos de pesquisa.

História e etnologia distinguem-se sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a história organiza seus dados a partir de expressões conscientes, enquanto a etnologia o faz a partir das condições inconscientes da vida social.

Lévi-Strauss observa que na maioria dos povos primitivos é muito difícil obter uma justificação moral, ou uma justificação racional de um costume ou de uma instituição: mesmo quando há respostas, elas sempre têm o caráter de racionalização. As razões inconscientes para praticar um costume ou compartilhar uma crença são geralmente muito distantes daquelas com as quais o sujeito tenta justificá-las.

Segundo Lévi-Strauss, estudos etnológicos e linguísticos mostram que a atividade inconsciente do homem consiste em impor forma a um conteúdo, e essas formas são basicamente as mesmas para todos os indivíduos. Assim, basta descobrir a estrutura inconsciente sobre a qual repousa cada instituição, cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e costumes.

Como é possível chegar a essa estrutura inconsciente?

Segundo Lévi-Strauss, é aqui que o método etnológico e o método histórico se encontram.

Somente a história, mostrando as instituições em mudança, é capaz de destacar a estrutura subjacente.

A etnologia, por sua vez, tende a focalizar sobretudo o que não deriva da reflexão consciente. Seu propósito é alcançar um leque de possibilidades inconscientes para além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir.

Lévi-Strauss chega assim à conclusão de que a história e a etnologia necessariamente se referem e se integram em seus resultados. Somente a aplicação conjunta dessas duas disciplinas permite realizar a investigação moderna do homem.

 

Participou com outros antropólogos franceses: Françoise Héritier, Maurice Godelier, Pierre Bourdieu no grupo de antropologia marxista. Levy Strauss estudando o sistema mental e organizacional partindo do incesto como uma particularidade presente em diferentes culturas, deduz que a mente humana caminha em opostos. O homem nasce com o inconsciente coletivo e organiza a realidade em casais opostos à vantagem que os homens têm em atribuir à natureza a cultura que produz frutos crus:

1) cru-cozido

2) alto-baixo

3) masculino-feminino

4)  luz-escuridão

sistema de casais de oposição. Levy Strauss recupera o Iluminismo e o século XIX, na comunicação entre mim e o outro há uma elaboração simbólica. Nesse processo, Levy Strauss encontra troca e reciprocidade.

Trópicos tristes: livro de viagem

1) manifesta o ponto de partida de seu pensamento: oposição entre natureza e cultura

2) em busca do estado de natureza com uma nostálgica sensação emocional de perda

a.  sociedades frias que não produzem desequilíbrios internos e mecânicos

b.  sociedades quentes mais próximas do estado de natureza

tudo isso serve para demonstrar a perda da unidade entre o universo natural e o universo social, a perda da alteridade. Tristes trópicos porque foram devastados pelo colonialismo que não respeitava o outro.

Totemismo

derivação de totem, indica um complexo de crenças, costumes, regras sociais, obrigações e proibições, baseado na existência de uma relação particular de parentesco e, portanto, de proteção mútua, entre um grupo ou um indivíduo e uma espécie de animais, plantas, fenómenos naturais, paisagens, etc. Os laços de parentesco são estabelecidos entre descendentes humanos e não humanos do totem. O totemismo aparece, portanto, como um complexo sistema de ideias, símbolos e práticas, baseado na suposta relação entre um indivíduo ou grupo social e um objeto conhecido como 'totem', pertencente ao mundo natural fora do ser humano, ao qual o grupo está vinculado. considerar relacionado de alguma forma.

Associação entre

1) individual ou grupo

2) símbolo animal ou vegetal

 A relação totêmica, observada também na África, Oceania e Ásia, é muito difundida e viva principalmente entre alguns índios americanos e entre os aborígenes australianos. Nessas sociedades, o totem é muitas vezes considerado um companheiro ou ajudante com poderes sobrenaturais e, como tal, respeitado e às vezes reverenciado. A forma mais difundida de Totemismo é a de clã, extensão da família conjugal e agrupamento de parentesco unilateral, constituído por várias famílias, cujos membros estão ligados por um único progenitor do qual descendem em linha paterna ou materna. Se dois grupos têm o mesmo totem, eles se consideram intimamente relacionados e evitam casamentos entre eles para não contrair relações entre parentes de sangue. Daí a ligação entre o totem e o tabu, confirmada pela cessação periódica da proibição de tocar no totem, como na festa australiana Anticima (refeição sacrifical do totem). Muitas tribos colocam grandes postes com imagens esculpidas dos ancestrais do clã na frente das cabanas de famílias individuais. Os indivíduos de um grupo totêmico são considerados parcialmente identificados ou assimilados ao totem, ao qual se referem com nomes e símbolos especiais. A linhagem ou clã pode ser rastreada até um ancestral totêmico original, que se torna o símbolo do grupo e, exceto em ritos particulares, não pode ser morto, nem comido, nem tocado. O totem constitui, portanto, uma espécie de árvore genealógica, cujas figuras devem ser lidas de baixo para cima, ou dos parentes mais próximos do progenitor. Poucos conceitos antropológicos sofreram transformações tão radicais como o do totemismo.

1) Após a introdução do termo totemismo por J. Long (1791) e os primeiros estudos informativos, a partir de 1870 houve uma série de trabalhos sistemáticos sobre o fenômeno:

2) F. Mc Lennan foi o primeiro a descrever o sistema totêmico apresentando a hipótese, retomada e desenvolvida por W.R. Smith, da universalidade do fenômeno nas sociedades primitivas;

3) H. Spencer relacionou o totemismo com o culto dos ancestrais, afirmando que a aparência do totem deriva dos apelidos atribuídos aos ancestrais;

4) J.G. Frazer, limitando a propagação do fenômeno como um sistema social complexo, apoiou a chamada teoria da concepção ao vincular o totemismo à magia, colocando-a como a religião original de toda a humanidade.

5) Durkheim: forma auroral de religião

6) Lévy-Bruhl: manifestação da natureza mística do pensamento primitivo

7) Mais tarde houve uma segunda fase de estudos, graças à escola histórico-cultural que, com base em novas pesquisas etnológicas, tentou formular uma teoria completa do totemismo.

8) Uma terceira fase, iniciada em 1940, caracteriza-se pela tentativa de definir as diferentes formas de totemismo, suas origens e sua relação com a religiosidade

9) Animais e plantas Malinowski tornaram-se objeto de atenção ritual ou simbólica porque são bons para comer

10) Mais recentemente o antropólogo A.R. Radcliffe-Brown mostrou (1951) como nos contos de animais o mundo da vida animal é representado em termos de relações sociais semelhantes às da sociedade humana; através do uso desses símbolos animais, apresentados em conexões socialmente relevantes, o pensamento é direcionado tanto para as relações entre animais quanto para as relações entre grupos humanos

11) Claude Lévi-Strauss tentou ampliar esse conceito (1962): estamos diante de um sistema de pensamento e classificação que se refere a todas as categorias de fenômenos sociais, como valores e eventos. Animais, plantas e fenômenos naturais oferecem ao homem um repertório para classificar. Diferenciando o pensamento primitivo que se baseia no concreto e não no abstrato. O totemismo é uma atitude mental que assume que assume dados da experiência e da natureza para construir sistemas de classificação e relacionamento. O totemismo associa uma planta ou animal a um grupo social. O totemismo distingue os grupos fazendo uso da diversidade existente entre as espécies naturais. Concebe a natureza através da cultura

Basicamente as teorias que tentaram explicar o fenômeno no século XIX e início do XX foram amplamente superadas: embora se admita que possa conter elementos religiosos como o culto aos ancestrais e o animismo, o totemismo não é mais considerado uma religião, nem uma primeiro estágio evolutivo da história da humanidade. Claude Lévi-Strauss foi um dos maiores críticos de tais teorias, para quem esse fenômeno é um conceito antropológico desprovido de realidade objetiva. A base do totemismo parece ser uma visão de mundo que identifica uma relação específica entre os seres humanos e as forças da natureza, utilizada como ferramenta conceitual para uma classificação da realidade e da sociedade. Por outro lado, como afirmam alguns estudiosos, quando diferentes grupos dentro de uma mesma sociedade derivam seu nome e identidade de plantas e animais, esses totens também afirmam simbolicamente a unidade social superior. Além disso, pertencer ao grupo totêmico permitiria a proteção dos indivíduos em sociedades sem outros mecanismos que desempenhem essa função. Recentemente, alguns antropólogos destacaram a função conservadora e o valor ecológico de alguns tabus ligados à matança e consumo de totens entre os aborígenes australianos.

Trópicos tristes (Geertz)

Nesse sentido, analisei os Tristi Tropici, de Claude Lévi-Strauss, e procurei mostrar que naquela ocasião o autor, mais ou menos intencionalmente (em minha opinião plenamente, ainda que não tenha como prová-lo), se movia ao mesmo tempo ... em várias direções: antes de tudo, ele realizou o trabalho do etnógrafo, começando a falar sobre as tribos da Amazônia com as quais estava lidando; em segundo lugar, escreveu um diário de viagem (embora no início o negue, é precisamente isso que faz: escreve um diário de viagem, com início - na França - e fim); além disso, compôs uma obra filosófica baseada em Rousseau e nos fundamentos da sociedade natural que esperava encontrar na Amazônia; finalmente, deu lugar ao estruturalismo, especialmente nos capítulos em que fala de sacrifício; ou seja, ele começou a desenvolver a análise estrutural, e não só. Acima de tudo, ele tentou criar um 'mito da pesquisa'. Mesmo que o livro se coloque na fase central da sua obra, considero-o fundamental para toda a sua obra, passada e futura. De fato, Lévi-Strauss deixa a França pouco antes do início da guerra para ir ao Rio de Janeiro: os Trópicos, como ele mesmo diz, estão fora de moda, e assim ele entra na selva, numa espécie de complexo de imagens, e quanto mais a percorre, mais lhe parece difícil compreender as coisas: é, portanto, o mito de uma busca, a busca da compreensão. Quando, finalmente, chega à linha de chegada, depara-se com um grupo cuja língua lhe é desconhecida e que nunca foi abordada ou estudada antes; é então que ele percebe que não consegue entender aquelas pessoas, ele percebe que elas são completamente diferentes dele. Trata-se, portanto, de um tipo de pesquisa que, em vez de conduzir a uma preciosa fonte de novos conhecimentos, leva a uma aporia, a um impasse, a uma espécie de derrota. Claro que é uma história bonita, mas que representa uma derrota em termos de compreensão. Aqui podemos observar justamente esse aspecto do mito da pesquisa, que contribuiu em grande parte para torná-la tão fascinante: a questão do outro - de compreender o outro, pelo qual quanto mais o outro é diferente, mais nos interessa e menos entendemos isso - e como mediar isso é parte do cerne do problema. Depois, há todas as outras camadas de texto de que falamos, e é como se fossem acumuladas umas sobre as outras para formar uma espécie de matriz a partir da qual a obra filosófica, a mitológica, a história de viagem (uma boa parte do livro é dedicada a descrever como eram extenuantes essas longas jornadas e outros detalhes semelhantes) e, finalmente, o início da análise estrutural e da etnografia. Tudo isso está contido em um único livro que, em certo sentido, se desenvolve nos demais textos mais específicos, escritos por Lévi-Strauss antes e depois.

 Sociedades frias e quentes

as sociedades podem ser divididas, pelo menos do ponto de vista teórico e representativo, em 'quentes' e 'frias'. Nossa rica sociedade pertenceria à primeira, enquanto a segunda convergiria, por exemplo, a dos nativos da América. Segundo a teoria de Lévi-Strauss, assim resumida por Domenico Buffarini, '[as sociedades quentes] funcionam como máquinas termodinâmicas, em virtude das diferenças de 'calor histórico' existentes entre suas partes e o combustível continuamente consumido: este é constituído por o 'ambiente natural, explorado sem levar em conta seu equilíbrio (do qual deriva a tendência à expansão territorial para obter recursos energéticos) e por massas humanas tão numerosas quanto possível. ' [1]

 

O antropólogo, portanto, retrata nossa sociedade como uma grande panela fervente, cujo calor é fornecido pela exploração contínua da natureza. Mas outras características podem ser destacadas para este modelo: 'Como o crescimento demográfico é uma das condições para sua estabilidade, as sociedades quentes têm uma alta taxa de natalidade e uma organização política e social que cria diferenças de poder ou 'calor' entre seus membros, como a escravidão ou a divisão em castas ou classes, dispostas hierarquicamente de forma piramidal, com classes restritas no topo que criam uma estrutura de poder coercitivo capaz de impor leis econômicas, legais, religiosas e morais aos subordinados. As diferenças sociais produzem tensões contínuas na estrutura das sociedades quentes e uma temperatura histórica em constante mudança.' [2]

 

Assim, passamos a identificar em

1) As sociedades quentes são as segregações internas que distinguem os grupos em classes ou castas, dispostas de modo a concentrar o poder nas mãos de poucos sobre uma enorme massa de subordinados.

2) Essas sociedades 'quentes' são contrastadas com as 'frias' cujo funcionamento 'é baseado em três condições essenciais:

a) limitação voluntária das necessidades individuais e coletivas;

b) uma organização social baseada em grupos de parentesco com igual dignidade e peso equivalente;

c) uma estrutura política baseada na participação dos associados nas decisões que, para serem obrigatórias para todos, devem ser adoptadas por unanimidade.' [3]

 

Mas quais seriam as diferenças distintivas entre os dois tipos de sociedade? “Sociedades frias são aquelas que funcionam segundo esquemas fixos semelhantes aos dos dispositivos mecânicos [...] aquelas que, pelo fato de usar apenas energia natural ou humana fornecida por processos espontâneos, na ausência de intervenções externas poderiam funcionar infinitamente sem sofrer grandes transformações. Dentro deles, cada parte, indivíduo ou grupo, necessariamente desempenha um papel e um valor autônomos. A sua 'sabedoria', que é também a base da sua sobrevivência, induz-os a resistir a qualquer modificação das estruturas, a perseverar no seu modo de ser e a defender as suas características distintivas, a assumir atitudes de obstinada fidelidade às tradições e ao equilíbrio. Eles escolheram a ordem social e a justiça dentro deles e por isso renunciaram ao 'progresso' tecnológico e à expansão fora de si mesmos. Tais sociedades sempre tentam desfazer os efeitos que eventos históricos poderiam ter sobre a ordem social que criaram e querem defender. Adaptando-se à natureza e aos seus ritmos, optaram pela estabilidade em relação ao devir, pela ordem em relação à evolução. Dessa forma, seus membros não conhecem os prazeres da civilização, mas também não sofrem as ansiedades e tormentos, tédio e opressão. Estão contentes com sua condição e não desejam mudá-la ou trocá-la pela nossa: pelo contrário, acham que nossa existência é uma vida louca, tumultuada e dolorosa. O estado em que vivem e do qual não querem sair responde às suas necessidades materiais e ao seu horizonte espiritual que gira em torno dos princípios supremos da solidariedade grupal e da comunhão com a natureza.' [4]

 

Ao contrário das frias, que se colocam no espaço e optam por estar do lado da natureza, as sociedades quentes são decididamente colocadas do lado da história; suas histórias são cadeias indefinidas de fatores não recorrentes e convulsões repentinas; eles são dominados por um desejo incontrolável de mudança, por uma tendência ao infinito através da qual uma quantidade incontrolável de energia é liberada às custas da ordem e da justiça. Os meios pelos quais esses resultados são alcançados são o individualismo e o progresso tecnológico. Nas sociedades quentes, o indivíduo é o único termo de referência. O poder político é autoritário e individualizado: quando o monarca absoluto não é mais suficiente para o exercício da soberania, cria-se uma entidade abstrata, ainda que sempre personalizada, que é a a res publica ou o estado. A arte é criação individual e se expressa em formas antropomórficas. A religião gira em torno de uma divindade concebida como uma pessoa ou entidade transcendente suprema, que possui os caracteres do indivíduo em um nível sublimado ou infinito. O universo é piramidal; o corpo, a natureza, a matéria são 'negatividade', não eu, em face da alma imortal, espírito e história. As descobertas tecnológicas servem para intensificar a exploração da natureza e das classes mais baixas. É dada especial atenção às armas, às quais se confia grande parte da capacidade de desenvolvimento e progresso. Assim como a descoberta do ferro e seu uso na guerra foram, juntamente com o desenvolvimento da pecuária doméstica, a causa histórica do nascimento de sociedades quentes, a pólvora facilitou sua afirmação global. Fundadas internamente na desigualdade de classes, as sociedades quentes são expansionistas, agressivas e intolerantes com os outros; sua atitude para com aqueles que seguem leis, hábitos, concepções de vida e divindades diferentes das dos habitantes da 'polis' é de superioridade e desprezo; reivindicam o direito de oprimir e destruir povos julgados inferiores em nome da civilização superior. Da mesma forma, nas relações entre as classes, a cultura, o poder e a riqueza das classes dominantes justificam a exploração da plebe e dos escravos.' [5]

 

As sociedades nativas americanas foram protótipos de sociedades frias, enquanto a história das sociedades quentes é a história da civilização ocidental, nascida com as invasões indo-européias da Idade Antiga, que se impuseram às culturas agrícolas de derivação neolítica com uma ferocidade nunca antes conhecida. Estabelecidas como aristocracias tirânicas, as sociedades quentes desenvolveram-se dando vida aos grandes impérios escravistas (indiano, persa, helenístico e romano) e informaram grande parte da Eurásia de sua cultura. Após o parêntese das migrações da Ásia Central, as sociedades quentes recuperaram força nas áreas marítimas da Europa graças à contribuição de novos povos (os árabes) e, em virtude de uma revolução científica e industrial centenária (séculos XVII-XVIII). , eles se tornaram as culturas dominantes em escala mundial.' [6]

 

A distinção entre sociedades quentes e frias deu origem a posições opostas entre os partidários das primeiras contra as segundas; também porque a atitude compreensiva de Lévi-Strauss em relação aos primitivos era tal que os valorizava diante das sociedades modernas, questionando o próprio conceito de progresso tão caro aos evolucionistas, sem privilegiar nenhuma cultura em detrimento de outra, fazendo-o expor estas considerações: ' Em vez disso, tentamos demonstrar que a verdadeira contribuição das culturas não consiste na lista de suas invenções particulares, mas na diferença diferencial que elas representam entre elas. O sentimento de gratidão e humildade que cada membro de uma determinada cultura pode e deve sentir em relação a todos os outros se baseia em uma única convicção: que as outras culturas são diferentes da sua, nas mais variadas formas [...].' [7]

 

Isso tem levado a culpas como as seguintes: 'Parece-nos importante esclarecer bem este ponto, desmistificando também as formas disfarçadas de eurocentrismo, aparentemente antirracista, nascidas com o mito do 'bom selvagem' de Rousseau, que encontramos em certos aspectos do pensamento por um estudioso de alto nível como Claude Lévi-Strauss. De fato, quando o etnólogo francês opõe os primitivos aos civilizados, ele valoriza os primeiros numa perspectiva eurocêntrica, típica de um certo progressismo 'cansado', com toques de exotismo primitivista que lembra um pouco um salão. Os 'primitivos' seriam um exemplo de sociedade simples, mecânica e igualitária, enquanto a sociedade ocidental seria uma máquina a vapor fervilhante, injusta com suas desigualdades sociais. Isso equivale a distorcer os termos do problema, inventando uma versão particular dos 'primitivos', em harmonia com o pensamento de Rousseau, ao qual Lévi-Strauss se refere explicitamente.' [8]

 

Assim, os detratores das sociedades frias se manifestaram em favor das sociedades quentes, que representam o berço do bem-estar e da felicidade: «A antropologia cultural e a história nos mostram que as sociedades são frias» ou enjauladas em estruturas imóveis, nas quais não há fermentos produzidos, ou em que os fermentos são sistematicamente eliminados, estão destinados a apodrecer e desaparecer. Onde, por outro lado, o pensamento criativo e inovador é respeitado e colocado em condições de se expressar e crescer de acordo com as necessidades da sociedade e a emergência do futuro, há progresso, bem-estar e maior felicidade, pois todos são dado para crescer e se realizar de acordo com a personalidade de cada um.' [9]

 

Como veremos mais adiante, as sociedades frias desapareceram gradualmente sob a pressão das quentes, sem ter tempo para evoluir por conta própria através de um aumento na 'temperatura social' de alguém. Se posições como as enunciadas, ambas tendenciosas, levaram a subestimar a classificação feita por Lévi-Strauss, a teorização que será relatada neste estudo permitirá, além de reavaliar a distinção entre sociedades quentes e frias, também dar uma resposta a questões diferentes. Mas, antes de tudo, aliviará o antropólogo do peso de um dilema previsível:

«Se, Deus me livre, o antropólogo fosse obrigado a prever o futuro da humanidade, ele certamente não o conceberia como uma extensão ou uma superação de formas . atual, mas sim no modelo de uma integração que unifica progressivamente as características típicas das sociedades frias e quentes».’ [10]

 

Será o destino da história que as sociedades quentes esfriem aquecendo as frias, dando assim origem à sociedade morna definitiva? E por que eles deveriam fazer isso?

Fim.

Bibliografia

Lévi-Strauss, C. (1957). Tristes trópicos. São Paulo: Anhembi.

Bertol Domingues, H. M. (2008). Tradução Cultural na Antropologia dos anos 1930-1950: as expedições de Claude Lévi-Strauss e de Charles Wagley à Amazônia. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humana, III(1), 31–49.

Lévi-Strauss, C. (2008). Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify.

Lévi-Strauss, C. (1975). Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes.

Lévi-Strauss, C. (2008). O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus.

Lévi-Strauss, C. (2017). Mythologiques 1: Le cru et le cuit. Paris: Plon.

Lévi-Strauss, C. (2017). Mythologiques 2: Du miel aux cendres. Paris: Plon.

Lévi-Strauss, C. (2017). Mythologiques 3: L’origine des manières de table. Paris: Plon.

Lévi-Strauss, C. (2017). Mythologiques 3: L’origine des manières de table. Paris: Plon.

Lévi-Strauss, C. (1993). Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

Lévi-Strauss, C. (1983). O olhar distanciado. Lisboa: Edições 70.

Mauss, M. (2006). Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70.

Lévi-Strauss, C. (1970). La vita familiare e sociale degli Indiani Nambikwara. Torino: Einaudi.

Lévi-Strauss, C. (1982). As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes.

Lévi-Strauss, C. (2008). O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus.

Levi-Strauss, C. (1987). Mito e Significado. Lisboa: Edições 70.

Lévi-Strauss, C. (1975). Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes.

Lévi-Strauss, C. (1957). Tristes Trópicos. São Paulo: Anhembi.