Ano Académico 2023/2024

 

 

1ª Lição 18 de Setembro 2023: Quadro de Sumário

 

Quadro de Sumários

I.      A perspectiva antropológica

 

 

II.     Método antropológico

 

III.     Linguagem e cultura

 

A evolução da linguagem

IV.     Cultura e o indivíduo

 

V.       Analise dos sistemas simbólicos

 

VI.      Matrimonio, família e parentesco

 

 

VII.     Género e idade

 

VIII.     Sistemas económicos

 

Sistemas de distribuição e consumo  

 

IX.     A religião e o sobrenatural

 

 

 

X.     Mitos lendas e folclore

 

 

XI.     A cultura material

 

XIV.    Colonialismo, pós-colonialismo

 

 

Introdução

 Quando fomos com o 4º ano de antropologia em Mbanza Kongo tínhamos a ambição de aprender sobre o maior número possível de modos de vida diferentes dos Bakongo. Os encontramos em Mbanza Kongo, e nas zonas rurais ao longo do caminho que leva a Luvo. Os seus modos de vida envolviam padrões de movimento regular através da fronteira com o Congo e motivados pelo comercio  construíram casas permanentes mesmo nas fronteiras. Os arqueólogos em Mbanza Kongo tentaram reconstruir os modos de vida antigos com base nos vestígios deixados no Kolumbimbi, no Yala Nkuwu há centenas de anos. Os antropólogos físicos se esforçaram de reconstruir a origem da espécie humana explorando restos fósseis que datam de milhões de anos atrás. Seja como for, os antropólogos são por vezes expostos a práticas desestabilizadoras. Por outro lado, porém, quando aceitam o risco de conhecer melhor determinados modos de vida, muitas vezes fazem a agradável descoberta de ter que lidar com algo familiar.

Primeira definição

A antropologia pode ser definida como o estudo da natureza humana, da sociedade humana e do passado humano (Greenwood e Stini 1977). É uma disciplina acadêmica que visa descrever no sentido mais amplo possível o que significa ser humano. Os antropólogos não estão sozinhos ao concentrar a sua atenção nos humanos e nas suas criações. A biologia humana, a literatura, a arte, a história, a linguística, a sociologia, a ciência política, a economia – e muitas outras disciplinas académicas – concentram-se num dos vários aspectos da vida humana. Os antropólogos estão convencidos, contudo, de que as explicações das actividades humanas só serão superficiais se não reconhecermos que as vidas humanas são complicados emaranhados de trabalho e família, de poder e significado. O que distingue a forma como os antropólogos estudam a vida humana? Como veremos, a antropologia é

1 holística,

2 comparativa,

3 baseada em pesquisas de campo

4 evolutiva.

Holistica

Em primeiro lugar, enfatiza o facto de que todos os aspectos da vida humana se cruzam de formas complexas, moldando-se mutuamente até ao ponto de integração. Assim, a antropologia é o estudo integrado ou holístico da natureza humana, da sociedade humana e do passado humano. Este holismo tem sido fundamental para a perspectiva antropológica e continua a ser a característica capaz de aproximar os antropólogos, que de outra forma permaneceriam divididos pelas suas respectivas especializações.

Comparativa

Em segundo lugar, além de ser um dístico, a antropologia é uma disciplina interessada na comparação. Para fazer generalizações sobre a natureza humana, da sociedade humana e do passado humano, precisamos encontrar evidências na mais ampla gama possível de sociedades humanas. Não basta, por exemplo, simplesmente observar o nosso grupo social, perceber que não comemos insetos e concluir que o ser humano, enquanto espécie, não come insetos. Quando comparamos as dietas humanas em diferentes sociedades, percebemos que comer insetos é bastante comum e que a aversão norte-americana a esta prática alimentar nada mais é do que uma especificidade da nossa sociedade.

Pesquisa de campo

Terceiro, a antropologia é uma disciplina baseada na pesquisa de campo. Isto significa que, para quase todos os antropólogos, a prática propriamente dita da antropologia – a recolha de dados – ocorre fora do escritório e em contacto direto com as pessoas, locais ou animais nos quais estão interessados. Quer sejam antropólogos biológicos que estudam os chimpanzés da Tanzânia, arqueólogos que escavam os altos Andes do Peru, antropólogos linguísticos que aprendem uma língua não escrita da Nova Guiné, ou antropólogos culturais que estudam a identidade étnica na África Ocidental ou festivais de aldeia no Minnesota, os antropólogos estarão sempre em contacto directo com as fontes de seus dados. Para a maioria dos antropólogos, a riqueza e a complexidade desta imersão noutros modelos de vida constitui um dos aspectos mais distintivos desta disciplina. A pesquisa de campo conecta diretamente o antropólogo com a experiência vivida por outras pessoas, ou outros primatas, ou com a evidência material dessa experiência deixada por aqueles que a viveram. Os antropólogos acadêmicos se esforçam para alternar a pesquisa de campo com suas outras funções como professores universitários. Outros antropólogos – antropólogos aplicados – geralmente passam a maior parte, se não todo, do seu tempo fazendo pesquisas de campo. Toda antropologia começa com um grupo específico de pessoas que são visitados regularmente.

Evolutiva

Em última análise, os antropólogos esforçam-se por chegar a generalizações sobre o que significa ser humano que se mantenham no espaço e no tempo. Como os antropólogos estão interessados ​​em documentar e explicar as mudanças que ocorreram ao longo do tempo no passado humano, a evolução é um aspecto central da perspectiva antropológica. Antropólogos examinam

evolução Uma característica da perspectiva antropológica que exige que o antropólogo coloque suas observações sobre a natureza, a sociedade e o passado dos humanos em uma estrutura temporal que leva em conta as mudanças ao longo do tempo, a evolução biológica da espécie humana, documentando como as características físicas e os processos vitais dos seres humanos e dos seus antepassados ​​mudaram ao longo do tempo. Entre os tópicos de interesse estão as origens humanas e as variações genéticas e a herança em populações humanas vivas. Se a evolução for concebida num sentido lato como mudança ao longo do tempo, então pode-se considerar que as sociedades e culturas humanas também evoluíram desde os tempos pré-históricos até ao presente.

Há muito tempo que os antropólogos se interessam pela evolução cultural, lidando com as mudanças que ocorreram ao longo do tempo nas crenças, comportamentos e objetos materiais que moldam o desenvolvimento humano e a vida social. Como veremos no Capítulo 4, as primeiras discussões no campo antropológico sobre a evolução cultural enfatizaram a sucessão de uma série de estágios universais. Esta visão, no entanto, foi rejeitada por antropólogos contemporâneos que trabalham na evolução cultural, como William Durham (1991) e Robert Boyd (por exemplo, Richerson e Boyd 2006). Os debates teóricos sobre a mudança cultural e se é ou não apropriado defini-la como 'evolução cultural' são atualmente muito acesos, não apenas na antropologia, mas também em campos relacionados, como a biologia evolutiva e a psicologia do desenvolvimento. No centro deste debate, uma das contribuições mais importantes da antropologia para o estudo da evolução humana continua a ser a demonstração de que a evolução biológica não coincide com a evolução cultural. A distinção entre os dois continua a ser importante porque demonstra as falácias e inconsistências dos argumentos que afirmam que tudo o que os homens fazem ou pensam pode ser explicado em termos biológicos, por exemplo em termos de “genes”, “raça” ou “sexo”.

 

Conceito de cultura

«Cultura ou Civilização, tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade» (Tylor, 1871, p.1),

Cultura simbólica

Esse conceito abrange os artefactos e estruturas materiais que constitui a cultura material humana. A nossa herança cultural permite que nós, humanos, nos adaptemos ao mundo como um todo e o transformemos através das nossas interações com as estruturas materiais e objectos presentes nas comunidades em que vivemos, através das ligações que estabelecemos com outras pessoas, através das ações e dos indivíduos, capacidades de nossos corpos e através das ideias e valores das nossas mentes. A cultura simbólica da espécie humana é dotada de significados, mas também tem uma dimensão material, e é esta dupla conotação que nos torna únicos entre os seres vivos.

Cultura de sobrevivência

Os !Kung dependem da aprendizagem para sobreviver mais do que qualquer outra espécie, porque vivendo nas florestas precisam protejer-se e possuir conhecimentos aptos a encontrar comida e abrigo. Os jovens aprendem com os velhos o que precisam saber para sobreviver, como a gerir o ambiente, como construir armadilhas e para se tornar hábeis com ferramentas e outros artefactos que os permitam sobreviver ao longo do tempo. A aprendizagem e a instrução são o foco principal da infância, que dura mais tempo na espécie humana do que em qualquer outra.

De uma perspectiva antropológica, o conceito de cultura é central para as explicações que formulamos sobre por que os seres humanos são o que são e fazem o que fazem. Os antropólogos são muitas vezes capazes de demonstrar que os membros de um determinado grupo social se comportam de uma determinada maneira, não porque esse modo de agir seja programado pelos seus genes, mas porque observaram outras pessoas ou interagiram com outras pessoas e aprenderam a dizer que também carregam consigo o mesmo comportamento. Por exemplo, os Bakongo normalmente comem as selelé tal comportamento não é resultado de programação genética. É antes o resultado do facto de, desde crianças, terem sido informados de que comer selelé é bom, e sempre terem visto os seus familiares ou amigos comer selelé, por isso eles próprios as comem. No entanto, como descobrimos pessoalmente, os Bakongo podem comer selelé sem causar quaisquer efeitos nocivos. Uma diferença na prática alimentar pode ser explicada em termos de aprendizagem cultural e não de programação genética.

Por outro lado, para compreender o poder da cultura, os antropólogos também devem compreender a biologia humana. Em Angola, os antropólogos são treinados, para que possam compreender como funcionam os organismos vivos e obter informações comparativas sobre uma ampla variedade de culturas angolanas. Como resultado, a maioria dos antropólogos rejeita explicações do comportamento humano que os forçam a escolher entre a biologia e a cultura como a única causa. Em vez disso, enfatizam o facto de que os humanos são organismos bioculturais. A nossa constituição biológica – o nosso cérebro, o nosso sistema nervoso e a nossa anatomia – é o produto de processos de desenvolvimento para os quais os nossos genes e a nossa química celular dão um contributo fundamental; além disso, permite-nos criar e utilizar cultura. Sem tais dotações biológicas, a cultura humana tal como a conhecemos não existiria. Ao mesmo tempo, a nossa sobrevivência como organismos biológicos depende de formas aprendidas de pensar e agir que nos permitam encontrar comida, abrigo e parceiros sexuais e que nos ensinem como criar os nossos filhos. Nossa dotação biológica torna a cultura possível; a cultura humana torna possível a sobrevivência biológica humana.

Para compreender o poder da cultura, os antropólogos também prestam cada vez mais atenção ao papel que a cultura material desempenha na vida dos organismos bioculturais humanos. Muitos antropólogos culturais, têm enfatizado tipicamente que a forma como as pessoas usam as enxadas é moldada pelos significados culturais que atribuem a esses artefactos. Tal ênfase parecia especialmente necessária face à crença generalizada na nossa sociedade angolana de que as enxadas têm significados funcionais óbvios que são os mesmos para todos, em toda Angola. Contudo, os antropólogos culturais observaram que as catanas podem ter significados diferentes para pessoas diferentes.

Ao mesmo tempo foram desenvolvidos na ciência estudos que forneceram aos antropólogos culturais novas formas de conceituar as relações entre pessoas e coisas. Vários exemplos dessas novas abordagens centram-se em experiências humanas com novos tipos de coisas – computadores, telemóveis, Internet – que estão a assumir um papel cada vez mais central na vida quotidiana das pessoas em todo o mundo. Por exemplo, as pessoas que jogam videojogos online parecem fundir-se com a tecnologia e outros jogadores para formar uma entidade híbrida contínua; ou pense na tecnologia que nos conecta a amigos no Facebook e de cuja existência nunca tivemos conhecimento. Este é um fenómeno que o antropólogo Daniel Miller chama de humildade das coisas: «os objectos são importantes, não porque sejam evidentes e criem limites ou possibilidades fisicamente visíveis, mas precisamente pela razão oposta. Isto acontece precisamente porque normalmente não os vemos» ([2010, 50] 2013, 47). A mistura de pessoas e coisas é por vezes uma fonte de prazer, como quando fazemos as compras de fim de ano pela Internet; mas também pode ser irritante quando percebemos que nossas atividades de navegação na web estão sendo rastreadas para fins comerciais por um software especial. Por esta e outras razões, concordamos com Daniel Miller que «a melhor forma de compreender, descrever e apreciar a nossa humanidade é através do interesse pela nossa materialidade inescapável ([2010, 50] 2013, 4)». E isso significa levar a sério a cultura material.

Antropologia cultural

A segunda especialização no campo da antropologia é a antropologia cultural, às vezes também chamada de antropologia sociocultural, antropologia social ou etnologia. Desde o início do século XX, os antropólogos perceberam que a biologia racial não conseguia explicar por que nem todas as pessoas no mundo se vestem da mesma forma, falam a mesma língua, rezam ao mesmo Deus ou comem insectos ao jantar. Quase ao mesmo tempo, antropólogos como Margareth Mead começavam a demonstrar que a biologia da diferença sexual não podia ser usada para prever como os homens e as mulheres se comportariam ou que tarefas seriam chamados a desempenhar numa determinada sociedade. Os antropólogos concluíram então que deveria haver algo mais, além da biologia, para culpar por essas variações. E propuseram que esta “outra coisa” era a cultura. Ao longo do século XX, muitos antropólogos realizaram pesquisas significativas para distinguir a variabilidade biológica humana das práticas culturais humanas, demonstrando que tais práticas não podiam ser reduzidas à diferença “racial”. No final do século XX, os antropólogos começaram a reantropologia cultural, uma especialidade da antropologia que demonstra como a diversidade de crenças e comportamentos em diferentes grupos humanos é moldada por conjuntos de comportamentos e ideias aprendidas que os humanos adquirem como membros da sociedade - isto é, desde cultura. principalmente para distinguir entre o sexo biológico com o qual um indivíduo se viu dotado e os papéis de género culturalmente moldados considerados apropriados para cada sexo numa determinada sociedade.

O campo da antropologia cultural

 Como as pessoas em todos os lugares usam a cultura para se adaptarem e transformarem tudo o que faz parte do mundo em que vivem, o campo da antropologia cultural é bastante amplo. Os antropólogos culturais tendem a especializar-se neste ou naquele domínio da atividade cultural. Alguns estudam as maneiras pelas quais grupos específicos de seres humanos se organizam para realizar tarefas coletivas, sejam elas de natureza econômica, política ou espiritual. A ênfase colocada nestes termos leva a antropologia cultural a se assemelhar muito à sociologia e, portanto, à identificação da antropologia como uma das ciências sociais.

Diferenças com a sociologia

A sociologia e a antropologia desenvolveram-se na mesma época e compartilham interesses semelhantes na organização social. Antrpologia diferencia-se da sociologia pelo interesse antropológico na comparação entre diferentes formas de vida social humana. No cenário racista da sociedade europeia e norte-americana do século XIX e início do século XX, havia aqueles que consideravam a sociologia como o estudo das sociedades industriais 'civilizadas', enquanto rotulavam a antropologia como o estudo de todas as outras sociedades, reunidas em comum definição de “primitivo”. Hoje, porém, os antropólogos estão ocupados estudando todas as sociedades humanas e rejeitam os rótulos de civilizados e primitivos pela mesma razão que rejeitam o termo raça. Os antropólogos contemporâneos conduzem pesquisas em ambientes urbanos e rurais em todo o mundo e entre membros de todas as sociedades, incluindo a sua própria.

Os antropólogos descobriram que em muitas sociedades não-ocidentais as pessoas não organizam burocracias, igrejas ou escolas, e ainda assim conseguem realizar com sucesso toda a gama de actividades humanas, porque desenvolveram instituições relacionais que lhes permitiram organizar a sociedade. grupos graças aos quais podem viver suas vidas com satisfação. Uma forma de relacionalidade, chamada parentesco, une mutuamente os sujeitos com base no nascimento, no casamento e no casamento. O estudo do parentesco teve um enorme desenvolvimento na antropologia e ainda permanece um tema de interesse central. Os antropólogos também descreveram várias formas de grupos sociais organizados segundo diferentes princípios, tais como sociedades secretas, coortes e numerosas formas de organização política complexa, incluindo estados. Nos últimos anos, os antropólogos culturais têm estudado questões actuais como

1) o género e a sexualidade,

2) a migração transnacional para o trabalho,

3) a urbanização,

4) a globalização,

5) o reaparecimento de fenómenos de etnicidade e nacionalismo..

Antropólogos culturais conduziram pesquisas sobre padrões de vida material descobertos em diferentes grupos humanos. Entre as variações mais evidentes que encontramos no mundo estão as relativas ao modo de vestir, de viver, de produzir ferramentas e técnicas de obtenção de alimentos e de fabricação de bens materiais. Alguns antropólogos especializam-se no estudo das tecnologias presentes em diferentes sociedades ou na evolução da tecnologia ao longo do tempo. Os interessados ​​na vida material também estudam os ambientes naturais para os quais as tecnologias foram desenvolvidas e analisam como as tecnologias e os ambientes influenciam uns aos outros.

Outros realizaram pesquisas sobre como os povos não ocidentais responderam aos desafios políticos e económicos colocados pelo colonialismo e pela tecnologia industrial capitalista que o acompanhou.

As pessoas em todo o mundo utilizam cada vez mais bens materiais e tecnologias produzidas fora da sua própria sociedade. Os antropólogos conseguiram demonstrar como, ao contrário do que muitos esperavam, as populações não ocidentais não imitam servilmente os costumes ocidentais. Pelo contrário, estes povos utilizam tecnologias que vêm do Ocidente de formas criativas e muitas vezes inesperadas, mas que, no entanto, fazem sentido no contexto cultural local. Para dar um exemplo, alguns antropólogos estão actualmente a tentar compreender as diversas formas como as populações, tanto dentro do mundo ocidental como fora das suas fronteiras, utilizam a tecnologia cibernética para os seus próprios fins sociais e culturais.

Trabalho de campo

À medida que os antropólogos se tornaram cada vez mais conscientes de como as influências socioculturais se espalham pelo espaço, produzindo efeitos diferentes nas comunidades locais, a sua sensibilidade à forma como essas influências mudam ao longo do tempo também cresceu. Como resultado, muitos antropólogos culturais contemporâneos fizeram esforços sérios para enquadrar as suas análises culturais em contextos históricos detalhados. Os antropólogos culturais que realizam estudos comparativos de linguagem, música, dança, arte, poesia, filosofia, religião ou ritual partilham muitos dos interesses cultivados por especialistas em disciplinas como as artes plásticas e as humanidades.

Independentemente da sua área específica de especialização, os antropólogos culturais costumam recolher os seus dados durante um longo período de contacto frequente com a população cuja língua ou modo de vida têm interesse em aprender. Este período de trabalho, denominado pesquisa de campo, caracteriza-se principalmente pelo envolvimento dos antropólogos no cotidiano daqueles com quem decidiram conviver.

Informantes

Tradicionalmente, os informantes têm sido definidos como aqueles que, com compartilharam informações relativas à sua língua e cultura com o antropólogo; por outro lado, hoje tendemos a usar cada vez menos esse termo e alguns preferem falar de entrevistados, colaboradores, professores ou simplesmente 'pessoas com quem você trabalha', pois esses termos enfatizam uma relação de igualdade e reciprocidade. Os investigadores de campo obtêm um ponto de vista privilegiado sobre outra cultura ao participarem nas suas atividades sociais juntamente com membros da própria cultura, mas também ao observarem essas atividades com os olhos de um estrangeiro. Este método de pesquisa, conhecido como observação participante, é de fundamental importância para a antropologia cultural. Os antropólogos culturais escrevem sobre o que aprenderam em artigos ou textos académicos e, por vezes, documentam a vida das pessoas com quem trabalharam através de filmes ou vídeos. Uma etnografia é uma descrição dos “comportamentos sociais habituais de um grupo identificável de pessoas” (Wolcott 1999, 252-3); etnologia é o estudo comparativo de dois ou mais desses grupos. Segue-se que os antropólogos culturais que escrevem etnografias são por vezes chamados de etnógrafos, enquanto os antropólogos que se dedicam à comparação de informações etnográficas sobre muitas práticas culturais diferentes são por vezes chamados de etnólogos. Contudo, nem toda produção antropológica tem caráter etnográfico. Alguns antropólogos especializam-se na reconstrução da história da nossa disciplina, explorando, por exemplo, como as práticas de investigação de campo evoluíram ao longo do tempo e como essas mudanças podem estar relacionadas com mudanças políticas, económicas e sociais mais amplas nas sociedades de onde vêm os académicos e de onde vêm. eles conduziram suas pesquisas.

O que se ganha estudando antropologia

1. Agilidade social

2. Observação

3. Análise e planejamento

4. Sensibilidade social

5. Precisão na interpretação do comportamento

6. Capacidade de situar o problema fundado em discussão de resultados

7. Interpretação perspicaz da Informação

8. Simplificar a informação

9. Contextualizar

10. Resolução de problemas

11. Uma escrita convincente

12. Assumir uma perspectiva social

 

Para que serve a antropologia?

Por que fazer um curso de antropologia? Uma resposta imediata poderia ser que os fósseis humanos ou fragmentos de vasos antigos ou os costumes de povos remotos inspiram um fascínio que é uma recompensa em si. Mas a experiência de se deslumbrar com lugares e pessoas aparentemente exóticas acarreta um risco. À medida que você se torna cada vez mais consciente de como os dados antropológicos são variáveis, incluindo as muitas opções que existem para levar uma vida humana satisfatória, você poderá se ver fazendo perguntas sobre a vida que está vivendo. O contacto com o desconhecido pode ter um efeito libertador, mas também pode parecer ameaçador se minar a confiança na verdade absoluta e na validade universal da nossa forma anterior de compreender como o mundo funciona.

O mundo contemporâneo está cada vez mais. interligados. No momento em que as pessoas que vêm diferentes origens culturais entram em contacto, torna-se essencial aprender a lidar com a diferença cultural. Os antropólogos experimentam a recompensa, mas também o risco, de aprender sobre como outras pessoas vivem, e o seu trabalho serviu para dissipar muitos estereótipos prejudiciais que mais de uma vez tornaram o contacto entre culturas perigoso ou impossível. Estudar antropologia pode prepará-lo para lidar com alguns dos choques causados ​​por conhecer pessoas que parecem diferentes de nós, falam outra língua ou não concordam com as nossas ideias acerca de como funciona o mundo.

Antropologia também significa aprender a compreender que tipo de organismos vivos nós, humanos, somos, as diferentes maneiras como vivemos nossas vidas e como damos sentido às nossas experiências. Pode preparar-nos para lidar com pessoas de diferentes origens culturais de uma forma mais tolerante, sentindo-nos menos ameaçados. Talvez ninguém nunca vos peça de comer nsombe. No entanto, um dia, podes encontrar-te em uma situação em que nenhuma das tuas antigas regras pareça se aplicar. E enquanto você luta para entender o que está acontecendo, o que você aprendeu em um curso de antropologia pode ajudar a acalmá-lo e a encontrar coragem para tentar algo completamente novo. Se assim for, talvez você também descubra quão grande é a recompensa por ter experimentado um encontro com o desconhecido que é, ao mesmo tempo, inexplicavelmente familiar. Esperamos que você aproveite a experiência

 

Bibliografia

Miller, Daniel, and Heather Horst. 2012. Digital Anthropology. New York: Berg.

Wolcott, Harry. 2005. The Art of Field-Work. Lanham: Altamira.

Kottak, C. P. (2012). Antropologia culturale. McGraw-Hill.

Barnard, A. (2007). Anthropology and the Bushman. Oxford: Berg.

Mead, M. (1971). Macho e Fêmea. Petrópolis: Vozes.

 

 

2ª Lição 23 de Setembro 2023: Antropologias do mundo

Crise da antropologia

Por volta de 1970, a antropologia cultural passa por uma crise de identidade, questionando não só os seus conceitos e práticas, mas o seu próprio direito de existir. As culturas isoladas, simples e puras analisadas pela antropologia tarde ou cedo não existiam mais, e também aquilo que caracterizava especificadamente os povos.  A disciplina nasceu em cumplicidade com o colonialismo.

O pior de tudo, chegou a duvidar da sua própria postura teórica dos termos e conceitos centrais, incluindo a  "cultura " e  "sociedade ".

Edmund Leach

Em 1954, no livro «Os sistemas políticos birmanos » de Highland Burma o autor Edmund Leach desafiou a noção que existissem  "sociedades simples" a estudar  crítica à consideração das sociedades e culturas estudadas pelos antropólogos como “sistemas fechados”, isto é, dotados de fronteiras claras e, portanto, identificáveis com grupos distintos e geralmente definíveis como “tribos”. Um tema, este último, também abordado por uma das figuras mais interessantes da antropologia de língua inglesa da primeira metade do século XX. Até então, comunidades, aldeias, tribos, etc. foram apresentados, na literatura antropológica, quase sempre como entidades fechadas, circunscritas. As comunidades Kachin, por sua vez, tiveram contato com populações de diferentes línguas e culturas; eram comunidades animistas e budistas numa relação de interação e troca; mostraram sistemas sociais estratificados ao lado de sistemas igualitários; presença do estado e das comunidades aldeãs governadas por membros de linhagens 'mais antigas'. Tal realidade exigia, segundo Leach, uma análise baseada numa perspectiva diferente daquela até então dominante na tradição britânica.

Dell Hymes

Em 1972, Dell Hymes apelou a uma reinvenção da antropologia e os antropólogos continuaram a dirigir o seu olhar sobre si mesmos, Explora a situação da antropologia americana, mostrando que os pressupostos da disciplina e o seu contexto institucional foram irreversivelmente minados; discute sobre o porque da separação da antropologia das outras ciências sociais foi quebrada; como o papel do entrevistador e do pesquisador de campo, antes exclusivo da antropologia, se espalhou para outras ciências sociais; como as relações anteriormente coloniais, tanto no país, nas reservas indígenas, como no estrangeiro, têm sido cada vez mais desafiadas; como as atitudes de potenciais estudantes de antropologia mudaram em relação ao desejo de estudar sua própria sociedade em vez de uma estrangeira.

Roy Wagner

Roy Wagner em 1975 reconheceu a invenção da cultura A Invenção da Cultura, uma das obras mais importantes da antropologia simbólica dos últimos anos, argumenta que a cultura não é um dado que molda a vida das pessoas que a partilham. Pelo contrário, são as pessoas que moldam a sua cultura através da manipulação constante de símbolos convencionais retirados de uma variedade de códigos em constante mudança para criar novos significados. Wagner vê a cultura surgindo da dialética entre o indivíduo e o mundo social; sua análise situa-se na relação entre invenção e convenção, inovação e controle, significado e contexto. Por fim, o autor destaca que os processos de simbolização que geram a construção de sentido na cultura são os mesmos que os antropólogos utilizam para “inventar” as culturas que estudam.

Adam Kuper

em 1988 insistiu acerca da invenção da sociedade primitiva, cujo livro foi legendado  "Transformações de uma ilusão". Antropólogos também descobriram que antropologia é, como todos as outras empresas intelectual, uma forma de criação de conhecimento e uma forma de literatura, como foi revelado no livro de James Clifford e George Marcus 1986 de cultura escrita: A poética e a política da etnografia.

A  Antropologia cultural tornou-se mais auto-reflexiva, coisa que tem sido sobretudo benéfica.

 

 Antropologias do Mundo

 antropologia existe porque a humanidade é diversificada e plural; não há somente uma tipologia única do ser humano ou uma só forma humana de vida, mas muitas.  Antropologia baseada na alteridade cultural sempre foi diversa e holística e pluralista, marcando grande diferenças com a Antropologias fisica e em geral a subdivisão em quatro campos da antropologia que marcaram a diferenciação entre antropologia cultural e antropologia social.  Mas na maior parte, estas várias Antropologias ocidentais (Europeia e americana), tinham a praticantes ocidentais e perguntas ocidentais, e eram escritas em línguas ocidentais.

 

Os ocidentais nunca foram os únicos praticantes da antropologia cultural, mas na sua maioria eram  não-ocidentais que foram treinados por antropólogos ocidentais em antropologia ocidental.  Existem, é interessante e importante, crescendo excepções a esta dominação europeia e americana da disciplina, com várias tradições antropológicas nacionais emergentes ao redor do mundo.  China, por exemplo, tem uma florescente indústria de antropologia e ciências sociais, explicitamente baseada na premissa de Zhongguohua ou  "Sinicization " do campo ou  "a necessidade de trazer as realidades sociais e os problemas da sociedade chinesa para trabalhos de pesquisa de ciências sociais " (Dirlik 2012:27); Juntamente com a Índia, o Irã, Japão e outros países da América Latina têm tomado medidas para praticar e reinventar a sua maneira de fazer antropologia.  Dois defensores destes desenvolvimentos, Gustavo Ribeiro e Arturo Escobar, afirmam que com o surgimento dessas diversas tradições  "a ideia de uma antropologia geral ou única é posta em causa" (2006:1), o que levou à noção de antropologias do mundo .  De facto, a pluralidade das Antropologias avançaram ao ponto de formar organizações como o Conselho Mundial das associações antropológicas, a rede de antropologias do mundo e a União internacional das Ciências antropológica e etnológica.   O efeito mais salutar da proliferação de antropologias tem sido o historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2007) que iniciou o movimento chamado ‘provincializar a Europa', isto é, não odiar o Ocidente ou negar o que é, e não odiar o Ocidente ou negar o conhecimento que o Ocidente gera mas colocar o Ocidente no seu próprio  lugar como um dos muitos centros de conhecimento e formas de conhecimento. Antropologia só pode aplaudir esse desenvolvimento.

 

Antropologia  Africana e os estudos de antropologia americana

 Nós mencionamos o olhar  da antropologia colonial, pelo qual os brancos ocidentais encararam e estudaram principalmente os não-brancos não-ocidentais, em nome da  "ciência " (mas também do controlo político).  Ultimamente, porém, os não-ocidentais voltaram o olhar, descrevendo como eles veem os ocidentais e isto obriga os ocidentais a  ver-se de forma diferente.  Mwenda Ntarangwi é um antropólogo queniano que fez um pequeno estudo antropológico da Antropologia, quando ele veio para os Estados Unidos.  O seu livro, intitulado «Inverter olhar», oferece uma perspectiva africana da formação antropológica americana e das organizações profissionais antropológicas.  Ele encontra alunos de pós-graduação americanos surpreendentemente passivos e também avessos à questão da raça.  Ele aponta para a superficialidade da grande parte de leituras antropológicas, para a obsessão pela dos professores que insistem com teoria mas não favorecem o trabalho de campo, e da prática da  "reciclagem das notas de campo", ou seja, usando dados coletados em anos ou décadas atrás produzem-se publicações supostamente novas e relevantes. Numa conferência de profissionais americanos, ele apontou à rivalidades de alguns antropólogos  que se colocam na frente de outros, para o status de celebridade de alguns antropólogos de renome, para a corrida desesperada para trabalhos de entrevista e para a brancura insuportável da antropológica americana.  Finalmente, ele retorna para a África para descrever  "marginalidade da antropologia " no continente, a  "ausência de departamentos de antropologia em instituições africanas " (2010:94).  Por outro lado, ele salienta que em África, os antropólogos tendem a ser vistos como desocupados, pessoas que  "não dão educação, científicas  sem conclusões e decisões " (95) e, portanto, deixam de usar seu conhecimento para melhorar a vida das pessoas.  Esta revelação nos envergonha porque reduzimos a ciência antropológica a um saber tão acadêmico sem dimensões práticas.

 

 Bibliografia

 

Leach, Edmund. 1975. Sistemas Políticos de La Alta Birmania. Barcelona: Anagrama.

Hymes, Dell. 1972. Reinventing Anthropology. New York: Random House.

Wagner, Roy. 2010. A Invenção Da Cultura. São Paulo: Cosac Naify.

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Clifford, James, and George Marcus. 2005. Scrivere Le Culture. Roma: Meltemi.

Dirlik, Arif. n.d. Culture & History in Post-RevolutionaryChina. The Perspective of Global Modernity. 2011: The Chinese University Press.

Lins Ribeiro, Gustavo, and Arturo Escobar. 2008. Antropologías Del Mundo. Popayan: Ciesas.

Chakrabarty, Dipesh. 2010. The Ambiguous Allure of the West. Traces of the Colonial in Thailand. Hong Kong: Hong Kong University Press.

Ntarangwi, Mwenda. 2010. Reversed Gaze: An African Ethnography of American Anthropology. Champaign: The University of Illinois Press.

Quadro teórico-conceptual

 

Termos e conceitos

 

Def de antropologia

Antropologia significa literalmente “estudo da humanidade”. No entanto, esta ainda é uma definição vaga e imprecisa. É vago porque existem muitos tipos de conhecimento e ciências que estudam a raça humana: filosofia, psicologia, sociologia, história, demografia, genética... E também é impreciso porque não nos diz qual aspecto da raça humana constitui seu objeto privilegiado de estudo. Na verdade, se a psicologia estuda o funcionamento da mente e a sociologia as relações entre os membros dos grupos e das sociedades, se a demografia estuda a taxa de crescimento e a distribuição da população em grupos etários, enquanto a genética trata da recorrência e variações de genes nas populações humanas, o que  é que trata a antropologia? Provavelmente estuda a raça humana do ponto de vista cultural, ou seja, das ideias e dos comportamentos expressos pelos seres humanos em épocas e lugares distantes uns dos outros. A antropologia, ou seja, o conjunto de reflexões que têm sido conduzidas em torno de tais comportamentos e ideias, partiu do facto de o ser humano revelar-se, de modo muito diferente em relação a uma época, ou em relação a uma região “aqui” para 'ali'. Para conhecer as razões e as formas como nasceu e se desenvolveu uma disciplina ou ciência, devemos colocar-nos pelo menos duas questões: quais foram as condições para o surgimento da antropologia cultural? O que fazem os antropólogos que a praticam?

A expansão, a intensificação dos contactos com pessoas com “costumes” tão diferentes dos europeus deu origem a graves problemas religiosos, científicos e morais. Quando Diogo Cão levou como reféns alguns jovens de Soyo para Lisboa, os portugueses começaram a questionar a natureza das populações do ultramar, por vezes definidas como selvagens e por vezes bárbaras, por vezes descritas como extraordinariamente belas e vigorosas, por vezes como terrivelmente monstruosas e repulsivas. Eles são seres humanos como nós? Deveríamos convertê-los à “verdadeira” fé? Se assim for, deveríamos convertê-los apenas com palavras ou também com força? Será que eles têm alma? Se eles têm alma, se também são criaturas de Deus, é correto reduzir esses selvagens à escravidão só porque não receberam a revelação divina? Estas, e outras semelhantes, foram as questões que ressoaram nos tribunais, seminários e universidades europeus da primeira metade do século XVI (Todorov , 2009). Com a expansão colonial e o tráfego comercial, com a conquista e o trabalho missionário, os contactos dos europeus com outros povos intensificaram-se de forma impressionante e consequentemente cresceram as descrições dos seus costumes e instituições sociais. Em 1690, António Cavazzi de Montecuccolo documentou com grande precisão os hábitos e costumes dos povos Bakongo e Akwakimbundu, em particular do Norte de Angola. No entanto, não havia nenhum projecto científico real subjacente a estas descrições: para que isso emergisse, tivemos que esperar até ao final do século XVIII, quando os cientistas naturais e os filósofos da Société das Observateurs de l’Homme começaram a desenvolver uma teoria 'unitária' da raça humana, concebida como uma única espécie natural (as uniões entre indivíduos do sexo oposto, independentemente da sua diversidade física, sempre deram origem a descendentes férteis) e como grupo de indivíduos potencialmente dotados das mesmas faculdades mentais, e mais tarde segundo o principio evolucionasta da “unidade psíquica do Gênero humano”. Na verdade, só podemos falar de um projecto científico verdadeiramente antropológico a partir da segunda metade do século XVIII, quando, graças ao Iluminismo, a reflexão sobre o género humano adquiriu definitivamente as características de uma reflexão sobre um sujeito universal. Mas deve-se ainda ter em mente que, como disciplina acadêmica, as origens da antropologia cultural são ainda mais recentes, uma vez que o estabelecimento dos primeiros ensinamentos desta disciplina nas universidades europeias e americanas remonta principalmente ao século XIX.

De facto, durante o século XIX, o interesse pelos povos “exóticos” cresceu muito rapidamente, também porque Portugal estava empenhado na conquista de novas regiões em Angola, na Guiné e em Timor Leste, enquanto nos Estados Unidos a resistência indiana foi derrotada. e os peles-vermelhas ficaram confinados em reservas. Bem como nas colónias e reservas os antropólogos encontraram os lugares privilegiados de seu trabalho. A antropologia teve uma grande possibilidade de desenvolvimento graças ao domínio exercido pela sociedade da qual era expressão sobre outras sociedades. Isto não significa que os antropólogos fossem colonialistas. Embora por vezes colaborassem com as instituições coloniais, fornecendo às administrações dos seus países informações úteis sobre as populações dominadas, os antropólogos distinguiam-se dos colonizadores precisamente pelo desejo de estabelecer relações de compreensão mútua com as populações que estudavam.

O que os antropólogos fazem

Chegamos agora à segunda questão: o que fazem aqueles que praticam a antropologia? Predominantemente, os antropólogos (ou etnólogos, como às vezes também eram chamados) trataram do estudo de povos contemporâneos, mas geograficamente distantes. O estudo das instituições sociais e políticas, dos cultos, das crenças religiosas, das técnicas de construção de artefactos, da arte de povos distantes e “diferentes” dos da Europa ou de origem europeia, tem constituído, genericamente falando, e em pelo menos todo o início, objecto privilegiado da antropologia. Até algumas décadas atrás, os antropólogos se dedicavam ao estudo de povos que por muito tempo foram chamados de “selvagens” ou “primitivos” por serem considerados representantes de fases arcaicas da história da raça humana. Eram povos que viviam em ilhas remotas do Pacífico, nas profundezas das florestas africanas ou em desertos como os da Austrália. Eram populações muitas vezes dotadas de tecnologia muito simples, desconhecedoras da escrita e com “costumes” que se destacavam pela notável diversidade face aos europeus.

É a partir desse tipo de objeto que se desenvolveu a antropologia, como disciplina e como conhecimento acadêmico. Com o tempo, porém, a estes povos juntaram-se outros, geograficamente “mais próximos” da Europa e com instituições mais semelhantes, em complexidade e função, às das sociedades ocidentais. Posteriormente, mesmo povos com tradições escritas e praticantes de cultos monoteístas foram incluídos no interesse dos antropólogos, especialmente a partir de meados do século XX.

Hoje os antropólogos já não estudam apenas as populações das savanas africanas, das ilhas da Polinésia, dos desertos do Médio Oriente, mas tem o mundo na mão.

 

Crise da antropologia

Por volta de 1970, a antropologia cultural passa por uma crise de identidade, questionando não só os seus conceitos e práticas, mas o seu próprio direito de existir. As culturas isoladas, simples e puras analisadas pela antropologia tarde ou cedo não existiam mais, e também aquilo que caracterizava especificadamente os povos.  A disciplina nasceu em cumplicidade com o colonialismo.

O pior de tudo, chegou a duvidar da sua própria postura teórica dos termos e conceitos centrais, incluindo a  "cultura " e  "sociedade ". Em 1954, no livro «Os sistemas políticos birmanos » de Highland Burma o autor Edmund Leach desafiou a noção que existissem  "sociedades limitadas" para estudar.  Em 1972, Dell Hymes apelou a uma reinvenção da antropologia e os antropólogos continuaram a dirigir o seu olhar sobre si mesmos, Roy Wagner em 1975 reconheceu a invenção da cultura e Adam Kuper em 1988 insistiu acerca da invenção da sociedade primitiva, cujo livro foi legendado  "Transformações de uma ilusão". Antropólogos também descobriram que antropologia é, como todas as outras empresas intelectual, uma forma de criação de conhecimento e uma forma de literatura, como foi revelado no livro de James Clifford e George Marcus 1986, de cultura escrita: A poética e a política da etnografia.

A  Antropologia cultural tornou-se mais auto-reflexiva, coisa que tem sido sobretudo benéfica.

 

 Antropologias do Mundo

 antropologia existe porque a humanidade é diversificada e plural; não há somente uma tipologia única do ser humano ou uma só forma humana de vida, mas muitas.  Antropologia baseada na alteridade cultural sempre foi diversa e holística e pluralista, marcando grande diferenças com a Antropologia física e em geral a subdivisão em quatro campos da antropologia que marcaram a diferenciação entre antropologia cultural e antropologia social.  Mas na maior parte, estas várias Antropologias ocidentais (Europeia e americana), tinham praticantes ocidentais e perguntas ocidentais, e eram escritas em línguas ocidentais.

 

Os ocidentais nunca foram os únicos praticantes da antropologia cultural, mas na sua maioria eram  não-ocidentais que foram treinados por antropólogos ocidentais em antropologia ocidental.  Existem, é interessante e importante, crescendo excepções a esta dominação europeia e americana da disciplina, com várias tradições antropológicas nacionais emergentes ao redor do mundo.  China, por exemplo, tem uma florescente indústria de antropologia e ciências sociais, explicitamente baseada na premissa de Zhongguohua ou  "Sinicization " do campo ou  "a necessidade de trazer as realidades sociais e os problemas da sociedade chinesa para trabalhos de pesquisa de ciências sociais " (Dirlik 2012:27); Juntamente com a Índia, o Irã, Japão e outros países da América Latina têm tomado medidas para praticar e reinventar a sua maneira de fazer antropologia.  Dois defensores destes desenvolvimentos, Gustavo Ribeiro e Arturo Escobar, afirmam que com o surgimento dessas diversas tradições  «a ideia de uma antropologia geral ou única é posta em causa» (2006:1), o que levou à noção de antropologias do mundo .  De facto, a pluralidade das Antropologias avançaram ao ponto de formar organizações como o Conselho Mundial das associações antropológicas, a rede de antropologias do mundo e a União internacional das Ciências antropológica e etnológica.   O efeito mais salutar da proliferação de antropologias tem sido o historiador indiano Dipesh Chakrabarty (2007) que iniciou o movimento chamado ‘provincializar a Europa', isto é, não odiar o Ocidente ou negar o que é, e não odiar o Ocidente ou negar o conhecimento que o Ocidente gera mas colocar o Ocidente no seu próprio  lugar como um dos muitos centros de conhecimento e formas de conhecimento. Antropologia só pode aplaudir esse desenvolvimento.

 

Antropologia  Africana e os estudos de antropologia americana

 Nós mencionamos o olhar  da antropologia colonial, pelo qual os brancos ocidentais encararam e estudaram principalmente os não-brancos não-ocidentais, em nome da  "ciência" (mas também do controlo político).  Ultimamente, porém, os não-ocidentais voltaram o olhar, descrevendo como eles veem os ocidentais e isto obriga os ocidentais a  ver-se de forma diferente.  Mwenda Ntarangwi é um antropólogo queniano que fez um pequeno estudo antropológico da Antropologia, quando ele veio para os Estados Unidos.  O seu livro, intitulado «Inverter olhar», oferece uma perspectiva africana da formação antropológica americana e das organizações profissionais antropológicas.  Ele encontra alunos de pós-graduação americanos surpreendentemente passivos e também avessos à questão da raça.  Ele aponta para a superficialidade da grande parte de leituras antropológicas, para a obsessão pela dos professores que insistem com teoria mas não favorecem o trabalho de campo, e da prática da  "reciclagem das notas de campo", ou seja, usando dados coletados em anos ou décadas atrás produzem-se publicações supostamente novas e relevantes. Numa conferência de profissionais americanos, ele apontou à rivalidades de alguns antropólogos  que se colocam na frente de outros, para o status de celebridade de alguns antropólogos de renome, para a corrida desesperada para trabalhos de entrevista e para a brancura insuportável da antropológica americana.  Finalmente, ele retorna para a África para descrever  "marginalidade da antropologia " no continente, a  "ausência de departamentos de antropologia em instituições africanas " (2010:94).  Por outro lado, ele salienta que em África, os antropólogos tendem a ser vistos como desocupados, pessoas que  «não dão educação, científicas  sem conclusões e decisões» e, portanto, deixam de usar seu conhecimento para melhorar a vida das pessoas.  Esta revelação nos envergonha porque reduzimos a ciência antropológica a um saber só académico sem dimensões práticas.

 

 

Abordagem Antropológica

«explorar estranhos, novos mundos, em busca de novas formas de vida e novas civilizações, para chegar onde nenhum homem chegou antes. O desejo de conhecer o desconhecido, controlar o que está fora de controle, criar ordem a partir do caos, encontra expressão em todos os povos da Terra. Criatividade, adaptabilidade e flexibilidade são atributos humanos elementares: a diversidade humana é o objecto da antropologia cultural.

Holismo

A antropologia é uma ciência especificamente comparativa e holística. Holismo refere-se ao estudo da condição humana considerada como um todo: passado, presente e futuro; biologia, sociedade, língua e cultura. A maioria das pessoas acredita que os antropólogos se dedicam ao estudo de fósseis e culturas pré-industriais não-ocidentais e, de fato, alguns estudiosos da antropologia estão engajados nessas atividades, mas a antropologia é muito mais complexa do que o estudo de populações pré-industriais: é um campo comparativo de investigação que examina todas as empresas, simples e complexas. As outras ciências sociais tendem a se concentrar em uma única sociedade, muitas vezes uma nação como Angola ou os Estados Unidos, enquanto a antropologia oferece uma perspectiva transcultural única, comparando constantemente as tradições de diferentes sociedades.

Conceito de cultura

No entanto, a cultura é uma característica única da espécie humana. As culturas são o conjunto de tradições e costumes, transmitidos por meio de formas de ensino para, que formam e orientam as crenças, visões de mundo e comportamento dos indivíduos na sociedade. As crianças aprendem essas tradições crescendo em uma sociedade específica, por meio de um processo chamado inculturação. As tradições culturais incluem costumes e opiniões, desenvolvidos ao longo das gerações, sobre quais são seus comportamentos próprios e impróprios. Essas tradições respondem a perguntas como: Como devemos fazer as coisas? Como é possível dar sentido ao mundo? Como podemos distinguir o certo do errado? O que é certo e o que é errado? Uma cultura cria uma certa coerência e homogeneidade no comportamento e modo de pensar dos indivíduos que vivem dentro de uma determinada sociedade.

Antropologia simbólica

O elemento mais importante das tradições culturais é a sua transmissão através do ensino, e não através da herança biológica. Embora não seja biológica em si, a cultura ainda se baseia em algumas características da biologia humana. Por mais de um milhão de anos, os humanos demonstraram possuir pelo menos algumas das capacidades biológicas das quais depende o desenvolvimento da cultura: a capacidade de aprender, pensar simbolicamente, usar a linguagem e empregar ferramentas e outros produtos para aprender, organizar a vida e adaptar-se ao meio ambiente.

Antropologia comparativa

A antropologia compara e avalia a diversidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço, a antropologia confronta as questões subjacentes à existência e sobrevivência dos seres humanos: como o homem se originou, como o género Homo mudou, assim como ainda muda hoje.

Antropologia holística

A antropologia é uma ciência holística, que estuda a condição humana como um todo: passado, presente e futuro; biologia, sociedade, língua e cultura. A cultura é um aspecto crucial da adaptabilidade e do sucesso humano. Abrange as tradições e costumes de grupos humanos individuais - transmitidos por meio do ensino - que determinam o comportamento, as crenças e a visão de mundo daqueles que pertencem a esses grupos. As forças culturais constantemente moldam e modificam a biologia e o comportamento dos seres humanos. A antropologia cultural examina a diversidade cultural do presente e do passado recente. Antropólogos físicos estudam registros fósseis, genética e crescimento corporal, bem como primatas. A antropologia está relacionada a muitas outras disciplinas, pertencentes tanto às ciências naturais (por exemplo, biologia) quanto às ciências sociais (por exemplo, sociologia).

Antropologia fisica

 Examinando ossos e objectos das culturas materiais antigas, é possível desvendar os mistérios das origens do homem. Quando nossos ancestrais se separaram daqueles ancestrais que descendiam dos macacos? Onde e quando surgiu o Homo sapiens? Como é que a nossa espécie mudou? O que somos hoje e para onde vamos? Como as mudanças culturais e sociais influenciaram a mudança biológica? O género ao qual pertencemos, Homo sapiens, está em constante fluxo há mais de um milhão de anos: os seres humanos nunca param de se adaptar e mudar seja biológicamente que culturalmente.

ADAPTAÇÃO, VARIAÇÃO E MUDANÇA

O conceito de adaptação refere-se aos processos pelos quais os organismos são capazes de superar com sucesso as tensões e forças adversas que actuam no ambiente em que se encontram, en quanto problemas relacionados ao clima e à topografia, ou seja, características físicas da superfície terrestre. Como é que os organismos mudam para poder viver em certos ambientes, como climas quentes e secos ou em altitudes extremas? Em que maneira outros animais, os humanos também exploram meios biológicos de adaptação. No entanto, os homens são os únicos que também possuem meios culturais de adaptação.

Antropologia histórica

Com o progresso da história humana, os meios de adaptação social e cultural adquiriram importância cada vez maior. No decorrer desse processo, os humanos desenvolveram várias formas de sobreviver nos diferentes ambientes que ocupam no tempo e no espaço. A velocidade da mudança e adaptação cultural acelerou, particularmente nos últimos 10.000 anos.

Colectores e caçadores

Por milhões de anos, a caça e a coleta de alimentos comestíveis encontrados na natureza foram a única base de subsistência do ser humano.

Agricultores

No entanto, foram necessários apenas alguns milhares de anos para a produção de alimentos (resultantes do cultivo de plantas e da domesticação de animais), que se originou há cerca de 12.000-10.000 anos, para substituir a caça e a coleta na maioria das áreas habitadas do planeta. Entre 6.000 e 5.000 a.C. surgiram as primeiras civilizações: sociedades grandes, poderosas e complexas, como o antigo Egito, que conquistou e governou vastas áreas geográficas.

Revolução industrial

Em tempos muito mais recentes, a expansão da produção industrial influenciou profundamente a vida humana. Ao longo da história humana, as principais inovações se difundiram, suplantando as anteriores. Toda revolução económica teve repercussões sociais e culturais. A economia global contemporânea e as comunicações modernas conectam todas as pessoas que vivem no mundo moderno, direta ou indiretamente, a um sistema que se estende em escala planetária. Os seres humanos são confrontados com forças geradas por sistemas progressivamente maiores: região, nação, mundo. O estudo dessas adaptações contemporâneas cria novos desafios e novas fronteiras para a antropologia: 'As culturas dos povos do mundo devem ser constantemente redescobertas à medida que esses povos as reinventam, mudando as circunstâncias históricas” (Marcus e Fisher 1986, p. 24).

AS DISCIPLINAS ANTROPOLÓGICAS

4 campos

Existem razões históricas para a inclusão das quatro subdisciplinas, mencionadas no início do parágrafo, em uma única disciplina, que é a abordagem típica, por exemplo, na América do Norte. A origem da antropologia como campo científico, e da antropologia americana em particular, remonta ao século XIX. Os primeiros antropólogos em Angola estavam focados principalmente na história e nas culturas dos nativos chamados indígenas. O interesse pelas origens e diversidade dos nativos angolanos combinou estudos sobre costumes, vida social, linguagem e até traços físicos. Os antropólogos ainda fazem perguntas semelhantes a estas: 'De onde vieram os !Kung?’, 'Quantas ondas de migração trouxeram os Bantu para Angola?’, 'Quais são as ligações linguísticas, culturais e biológicas entre os Bantu e as populações angolanas? '.

Há também razões lógicas para as respostas a algumas questões-chave da disciplina antropológica muitas vezes exigem uma compreensão tanto da biologia dos seres humanos quanto de sua cultura, tanto do passado quanto do presente. Cada subdisciplina considera a variação no tempo e no espaço (ou seja, em diferentes áreas geográficas). Antropólogos culturais e arqueólogos estudam em Mbanza Kongo (entre muitos outros tópicos) as mudanças na vida social e nos costumes. Antropólogos arqueológicos usaram estudos de sociedades activas e padrões de comportamento para imaginar como a vida poderia ter sido no passado.

A abordagem antropológica

Mas ao pensar antropologicamente também significa desenvolver um discurso sistemático sobre a diferença entre os modos de vida de diferentes povos, sobre como diferentes comunidades humanas se adaptam a diferentes ambientes, nos seus cultos, nas suas instituições sociais e políticas, bem como na sua sensibilidade estética e, na capacidade de criar uma técnica, para começar a procurar formas que nos aproximem aos outros, devemos reconhecer que antropologia cultural dos fãs, embora faça parte de uma 'família de antropologias' mais ampla, constitui um conhecimento particular, fruto de uma história particular e possuindo uma estrutura interna igualmente particular (Fabietti 2004:10)

 

Definição de cultura

«De facto, poderíamos dizer que a 'cultura' é um complexo de ideias, símbolos, ilusões e disposições historicamente transmitidas, adquiridas, selecionadas e amplamente compartilhadas por um certo número de indivíduos, através dos quais estes se aproximam do mundo. senso prático e intelectual».

Objecto da antropologia

O objecto privilegiado da antropologia são, acima de tudo, as diferenças entre as ideias e os comportamentos em vigor nas várias comunidades humanas. O que os antropólogos chamam de culturas são maneiras diferentes pelas quais os grupos de humanos compartilham certas ideias e certos comportamentos que o mundo enfrenta: pela interpretação. conhecendo, imaginando, adaptando-se, transformando-o. antropologia, no entanto, também queria destacar o que é comum ou relacionado entre eles, isto é, entre as várias maneiras pelas quais diferentes grupos humanos interpretam, imaginam, conhecem e transformam o mundo ao seu redor. De fato, se comportamentos e ideias expressos por grupos diferentes podem ser muito diferentes um do outro, também é verdade que o luto é uma expressão de uma atitude tipicamente humana, que faz do homem um produtor de cultura (Fabietti 2004:12).

A Antropologia visa estudar o ser humano como ser biológico, cultural e social. A dimensão biológica do homem é objeto da Antropologia Física, área que se ocupa de factores genéticos e fisiológicos do ser humano.  A Antropologia Cultural visa estudar a cultura humana, ou seja, todos os aspectos da produção simbólica, religiosa, artística, jurídica, ética que caracterizam uma cultura. Um campo paralelo à Antropologia Cultural é constituído pela Antropologia Social, que visa estudar os sistemas presentes em uma cultura, como sistema de parentesco, político, e instituições.

É importante apontar que esses dois campos, cultural e social, dos estudos antropológicos se aproximam do campo da Sociologia, mas não se confundem com ele, para os antropólogos o objecto será sempre a cultura e a alteridade, enquanto que para os sociólogos é a sociedade e o facto social. O limite entre as duas disciplinas tende quase a desaparecer, mas estão presentes. É necessário considerar a antropologia como uma rede de conhecimento

 

 O QUE É ANTROPOLOGIA?

 A Antropologia também compreende divisões internas, com base em modalidades de estudos realizados, em relação principalmente a culturas específicas. Pode-se apontar a Etnografia, como observação e descrição de culturas, e à Etnologia como estudo comparativo e analítico da cultura, sendo a Antropologia a combinação dos estudos etnográficos e etnológicos, buscando interpretação e síntese.

O que é antropologia?

A antropologia, como história ou economia, é uma disciplina académica. Nos Estados Unidos, é composta por quatro campos inter-relacionados que buscam explorar todas as facetas da humanidade, desde suas origens até os dias atuais. A antropologia biológica ou física é o estudo dos seres humanos como organismos biológicos, induzindo a evolução e suas variedades contemporâneas. A arqueologia estuda as culturas humanas anteriores por meio de seus vestígios materiais. A antropologia linguística é o estudo da comunicação humana, incluindo suas origens, história e mudanças e variações contemporâneas. A antropologia cultural é o estudo dos povos atuais e de suas culturas, induzindo mudanças e variações contemporâneas. Cultura é o conjunto de crenças e comportamentos aprendidos e compartilhados pelas pessoas.

Cada um desses campos contribui para a disciplina geral com contribuições teóricas e aplicadas. Este livro defende uma perspectiva em que a antropologia aplicada, como a antropologia teórica, deve ser considerada, ao invés de uma quinta área, uma parte integrante e importante dos quatro campos da especialização. Alguns exemplos de antropologia aplicada nos quatro campos: antropologia forense, conservação de primatas não humanos, assistência em programas de alfabetização para refugiados e assessoria a empresas sobre as preferências das pessoas.

 

O que é antropologia cultural?

A antropologia cultural é um campo da antropologia geral que se concentra no estudo dos humanos contemporâneos. Cultura é definida como as formas compartilhadas e aprendidas de se comportar e pensar. Possui certas especificidades que o distinguem dos demais campos da antropologia geral e de outras disciplinas académicas. O relativismo cultural, atribuído a Franz Boas, é um princípio orientador amplamente adotado por outras disciplinas. A antropologia cultural valoriza e trabalha para manter a diversidade cultural.

A antropologia cultural tem uma rica história de abordagens teóricas e mudanças temáticas de interesse. Três debates teoricamente importantes são aqueles que sustentaram o determinismo biológico contra o construcionismo cultural, a antropologia interpretativa contra o materialismo cultural e a agenda individual contra o estruturalismo. Cada um deles, à sua maneira, tenta entender e explicar por que as pessoas se comportam e pensam da maneira que agem, e explica as diferenças e semelhanças entre as culturas.

Definição de cultura

Cultura é o conceito-chave da antropologia cultural. Ao longo da história da disciplina, muitas

são as definições de cultura. Muitos antropólogos definem cultura como comportamento e pensamento aprendidos e compartilhados; outros equiparam cultura a ideias apenas e excluem o comportamento como parte da cultura. É mais fácil entender a cultura quando consideramos suas características: a cultura está relacionada com a natureza, mas não é igual a ela; as culturas estão todas integradas em si mesmas; e as culturas interagem com outras culturas e mudam. Quatro modelos de integração cultural implicam diferentes graus de conflito, mistura e resistência. As pessoas participam em diferentes níveis de cultura, incluindo microculturas locais moldadas por factores como classe, 'raça', etnia, indigeneidade, género, idade e instituições.

Quais são as características distintivas da antropologia cultural?

A antropologia cultural forneceu dois conceitos poderosos para a compreensão do mundo que foram adoptados por outras disciplinas: relativismo cultural e etnocentrismo. Esses princípios continuam a moldar nosso pensamento em antropologia cultural.

O conhecimento sobre as culturas é construído 'no campo'. As descobertas da antropologia cultural vêm principalmente de experiências de primeira mão no campo. Essas perspectivas e um conhecimento surgido do campo levam directamente a assumir um compromisso que valoriza e mantém a diversidade cultural. Os diferentes modelos ou modos de vida das culturas em todo o mundo mostram como as pessoas podem se adaptar às mudanças de situações em diferentes climas.

A antropologia cultural pode ser uma base ou suplemento importante para sua carreira. Ao fazer um curso de antropologia, a consciência da diversidade cultural do mundo e a importância da compreensão intercultural são ampliadas. Funcionários em muitas áreas, como saúde pública, ajuda humanitária, agentes da lei, negócios ou educação, valorizam cada vez mais os diplomas em antropologia cultural. No mundo diverso e interconectado de hoje, ser culturalmente informado e sensível às culturas é essencial.

A mudança nos métodos de pesquisa em antropologia cultural

Os métodos atuais em antropologia cultural diferem em vários aspectos daqueles usados no século XIX. A maioria dos antropólogos atuais coleta seus dados por meio de trabalhos de campo, ou seja, vendo para o campo, onde estão as pessoas e as culturas, para conhecê-los diretamente. Eles também usam várias técnicas investigativas específicas levando em consideração seus objetivos.

Antropologia cultural

A antropologia cultural é o estudo da sociedade e cultura humana, a disciplina que descreve, analisa, interpreta e explica semelhanças e diferenças sociais e culturais. Para estudar e interpretar a diversidade cultural, este setor da antropologia adota uma dupla abordagem: a etnográfica (baseada no feedback directo e no trabalho de campo) e a etnológica (baseada em comparações interculturais).

Etnografia

 A etnografia oferece a descrição de uma comunidade, sociedade ou cultura específica. Na fase de colecta de dados etnográficos, o etnógrafo recupera informações que depois organiza, descreve, analisa e interpreta para construir e apresentar o contexto examinado, na forma de volume, artigo ou vídeo. Tradicionalmente, os etnógrafos vivem em pequenas comunidades e estudam comportamentos, crenças, costumes e hábitos locais, vida social, atividades económicas, política e religião. Que tipo de experiência a etnografia representa para os próprios etnógrafos? A perspectiva antropológica derivada do trabalho de campo e da colecta de dados etnográficos é muitas vezes radicalmente diferente daquela da economia ou da ciência política. Esses setores concentram-se em organizações e políticas nacionais e oficiais e, muitas vezes, também em grupos de elite.

Os grupos tradicionalmente estudados pelos antropólogos eram geralmente bastante pobres e desprovidos de poder económico, como é o caso hoje da maioria dos povos do mundo. Os etnógrafos costumam observar práticas discriminatórias contra esses povos, que enfrentam fome, escassez de alimentos e outros aspectos relacionados à pobreza. Os cientistas políticos tendem a estudar programas desenvolvidos posteriormente em nível nacional, enquanto os antropólogos descobrem como esses programas são aplicados localmente.

As culturas não estão isoladas. Como observou um dos mais importantes antropólogos do século XX, Franz Boas (1940/1966), os contactos entre grupos vizinhos sempre existiram, mesmo abrangendo áreas muito extensas. “As populações humanas constroem as suas culturas não em estado de isolamento, mas interagindo entre si” (Wolf 1982 /1990, p. 27). Os habitantes das cidades e aldeias estão cada vez mais participando de eventos regionais, nacionais e até globais. O contato com forças externas ocorre através dos meios de comunicação de massa, fenómenos migratórios e modernos sistemas de transporte. Cidades e nações estão cada vez mais invadindo as comunidades locais com a chegada de turistas, agentes de desenvolvimento, autoridades governamentais e autoridades governamentais e religiosas, além de candidatos políticos. O estudo de tais conexões e sistemas faz parte do tema da antropologia moderna.

Etnologia

Embora em muitas tradições nacionais de estudo os termos antropologia cultural e etnologia tendam a se sobrepor em significado, com preferência pela primeira denominação, é bom definir o escopo dos estudos etnológicos. A etnologia visa examinar, interpretar, analisar e comparar resultados etnográficos, ou seja, os dados colectados em diferentes sociedades. Esses dados são usados ​​para identificar semelhanças e diferenças e chegar a generalizações sobre sociedade e cultura. Indo além do particular e caminhando para um domínio mais geral, os etnólogos procuram identificar e explicar diferenças e semelhanças culturais, verificar hipóteses e formular teorias que possam melhorar nossa compreensão do funcionamento dos sistemas sociais e culturais. Os dados utilizados para as atividades de comparação pelos etnólogos não derivam apenas da etnografia, mas também de outros setores secundários, em particular o da arqueologia e da história, quando fornecem informações úteis para reconstruir os sistemas sociais do passado.

 Antropologia Arqueológica

A antropologia arqueológica (ou, mais simplesmente, arqueologia) reconstrói, descreve e interpreta o comportamento humano e os modelos culturais através de restos materiais. Em lugares onde as pessoas vivem ou viveram, os arqueólogos encontram artefatos, móveis, materiais que os humanos produziram, usaram ou modificaram, como ferramentas, armas, prédios e até restos de lixo, como lixo. Restos de plantas e animais e lixo contam histórias sobre o consumo e as actividades humanas. Grãos silvestres e cultivados possuem características diferentes, que permitem aos arqueólogos distinguir entre colheita e cultivo de plantas. Ossos de animais revelam a idade e o sexo dos animais abatidos, fornecendo outras informações úteis para determinar se as espécies são selvagens ou domesticadas.

Ao analisar esses dados, os arqueólogos respondem a várias perguntas sobre economias antigas: 'O grupo obtinha carne da caça, ou o fazia domesticando e criando animais, matando apenas aqueles de certa idade e sexo?'; 'O alimento de origem vegetal veio de plantas silvestres ou de sementeira? ”; 'Os habitantes produziam, comercializavam ou compravam determinados objetos? ”; 'As matérias-primas estavam disponíveis localmente? Se não foram, de onde vieram?”. A partir de informações como essa, os arqueólogos reconstroem padrões de produção, comércio e consumo.

Os arqueólogos passaram muito tempo estudando, por exemplo, vasos e fragmentos de terracota. Os fragmentos são mais duráveis ​​do que muitos outros artefatos, como tecidos e madeira. A quantidade de fragmentos de cerâmica permite estimativas de tamanho e densidade populacional. A descoberta de que os oleiros usavam materiais não disponíveis localmente sugere, por exemplo, sistemas de negociação já ativos naquele momento. Semelhanças na produção e decoração entre diferentes locais geográficos podem ser evidências de conexões culturais. Grupos com fragmentos de cerâmica semelhantes podem compartilhar uma história e podem ter ancestralidade cultural em comum: talvez tenham trocado entre si ou pertencido ao mesmo sistema político.

Muitos arqueólogos estudam paleoecologia. Ecologia é o estudo das inter-relações entre os seres vivos em um determinado ambiente. Organismos e meio ambiente, juntos, constituem um ecossistema, baseado em trocas e fluxos. A ecologia humana estuda os ecossistemas que incluem as pessoas, focando nas maneiras pelas quais a exploração humana da natureza influencia e é influenciada por organizações sociais e valores culturais” (Bennett 1969 , pp. 10-11). A paleoecologia 'observa' os ecossistemas do passado.

Além de reconstruir modelos ecológicos, os arqueólogos podem deduzir transformações culturais observando, por exemplo, mudanças no tamanho e tipologia de sítios geográficos e na distância entre eles. Uma cidade desenvolve-se numa região onde existiam há alguns séculos pequenos povoados, aldeias e aldeias. A quantidade de níveis de assentamento (cidade, vila, bairros) em uma sociedade é uma medida do nível de complexidade social. Os edifícios oferecem pistas de características políticas e religiosas. Templos e pirâmides sugerem que uma sociedade antiga tinha uma estrutura hierárquica capaz de orientar o trabalho necessário para construir monumentos tão impressionantes. A presença ou ausência de algumas estruturas, como as pirâmides do Egito Antigo e do México, revela as diferenças entre os diferentes assentamentos. Por exemplo, algumas cidades eram lugares onde as pessoas vinham assistir e participar de cerimónias; outros eram cemitérios; outros ainda eram comunidades agrícolas.

Ao cavar, os arqueólogos também reconstroem padrões comportamentais e estilos de vida do passado. Isso envolve cavar através de uma sucessão de níveis em um determinado local. Em uma determinada área, ao longo do tempo, os assentamentos podem mudar de forma e propósito, assim como as conexões entre assentamentos. A actividade de escavação pode testemunhar mudanças nos campos econômico, social e político.

 

Da cadeira para o campo

A expressão 'antropologia de poltrona' refere-se à forma como os primeiros antropólogos culturais realizaram suas pesquisa de campo na área, entendendo por 'campo' qualquer lugar onde haja pessoas. observação participante método básico de trabalho de campo em antropologia que envolve viver em uma cultura por um longo período durante a coleta de dados.

perspectiva holística que sustenta que o pesquisador deve estudar todos os aspectos de uma cultura para compreendê-la.

pesquisa de campo multi-localizada realizada em mais de um lugar para compreender os comportamentos e ideias dos membros dispersos de uma cultura ou as relações entre os diferentes níveis, como a política estadual e a cultura local.

Antes que Bronislaw Malinowski fizesse seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, 1915-1918.

Os antropólogos pesquisavam, sentados em casa ou onde moravam e lendo o que outros escreveram sobre as culturas. Eles leram relatórios escritos por viajantes, missionários e exploradores, mas nunca visitaram esses lugares, nem tiveram experiência direta com as pessoas envolvidas na investigação.

No final do século XIX e no início do século XX, os antropólogos contratados por governos coloniais europeus deram um passo em direção ao conhecimento direto dos povos e culturas. Eles viajaram para os países colonizados da África e da Ásia, onde viveram perto, embora não com, as pessoas que estudaram. Essa abordagem é chamada de 'antropologia da varanda’, porque, normalmente, o antropólogo mandava chamar 'nativos' que iam a sua casa para serem entrevistados (antropólogos da varanda, que trabalhavam nas varandas de suas casas). Embora a antropologia da varanda fosse um avanço em relação à poltrona, ainda mantinha a distância entre a pesquisadora e as experiências do cotidiano das pessoas estudadas. Além disso, supôs que tudo o que aprenderam sobre uma cultura veio de alguns 'informantes' apenas (que também eram geralmente do sexo masculino).

Anteriormente nos Estados Unidos, em meados do século XIX, Lewis Henry Morgan deu alguns passos para familiarizar as pessoas por meio da observação direta. Morgan, um advogado, morava em Rochester, Nova York, perto do território iroquês, e se tornou amplamente conhecido por muitos Iroquenses. Essas experiências forneceram-lhe informações importantes sobre a vida cotidiana (Tooker 1992). Morgan mostrou que o comportamento e as crenças dos iroqueses faziam sentido se um estrangeiro passasse um tempo aprendendo-os por experiência direta. Seus escritos mudaram a percepção euro-americana até então predominante de que os iroqueses e outras tribos nativas eram 'selvagens perigosos'.

Observação do participante

Outro marco fundamental na pesquisa dos antropólogos começou no início do século XX, durante a Primeira Guerra Mundial, lançando as bases para o método atual da antropologia cultural: o trabalho de campo combinado com a observação participante. A observação participante é um método de pesquisa que envolve viver em uma cultura por um longo período durante a coleta de dados.

O 'pai' da observação participante foi Bronislaw Malinowski. Sou adepto do que em sua época foi um método inovador de aprendizado sobre cultura enquanto vivia nas Ilhas Trobriand, no Pacífico Sul, durante a Primeira Guerra Mundial. Morou dois anos em uma barraca junto com a população local, participando de suas atividades e vivendo, na medida do possível, como eles. Ele também aprendeu a entender e falar a língua deles.

Graças a essas metodologias inovadoras, que hoje são uma característica do trabalho de campo antropológico, convivendo com as pessoas e participando de seu cotidiano, Malinowski aprendeu mais sobre a cultura em seu contexto do que em relatos de segunda mão. Ao aprender a língua local, ele conseguiu falar com as pessoas sem usar intérpretes e obteve uma compreensão muito mais precisa de sua cultura.

Em meados do século XX, a observação participante tinha como objetivo fundamental registrar o máximo possível da pesquisa etnográfica.

A pesquisa etnográfica no início do século XX às vezes incluía a fotografia.  Os nativos das Ilhas Andaman veneram os ossos de seus parentes mortos Eles não querem que eles sejam despojados, estudados ou exibidos em museus.

• Viver com pessoas por um longo período de tempo

• Participar e observar a vida diária das pessoas

• Aprender o idioma local

 

Segundo o particularismo histórico, a antropologia inclui quatro ramos ou subdisciplinas:

 

Subcampos da Antropologia


(A) Antropólogos culturais, estudam populações vivas, costumam passar o  tempo vivendo com grupos culturais para obter perspectivas mais específicas so- bre essas culturas. A antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-1978), é um dos nomes mais reconhecidos da antropologia cultural, estudou os povos das Ilhas Samoa, perto de Papua Nova Guiné.

(B) Os arqueólogos estudam comportamentos humanos passados ao investigar material que os seres humanos deixaram para trás, como edifícios e outras estruturas. Em Angola o arqueólogo que Em Mbanza Kongo, os arqueólogos examina os restos do palácio do Rei do Kongo (cerca de 750-1000 dC).

(C) os Antropólogos linguísticos estudam todos os aspectos do uso da linguagem e da linguagem. Aqui, Leslie Moore, uma antropóloga linguística que trabalha em uma comunidade Fulbe no norte dos Camarões, registra como um professor guia um menino na memorização dos versos do Alcorão.

(D) Antropólogos físicos estudam evolução e variação humanas. Alguns antropólogos físicos estudam esqueletos do passado para investigar a evolução e a variação ao longo da história humana. Aqueles que trabalham em antropologia forense, uma especialidade da antropologia física, examinam esqueletos na esperança de identificar as pessoas do passado. Essa identificação pode ser de uma única pessoa ou de milhares.

 

Antropologia Cultural

É o estudo de culturas e sociedades de seres humanos e seu passado muito recente. Os Antropólogos culturais tradicionais estudam culturas vivas e apresentam as suas observações numa pesquisa etnográfica. O estudo das sociedades passadas e suas culturas, especialmente os restos materiais do passado, como ferramentas, restos alimentares e lugares onde as pessoas viviam. O estudo da linguagem, especialmente a forma como a linguagem é estruturada, a evolução da linguagem e os contextos sociais e culturais da linguagem. Os antropólogos culturais geralmente estudam as sociedades atuais em ambientes não-ocidentais, como na África, América do Sul ou Austrália. A cultura - definida como comportamento aprendido que é transmitido de pessoa para pessoa - é o tema unificador do estudo em antropologia cultural.

 

 

Antropologia física

Também chamada de antropologia biológica, a antropologia física é o estudo da evolução e variação humana, tanto passadas quanto atuais. Como exploraremos na próxima seção, a antropologia física lida com a evolução e variação entre os se- res humanos e seus familiares vivos e passados.

 

 

Arquelogia

Os arqueólogos estudam as sociedades humanas passadas, concentrando-se principalmente os seus restos materiais - como restos de animais e plantas e lugares onde as pessoas viviam no passado. Os arqueólogos são mais conhecidos pelo seu estudo de objetos da cultura material - artefatos - de culturas passadas, como armamento e cerâmica. Os arqueólogos estudam os processos por trás dos comportamen- tos humanos passados - por exemplo, por que as pessoas viviam onde eles faziam, por que algumas sociedades eram simples e outras complexas e por que as pes- soas passavam da caça e da coleta à agricultura, começando há mais de 10.000 anos. Os arqueólogos são os antropólogos culturais do passado - eles procuram reassemblar culturas do passado como se essas culturas estivessem vivas hoje.

 

Antropologia linguística

Os antropólogos linguísticos estudam a construção e o uso da linguagem pelas sociedades humanas. A linguagem definida como um conjunto de símbolos escritos ou falados que se referem a coisas (pessoas, lugares, conceitos, etc.) que não sejam eles mesmos - possibilita a transferência de conhecimento de uma pessoa para a próxima e de uma geração para outra. Difundido entre os antropólogos linguísticos é um subfilão chamado sociolinguística, a investigação dos contextos sociais da linguagem. Os antropólogos físicos (ou biológicos) estudam todos os aspectos da biologia humana presente e passada.

Nenhum antropólogo deve ser um especialista em todos os quatro ramos. Os antropólogos em todas as quatro áreas e com interesses muito diferentes reconhecem a diversidade da humanidade em todos os contextos. Nenhuma outra disciplina abraça a amplitude da condição humana dessa maneira. De fato, esta disciplina notavelmente diversa difere de outras disciplinas em seu compromisso com a noção de que os humanos são seres biológicos e culturais. Uma área central de interesse que muitos antropólogos compartilham é a inter-relação entre o que os seres humanos herdaram geneticamente e a cultura. Os antropólogos chamam esse enfoque de abordagem biocultural. A antropologia também difere de outras disciplinas em enfatizar uma abordagem comparativa ampla para o estudo da biologia e da cultura, olhando todas as pessoas (e seus antepassados) e todas as culturas em todos os momentos e lugares - é holística.

 

Introdução à antropologia social e cultural

A antropologia social e cultural para entender as diferenças nas abordagens teóricas para as duas escolas antropológicas (cultural - social) é necessário perceber as condições históricas em que elas se desenvolveram.

 Escola Americana: a antropologia cultural (Franz Boas)

Escola Inglesa: Antropologia Social (Bronislaw Malinowski)

diferenças entre os duas consistem nas abordagens:

 Compreender diferentes culturas e sociedades tornou-se uma necessidade para os países europeus a tomar as relações de dominação vantagem máxima em termos económicos e políticos. A Antropologia foi criada e desenvolvida para apoiar os esforços para a compreensão, controle e gestão das populações da colónia. Os antropólogos eram funcionários do governo que viajavam no campo (os territórios das colónias) para estudar as características das organizações sociais locais.

Em outros contextos (Itália, Alemanha e os países da Europa Central e Oriental) a antropologia nasceu como um impulso intelectual para coleta e registro de dados sobre aspectos históricos (e étnicos), hábitos e costumes, rituais e práticas locais (folclore e demologia).

Qual é a principal diferença entre as duas abordagens? O enfoque sobre o conceito de cultura ou sobre as organizações e estrutura social apresenta diferenças fundamentais nas abordagens das duas escolas de pesquisa. Antropologia é dividida nos Estados Unidos nas áreas de:

A antropologia cultural, por sua vez tem uma própria influxo nas disciplinas como a

No caso da antropologia social, ela influencia disciplinas como a

É um grupo complexo de disciplinas que se originou a partir de diferentes abordagens teóricas exercidas pelos envolvidos em antropologia.

No Reino Unido, a situação é menos complicada. A Antropologia Social tem as suas áreas de interesse:

Não há, como na América do Norte, uma clara separação dos campos pois eles não constituem disciplinas independentes, mas áreas de especialização.

O trabalho etnográfico da antropologia social é mais ricos em detalhes, coloca os diferentes aspectos das características sociais (política, econômica, jurídica, religiosa ...) de um determinado grupo e muitas vezes não são históricos, mas enquadrados sobre o que Malinowski chamou de 'etnográfica do presente.' Os trabalhos de campo americanos são mais amplos, muitas vezes domina a abordagem histórica e há uma maior ênfase no relacionamento entre as sociedades locais, tais como sociedade tradicional e contexto nacional ou global.

Base teórica: Durkheim

As bases teóricas da antropologia social estão a ser encontradas na obra do sociólogo francês Émile Durkheim. Três são substancialmente os pontos significativos do seu pensamento.

A supremacia da sociedade .

A sociedade é para Durkheim a organização suprema acima dos indivíduos. È um Entidade Abstracta com uma vida e suas funções com a capacidade de sobreviver às grandes mudanças históricas e continuar a existir. O destino do homem está intimamente ligado às características da estrutura social à qual pertence.

Organização social. 

As organizações sociais são baseadas nas relações inter-pessoais, na família, e no poder dos indivíduos.  Neste caso, a religião e rituais servem como normas de comportamento social e de códigos morais. Na sociedade capitalista, as relações se formalizaram por causa da burocracia.  Essa sociedade é regulada pelos códigos formais (leitura) e e pelas diferenças na divisão do trabalho gerando um acentuado individualismo.

O fenómeno social: diferenças sociais e culturais

O culto da personalidade e o individualismo, são caraterísticas da sociedade moderna.

 

Antropologia simbólica

A antropologia simbólica, que teve sua eflorescência na década de 1970, preocupa-se com a interpretação da cultura e a busca de significado. Essa ênfase está relacionada à centralidade do significado no estruturalismo de Lévi-Strauss, que é um dos seus antecedentes intelectuais. A cultura é vista como um sistema de símbolos, e a tarefa do antropólogo é decifrar seus significados. Na década de 1970, antropólogos como David Schneider e Clifford Geertz começaram a se concentrar no conjunto de significados inter-relacionados que as culturas codificam. A tarefa do antropólogo passou então a traduzir as camadas de significado de um fenômeno cultural particular em nossos conceitos e em nossa linguagem. Clifford Geertz (1972), em sua tentativa de entender o significado da briga de galo de Bali, chamou esse tipo de tradução de uma “descrição densa”. A descrição espessa significa que a cultura é vista como um texto a ser lido e interpretado. Essa ênfase na decifração de significado tem sido associada na antropologia ao particularismo e ao relativismo cultural, ambos basicamente anticomparativos. Se os antropólogos que escreveram etnografias recolhiam informações etnográficas na forma de textos, a análise antropológica era a análise de textos. Nos últimos anos, a abordagem de Geertz tornou-se cada vez mais semelhante à crítica literária. Em meados da década de 1980, em Works and Lives, Geertz (1988) analisou os relatos etnográficos de quatro antropólogos. Ele argumentou que a compreensão desses escritos é semelhante à compreensão de um corpo de trabalho ficcional de Melville ou Mark Twain. O significado de um texto é encontrado na voz do autor, e o material antropológico contido nele deve ser interpretado sob essa luz. Em contraste, Schneider continuou a ver cada etnografia como representando o sistema simbólico de uma cultura particular e singularmente diferente. Não havia espaço para uma abordagem comparativa na antropologia de Geertz e Schneider. Na tensão entre a antropologia como ciência buscando fazer generalizações através do uso da abordagem comparativa, e como um aspecto das humanidades que buscam a compreensão, a abordagem simbólica desceu diretamente do lado das humanidades.

Antropologia Histórica

Os antropólogos sempre se preocuparam com a dimensão temporal ou histórica da cultura. Os antropólogos de braços cruzados do século XIX construíram um esquema que tentou descrever a evolução da cultura humana. Os discípulos de Boas, especialmente A. L. Kroeber, e outros durante o início do século XX, tentaram reconstruir a história de culturas particulares, observando a disseminação de características culturais. Eles estavam lidando com culturas sem histórias escritas que eles poderiam consultar, e ainda, eles estavam interessados no que era chamado de 'cultura tradicional' naqueles dias. Isso tudo foi posteriormente condenado por Radcliffe Brown como 'história conjetural'. Mas, na época do contato ocidental, essas culturas estavam inseridas dentro de um quadro histórico de conquista e colonialismo, que muitos antropólogos da época não consideravam relevante. Claramente, o que estava sendo descrito do ponto de vista dos conquistadores, no arquivo e em outras fontes históricas, era significativo e importante para qualquer compreensão dessas culturas. À medida que os antropólogos britânicos começaram a prestar cada vez mais atenção aos efeitos do colonialismo nas pessoas que estavam estudando, eles reconheceram que a história era uma técnica para ajudar a explicar as consequências da influência europeia e que precisavam se familiarizar com as ferramentas do historiador colonial. Só então os antropólogos poderiam compreender a natureza da interação entre os colonizadores e aqueles que colonizaram e como cada um deles reconstruiu seu mundo como consequência do outro. Claramente, o controle, a dominação branca e a diferença na gestão do poder eram centrais em tal empreendimento intelectual. Os contextos regionais, de estado-nação e emergentes globais, com suas dimensões políticas e econômicas, também são significativos. Deve-se considerar como o local e o global se interpenetram ao longo do tempo. O que também é relevante nesse esforço foi como a relação entre pesquisa arquivística e etnografia deveria ser constituída. Como Cohen observou, o antropólogo deveria “tratar dos materiais da maneira como um antropólogo trata suas anotações de campo” . É claro que as metodologias tanto da história quanto da antropologia são relevantes para qualquer investigação. Ainda mais cedo, décadas atrás, antropólogos como dois dos autores deste livro (Rubel e Rosman) tiveram que prestar atenção ao contexto histórico em mudança da sociedade ou grupo social, com seu quadro de colonialismo e dominação, que eles estavam estudando. Estes seriam encontrados nos arquivos, que no caso do estudo de Cavazzi sobre os três Reinos: Congo Matamba e Ngola (1691) significava voltar ao material de três séculos para descobrir informações. O trabalho de José Redinha em Povos e Culturas de Angola (1973) traça continuidades entre documentos coloniais portugueses e idéias contemporâneas sobre etnias e identidade angolana. Aqueles que fazem o tal dito trabalho de etnohistória não só arquivam, mas também colectam materiais de história arqueológica e oral para traçar a história das culturas que não têm registro escrito. As narrativas dos povos locais de sua própria história são importantes. Isso inclui não apenas a história oral, mas a tradição e o mito (Balandier 1977: 148). Na sua versão da antropologia histórica, Balandier estava interessado na situação colonial que se desenvolveu entre colonizadores e colonizados. As populações angolanas reagiram à introdução do colonialismo, por sua vez, essas reações determinaram no nascer dos movimentos anticoloniais (Abranches, 1980). A abordagem teórica de Abranches, que combina história e antropologia, mostra como os angolanos perceberam o colono, após sua chegada em Angola, primeiramente, em termos de suas próprias categorias culturais. Mais tarde coma escravatura não só se afetou os eventos subsequentes envolvendo as relações entre angolanos e européus, angolanos e americanos (isto é, a história), mas também resultava em mudanças nas regras culturais angolanas de assimilação forçada (Atzori , 1978). Como Dirks, Eley e Ortner observam, “[Antropologia] tem se movido em uma direção histórica. Apenas um pouco menos óbvia, a história tornou-se cada vez mais antropológica ”(1994: 5). A antropologia não pode ser apenas o contexto histórico, significando apenas uma sequência temporal de eventos e transformações; deve ainda prestar atenção aos significados culturais, suas interpretações e como os indivíduos agem em termos desses significados culturais.

Pós-modernismo na antropologia

A partir das décadas de 1980 e 1990, a antropologia, juntamente com as outras ciências humanas, passou por uma reavaliação, que foi rotulada como pós-modernismo. As análises e traduções dos antropólogos das culturas de outros foram consideradas insuficientes e inadequadas. O pós-modernismo na antropologia encontrou falhas na generalização e numa abordagem mais científica. Eles desafiaram “a afirmação de que a ciência e o racionalismo podem levar a um conhecimento completo e preciso do mundo. . . argumentando que essas são formas específicas de conhecimento historicamente construídas ”(McGee e Warms 2008: 532). A antropologia sempre ocupou as humanidades e as ciências sociais. Os pós-modernistas achavam que a antropologia deveria abraçar totalmente o humanismo, enfatizando o relativismo cultural e procurando captar a singularidade de cada situação cultural, que os pós-modernistas consideravam perdida quando se generalizava. O etnógrafo traz consigo suas próprias categorias culturais e, portanto, não pode ser um observador objetivo e imparcial de outra cultura. O antropólogo deve estar ciente dessas categorias culturais, uma vez que elas enquadram a pesquisa. A ideia de que o antropólogo também poderia abranger a totalidade de outra cultura foi abandonada pela posição de James Clifford de que só podemos alcançar “verdades parciais” (1986). Clifford e outros pós-modernistas viram os textos etnográficos, que foram produzidos como representações ocidentais da cultura que está sendo examinada, como sendo refuncionalizados em categorias ocidentais. Uma vez que o etnógrafo e seus informantes, as pessoas dentro da cultura que fornecem informações, devem ser vistas como parte do mesmo tempo e espaço social, a tarefa do etnógrafo se torna a de um intérprete ou tradutor. Muitas vezes, a compreensão da cultura por parte do etnógrafo é apresentada na etnografia, juntamente com os entendimentos dos informantes para o público leitor, para tirar suas próprias conclusões. Alguns viram a etnografia, o produto do diálogo entre o informante e o pesquisador de campo, como não suficientemente representativa da variedade de pontos de vista ou ideias mantidas pelos indivíduos na cultura. Eles argumentaram que diferentes segmentos de uma sociedade podem ter opiniões contestadoras sobre os significados culturais e que visões opostas deveriam ser representadas na etnografia nas próprias palavras dos informantes. Para prestar mais atenção a essas visões, alguns antropólogos apresentaram suas análises aos seus informantes para comentários.
Alguns pós-modernistas preferem que as vozes dos informantes ocupem um lugar central ao contar sua história, utilizando a abordagem da história de vida, que tradicionalmente faz parte da metodologia antropológica. Isto é em resposta ao sentimento de que no passado as vozes dos sujeitos etnográficos foram marginalizadas ou deslocadas pela única voz autoritária do etnógrafo, a voz que contou “a história”. O papel do etnógrafo nativo, isto é, o indivíduo que é membro da cultura que recebeu treinamento como antropólogo também está relacionado à questão da representação. Tais indivíduos são vistos como tendo uma compreensão intuitiva da cultura e uma maior capacidade de empatia com as pessoas e interpretam sua cultura do que um antropólogo que é membro de outra cultura. No entanto, há aqueles que argumentam que uma maior empatia vem à custa da perspectiva e compreensão que um estranho pode trazer. Diz-se que os antropólogos angolanos que estudam sua própria cultura não podem ser objetivos, tendem a justificar o comportamento de maneira etnocêntrica e muitas vezes têm suas próprias agendas políticas. Quando a antropologia é vista como ciência, a observação desempenha um papel essencial. No entanto, para os pós-modernistas que enfatizam a visão humanista da antropologia, a observação desempenha um papel secundário nos diálogos com os informantes e no registro das informações que os informantes apresentam como um texto etnográfico. Nos relatos etnográficos que os pós-modernistas aplaudem, as estruturas conceituais analíticas são completamente ausentes porque se considera que em cada sociedade, que é considerada uma entidade única, as categorias devem ser entendidas em seus próprios termos e não podem ser equiparadas a categorias em outras sociedades. é feito em pesquisa comparativa entre culturas. Os antropólogos pós-modernistas consideraram a escrita de descrições etnográficas tão central que uma delas define a antropologia como “uma categoria discursiva, um tipo ou grupo de tipos de escrita que têm filiações importantes para outros campos culturais e acadêmicos modernos” (Manganaro, 1990, p. 5). ). Eles estão interessados em aprender que dispositivos retóricos estão sendo usados para convencer o leitor de que o pesquisador de campo estava “lá” e que suas observações e conclusões são representações precisas das vidas dos “outros” que os antropólogos estudaram. Quando a cultura é vista como um texto, como na visão de Geertz, e a etnografia se torna um tipo de escrita, a antropologia se aproxima muito mais da teoria literária. A antropologia, do ponto de vista pós-modernista, torna-se parte de uma nova abordagem humanista interdisciplinar, que também inclui filosofia, história, história da arte e arquitetura. Os pós-modernistas forçaram os antropólogos a repensar a natureza do trabalho de campo. Eles colocaram a ênfase na etnografia ao saber como o etnógrafo se autopercebe no trabalho de campo e como é percebido pela comunidade, pelos aspectos experienciais do campo. Este foco no etnógrafo é uma virada reflexiva recente na antropologia, como exemplificado pelo trabalho de Barbara Tedlock
.

 

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Cultural e Social

«explorar, novos mundos, estranhos em busca de novas formas de vida e novas civilizações, para chegar onde nenhum homem chegou antes. O desejo de conhecer o desconhecido, controlar o que está fora de controle, criar ordem a partir do caos encontra expressão em todos os povos da Terra. Criatividade, adaptabilidade e flexibilidade são atributos humanos elementares: a diversidade humana é o tema principal da antropologia.

 

Holismo

A antropologia é uma ciência especificamente comparativa e holística. Holismo refere-se ao estudo da condição humana considerada como um todo: passado, presente e futuro; biologia, sociedade, língua e cultura. A maioria das pessoas acredita que os antropólogos se dedicam ao estudo de fósseis e culturas pré-industriais não-ocidentais e, de fato, alguns estudiosos da antropologia estão engajados nessas atividades.

 

Comparação

Mas a antropologia é muito mais complexa do que o estudo de populações pré-industriais: é um campo comparativo de investigação que examina todas as sociedades, simples e complexas. As outras ciências sociais tendem a se concentrar em uma única sociedade, muitas vezes uma nação como Angola ou os Estados Unidos, enquanto a antropologia oferece uma perspectiva transcultural única, comparando constantemente as tradições de diferentes sociedades.

No entanto, a cultura é uma característica única da espécie humana. As culturas são o conjunto de tradições e costumes, transmitidos por meio de formas de ensino para, que formam e orientam as crenças, visões de mundo e comportamento dos indivíduos na sociedade. As crianças aprendem essas tradições crescendo em uma sociedade específica, por meio de um processo chamado inculturação. As tradições culturais incluem costumes e opiniões, desenvolvidos ao longo das gerações, acompanhadas por comportamentos próprios e impróprios. Uma cultura cria uma certa coerência e homogeneidade no comportamento e modo de pensar dos indivíduos que vivem dentro de uma determinada sociedade.

Antropologia simbólica

A cultura é transmitida através do ensino, e não herdada na herança biológica. Embora não seja biológica em si, a cultura ainda se baseia em algumas características da biologia humana. Por mais de um milhão de anos, os humanos demonstraram possuir pelo menos algumas das capacidades biológicas das quais depende o desenvolvimento da cultura: a capacidade de aprender, pensar simbolicamente, usar a linguagem e empregar ferramentas e outros produtos para aprender, organizar a vida e adaptar-se ao meio ambiente.

Antropologia comparativa

A antropologia compara e avalia a diversidade biológica e cultural humana no tempo e no espaço, a antropologia confronta as questões subjacentes à existência e sobrevivência dos seres humanos: como o homem se originou, como o género Homo mudou, assim como ainda muda hoje.

Antropologia holística

A antropologia é uma ciência holística, que estuda a condição humana como um todo: passado, presente e futuro; biologia, sociedade, língua e cultura. A cultura é um aspecto crucial da adaptabilidade e do sucesso humano. Abrange as tradições e costumes de grupos humanos individuais - transmitidos por meio do ensino - que determinam o comportamento, as crenças e a visão de mundo daqueles que pertencem a esses grupos. As forças culturais constantemente moldam e modificam a biologia e o comportamento dos seres humanos. A antropologia cultural examina a diversidade cultural do presente e do passado recente. Antropólogos físicos estudam registros fósseis, genética e crescimento corporal, bem como primatas. A antropologia está relacionada a muitas outras disciplinas, pertencentes às ciências naturais por exemplo a sociologia.

Antropologia fisica

 Examinando ossos e ferramentas antigas, é possível desvendar os mistérios das origens do homem. Quando nossos ancestrais se separaram daqueles ancestrais que descendiam dos macacos? Onde e quando surgiu o Homo sapiens! Como nossa espécie mudou? O que somos hoje e para onde vamos? Como as mudanças culturais e sociais influenciaram a mudança biológica? O género ao qual pertencemos, Homo, está em constante fluxo há mais de um milhão de anos: os seres humanos nunca param de se adaptar e mudar tanto biológica quanto culturalmente.

ADAPTAÇÃO, VARIAÇÃO E MUDANÇA

O conceito de adaptação refere-se aos processos pelos quais os organismos são capazes de superar com sucesso as tensões e forças adversas que actuam no ambiente relacionadas ao clima e à características físicas da superfície terrestre. Como os organismos se adaptam para poder viver em certos ambientes, com climas quentes e secos ou em altitudes extremas? No entanto, os homens são os únicos que também possuem meios culturais de adaptação.

Antropologia histórica

A velocidade da mudança e adaptação cultural acelerou, particularmente nos últimos 10.000 anos dando origem à.

Colectores e caçadores

Por milhões de anos, a caça e a colecta de alimentos comestíveis encontrados na natureza foram a única base de subsistência do ser humano.

Agricultores

No entanto, foram necessários apenas alguns milhares de anos para produzir alimentos (resultantes do cultivo de plantas e da domesticação de animais), isto aconteceu há cerca de 12.000-10.000 anos, para substituir a caça e a coleta na maioria das áreas habitadas do planeta. Entre 6.000 e 5.000 a.C. surgiram as primeiras civilizações: sociedades grandes, poderosas e complexas, como o antigo Egito, que conquistou e governou vastas áreas geográficas.

Revolução industrial

Em tempos muito mais recentes, a expansão da produção industrial influenciou profundamente a vida humana. Ao longo da história humana, as principais inovações se difundiram, suplantando as anteriores. Toda revolução económica teve repercussões sociais e culturais. A economia global contemporânea e as comunicações modernas conectam todas as pessoas que vivem no mundo moderno, direta ou indiretamente, a um sistema que se estende em escala planetária. Os seres humanos são confrontados com forças geradas por sistemas progressivamente maiores: região, nação, mundo. O estudo dessas adaptações contemporâneas cria novos desafios e novas fronteiras para a antropologia: 'As culturas dos povos do mundo devem ser constantemente redescobertas à medida que esses povos as reinventam, mudando as circunstâncias históricas” (Marcus e Fisher 1986, p. 24).

AS DISCIPLINAS ANTROPOLÓGICAS

Quatro campos

No mundo académico, a antropologia - ou o estudo do homem - difere de acordo com as tradições académicas nacionais. Nos Estados Unidos é costume dividir a 'antropologia geral' em quatro subdisciplinas principais:

Na Europa e na Itália, a distinção mais comum é aquela entre antropologia cultural e antropologia física (biológica). Em muitos casos, a antropologia cultural é chamada de etnologia e, hoje mais raramente, de antropologia social.

Existem razões históricas para a inclusão das quatro subdisciplinas, mencionadas no início do parágrafo, em uma única disciplina, que é a abordagem típica, por exemplo, na América do Norte. A origem da antropologia como campo científico, e da antropologia americana em particular, remonta ao século XIX. Os primeiros antropólogos em Angola estavam focados principalmente na história e nas culturas dos nativos chamados indígenas. O interesse pelas origens e diversidade dos nativos angolanos combinou estudos sobre costumes, vida social, linguagem e até traços físicos. Os antropólogos ainda fazem perguntas semelhantes a estas: 'De onde vieram os !Kung?’, 'Quantas ondas de migração trouxeram os Bantu para Angola?’, 'Quais são as ligações linguísticas, culturais e biológicas entre os Bantu e as populações angolanas? '.

Há também razões lógicas que exigem uma compreensão tanto da biologia dos seres humanos quanto de sua cultura, tanto do passado quanto do presente. Cada subdisciplina considera a variação no tempo e no espaço (ou seja, em diferentes áreas geográficas). Antropólogos culturais e arqueólogos estudam em Mbanza Kongo (entre muitos outros tópicos) as mudanças na vida social e nos costumes. Antropólogos arqueológicos usaram estudos de sociedades activas e padrões de comportamento para imaginar como a vida poderia ter sido no passado.

A abordagem antropológica

Mas se pensar antropologicamente também significa desenvolver um discurso sistemático sobre a diferença entre os modos de vida de diferentes povos, sobre como diferentes comunidades humanas se adaptam a diferentes ambientes, em seus cultos, em suas instituições sociais e políticas, bem como em sua sensibilidade estética e, ao criar uma técnica, para começar a procurar particularidades que os aproximem, devemos reconhecer que antropologia cultural constitui um conhecimento particular, fruto de uma história particular e com uma estrutura interna igualmente particular (Fabietti 2004:10)

 

Definição de cultura

«De facto, poderíamos dizer que a 'cultura' é um complexo de ideias, símbolos, ilusões e disposições historicamente transmitidas, adquiridas, selecionadas e amplamente compartilhadas por um certo número de indivíduos, através dos quais estes se aproximam do mundo. senso prático e intelectual».

Objecto da antropologia

O objecto privilegiado da antropologia são, acima de tudo, as diferenças entre as ideias e os comportamentos em vigor nas várias comunidades humanas. O que os antropólogos chamam de culturas são maneiras diferentes pelas quais os grupos de humanos compartilham certas ideias e certos comportamentos conhecendo, imaginando, adaptando-se, transformando o mundo: destacando o que é comum entre os diferentes grupos humanos que interpretam, imaginam, conhecem e transformam o mundo ao seu redor. De fato, se comportamentos e ideias expressos por grupos diferentes podem ser muito diferentes um do outro, também é verdade que o luto é uma expressão de uma atitude tipicamente humana, que faz do homem um produtor de cultura (Fabietti 2004:12).

A Antropologia visa estudar o ser humano como ser biológico, cultural e social. A dimensão biológica do homem é objeto da Antropologia Física, área que se ocupa de factores genéticos e fisiológicos do ser humano.  A Antropologia Cultural visa estudar a cultura humana, ou seja, todos os aspectos da produção simbólica, religiosa, artística, jurídica, ética que caracterizam uma cultura. Um campo paralelo à Antropologia Cultural é constituído pela Antropologia Social, que visa estudar os sistemas presentes em uma cultura, como sistema de parentesco, político, e instituições.

É importante apontar que esses dois campos, cultural e social, dos estudos antropológicos se aproximam do campo da Sociologia, mas não se confundem com ele, para os antropólogos o objecto será sempre a cultura e a alteridade, enquanto que para os sociólogos é a sociedade e o facto social. O limite entre as duas disciplinas tende quase a desaparecer, mas estão presentes. É necessário considerar a antropologia como uma rede de conhecimento

A Antropologia também compreende divisões internas, com base em modalidades de estudos realizados, em relação principalmente a culturas específicas. Pode-se apontar a Etnografia, como observação e descrição de culturas, e à Etnologia como estudo comparativo e analítico da cultura, sendo a Antropologia a combinação dos estudos etnográficos e etnológicos, buscando interpretação e síntese.

O que é antropologia?

A antropologia, como a história ou economia, é uma disciplina académica. Nos Estados Unidos, é composta por quatro campos inter-relacionados que buscam explorar todas as facetas da humanidade, desde suas origens até os dias atuais. A antropologia biológica ou física é o estudo dos seres humanos como organismos biológicos, induzindo a evolução e suas variedades contemporâneas. A arqueologia estuda as culturas humanas anteriores por meio de seus vestígios materiais. A antropologia linguística é o estudo da comunicação humana, incluindo suas origens, história e mudanças e variações contemporâneas. A antropologia cultural é o estudo dos povos atuais e de suas culturas, induzindo mudanças e variações contemporâneas. Cultura é o conjunto de crenças e comportamentos aprendidos e compartilhados pelas pessoas.

Cada um desses campos contribui para a disciplina geral com contribuições teóricas e aplicadas. Este livro defende uma perspectiva em que a antropologia aplicada, como a antropologia teórica, deve ser considerada, ao invés de uma quinta área, uma parte integrante e importante dos quatro campos da especialização. Alguns exemplos de antropologia aplicada nos quatro campos: antropologia forense, conservação de primatas não humanos, assistência em programas de alfabetização para refugiados e assessoria a empresas sobre as preferências das pessoas.

 O que é antropologia cultural?

A antropologia cultural é um campo da antropologia geral que se concentra no estudo dos humanos contemporâneos. Cultura é definida como as formas compartilhadas e aprendidas de se comportar e pensar. Possui certas especificidades que o distinguem dos demais campos da antropologia geral e de outras disciplinas académicas. O relativismo cultural, atribuído a Franz Boas, é um princípio orientador amplamente adotado por outras disciplinas. A antropologia cultural valoriza e trabalha para manter a diversidade cultural.

A antropologia cultural tem uma rica história de abordagens teóricas e mudanças temáticas de interesse. Três debates teoricamente importantes são aqueles que sustentaram o determinismo biológico contra o construcionismo cultural, a antropologia interpretativa contra o materialismo cultural e a agenda individual contra o estruturalismo. Cada um deles, à sua maneira, tenta entender e explicar por que as pessoas se comportam e pensam da maneira que agem, e explica as diferenças e semelhanças entre as culturas.

Definição de cultura

Cultura é o conceito-chave da antropologia cultural. Ao longo da história da disciplina, muitas

são as definições de cultura. Muitos antropólogos definem cultura como comportamento e pensamento aprendidos e compartilhados; outros equiparam cultura a ideias apenas e excluem o comportamento como parte da cultura. É mais fácil entender a cultura quando consideramos suas características: a cultura está relacionada com a natureza, mas não é igual a ela; as culturas estão todas integradas em si mesmas; e as culturas interagem com outras culturas e mudam. Quatro modelos de integração cultural implicam diferentes graus de conflito, mistura e resistência. As pessoas participam em diferentes níveis de cultura, incluindo microculturas locais moldadas por factores como classe, 'raça', etnia, indigeneidade, género, idade e instituições.

Quais são as características distintivas da antropologia cultural?

A antropologia cultural forneceu dois conceitos poderosos para a compreensão do mundo que foram adoptados por outras disciplinas: relativismo cultural e etnocentrismo. Esses princípios continuam a moldar nosso pensamento em antropologia cultural.

O conhecimento sobre as culturas é construído 'no campo'. As descobertas da antropologia cultural vêm principalmente de experiências de primeira mão no campo. Essas perspectivas e um conhecimento surgido do campo levam directamente a assumir um compromisso que valoriza e mantém a diversidade cultural. Os diferentes modelos ou modos de vida das culturas em todo o mundo mostram como as pessoas podem se adaptar às mudanças de situações em diferentes climas.

A antropologia cultural pode ser uma base ou suplemento importante para sua carreira. Ao fazer um curso de antropologia, a consciência da diversidade cultural do mundo e a importância da compreensão intercultural são ampliadas. Funcionários em muitas áreas, como saúde pública, ajuda humanitária, agentes da lei, negócios ou educação, valorizam cada vez mais os diplomas em antropologia cultural. No mundo diverso e interconectado de hoje, ser culturalmente informado e sensível às culturas é essencial.

A mudança nos métodos de pesquisa em antropologia cultural

Os métodos atuais em antropologia cultural diferem em vários aspectos daqueles usados no século XIX. A maioria dos antropólogos atuais coleta seus dados por meio de trabalhos de campo, ou seja, vendo para o campo, onde estão as pessoas e as culturas, para conhecê-los diretamente. Eles também usam várias técnicas investigativas específicas levando em consideração seus objetivos.

Antropologia cultural

A antropologia cultural é o estudo da sociedade e cultura humana, a disciplina que descreve, analisa, interpreta e explica semelhanças e diferenças sociais e culturais. Para estudar e interpretar a diversidade cultural, este setor da antropologia adota uma dupla abordagem: a etnográfica (baseada no feedback directo e no trabalho de campo) e a etnológica (baseada em comparações interculturais).

Etnografia

 A etnografia oferece a descrição de uma comunidade, sociedade ou cultura específica. Na fase de colecta de dados etnográficos, o etnógrafo recupera informações que depois organiza, descreve, analisa e interpreta para construir e apresentar o contexto examinado, na forma de volume, artigo ou vídeo. Tradicionalmente, os etnógrafos vivem em pequenas comunidades e estudam comportamentos, crenças, costumes e hábitos locais, vida social, atividades económicas, política e religião. Que tipo de experiência a etnografia representa para os próprios etnógrafos? A perspectiva antropológica derivada do trabalho de campo e da colecta de dados etnográficos é muitas vezes radicalmente diferente daquela da economia ou da ciência política. Esses setores concentram-se em organizações e políticas nacionais e oficiais e, muitas vezes, também em grupos de elite.

Os grupos tradicionalmente estudados pelos antropólogos eram geralmente bastante pobres e desprovidos de poder económico, como é o caso hoje da maioria dos povos do mundo. Os etnógrafos costumam observar práticas discriminatórias contra esses povos, que enfrentam fome, escassez de alimentos e outros aspectos relacionados à pobreza. Os cientistas políticos tendem a estudar programas desenvolvidos posteriormente em nível nacional, enquanto os antropólogos descobrem como esses programas são aplicados localmente.

As culturas não estão isoladas. Como observou um dos mais importantes antropólogos do século XX, Franz Boas (1940/1966), os contactos entre grupos vizinhos sempre existiram, mesmo abrangendo áreas muito extensas. “As populações humanas constroem as suas culturas não em estado de isolamento, mas interagindo entre si” (Wolf 1982/1990, p. 27). Os habitantes das cidades e aldeias estão cada vez mais participando de eventos regionais, nacionais e até globais. O contato com forças externas ocorre através dos meios de comunicação de massa, fenómenos migratórios e modernos sistemas de transporte. Cidades e nações estão cada vez mais invadindo as comunidades locais com a chegada de turistas, agentes de desenvolvimento, autoridades governamentais e autoridades governamentais e religiosas, além de candidatos políticos. O estudo de tais conexões e sistemas faz parte do tema da antropologia moderna.

Etnologia

Embora em muitas tradições nacionais de estudo os termos antropologia cultural e etnologia tendam a se sobrepor em significado, com preferência pela primeira denominação, é bom definir o escopo dos estudos etnológicos. A etnologia visa examinar, interpretar, analisar e comparar resultados etnográficos, ou seja, os dados colectados em diferentes sociedades. Esses dados são usados ​​para identificar semelhanças e diferenças e chegar a generalizações sobre sociedade e cultura. Indo além do particular e caminhando para um domínio mais geral, os etnólogos procuram identificar e explicar diferenças e semelhanças culturais, verificar hipóteses e formular teorias que possam melhorar nossa compreensão do funcionamento dos sistemas sociais e culturais (ver Seção 1.5). Os dados utilizados para as atividades de comparação pelos etnólogos não derivam apenas da etnografia, mas também de outros setores secundários, em particular o da arqueologia e da história, quando fornecem informações úteis para reconstruir os sistemas sociais do passado.

 Arqueologia

A antropologia arqueologia reconstrói, descreve e interpreta o comportamento humano e os modelos culturais através de restos materiais. Em lugares onde as pessoas vivem ou viveram, os arqueólogos encontram artefatos, móveis, materiais que os humanos produziram, usaram ou modificaram, como ferramentas, armas, prédios e até restos de lixo, como lixo. Restos de plantas e animais e lixo contam histórias sobre o consumo e as actividades humanas. Grãos silvestres e cultivados possuem características diferentes, que permitem aos arqueólogos distinguir entre colheita e cultivo de plantas. Ossos de animais revelam a idade e o sexo dos animais abatidos, fornecendo outras informações úteis para determinar se as espécies são selvagens ou domesticadas.

Ao analisar esses dados, os arqueólogos respondem a várias perguntas sobre economias antigas: 'O grupo obtinha carne da caça, ou o fazia domesticando e criando animais, matando apenas aqueles de certa idade e sexo?'; 'O alimento de origem vegetal veio de plantas silvestres ou de sementeira? ”; 'Os habitantes produziam, comercializavam ou compravam determinados objetos? ”; 'As matérias-primas estavam disponíveis localmente? Se não foram, de onde vieram?”. A partir de informações como essa, os arqueólogos reconstroem padrões de produção, comércio e consumo.

Os arqueólogos passaram muito tempo estudando, por exemplo, vasos e fragmentos de terracota. Os fragmentos são mais duráveis ​​do que muitos outros artefatos, como tecidos e madeira. A quantidade de fragmentos de cerâmica permite estimativas de tamanho e densidade populacional.

Muitos arqueólogos estudam paleoecologia. Ecologia é o estudo das inter-relações entre os seres vivos em um determinado ambiente. Organismos e meio ambiente, juntos, constituem um ecossistema, baseado em trocas e fluxos. A ecologia humana estuda os ecossistemas que incluem as pessoas, focando nas maneiras pelas quais a exploração humana da natureza influencia e é influenciada por organizações sociais e valores culturais” (Bennett 1969, pp. 10-11). A paleoecologia 'observa' os ecossistemas do passado.

Além de reconstruir modelos ecológicos, os arqueólogos podem deduzir transformações culturais observando, por exemplo, mudanças no tamanho e tipologia de sítios geográficos e na distância entre eles. Uma cidade desenvolve-se numa região onde existiam há alguns séculos pequenos povoados, aldeias e aldeias. A quantidade de níveis de assentamento (cidade, vila, bairros) em uma sociedade é uma medida do nível de complexidade social. Os edifícios oferecem pistas de características políticas e religiosas. Templos e pirâmides sugerem que uma sociedade antiga tinha uma estrutura hierárquica capaz de orientar o trabalho necessário para construir monumentos tão impressionantes. A presença ou ausência de algumas estruturas, como as pirâmides do Egito Antigo e do México, revela as diferenças entre os diferentes assentamentos. Por exemplo, algumas cidades eram lugares onde as pessoas vinham assistir e participar de cerimônias; outros eram cemitérios; outros ainda eram comunidades agrícolas.

Ao cavar, os arqueólogos também reconstroem padrões comportamentais e estilos de vida do passado. Isso envolve cavar através de uma sucessão de níveis em um determinado local. Em uma determinada área, ao longo do tempo, os assentamentos podem mudar de forma e propósito, assim como as conexões entre assentamentos. A actividade de escavação pode testemunhar mudanças nos campos econômico, social e político.

 

Da cadeira para o campo

A expressão 'antropologia de poltrona' refere-se à forma como os primeiros antropólogos culturais realizaram suas pesquisa de campo na área, entendendo por 'campo' qualquer lugar onde haja pessoas. observação participante método básico de trabalho de campo em antropologia que envolve viver em uma cultura por um longo período durante a coleta de dados.

perspectiva holística que sustenta que o pesquisador deve estudar todos os aspectos de uma cultura para compreendê-la.

pesquisa de campo multi-localizada realizada em mais de um lugar para compreender os comportamentos e ideias dos membros dispersos de uma cultura ou as relações entre os diferentes níveis, como a política estadual e a cultura local.

Antes que Bronislaw Malinowski fizesse seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand, 1915-1918.

Os antropólogos pesquisavam, sentados em casa ou onde moravam e lendo o que outros escreveram sobre as culturas. Eles leram relatórios escritos por viajantes, missionários e exploradores, mas nunca visitaram esses lugares, nem tiveram experiência direta com as pessoas envolvidas na investigação.

No final do século XIX e no início do século XX, os antropólogos contratados por governos coloniais europeus deram um passo em direção ao conhecimento direto dos povos e culturas. Eles viajaram para os países colonizados da África e da Ásia, onde viveram perto, embora não com, as pessoas que estudaram. Essa abordagem é chamada de 'antropologia da varanda’, porque, normalmente, o antropólogo mandava chamar 'nativos' que iam a sua casa para serem entrevistados (antropólogos da varanda, que trabalhavam nas varandas de suas casas). Embora a antropologia da varanda fosse um avanço em relação à poltrona, ainda mantinha a distância entre a pesquisadora e as experiências do cotidiano das pessoas estudadas. Além disso, supôs que tudo o que aprenderam sobre uma cultura veio de alguns 'informantes' apenas (que também eram geralmente do sexo masculino).

Anteriormente nos Estados Unidos, em meados do século XIX, Lewis Henry Morgan deu alguns passos para familiarizar as pessoas por meio da observação direta. Morgan, um advogado, morava em Rochester, Nova York, perto do território iroquês, e se tornou amplamente conhecido por muitos Iroquenses. Essas experiências forneceram-lhe informações importantes sobre a vida cotidiana (Tooker 1992). Morgan mostrou que o comportamento e as crenças dos iroqueses faziam sentido se um estrangeiro passasse um tempo aprendendo-os por experiência direta. Seus escritos mudaram a percepção euro-americana até então predominante de que os iroqueses e outras tribos nativas eram 'selvagens perigosos'.

 

Observação do participante

A observação participante é um método de pesquisa que comporta viver em uma cultura por um longo período para a colecta de dados.

O 'pai' da observação participante foi Bronislaw Malinowski.

Aplicou método inovador de aprendizado sobre cultura enquanto vivia nas Ilhas Trobriand, no Pacífico Sul, durante a Primeira Guerra Mundial. Abitou dois anos em uma barraca junto com a população local, participando de suas atividades e vivendo, na medida do possível, como eles. Ele também aprendeu a entender e falar a língua deles.

Graças a essas metodologias inovadoras, que hoje são uma característica do trabalho de campo antropológico, convivendo com as pessoas e participando de seu cotidiano, Malinowski aprendeu mais sobre a cultura participando no campo do que em estudos de segunda mão. Ao aprender a língua local, ele conseguiu falar com as pessoas sem usar intérpretes e obteve uma compreensão muito mais certa da cultura.

Em meados do século XX, a observação participante tinha como objetivo fundamental registrar o máximo possível da pesquisa etnográfica.

A pesquisa etnográfica no início do século XX às vezes incluía a fotografia. 

• Viver com pessoas por um longo período de tempo

• Participar e observar a vida diária das pessoas

• Aprender o idioma local

 

Segundo o particularismo histórico, a antropologia inclui 4 campos:

 


(A) Antropólogos culturais, estudam populações vivas, costumam passar o  tempo vivendo com grupos culturais para obter perspectivas mais específicas so- bre essas culturas. A antropóloga norte-americana Margaret Mead (1901-1978), é um dos nomes mais reconhecidos da antropologia cultural, estudou os povos das Ilhas Samoa, perto de Papua Nova Guiné.

(B) Os arqueólogos estudam comportamentos humanos passados ao investigar material que os seres humanos deixaram para trás, como edifícios e outras estruturas. Em Angola o arqueólogo que Em Mbanza Kongo, os arqueólogos examina os restos do palácio do Rei do Kongo (cerca de 750-1000 dC).

(C) os Antropólogos linguísticos estudam todos os aspectos do uso da linguagem e da linguagem. Aqui, Leslie Moore, uma antropóloga linguística que trabalha em uma comunidade Fulbe no norte dos Camarões, registra como um professor guia um menino na memorização dos versos do Alcorão.

(D) Antropólogos físicos estudam evolução e variação humanas. Alguns antropólogos físicos estudam esqueletos do passado para investigar a evolução e a variação ao longo da história humana. Aqueles que trabalham em antropologia forense, uma especialidade da antropologia física, examinam esqueletos na esperança de identificar as pessoas do passado. Essa identificação pode ser de uma única pessoa ou de milhares.

 

Antropologia Cultural

É o estudo de culturas e sociedades de seres humanos e seu passado muito recente. Os Antropólogos culturais tradicionais estudam culturas vivas e apresentam as suas observações numa pesquisa etnográfica. O estudo das sociedades passadas e suas culturas, especialmente os restos materiais do passado, como ferramentas, restos alimentares e lugares onde as pessoas viviam. O estudo da linguagem, especialmente a forma como a linguagem é estruturada, a evolução da linguagem e os contextos sociais e culturais da linguagem. Os antropólogos culturais geralmente estudam as sociedades atuais em ambientes não-ocidentais, como na África, América do Sul ou Austrália. A cultura - definida como comportamento aprendido que é transmitido de pessoa para pessoa - é o tema unificador do estudo em antropologia cultural.

Antropologia física

Também chamada de antropologia biológica, a antropologia física é o estudo da evolução e variação humana, tanto passadas quanto atuais. Como exploraremos na próxima seção, a antropologia física lida com a evolução e variação entre os se- res humanos e seus familiares vivos e passados.

 

 

Arquelogia

Os arqueólogos estudam as sociedades humanas passadas, concentrando-se principalmente os seus restos materiais - como restos de animais e plantas e lugares onde as pessoas viviam no passado. Os arqueólogos são mais conhecidos pelo seu estudo de objetos da cultura material - artefatos - de culturas passadas, como armamento e cerâmica. Os arqueólogos estudam os processos por trás dos comportamen- tos humanos passados - por exemplo, por que as pessoas viviam onde eles faziam, por que algumas sociedades eram simples e outras complexas e por que as pes- soas passavam da caça e da coleta à agricultura, começando há mais de 10.000 anos. Os arqueólogos são os antropólogos culturais do passado - eles procuram reassemblar culturas do passado como se essas culturas estivessem vivas hoje.

Antropologia linguística

Os antropólogos linguísticos estudam a construção e o uso da linguagem pelas sociedades humanas. A linguagem definida como um conjunto de símbolos escritos ou falados que se referem a coisas (pessoas, lugares, conceitos, etc.) que não sejam eles mesmos - possibilita a transferência de conhecimento de uma pessoa para a próxima e de uma geração para outra. Difundido entre os antropólogos linguísticos um subfilão chamado sociolinguística, a investigação dos contextos sociais da linguagem. Os antropólogos físicos (ou biológicos) estudam todos os aspectos da biologia humana presente e passada.

Nenhum antropólogo deve ser um especialista em todos os quatro ramos. Os antropólogos em todas as quatro áreas e com interesses muito diferentes reconhecem a diversidade da humanidade em todos os contextos. Uma área central de interesse que muitos antropólogos compartilham é a inter-relação entre o que os seres humanos herdaram geneticamente e a cultura. Os antropólogos chamam esse enfoque de abordagem biocultural. A antropologia também difere de outras disciplinas em enfatizar uma abordagem comparativa ampla para o estudo da biologia e da cultura, olhando todas as pessoas (e seus antepassados) e todas as culturas em todos os momentos e lugares - é holística.

 

Introdução à antropologia social e cultural

A antropologia social e cultural para entender as diferenças nas abordagens teóricas para as duas escolas antropológicas (cultural - social) é necessário perceber as condições históricas em que elas se desenvolveram. Escola Americana: a antropologia cultural (Franz Boas)

Escola Inglesa: Antropologia Social (Bronislaw Malinowski)

As diferenças entre os duas consistem nas abordagens:

Compreender diferentes culturas e sociedades tornou-se uma necessidade para os países europeus que tomar as relações de dominação vantagem máxima em termos económicos e políticos. A Antropologia foi criada e desenvolvida para apoiar os esforços para a compreensão, controle e gestão das populações da colónia. Os antropólogos eram funcionários do governo que viajavam no campo (os territórios das colónias) para estudar as características das organizações sociais locais.

Em outros contextos (Itália, Alemanha e os países da Europa Central e Oriental) a antropologia nasceu como um impulso intelectual para coleta e registro de dados sobre aspectos históricos (e étnicos), hábitos e costumes, rituais e práticas locais (folclore e demologia).

Qual é a principal diferença entre as duas abordagens? O enfoque sobre o conceito de cultura ou sobre as organizações e estrutura social apresenta diferenças fundamentais nas abordagens das duas escolas de pesquisa. Antropologia é dividida nos Estados Unidos nas áreas de:

A antropologia cultural, por sua vez tem uma própria influxo nas disciplinas como a

No caso da antropologia social, ela influencia disciplinas como a

É um grupo complexo de disciplinas que se originou a partir de diferentes abordagens teóricas exercidas pelos envolvidos em antropologia.

No Reino Unido, a situação é menos complicada. A Antropologia Social tem as suas áreas de interesse:

Não há, como na América do Norte, uma clara separação dos campos pois eles não constituem disciplinas independentes, mas áreas de especialização.

O trabalho etnográfico da antropologia social é mais ricos em detalhes, coloca os diferentes aspectos das características sociais (política, econômica, jurídica, religiosa ...) de um determinado grupo e muitas vezes não são históricos, mas enquadrados sobre o que Malinowski chamou de 'etnográfica do presente.' Os trabalhos de campo americanos são mais amplos, muitas vezes domina a abordagem histórica e há uma maior ênfase no relacionamento entre as sociedades locais, tais como sociedade tradicional e contexto nacional ou global.

Base teórica: Durkheim

As bases teóricas da antropologia social estão a ser encontradas na obra do sociólogo francês Émile Durkheim. Três são substancialmente os pontos significativos do seu pensamento.

A supremacia da sociedade .

A sociedade é para Durkheim a organização suprema acima dos indivíduos. È um Entidade Abstracta com uma vida e suas funções com a capacidade de sobreviver às grandes mudanças históricas e continuar a existir. O destino do homem está intimamente ligado às características da estrutura social à qual pertence.

Organização social. 

As organizações sociais são baseadas nas relações inter-pessoais, na família, e no poder dos indivíduos.  Neste caso, a religião e rituais servem como normas de comportamento social e de códigos morais. Na sociedade capitalista, as relações se formalizaram por causa da burocracia.  Essa sociedade é regulada pelos códigos formais (leitura) e e pelas diferenças na divisão do trabalho gerando um acentuado individualismo.

O facto social: diferenças sociais e culturais

O culto da personalidade e o individualismo, são caraterísticas da sociedade moderna.

 

Antropologia simbólica

A antropologia simbólica, que teve sua eflorescência na década de 1970, preocupa-se com a interpretação da cultura e a busca de significado. Essa ênfase está relacionada à centralidade do significado no estruturalismo de Lévi-Strauss, que é um dos seus antecedentes intelectuais. A cultura é vista como um sistema de símbolos, e a tarefa do antropólogo é decifrar seus significados. Na década de 1970, antropólogos como David Schneider e Clifford Geertz começaram a se concentrar no conjunto de significados inter-relacionados que as culturas codificam. A tarefa do antropólogo passou então a traduzir as camadas de significado de um fenômeno cultural representado nos nossos conceitos e em nossa linguagem. Clifford Geertz (1972), em sua tentativa de entender o significado da briga de galo de Bali, chamou esse tipo de tradução de uma “descrição densa”. A descrição espessa significa que a cultura é vista como um texto a ser lido e interpretado. Essa ênfase na decifração de significado tem sido associada na antropologia ao particularismo e ao relativismo cultural, ambos basicamente anticomparativos. Se os antropólogos que escreveram etnografias recolhiam informações etnográficas na forma de textos, a análise antropológica era a análise de textos. Nos últimos anos, a abordagem de Geertz tornou-se cada vez mais semelhante à crítica literária. Em meados da década de 1980, em Works and Lives, Geertz (1988) analisou os relatos etnográficos de quatro antropólogos. Ele argumentou que a compreensão desses escritos é semelhante à compreensão de um romance de Melville ou Mark Twain. O significado de um texto é encontrado na voz do autor, e o material antropológico contido nele deve ser interpretado sob essa luz. Em contraste, Schneider continuou a ver cada etnografia como representando o sistema simbólico de uma cultura particular e singularmente diferente.

Antropologia Histórica

Os antropólogos sempre se preocuparam com a dimensão temporal ou histórica da cultura. Os antropólogos construíram um esquema que tentou descrever a evolução da cultura humana. Os discípulos de Boas, especialmente A. L. Kroeber, e outros durante o início do século XX, tentaram reconstruir a história de culturas particulares, observando a disseminação de características culturais. Eles estavam lidando com culturas sem histórias escritas que eles poderiam consultar, e ainda, eles estavam interessados na 'cultura tradicional'. Isso tudo foi posteriormente condenado por Radcliffe Brown como 'história conjetural'. Mas, na época do contacto ocidental, essas culturas estavam inseridas dentro de um quadro histórico de conquista e colonialismo, que muitos antropólogos da época não consideravam relevante. Claramente, o que estava sendo descrito do ponto de vista dos conquistadores, no arquivo e em outras fontes históricas, era significativo e importante para qualquer compreensão dessas culturas. À medida que os antropólogos britânicos começaram a prestar cada vez mais atenção aos efeitos do colonialismo nas pessoas que estavam estudando, eles reconheceram que a história era uma técnica para ajudar a explicar as consequências da influência europeia e que precisavam se familiarizar com as ferramentas do historiador colonial. Só então os antropólogos poderiam compreender a natureza da interação entre os colonizadores e aqueles que colonizaram e como cada um deles reconstruiu seu mundo como consequência do outro. Claramente, o controle, a dominação branca e a diferença na gestão do poder eram centrais em tal empreendimento intelectual. Os contextos regionais, de estado-nação e emergentes globais, com suas dimensões políticas e econômicas, também são significativos. Deve-se considerar como o local e o global se interpenetram ao longo do tempo. O que também é relevante nesse esforço foi como a relação entre pesquisa arquivística e etnografia deveria ser constituída. Como Cohen observou, o antropólogo deveria “tratar dos materiais da maneira como um antropólogo trata suas anotações de campo” . É claro que as metodologias tanto da história quanto da antropologia são relevantes para qualquer investigação. Ainda mais cedo, décadas atrás, antropólogos como dois dos autores deste livro (Rubel e Rosman) tiveram que prestar atenção ao contexto histórico em mudança da sociedade ou grupo social, com seu quadro de colonialismo e dominação, que eles estavam estudando. Estes seriam encontrados nos arquivos, que no caso do estudo de Cavazzi sobre os três Reinos: Congo Matamba e Ngola (1691) significava voltar ao material de três séculos para descobrir informações. O trabalho de José Redinha em Povos e Culturas de Angola (1973) traça continuidades entre documentos coloniais portugueses e idéias contemporâneas sobre etnias e identidade angolana. Aqueles que fazem o tal dito trabalho de etnohistória não só arquivam, mas também colectam materiais de história arqueológica e oral para traçar a história das culturas que não têm registro escrito. As narrativas dos povos locais de sua própria história são importantes. Isso inclui não apenas a história oral, mas a tradição e o mito (Balandier 1977: 148). Na sua versão da antropologia histórica, Balandier estava interessado na situação colonial que se desenvolveu entre colonizadores e colonizados. As populações angolanas reagiram à introdução do colonialismo, por sua vez, essas reações determinaram no nascer dos movimentos anticoloniais (Abranches, 1980). A abordagem teórica de Abranches, que combina história e antropologia, mostra como os angolanos perceberam o colono, após sua chegada em Angola, primeiramente, em termos de suas próprias categorias culturais. Mais tarde coma escravatura não só se afetou os eventos subsequentes envolvendo as relações entre angolanos e européus, angolanos e americanos (isto é, a história), mas também resultava em mudanças nas regras culturais angolanas de assimilação forçada (Atzori, 1978). Como Dirks, Eley e Ortner observam, “[Antropologia] tem se movido em uma direção histórica. Apenas um pouco menos óbvia, a história tornou-se cada vez mais antropológica ”(1994: 5). A antropologia não pode ser apenas o contexto histórico, significando apenas uma sequência temporal de eventos e transformações; deve ainda prestar atenção aos significados culturais, suas interpretações e como os indivíduos agem em termos desses significados culturais.

Pós-modernismo na antropologia

 
A partir das décadas de 1980 e 1990, a antropologia, juntamente com as outras ciências humanas, passou por uma reavaliação, que foi rotulada como pós-modernismo. As análises e traduções dos antropólogos das culturas de outros foram consideradas insuficientes e inadequadas. O pós-modernismo na antropologia encontrou falhas na generalização e numa abordagem mais científica. Eles desafiaram “a afirmação de que a ciência e o racionalismo podem levar a um conhecimento completo e preciso do mundo. . . argumentando que essas são formas específicas de conhecimento historicamente construídas ”(McGee e Warms 2008: 532). A antropologia sempre ocupou as humanidades e as ciências sociais. Os pós-modernistas achavam que a antropologia deveria abraçar totalmente o humanismo, enfatizando o relativismo cultural e procurando captar a singularidade de cada situação cultural, que os pós-modernistas consideravam perdida quando se generalizava. O etnógrafo traz consigo suas próprias categorias culturais e, portanto, não pode ser um observador objetivo e imparcial de outra cultura. O antropólogo deve estar ciente dessas categorias culturais, uma vez que elas enquadram a pesquisa. A ideia de que o antropólogo também poderia abranger a totalidade de outra cultura foi abandonada pela posição de James Clifford de que só podemos alcançar “verdades parciais” (1986). Clifford e outros pós-modernistas viram os textos etnográficos, que foram produzidos como representações ocidentais da cultura que está sendo examinada, como sendo refuncionalizados em categorias ocidentais. Uma vez que o etnógrafo e seus informantes, as pessoas dentro da cultura que fornecem informações, devem ser vistas como parte do mesmo tempo e espaço social, a tarefa do etnógrafo se torna a de um intérprete ou tradutor. Muitas vezes, a compreensão da cultura por parte do etnógrafo é apresentada na etnografia, juntamente com os entendimentos dos informantes para o público leitor, para tirar suas próprias conclusões. Alguns viram a etnografia, o produto do diálogo entre o informante e o pesquisador de campo, como não suficientemente representativa da variedade de pontos de vista ou ideias mantidas pelos indivíduos na cultura. Eles argumentaram que diferentes segmentos de uma sociedade podem ter opiniões contestadoras sobre os significados culturais e que visões opostas deveriam ser representadas na etnografia nas próprias palavras dos informantes. Para prestar mais atenção a essas visões, alguns antropólogos apresentaram suas análises aos seus informantes para comentários.


Alguns pós-modernistas preferem que as vozes dos informantes ocupem um lugar central ao contar sua história, utilizando a abordagem da história de vida, que tradicionalmente faz parte da metodologia antropológica. Isto é em resposta ao sentimento de que no passado as vozes dos sujeitos etnográficos foram marginalizadas ou deslocadas pela única voz autoritária do etnógrafo, a voz que contou “a história”. O papel do etnógrafo nativo, isto é, o indivíduo que é membro da cultura que recebeu treinamento como antropólogo também está relacionado à questão da representação. Tais indivíduos são vistos como tendo uma compreensão intuitiva da cultura e uma maior capacidade de empatia com as pessoas e interpretam sua cultura do que um antropólogo que é membro de outra cultura. No entanto, há aqueles que argumentam que uma maior empatia vem à custa da perspectiva e compreensão que um estranho pode trazer. Diz-se que os antropólogos angolanos que estudam sua própria cultura não podem ser objetivos, tendem a justificar o comportamento de maneira etnocêntrica e muitas vezes têm suas próprias agendas políticas. Quando a antropologia é vista como ciência, a observação desempenha um papel essencial. No entanto, para os pós-modernistas que enfatizam a visão humanista da antropologia, a observação desempenha um papel secundário nos diálogos com os informantes e no registro das informações que os informantes apresentam como um texto etnográfico. Nos relatos etnográficos que os pós-modernistas aplaudem, as estruturas conceituais analíticas são completamente ausentes porque se considera que em cada sociedade, que é considerada uma entidade única, as categorias devem ser entendidas em seus próprios termos e não podem ser equiparadas a categorias em outras sociedades. é feito em pesquisa comparativa entre culturas. Os antropólogos pós-modernistas consideraram a escrita de descrições etnográficas tão central que uma delas define a antropologia como “uma categoria discursiva, um tipo ou grupo de tipos de escrita que têm filiações importantes para outros campos culturais e acadêmicos modernos” (Manganaro, 1990, p. 5). ). Eles estão interessados em aprender que dispositivos retóricos estão sendo usados para convencer o leitor de que o pesquisador de campo estava “lá” e que suas observações e conclusões são representações precisas das vidas dos “outros” que os antropólogos estudaram. Quando a cultura é vista como um texto, como na visão de Geertz, e a etnografia se torna um tipo de escrita, a antropologia se aproxima muito mais da teoria literária. A antropologia, do ponto de vista pós-modernista, torna-se parte de uma nova abordagem humanista interdisciplinar, que também inclui filosofia, história, história da arte e arquitetura. Os pós-modernistas forçaram os antropólogos a repensar a natureza do trabalho de campo. Eles colocaram a ênfase na etnografia ao saber como o etnógrafo se autopercebe no trabalho de campo e como é percebido pela comunidade, pelos aspectos experienciais do campo. Este foco no etnógrafo é uma virada reflexiva recente na antropologia, como exemplificado pelo trabalho de Barbara Tedlock.

 

 Bibliografia

 

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Durkheim, É. (1919). Les Règle de la Méthode SOciologique. Paris: Félix Alcan.

Geertz, C. (2008). A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.

Geertz, C. (1988). Works and Lives. Stanford: University Press.

Kroeber, A., & Kluckhohn, C. (1952). Culture. A critical Review of Concept and Definition. Cambridge: Museum.

Radcliffe-Brown, A. R. (1958). Method in Social Anthropology. Chicago: The University of Chicago Press.

Cohen, J. (1982). Class and Civil Society: The Limits of Marxian Critical Theory. Amherst: University of Massachussets Press.

Montecuccolo, J. A. C. de. (1965). Descrição Histórica dos três reinos do Kongo, Matamba e Angola. Lisboa: Junta de Investigação do Ultramar.

Redinha, J. (1973). Etnias e culturas de Angola. Luanda: Instituto de Investigação Científica de Angola.

Balandier, G. (1977). Società e dissenso. Bari: Dedalo.

Abranches, H. (1984). Identidade e patrimonio cultural. Luanda.

 

4ª Lição 7 de Outubro 2023: Raça, cultura e etnia

                                                             

1.O que significa ASC:

Antropologia cultural

-

Etnologia

-

Demologia ou História das Tradições Populares.

São três ciências humanas e sociais cujo objeto é, ainda que vagamente, indicado pela etimologia: estudo do homem e das culturas humanas, nas suas articulações étnicas e nas suas expressões populares. O conceito de cultura é fundamental para a definição dessas disciplinas. Na antropologia, ao contrário da linguagem comum, quando falamos de cultura não nos referimos apenas aos elevados produtos do trabalho intelectual, como a arte, a literatura e assim por diante; pelo contrário, significa o complexo de elementos não biológicos através dos quais os grupos humanos se adaptam ao ambiente e organizam a sua vida social. Por exemplo, a cultura inclui as ferramentas e técnicas de trabalho, as instituições sociais, as formas de parentesco, a linguagem e os modos de comunicação, conhecimento, valores e crenças, gestos e as menores práticas cotidianas, e assim por diante. Na verdade, é impossível definir cultura através de uma lista: inúmeras definições do conceito foram propostas e é um ponto ao qual voltaremos.

No entanto, é necessário sublinhar a distinção entre aspectos biológicos e culturais: embora estejam inextricavelmente interligados nas nossas vidas, são, no entanto, objecto de ciências diferentes. As características e a evolução biológica da espécie humana são estudadas pela antropologia física, porque a Antropologia Cultural não concorda com a antropologia física? É uma disciplina baseada no conhecimento das ciências naturais, enquanto a antropologia cultural, como veremos, move-se numa dimensão próxima das da história e da filosofia, chegando muitas vezes ao ponto de rejeitar explicitamente o uso de metodologias naturalistas. Embora a integração seja muitas vezes e com razão desejada, os dois campos disciplinares - biológico e cultural - permanecem distantes e interagem pouco, devido às bases científicas e às experiências de investigação muito diferentes que caracterizam os seus praticantes. No entanto, teremos a oportunidade de ver, quão difícil e ambíguo é separar claramente a esfera “biológica” da esfera “cultural”: na verdade, é precisamente esta separação que pode impedir-nos de dissolver alguns dos problemas mais importantes da antropologia. .

 Com “Etnologia” referimo-nos principalmente a estudos sectoriais sobre povos e culturas específicas em todas as partes do mundo mas numa visão comparativa; “Demologia” significa o estudo da cultura popular e tradicional na nossa própria sociedade; por fim, em “Antropologia Cultural”, a ênfase é colocada em amplas abordagens teóricas e comparativas. A questão é ainda mais complicada pelo facto de, a nível internacional, estes termos serem utilizados com significados ligeiramente diferentes: por exemplo, em França, 'Ethnologie' geralmente indica todo o campo disciplinar; na Grã-Bretanha prevalece a denominação “Antropologia Social”. “Demologia”, então, é um termo apenas italiano, e o termo é usado em quase todos os lugares

“Folclore” para indicar tanto os estudos quanto seu objeto. Em todo o caso, estas são distinções que hoje fazem pouco sentido, dado o processo de globalização e as mudanças históricas radicais nos contextos em que os antropólogos se encontram trabalhando, o que, no entanto, nos leva a introduzir algumas referências históricas, sem as quais é impossível esclarecer a identidade das disciplinas DEA.

2. A origem da antropologia cultural

Foi na segunda metade do século XIX que a antropologia cultural se organizou como uma disciplina científica autónoma, com ensinamentos universitários específicos e um estatuto epistemológico próprio e peculiar. Seu “nascimento” é geralmente equiparado a 1871, ano de publicação de um livro de E.B. Tylor, intitulado Cultura Primitiva, que define e enfoca o campo de estudo da nova ciência - a cultura, precisamente. Claro, esta é uma data convencional. Alguns antropólogos gostam de remontar as suas origens, vendo precursores em várias épocas da história do pensamento: de Heródoto a um filósofo como Montaigne, à Société des observateurs de l'homme. Outros, pelo contrário, pensam que não podemos falar de uma antropologia moderna antes do século XX, isto é, antes do desenvolvimento daquelas metodologias de pesquisa de campo que se tornariam uma característica distintiva da disciplina no século XX. O facto é que, a nível institucional, a antropologia cultural foi estabelecida nas últimas décadas do século XIX, primeiro na escola evolucionista britânica e depois noutros países europeus e nos Estados Unidos. É o período do positivismo, de grande confiança. na ciência e no progresso, e de um desenvolvimento capitalista visto como imparável. É o período do triunfo do nacionalismo e do colonialismo. As classes dominantes europeias consideram-se a ponta de lança de uma civilização irresistivelmente projectada para o futuro, separada do resto do mundo pelo irreversível divisor de águas da modernização.

Neste clima, a antropologia é definida como a ciência do que a Europa deixou para trás, do que não ultrapassou a linha divisória. O título do livro de Tylor define com precisão o seu campo: o adjetivo “primitivo” é adicionado ao conceito de cultura. Comparada com outras ciências humanas, como a sociologia, a antropologia caracteriza-se pelo estudo dos 'primitivos' - isto é, precisamente daqueles grupos, intocados pela modernidade, que são ao mesmo tempo objeto da dominação e da violência colonial. As próprias classes subalternas das sociedades ocidentais são de alguma forma assimiladas a elas, em particular o mundo camponês, analfabeto e imerso em formas de vida tradicionais, muitas vezes vistas como verdadeiras “sobrevivências” da cultura primitiva. Os estudos do folclore são, portanto, apresentados como paralelos e complementares aos etnológicos, lidando com “diferenças internas” na cultura e não com “externas”.

Deve-se notar desde já que tudo isto está na origem de uma tensão intelectual que dominará, sem nunca ser totalmente resolvida num sentido ou noutro, todos os desenvolvimentos futuros da disciplina. Por um lado, falar da cultura dos primitivos significa ir contra um senso comum que os considera simplesmente como “bestiais” e desprovidos de qualquer cultura; significa reivindicar a sua humanidade comum, mostrando na verdade como estão mais próximos de “nós” (da Inglaterra vitoriana, por exemplo) do que gostamos de pensar. Neste sentido, a antropologia tem estado ao lado dos “primitivos” desde o início, contra o racismo biológico que afirma a sua inferioridade congénita e contra a dominação colonial que os torna mero objecto de administração. Desde o início, pelo menos num certo sentido, a antropologia opõe-se aos preconceitos etnocêntricos que absolutizam a “nossa” versão da humanidade e distorcem a dos outros em caricatura.

Por outro lado, porém, esta dominação – e a violência com que é exercida – não pode deixar de influenciar profundamente as próprias categorias epistemológicas da disciplina. Este último só pode pensar os primitivos a partir de um pressuposto fundamental de desigualdade, tanto mais profundo quanto mais implícito, que molda as suas categorias interpretativas. Neste sentido, falou-se mesmo numa “violência epistemológica” inerente às formas de representação, objectificação e classificação dos “outros” que a antropologia desenvolveu até finais do século XX. Isto não significa, contudo, que a história da antropologia cultural possa ser lida (como pretendem algumas críticas simplistas da actualidade) como uma espécie de reflexão ou cobertura ideológica do imperialismo.

3.objecto: alteridade cultural

Como mencionado, esta definição do objeto de estudo (as culturas “primitivas”), e das divisões disciplinares que dela derivam, já não fazem sentido nos cenários contemporâneos. No contexto da globalização, é óbvio que já não existem “primitivos”, isto é, povos que vivem literalmente no passado evolutivo, e é claro que os antropólogos já não podem considerar-se as vanguardas da cultura “moderna”. que são os primeiros a explorar as culturas de povos exóticos distantes, “trazendo-os para casa” na forma de descrições etnográficas. É difícil pensar hoje na antropologia como uma ciência em que “Nós” estudamos os “Outros”. Deparamo-nos com situações sociais em que nunca fica claro quem somos “Nós” e quem são os “Outros”. Como veremos melhor mais adiante, não é possível falar de “culturas” como entidades compactas, com fronteiras bem definidas e, sobretudo, coincidentes com um “povo” e um “território”.

No entanto, isso não significa que as diferenças culturais não existam mais. Pelo contrário: a globalização de certa forma os multiplica, ao mesmo tempo que fragmenta e mistura os seus contextos.Agora, nesta situação, a antropologia cultural continua a definir-se com base na sua vocação para o estudo das diferenças. Se há algo que as origens do século XIX têm em comum com os estudos atuais é precisamente esta vocação. Seja qual for o objeto de pesquisa - os cantos mais distantes do mundo ou a própria casa, por assim dizer - a compreensão antropológica não pode deixar de passar pelo prisma da diversidade cultural.

Claude Lévi-Strauss

Os antropólogos cunharam vários conceitos para expressar esta sua característica. Claude Lévi-Strauss, por exemplo, utilizou a imagem de um regard éloigné, o olhar de longe típico de quem se coloca profissionalmente no papel de outsider;

Clyde Kluckhohn

falou do método antropológico como um “longo passeio”, em oposição ao “curto passeio” de formas de conhecimento puramente especulativas que, em qualquer caso, não colocam o problema de lidar com a diversidade.

Francesco Remotti

O antropólogo italiano Francesco Remotti retomou esta expressão num importante livro, mostrando um contraste fundamental na história do pensamento ocidental: por um lado, aquelas abordagens, de Platão a Descartes e Kant, que através da análise do nosso modo de pensar tentam distai um conceito absoluto de racionalidade; por outro lado, as abordagens que, de Heródoto a Montaigne e ao segundo Wittgenstein, pensam que só podem definir a racionalidade passando pela multiplicidade empírica dos costumes locais, não absolutizando portanto o nosso ponto de vista, mas submetendo-o constantemente à prova da diversidade . Embora não isenta de ambiguidades (inerentes às suas origens positivistas), a antropologia toma partido desta longa jornada, tentando, aliás, sistematizar e tratar cientificamente aquelas comparações comparativas que a filosofia ou a literatura utilizaram de forma mais ocasional e impressionista.

Daí a importância que a comparação teve desde o início no pensamento antropológico e nas práticas de investigação. Comparação não significa necessariamente 'método comparativo', no sentido ingenuamente naturalista que os estudiosos do século XIX atribuíram ao termo - convencidos de serem capazes de realizar o generalizações comparativas mais ousadas (e muitas vezes improváveis) entre traços culturais pertencentes aos contextos históricos e sociais mais distantes, e ser capaz de extrair deles leis universais de desenvolvimento cultural.

Método comparativo

Como veremos, muitos discursos do século XX argumentaram explicitamente contra esse uso descontrolado do método comparativo. No entanto, a atitude comparativa nunca desaparece do conhecimento antropológico, manifestando-se talvez implicitamente nas formas mais elementares de descrição etnográfica, ou em grandes sistemas formalizados como os Arquivos de Área de Relações Humanas criados por George Murdock na década de 1940 (um gigantesco arquivo de dados etnográficos remontado a formatos padrão, com o objetivo de registrar e tornar comparativamente analisáveis ​​todas as culturas do mundo).

A atração irresistível pela alteridade cultural também está na base de uma vocação intrinsecamente crítica da antropologia em relação à sua própria sociedade e cultura. A comparação com os outros obriga-nos a rever e a ampliar continuamente as nossas categorias, daquilo que no nosso senso comum é normalmente dado como certo. Em última análise, a tarefa da antropologia é sempre mostrar que o que nos parece óbvio e natural não o é. A comparação com o diferente nos faz ver as coisas que nos são familiares sob uma luz diferente, o que as torna de certa forma “estranhas”; faz-nos ver o que normalmente não vemos precisamente porque o temos constantemente diante dos nossos olhos (este é o significado de “olhar de longe”). Acima de tudo, este “alienamento” sugere-nos que as nossas instituições e os nossos modos de vida não são os únicos possíveis e nem necessariamente os melhores. Ernesto de Martino, um dos fundadores da antropologia italiana moderna, chamou este encontro-choque com uma diversidade que provoca um curto-circuito nos nossos sistemas categóricos e nos obriga a revisá-los num processo de constante 'expansão da nossa consciência historiográfica' de um 'escândalo etnográfico'. Veremos, nos capítulos seguintes, como a análise de algumas práticas sociais “primitivas” e aparentemente bizarras nos obriga a repensar e a ver alguns dos próprios fundamentos da nossa vida social de uma forma nova e altamente crítica.

4. Pesquisa de campo.

Se a vocação para a diferença cultural caracteriza constitutivamente a antropologia, não lhe é exclusiva: na verdade, é uma característica que a disciplina partilha com importantes tradições do pensamento filosófico e do trabalho artístico e literário. Para distinguir a antropologia é, portanto, necessário introduzir outro traço peculiar, nomeadamente a dimensão da pesquisa de campo. Quaisquer que sejam os problemas teóricos que coloque, a antropologia tenta respondê-los através de investigações empíricas que passam pela experiência do trabalho de campo. O modelo clássico de trabalho de campo antropológico foi definido com as primeiras escolas do século XX, em particular as anglo-saxónicas, e é ligados aos nomes dos fundadores da disciplina, como Franz Boas nos Estados Unidos e Bronislaw Malinowski na Inglaterra. Contudo, os antropólogos vitorianos não eram pesquisadores de campo. Eles acreditavam que a recolha de dados empíricos e o trabalho teórico de análise e comparação deveriam permanecer separados, confiados a pessoas com diferentes funções e competências. Desenvolveram, portanto, o seu trabalho não “no campo”, mas na biblioteca, tendo como fontes os relatos de viajantes, naturalistas, missionários, funcionários coloniais - pessoas quase sempre sem formação específica, mas que tiveram contacto com culturas distantes e escreveram sobre eles. Do ponto de vista deles, o compromisso direto do estudioso com um campo específico de pesquisa teria contrastado com a amplitude do trabalho comparativo. Mas obviamente a sua 'antropologia de escritório', como a chamariam depreciativamente os seus sucessores, tinha a desvantagem de se basear em dados incertos, muitas vezes recolhidos de forma amadora e desprovidos de qualquer fiabilidade científica séria.

Malinowski

Nas escolas do século XX, ao contrário, a figura do teórico e a do pesquisador de campo fundem-se indissociavelmente, dando vida à figura peculiar do antropólogo - que no imaginário coletivo se apresentará como um estranho híbrido, meio estudioso académico. e metade viajante romântico e aventureiro. O manifesto programático desta nova figura encontra-se num livro que Malinowski publicou em 1922, com o sugestivo título Argonautas do Pacífico Ocidental. Estudioso polonês, mas com formação inglesa, Malinowski conduziu pesquisas aprofundadas no arquipélago melanésio das Trobriands durante os anos da Primeira Guerra Mundial, da qual o livro constitui o primeiro relato monográfico (encontrá-lo-emos novamente em breve porque é texto focado na descrição do anel kula, sistema complexo de troca cerimonial de objetos preciosos amplamente discutido por Mauss no Ensaio sobre a Dádiva). Ao apresentar a sua investigação, Malinowski reivindica a necessária co-presença no trabalho antropológico de duas dimensões até então distintas: a preparação teórica e metodológica, por um lado, e por outro, a experiência vivida directa da cultura que se pretende estudar. Sem a primeira dimensão, o observador não seria capaz de observar: isto é, não teria a capacidade de identificar as características relevantes de um contexto cultural, não seria capaz de transformar “documentos” ou “dados” são simplesmente experiências vividas. Por outro lado, sem a experiência da participação direta o teórico nunca compreenderia verdadeiramente outra cultura, não captaria os seus elementos “imponderáveis”, não seria capaz de entrar numa relação empática com ela.

Participar

É portanto necessário viver em comunidade, partilhar a sua vida quotidiana, estabelecer relações pessoais e próximas com os seus membros, participar nas práticas sociais mais importantes. Malinowski cunhou a expressão “observação participante” para indicar este estilo de pesquisa. Como muitas vezes acontece, é uma imagem ainda mais do que palavras que fixa o sentido: a fotografia que abre o livro de Malinowski e que nos mostra a sua tenda armada no meio da aldeia indígena. Eu estava entre eles, quer nos contar Malinowski, e isso me autoriza a falar sobre isso. O etnógrafo, com a sua “mobilidade” geográfica e cultural, apresenta-se assim como a figura perfeita (talvez a única) do mediador cultural, que reúne dois mundos de outra forma destinados a não se encontrarem.

Este estilo de observação participante tornar-se-á o padrão para muitas gerações subsequentes de antropólogos. Envolve uma permanência prolongada e intensiva no terreno, não menos de um ano, e conduzida em contacto próximo com os povos indígenas: isto significa cortar relações com outros ocidentais. e viver uma experiência de estranhamento radical da própria cultura de origem (experiência que pode provocar verdadeiras crises existenciais nos investigadores; é o caso do próprio Malinowski, como será demonstrado, com certo “escândalo” nos meios antropológicos, pela publicação póstuma de seu diário de campo).

Holismo

Neste tipo de pesquisa é necessário aprender a língua local e estudar não apenas um aspecto da cultura, mas a vida social como um todo: dos aspectos econômicos aos políticos, às estruturas de parentesco, às práticas religiosas e assim por diante. Na verdade, nenhum aspecto pode ser compreendido se não for colocado no contexto global (abordagem 'holística'). Além disso, a ênfase na participação vivida não deve fazer-nos esquecer a importância da utilização de ferramentas metodológicas específicas: por exemplo, esquemas genealógicos, entrevistas estruturadas (com a escolha criteriosa de informantes privilegiados) e sua transcrição, o arquivamento de artefactos, documentação fotográfica, terminando com a elaboração de notas e o diário de campo – talvez o instrumento mais típico e distintivo da investigação antropológica.

O modelo de trabalho de campo traçado por Malinowski permaneceu durante muito tempo como padrão de referência para muitas tradições antropológicas. Contudo, também não sobreviveu às transformações das últimas décadas. As condições do encontro etnográfico são hoje demasiado diferentes para que ainda seja possível imaginar o antropólogo como um herói solitário que, com a sua tenda e o seu diário de campo, explora uma cultura intacta na sua autenticidade.

Campo

Qualquer que seja o campo que escolha, o antropólogo hoje já o considera “cheio” de outros conhecimentos especializados, de meios de comunicação de massa globais, de turistas, quase sempre também de antropólogos nativos. O próprio conceito de “campo”, concebido na fase clássica segundo o modelo de lugares limitados e compactos (a ilha, a reserva indígena, a aldeia), corre o risco de desaparecer. A localidade única já não pode ser a unidade privilegiada de análise, quando a cultura e as pessoas circulam com a amplitude e a velocidade das comunicações globalizadas: a equação um território - um povo - uma cultura já não funciona, e as etnografias “multisite” tornam-se cada vez mais a norma. Além disso, os recentes debates epistemológicos contribuíram para abalar a confiança na objectividade da representação etnográfica, tornando os requisitos de investigação menos rígidos e abrindo caminho a novas configurações das relações entre a experiência subjectiva do campo e a sua restituição na escrita antropológica.

No entanto, embora em formas novas e mais variáveis, a investigação de campo continua a ser o núcleo central das disciplinas DEA. Os problemas que colocam às vezes não são diferentes daqueles enfocados pela filosofia, e talvez pela literatura e pela arte. O que caracteriza a resposta antropológica, porém, é o fato de passar pelo “campo”, ou seja, pela imersão e compartilhamento de práticas sociais, bem como pelas relações diretas e pelo diálogo com as pessoas protagonistas.

5. Os campos de pesquisa

Distinção entre diferentes especialidades antropológicas em relação

a) áreas geográfico-culturais.

(O modelo clássico de trabalho de campo acima descrito, com as exigências de uma longa permanência, a necessidade de aprender a língua, etc., implica que um académico, na sua carreira, não pode tornar-se especialista em mais de uma ou duas áreas culturais, três nos casos excepcionais) africanistas, oceanistas, americanistas, europeístas, estudiosos da Índia, do Médio Oriente, do Mediterrâneo etc., talvez partilhem bases teóricas e problemas, mas constituem-se como diferentes sms especiais, com as suas ferramentas específicas de comunicação científica (revistas, conferências, associações etc.). Raros são os casos de estudiosos que se aventuraram em mais de uma dessas grandes partições geoculturais

b) aspectos da cultura.

Embora a antropologia busque uma abordagem holística, como mencionado, em que os diferentes aspectos de uma cultura se iluminam mutuamente, é muito comum que os estudiosos se especializem em áreas específicas da vida sociocultural. Na fase clássica da disciplina, estas áreas são representadas principalmente por:

- parentesco, casamento, vida familiar

- economia (incluindo formas de trabalho e aspectos da cultura material)

- estratificação social, formas de política e poder

- linguagem

- religião e magia (rituais, mitos, práticas simbólicas)

- o campo estético.

Além destas grandes partições, especializações antropológicas ainda mais específicas foram estabelecidas: por exemplo:

antropologia médica, que estuda as variações culturais nas concepções e práticas relativas ao corpo, saúde, doença e cura

 etnociência, que estuda as formas de conhecimento naturalista e os processos cognitivos que as acompanham

antropologia psicológica, que estuda as variações interculturais na definição do conceito de pessoa, na constituição dos papéis sociais e de género, na manifestação das emoções

etnografia do diálogo, que se concentra na análise de microinterações linguísticas e comunicativas;

A lista poderia continuar. Para esses especialistas! depois devem ser acrescentados outros que, com o alargamento dos horizontes disciplinares que centram-se em novos objectos, ligados por exemplo à globalização e à mudança cultural, como a antropologia urbana, a antropologia do turismo, a do desporto, da educação, da mídia , violência.

Uma subdivisão em especialidades também deve ser mencionada em relação às fontes ou tipos de representação cultural que os estudiosos escolhem favorecer. Por exemplo, a antropologia dos museus, Museologia  é hoje um dos ramos mais importantes e compactos da disciplina. O mesmo se pode dizer da Antropologia Visual, que privilegia a análise de fontes icónicas e métodos fotográficos ou fílmicos de documentação e representação etnográfica. Falamos também de antropologia literária (utilização de obras literárias como fontes para o conhecimento de uma cultura, mas também utilização de recursos antropológicos na crítica literária), antropologia histórica (utilização de ferramentas antropológicas na análise de fontes historiográficas). Ressalte-se que a expressão antropologia filosófica indica uma tradição de estudos mais puramente filosófica;

Antropologia aplicada

Por último, uma nota sobre o uso generalizado da expressão antropologia aplicada', com esta denominação referimo-nos a estudos que não têm uma finalidade puramente cognitiva, mas são desde o início concebidos em relação a intervenções económicas e sociais, em particular como apoio a o desenvolvimento de projetos de cooperação internacional.

 

7. As principais direções teóricas

 

- Escola evolucionária britânica.

Edward B. Tylor, James G. Frazer; unidade intelectual da raça humana, concepção singular de 'cultura humana', método comparativo, busca pela origem dos fenômenos culturais (por exemplo, animismo como origem da religião), sobrevivências, estágios de desenvolvimento cultural (por exemplo, magia-religião-ciência), poligênese de fatos culturais semelhantes, intelectualismo e individualismo metodológico;

- escolas difusionistas:

monogênese, interesse pelos caminhos de difusão dos traços culturais de uma única área de origem

- Escola sociológica francesa

(Emile Durkheim, Marcel Mauss): representações coletivas, enraizamento social de fatos culturais, abertura de uma perspectiva funcionalista,

- particularismo histórico:

Franz Boas e a fundação da moderna escola antropológica norte-americana. Antievolucionismo, ceticismo em relação à comparação cultural ampla, pesquisa de campo e centralidade dos aspectos linguísticos. Determinismo Cultural vs. determinismo psicobiológico (o exemplo do livro de Margaret Mead sobre a adolescência em Samoa)

- Funcionalismo inglês.

 B Malinowski e as já mencionadas pesquisas na abordagem Trobriand Sincrônica (vs. diacrônica) e holística.

- estrutural-funcionalismo

Alfred Radcliffe-Brown e o estrutural-funcionalismo: a cultura como entidade orgânica. Explicar um traço cultural equivale a compreender como ele sustenta e preserva a estrutura social. Edward Evans-Pritchard. estudos de bruxaria entre os Azande e do sistema segmentar entre os Nuer. Ausência da dimensão histórica nas representações funcionalistas, que têm dificuldade em dar conta dos fenómenos de mudança cultural (mas reintrodução da compreensão histórica a partir precisamente do último Evans-Pritchard)

- Estruturalismo.

Claude Lévi-Strauss e a análise das “estruturas elementares de parentesco” e dos mitos ameríndios. Influência da linguística estrutural. Os diferentes aspectos da cultura como construções geradas a partir de matrizes cognitivas profundas (e inconscientes), regidas pelos princípios elementares dos sistemas cibernéticos (lógica binária), que a análise estrutural pode redescobrir ao penetrar na aparente heterogeneidade e variedade caótica de suas manifestações empíricas.

- Antropologia interpretativa.

 Clifford Geertz. O ser humano como “animal produtor de significados”. O exemplo da “piscadela”: a impossibilidade de uma descrição objetiva que não passe pelos significados que os próprios atores sociais atribuem às suas práticas. Etnografia como interpretação de interpretações.

 

RAÇA, CULTURA, ETNIA.

0. Alteridade

Os três termos que dão título a esta intervenção desempenharam um papel fundamental na forma como o século XX pensou a diversidade humana. Mais precisamente, refiro-me aqui ao tipo de diversidade que, de facto, é difícil de definir, excepto referindo-nos circularmente a esses próprios conceitos; o que não é, por exemplo, diversidade de gênero (homem-mulher), de geração (jovens-idosos), de classe (burguês-proletário). A diversidade ocasionalmente denominada racial, cultural ou étnica (as três noções se sobrepõem parcialmente, mas não coincidem, como veremos) é marcada pela pertença, quase sempre dada pelo nascimento, a grupos humanos caracterizados pela localização geográfica, por peculiaridades somáticas , linguísticas e religiosas, a partir da partilha de tradições ou percursos históricos capazes de produzir (mas mesmo este termo, como veremos, é controverso) identidades colectivas. Raça, cultura, etnia têm sido os pilares conceituais de tantas formas de conceber esta diversidade; e as tradições de pensamento que estas noções encontraram são ainda hoje uma referência essencial (positiva ou negativamente) para a compreensão dos novos problemas que a diversidade nos coloca.

Nesta intervenção, cujo carácter didáctico e não especializado sublinho, gostaria de começar por examinar separadamente as três noções, traçando um breve histórico e discutindo as respectivas implicações filosóficas, éticas e políticas. Na segunda parte, concentrar-me-ei nas formas como, na segunda metade do século XX, um discurso “culturalista” e um discurso “etnicista” suplantaram aquele discurso “racista” sobre a diversidade que tinha raízes profundas no século XIX e que atingiu a sua máxima e dramática realização prática na Shoah. Veremos como o culturalismo e o etnicismo, embora superem definitivamente muitos traços do pensamento racista, herdam dele algumas características e, em todo o caso, não estão isentos de tensões e contradições internas, tanto que podem fundar ideologias e práticas de uma orientação decididamente neo -natureza racista. Por último, colocarei a questão de saber se, face a tais dificuldades e contradições, é possível hoje continuar a utilizar - tanto conceptual como politicamente - os conceitos de identidade étnica e identidade cultural numa perspectiva anti-racista.

1. Raça

Como se sabe, o termo “raça” tem uma história relativamente recente. É usado desde o século XVI para indicar uma linhagem, o que na antropologia seria chamado de linhagem. A etimologia é bastante incerta: provavelmente vem do latim (gene)ratio. Mas só no século passado é que o termo assumiu o seu significado actual - um grupo humano caracterizado por especificidades somáticas e intelectuais e comportamentais que se presume serem biologicamente fundadas e transmitidas por herança. A noção de raça estabeleceu-se no século XIX como uma ferramenta conceptual para uma reflexão sobre as origens da raça humana em que a linguagem científica substituiu progressivamente (embora certamente não sem dor) a linguagem religiosa; e, por outro lado, como fulcro de uma concepção ético-política das relações entre o Ocidente e o resto do mundo que tem o seu correlato prático no colonialismo. A difusão do termo raça é, portanto, idêntica à das doutrinas racistas, que dominaram o pensamento antropológico em meados do século XIX e foram elaboradas em grande variedade na Europa e nos Estados Unidos. O mais famoso deles é provavelmente o do conde francês de Gobineau, que em 1856 publicou o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas. Os pontos-chave deste texto, que terá ampla difusão, podem ser resumidos da seguinte forma:

 

- a biologização ou naturalização de qualquer tipo de diferença entre culturas ou civilizações humanas;

- a afirmação de uma hierarquia rígida entre as raças, que naturalmente coloca a raça branca no topo;

- o horror da mistura racial.

A superioridade da raça branca seria demonstrada não apenas pelos resultados da civilização ocidental, mas também e sobretudo por factores estéticos, como a beleza, a proporção correcta dos membros, a regularidade dos traços faciais. A beleza física aparece como um sinal inequívoco de eleição - uma ideia que Gobineau partilha com autores anteriores que tentaram classificações naturalistas de grupos humanos.Entre outros, o próprio Linnaeus, um século antes (1758), propôs uma tipologia de subespécies humanas, baseada essencialmente na cor da pele, mas em que se confundiam características físicas, mentais, sociais e culturais, concebida como uma escada que conduzia dos macacos ao 'degrau mais alto' do homem europeu. Estes pensadores nem sequer tocam na ideia – que hoje é senso comum para nós – da relatividade dos julgamentos estéticos e dos critérios de beleza física.

Gobineau acredita que a raça branca, que criou uma civilização e uma moralidade superiores, em virtude do seu próprio sucesso está ameaçada pelo cruzamento com outras raças, que contaminam e empobrecem o seu património genético. Ele é um típico pensador reacionário do século XIX, um inimigo ferrenho da tradição iluminista, que acima de tudo tenta se opor à ideia da perfectibilidade do ser humano. O destino de cada grupo humano é marcado pela raça a que pertence: nada pode ser mudado. Não só não acredita no progresso, como a sua visão tende a ser degenerativa: a história implica uma mistura de raças que mina a sua autenticidade. Por exemplo, as civilizações grega e romana eram superiores à atual civilização da Europa, para Gobineau, porque as suas respetivas populações eram racialmente mais puras. A decadência da raça branca não pode ser interrompida. Já hoje, escreve Gobineau, é composto apenas por híbridos: é a parte do sangue ariano, já dividida muitas vezes, que ainda resiste nos nossos bairros e que é a única que sustenta a construção da nossa sociedade, a cada dia se move no extremo da sua reabsorção.

Mas no racismo do século XIX há outra vertente que se distancia do pessimismo reacionário e da visão degenerativa de Gobineau, e que de certa forma tem as suas raízes no legado do Iluminismo e no positivismo do século XIX, com toda a sua confiança no progresso. , na perfectibilidade do ser humano e nas políticas de engenharia biológico-social. É uma linha de pensamento que encontrará plena expressão nas teorias evolucionistas, inspirando-se em particular no trabalho de Darwin e Herbert Spencer. Darwin e o evolucionismo puseram fim à longa disputa entre as teorias monogenéticas e poligenéticas das raças, que tanto espaço teve na primeira metade do século XIX e que herdou as discussões do século XVI sobre a natureza - humana ou não - do Índios Americanos. A humanidade tem uma origem comum e as diferenças encontradas atualmente são resultado de um processo de evolução ou involução influenciado por circunstâncias históricas, condições ambientais e outros fatores “externos”? Ou, pelo contrário, as diferenças actuais referem-se a origens diferentes, portanto a peculiaridades “internas” e irredutíveis? O evolucionismo, por um lado, credencia a teoria monogenética; por outro lado, porém, parece legitimar crenças poligenéticas no caráter natural e irredutível da diversidade. A origem é única e as diferenças são forjadas no caminho evolutivo, nas formas como os diferentes grupos humanos se adaptam ao meio ambiente. Mas isto não quebra a classificação hierárquica das raças: na verdade, paradoxalmente, fortalece-a. Se todos têm a mesma origem, os diferentes resultados históricos que obtêm dependem de uma melhor adaptação, de uma supremacia ao nível da lei natural para a sobrevivência. Uma hierarquia é, portanto, confirmada e, além disso, legitimada por uma lei natural, que como tal é, por um lado, “objetiva” e, por outro, “boa” ou “justa”.

De meados do século XIX até boa parte do século XX, as crenças racistas fundamentais (embora com diferentes sotaques e sensibilidades) uniram o pensamento reacionário e progressista, a cultura cristã e científica e secularizada, as práticas sociais conservadoras e reformistas. O racismo preserva algo de ambas as tradições de pensamento: por um lado, a ideia de diferenças entre os seres humanos firmemente enraizada na biologia faz parte das reações do século XIX à modernidade, ao igualitarismo ou ao revolucionário; tem também a ver com a consolidação das relações de poder coloniais. Por outro lado, baseia-se antes no prestígio adquirido pelas ciências naturais, na convicção de serem capazes de alcançar um conhecimento integral do ser humano e da sua vida cultural e espiritual através dos seus métodos e, finalmente, no ideal de perfectibilidade tipicamente iluminista. . Ao contrário de Gobineau, os racistas progressistas acreditam que podem influenciar a evolução das raças humanas através da programação científica. As políticas biológicas parecem para alguns ser um dos caminhos possíveis para a utopia.

Este é o ponto que mais me interessa sublinhar. No século XIX, o conhecimento científico suplanta progressivamente outras formas de autoridade (como a tradição ou a autoridade religiosa nas sociedades de regimes antigos) na determinação de hierarquias e princípios de desigualdade entre grupos humanos. Mas a base assim fornecida para estas hierarquias é mais absoluta e rígido do que no passado, uma vez que as diferenças naturais não podem ser modificadas como as morais ou religiosas. Para os soldados de infantaria semitas, por exemplo, isto faz uma grande diferença. O anti-semitismo típico do século XX, que conduzirá à ideologia e prática nazis e à Shoah, está enxertado numa definição “científica” de raça com uma inclinação do século XIX, reinterpretando em novos termos uma longa tradição de preconceito religioso. Para este último, a diferença do judeu é certamente radical, mas encontra pelo menos um limite teórico na conversão. Embora culpada de gravíssimas perseguições, a infantaria semítica cristã dificilmente poderia ter concebido a ideia do extermínio total, entendido como a eliminação da face da terra de um património genético específico3.

No nazismo, o racismo científico combina-se com uma ideologia profundamente reacionária e antimodernista. Mas o racismo progressivo generalizado nos países democráticos também estabelece práticas de engenharia biológica, como a eugenia, que estão provavelmente na base das mais desastrosas manifestações contemporâneas de racismo. Como se sabe, a formulação dos princípios da eugenia está ligada ao nome de Francis Galton: porque não ajudar a evolução natural, favorecendo a reprodução dos melhores organismos e impedindo a reprodução dos mais fracos ou defeituosos? Os objectivos de melhoria progressiva e social, mesmo que muitas vezes misturados com indícios de racismo conservador, promovem as várias experiências eugénicas ou de biologia racial que, no século XX, envolveram muitas democracias liberais como os Estados Unidos ou - até depois da Segunda Guerra Mundial - a Suécia . Em muitos casos trata-se de experiências de esterilização forçada de indivíduos considerados desfavorecidos ou desajustados, supostamente portadores de genes fracos ou defeituosos. Considerado desta perspectiva, o projecto hitlerista de eutanásia, que levou à eliminação física de centenas de milhares de pessoas desviantes e “inaptas” no final da década de 1930, é apenas a manifestação extrema de uma tendência muito mais generalizada. No período pós-guerra, prevaleceu uma imagem do nazismo como uma monstruosidade histórica única e irrepetível. Na realidade, as políticas biológicas que prossegue (e às quais atribui importância decisiva) não são de todo únicas no contexto cultural daqueles anos: o nazismo representa uma peculiar declinação totalitária dele, que se destaca pelo seu carácter extremo, pela sua heróico, recuso-me a aceitar compromissos com aqueles sentimentos humanitários que o “novo homem” deve aprender a deixar para trás.

Segundo uma fascinante - embora na minha opinião parcial e desequilibrada - interpretação historiográfica, a natureza profunda dos regimes totalitários do século XX e dos principais horrores que acompanham a sua história remete precisamente para uma matriz progressista e iluminista. “Os horrores do século XX derivam das tentativas práticas de criar a felicidade, da ordem que a felicidade necessitava e do poder total necessário para estabelecer essa ordem”, escreve por exemplo Zygmunt Bauman, um dos autores mais representativos deste ponto de vista 1. A Shoah, os genocídios e as políticas raciais do século XX não contradizem, portanto, a modernidade, não são buracos negros num processo civilizatório que vai na direcção oposta: são de facto a consequência, o produto, em muitos sentidos. Entretanto, num sentido tecnológico óbvio, à medida que a modernidade produz armas com um potencial destrutivo sem precedentes; portanto, no sentido administrativo-burocrático, uma vez que só uma burocracia moderna forte é capaz de implementar práticas de engenharia social, bem como produzir aquela de-responsabilidade moral dos indivíduos que é condição para o extermínio em massa; finalmente, no sentido político e cultural, uma vez que as ideologias que produzem o genocídio, as totalitárias, germinam historicamente a partir do Iluminismo, das aspirações utópicas a uma sociedade ideal totalmente controlada pela razão e pela ciência. É contra este cenário sinistro que a história contemporânea do conceito de raça pode ser lida.

2. Cultura

Como os antropólogos definem cultura? No primeiro capítulo definimos cultura como os padrões de comportamento e ideias que os humanos adquirem como membros da sociedade, juntamente com os artefactos materiais e as estruturas que criam e utilizam. A cultura não se reinventa a cada geração; pelo contrário, aprendemos com outros membros dos grupos sociais aos quais pertencemos, embora mais tarde possamos modificar de alguma forma esta cultura. Conjunto de comportamentos e ideias que os seres humanos adquirem como membros da sociedade e que utilizam para se adaptar ao mundo em que vivem e para transformá-lo. herança. As crianças usam seus corpos e cérebros para explorar o mundo. Desde os primeiros dias de vida, porém, outras pessoas trabalham ativamente para direcionar as atividades e a atenção das crianças em direções específicas. Como resultado, a sua exploração do mundo não ocorre apenas por tentativa e erro: o caminho é iluminado para eles por outros que moldam as suas experiências e as suas interpretações dessas experiências. Nas ciências sociais, dois termos são usados ​​para se referir a este processo de aprendizagem moldado cultural e socialmente. A primeira, a socialização, é o processo através do qual aprendemos a viver como membros de um determinado grupo. Este processo envolve a aquisição da capacidade de dominar as competências necessárias à adequada interação com os outros e saber relacionar-se com as regras de comportamento estabelecidas pelo grupo social. O segundo termo, inculturação, refere-se aos desafios

O QUE É CULTURA?

“Cultura” é um complexo de ideias, símbolos, ações e disposições historicamente transmitidas, adquiridas, selecionadas e amplamente partilhadas por um certo número de indivíduos, através dos quais estes abordam o mundo no sentido prático e intelectual.

O objeto privilegiado da antropologia são as diferenças entre ideias e comportamentos que existem entre as várias comunidades humanas.

A NATUREZA DA CULTURA:

O genoma humano não possui as informações necessárias para poder lidar com o mundo que o cerca, o homem nasce incompleto.

Nossa maneira de lidar com o mundo nos foi ensinada pelo grupo com que viemos ao mundo, que por sua vez é fruto de uma longa história de relacionamento com o meio ambiente. Em pensamentos e ações, os seres humanos são determinados porque, para viver entre seus semelhantes, eles devem adotar códigos de comportamento prático e mental que sejam reconhecíveis e compartilhados por outros.

Os antropólogos destacaram algumas características da cultura no que diz respeito à forma como ela se organiza internamente, seu caráter instrumental e sua capacidade de adaptação e transformação.

 

A cultura como conjunto de modelos.

A cultura apresenta formas internas de organização, que nunca são rígidas e mecânicas e coincidem com os modelos que orientam as atitudes práticas e intelectuais de quem as compartilha. Sem esses modelos, os homens não seriam homens.

Modelos são conjuntos de ideias e símbolos típicos do contexto cultural em que vive o ser humano e que o servem de guias de comportamento e pensamento, introjetados por meio da educação, implícita ou explícita.

 

A cultura é operacional.

Sem modelos culturais, os homens não poderiam agir, pensar, sobreviver: na verdade, qualquer ato ou comportamento humano voltado para um propósito, material ou intelectual, é guiado pela cultura.

A cultura é operacional porque coloca as pessoas em posição de agir em relação aos seus objetivos, adaptando-se ao ambiente natural, social e cultural que as rodeia

 

HABITUS

 

Habitus (sociólogo francês Bourdieu): sistema duradouro de disposições, tanto físicas como intelectuais, que são o resultado da internalização de modelos de pensamento e comportamento desenvolvidos pela cultura em resposta ao ambiente físico, social e cultural que nos rodeia.

 

A cultura é seletiva.

Os modelos são alimentados por uma tensão contínua com outros modelos compartilhados pelos mesmos sujeitos. A cultura é um complexo de modelos transmitidos, adquiridos e selecionados: as gerações subsequentes herdam os modelos das gerações futuras e os integram aos novos com base em sua experiência no mundo em mudança ou na influência de modelos de outras culturas.

O princípio de seleção é ativado quando, ao adquirir novos modelos de diferentes culturas, estes se combinam com os vigentes ou se bloqueia a possível intrusão de modelos incompatíveis com os existentes. Por meio da implantação de processos seletivos, as culturas se revelam abertas e fechadas ao mesmo tempo. Não existem culturas totalmente abertas ou fechadas. São os processos de seleção que incluem ou excluem dos próprios modelos culturais de diferentes culturas que podem revelar-se prejudiciais.

 

A cultura é dinâmica.

As culturas não são entidades estáticas e fixas, mas produtos históricos. As culturas se transformam muito tanto por suas lógicas próprias quanto em relação aos elementos de origem externa.

 

A cultura é diferenciada e estratificada.

Em cada cultura existem diferentes maneiras de perceber o mundo, de se relacionar com os outros, de se comportar; os modelos culturais de referência costumam ser diferentes de acordo com o nível de escolaridade. Muitas vezes são os interesses e, portanto, a cultura dos sujeitos socialmente mais fortes que prevalecem: este é um aspecto definido pelo antropólogo Roger Keesing com o termo “controle cultural”.

Ele define a 'distribuição da cultura' como a forma como o conhecimento é dividido entre diferentes grupos sociais, entre indivíduos pertencentes a diferentes gerações e entre diferentes categorias sexuais.

 

Comunicação e criatividade.

A cultura existe na capacidade que o ser humano tem de transmitir mensagens, ou seja, de se comunicar. A dimensão comunicativa é fundamental para qualquer tipo de processo cultural. A cultura existe como um sistema reconhecível de signos, mas não significa que estes sejam fixos e repetíveis indefinidamente, mas podem ser combinados de acordo com sequências reconhecíveis mas inovadoras, capazes de criar novos significados.

 

A cultura é holística.

Os modelos culturais sempre interagem com outros modelos, e sua conjugação em um todo complexo mais ou menos coerente é chamada de 'cultura'. Para a contínua integração e conjugação de diferentes e novos modelos em relação aos existentes, a cultura é dita 'holística', isto é, integrada, complexa, formada por e

Por muito tempo, o conceito de cultura foi fundamental para a antropologia. Mais de um século atrás, no volume Primitive Cultures, o antropólogo britânico Sir Edward Tylor sugeriu que as culturas, ou seja, os sistemas que abrangem o comportamento e o pensamento humanos, obedecem às leis naturais e, portanto, podem ser estudadas cientificamente. A definição de cultura de Tylor ainda oferece uma visão geral do assunto principal da antropologia hoje e é amplamente citada:

'Cultura ... é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, direito , costume e quaisquer outras habilidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade '. (Tylor 1871, p. 1).

O conceito crucial é expresso na frase 'adquirido pelo homem como membro de uma sociedade'. A definição de Tylor foca nos atributos que os humanos adquirem não por herança biológica, mas por tradição cultural. A inculturação é o processo pelo qual uma criança assimila sua própria cultura.

A cultura é aprendida

A facilidade com que as crianças absorvem qualquer tradição cultural baseia-se na capacidade de aprender, elemento único e distintivo da humanidade. Outros animais podem aprender com a experiência: por exemplo, evitam o fogo depois de descobrir que está quente. Os animais sociais também aprendem com outros membros de seu grupo de membros. Os lobos, por exemplo, aprendem estratégias de caça com outros da matilha. Esse aprendizado social acaba sendo particularmente importante entre macacos e primatas, nossos ancestrais biológicos mais próximos. Mas a aprendizagem cultural humana depende da capacidade, exclusivamente desenvolvida pelo homem, de usar símbolos, signos que não têm uma conexão necessária ou espontânea com o que designam ou representam.

Sistemas simbólicos

Com base na aprendizagem cultural, os indivíduos criam, lembram e lidam com ideias e pensamentos; Eles também são capazes de compreender e aplicar sistemas e símbolos de aprendizagem cultural específicos. As culturas têm sido caracterizadas como conjuntos de 'mecanismos de controle - projetos, prescrições, regras, instruções (o que os engenheiros da computação chamam de' programas ') - para direcionar o comportamento ”(Geertz 1973/1987, p. 86). Esses 'programas' são assimilados pela população por meio do processo de inculturação referente a tradições específicas. Os indivíduos gradualmente internalizam um sistema previamente criado e definido de símbolos e significados e o usam para definir o mundo em que vivem, para expressar seus sentimentos e emoções e para fazer julgamentos. Esse sistema permite orientar seu comportamento e suas percepções ao longo da vida.

Aprendizagem cultural

Cada indivíduo começa imediatamente, por meio de um processo de aprendizagem consciente e inconsciente e interação com outros, a internalizar, ou seja, a assimilar uma tradição cultural por meio do processo de aculturação. A cultura às vezes é ensinada diretamente, como quando os pais dizem aos filhos para agradecerem se alguém lhes oferecer algo ou fizer um favor.

A cultura também é transmitida por meio da observação. As crianças prestam atenção às coisas ao seu redor e mudam seu comportamento não apenas porque outras pessoas sugerem que o façam, mas como resultado de suas próprias observações e consciência crescente do que sua cultura local considera certo e errado. A cultura também pode ser internalizada inconscientemente. Os americanos mantém o distanciamento quando duas pessoas falam, não porque foram avisados para manter uma certa posição em relação à outra pessoa, mas por meio de um processo gradual de observação, experiência e modificação consciente ou inconsciente de comportamento. Ninguém diz a outros grupos para observar uma distância menor ao falar com alguém , mas eles aprendem a fazer isso como parte de sua tradição cultural.

Os antropólogos concordam que o aprendizado cultural é processado de maneira única pelos seres humanos e que a cultura é prerrogativa de todos os indivíduos. Os antropólogos também aceitam uma doutrina indicada no século XIX com a definição de 'unidade psíquica do homem'. Isso significa que embora os indivíduos sejam diferentes em suas habilidades e tendências emocionais e intelectuais, todas as populações humanas têm as mesmas capacidades culturais: independentemente da aparência física ou etnia, as pessoas  de elementos que estão em uma relação de mútua interdependência.

A cultura é compartilhada

A cultura é um atributo que não pertence aos indivíduos em si, mas aos indivíduos como membros de grupos. A cultura é transmitida na sociedade: não aprendemos sobre a nossa cultura observando, ouvindo, falando e interagindo com muitas outras pessoas? Crenças, valores, memórias e expectativas compartilhadas conectam aqueles que cresceram na mesma cultura. A aculturação unifica os indivíduos por meio de uma série de experiências comuns.

Os pais de hoje eram os filhos de ontem. Se eles cresceram, por exemplo, em Luanda, eles absorveram certos valores e crenças ao longo das gerações. As pessoas se tornam agentes activos no processo de aculturação de seus filhos, assim como aconteceu com seus pais. Embora uma cultura esteja em constante mudança, algumas crenças, valores, visões de mundo e práticas educacionais essenciais continuam a persistir nela. Considere um exemplo simples, próximo de nós, de aculturação compartilhada que persiste ao longo do tempo. O facto de complementar com duas mãos, em sinal de respeito e de completa aceitação do hospede sem reservas.

Apesar da ideia de que todos deveriam 'pensar por si mesmos' e 'ter direito a uma opinião', pouco do que pensamos é original ou único: compartilhamos nossas opiniões e crenças com muitas outras pessoas. O poder de um background cultural compartilhado é tal que temos mais probabilidade de concordar e nos sentir à vontade com pessoas que são social, econômica e culturalmente semelhantes a nós. Esta é uma das razões pelas quais as pessoas no exterior tendem a se socializar com outras pessoas relacionadas ao grupo a que pertencem, mesmo como acontecia aos colonialistas franceses e portugueses nas colonias.

A cultura é simbólica Leslie White

O pensamento simbólico é único e de fundamental importância para o ser humano e para o aprendizado cultural. O antropólogo Leslie White definiu a cultura como dependente do simbolismo: a cultura é composta de ferramentas, utensílios, roupas, ornamentos, hábitos e tradições, instituições, crenças, rituais, jogos, obras de arte, linguagem e assim por diante (Branco 1959, p. 3).

Segundo White, a cultura se originou quando nossos ancestrais adquiriram a capacidade de usar símbolos, ou seja, de criar e dar significado a um objeto ou evento e, da mesma forma, de apreender e valorizar esses significados (White 1959, p. . 3).

Linguagem como dimensão simbólica

No contexto de uma língua ou cultura específica, um símbolo é algo verbal ou não verbal que representa outra coisa. Não há conexão óbvia, natural ou necessária entre o símbolo e o que ele representa. Um cachorro que late não é mais um cachorro do que um chien, cachorro, Hund, cabe ou mbwa, para usar as palavras que designam o animal 'cachorro' em francês, inglês, alemão, italiano e kikongo. A linguagem é uma das habilidades que distinguem o Homo sapiens. Na verdade, nenhum outro animal desenvolveu algo que se aproxime da complexidade da linguagem.

Os símbolos são geralmente linguísticos, mas também existem símbolos não verbais, como bandeiras. A água benta é um símbolo poderoso no contexto do catolicismo romano. Como acontece com todos os símbolos, a associação entre um símbolo (água) e o que é representado simbolicamente (santidade) é arbitrária e convencional. Em si mesma, a água não é inerentemente mais sagrada do que o leite, sangue ou outros líquidos naturais. E a água benta não é quimicamente diferente da água comum. A água benta é um símbolo válido dentro das crenças do angolano, que por sua vez faz parte de um sistema cultural internacional mais amplo. Nesse caso, um elemento natural foi arbitrariamente associado a um significado particular para os fiéis, que compartilham crenças e experiências comuns baseadas no aprendizado e transmitidas de geração em geração.

Por centenas de milhares de anos, os humanos compartilharam as habilidades nas quais a cultura se baseia: a habilidade de aprender, pensar simbolicamente, manipular a linguagem e usar ferramentas e outros produtos culturais para organizar a vida e a sobrevivência. Dentro do meio ambiente. Cada população humana contemporânea possui a habilidade de usar símbolos e, assim, criar e manter sua própria cultura. Nossos parentes mais próximos, chimpanzés e gorilas, fazem uso de habilidades culturais rudimentares, porém nenhum outro animal desenvolveu as habilidades culturais de aprendizagem, comunicação, armazenamento, processamento e uso da informação nos níveis alcançados pelo Homo sapiens.

Cultura e natureza

A cultura considera as necessidades biológicas primárias e naturais que compartilhamos com outros animais e nos ensina como expressá-las de maneiras específicas. Para os humanos, comer é um acto fundamental de sobrevivência, mas a cultura nos diz o que, quando e como comer. Em muitas sociedades, as pessoas comem sua refeição principal ao meio-dia; em outras, um jantar farto é o preferido. Os italianos, no café da manhã, são grandes consumidores de café expresso e pouco mais, enquanto os americanos bebem grandes quantidades de café light com leite frio. Em algumas regiões da Itália e na Espanha, o jantar chega muito tarde em comparação com os horários habituais no norte da Europa.

Os hábitos culturais, percepções e invenções moldam a 'natureza humana' em muitas direções.

Nossa cultura - e mudanças culturais - influenciam as maneiras como percebemos a natureza, a natureza humana específica e o que é 'natural'. Por meio da hidráulica, a barragem de Cambambe produz energia eléctrica, os avanços culturais tornaram possível superar muitas limitações 'naturais': prevenimos e tratamos doenças como o sarampo e a varíola, que mataram nossos predecessores;  mas não sabemos ainda lidar com o Covid.  Por meio da clonagem, os cientistas alteraram a maneira como consideramos a identidade biológica e o significado da própria vida. A cultura, é claro, não libertou o homem dos perigos e ameaças naturais: secas, inundações, terremotos e outras forças naturais perturbadoras regularmente ameaçam nosso desejo de mudar o meio ambiente por meio de construção, desenvolvimento e expansão.

A cultura é abrangente

Para os antropólogos, a cultura envolve muito mais do que requinte, gosto, sofisticação, educação e apreciação das artes plásticas. Todas as pessoas são 'cultas', não só apenas aquelas licenciadas. As forças culturais mais interessantes e significativas são aquelas que influenciam os indivíduos no dia a dia, em particular aquelas que actuam sobre as crianças nas etapas do processo de aculturação. Cultura, de acordo com a definição antropológica, inclui características que às vezes são consideradas triviais ou indignas de um estudo sério, como muitas expressões do feitiço. Para compreender a cultura ocidental contemporânea, é necessário considerar a televisão, fast-food, esportes, jogos.

A cultura é integrada

As culturas não são coleções desordenadas e aleatórias de crenças e tradições, mas têm um caráter integrado, ou seja, são sistemas estruturados segundo esquemas precisos. Se uma parte do sistema (por exemplo, a economia) sofre uma mudança, as outras partes também sofrem uma mudança. Por exemplo, na década de 1950, a maioria dos angolanos com um nível satisfatório de instrução planejava de estudar na metrópole. Em contraste, uma grande proporção das jovens de hoje com ensino médio ou superior que tem acesso à universidade e espera encontrar um emprego remunerado.

Quais são algumas das repercussões sociais da mudança econômica? As atitudes e comportamentos em relação ao casamento, à família e aos filhos mudaram: hoje, casar tarde, viver juntos e divorciar-se tornaram-se fenómenos mais comuns.  Trabalho e carreira competem com as responsabilidades conjugais e familiares, reduzindo o tempo disponível para cuidar dos filhos.

 

 

Existem limites em uma cultura?

As culturas não têm fronteiras claras, precisas e identificáveis ​​com certeza; têm núcleos fortes que os assimilam a uns e os diferenciam de outros.

 

A PESQUISA ANTROPOLÓGICA

O facto de reconhecer que a cultura é holística não implica o dever de a conhecer na sua totalidade, mas sim de a estudar numa perspectiva que nos predispõe a estabelecer ligações entre os vários aspectos da vida de quem a vive.

Os antropólogos geralmente estudam apenas certos aspectos de uma cultura, embora sejam forçados a considerar o fenômeno objeto de sua pesquisa em relação a todos os outros aspectos dessa cultura.

 

Etnografia e coleta de 'dados'.

É o elemento-chave da pesquisa antropológica, marca o encontro com outras realidades culturais que não as do estudioso, representa o estudo dessas realidades através de perspectivas e técnicas particulares.

A principal tarefa do antropólogo da área é coletar dados úteis para o conhecimento da cultura que se deseja estudar, que podem vir da coleta de histórias e mitos sobre a comunidade em questão, buscar informações sobre os ritos, mas acima de tudo a experiência pessoal do antropólogo que mora com aquelas pessoas que querem estudar.

A pesquisa antropológica também faz uso de entrevistas, compilação de tabelas e questionários, gravações audiovisuais, etc. O que diferencia a antropologia de outras ciências humanas é que os antropólogos passam muito tempo em contato próximo com as pessoas que pesquisam, colocando-se em 'observação participativa'

 

Observação do participante.

Ao passar muito tempo em contato com os convidados de sua pesquisa, o antropólogo acaba aprendendo a ver o mundo do seu ponto de vista e a entender como eles se veem em seu próprio mundo. Isso não quer dizer que o antropólogo esteja se tornando como seu hóspede, mas está absorvendo modelos culturais que antes não entendia, com a possibilidade de gerenciá-los e de implementar, se necessário, um processo de 'ir e vir' entre duas culturas, essencial para a pesquisa antropológica. O antropólogo pode ainda permitir uma observação imparcial da experiência compartilhada e participativa com aqueles que pertencem à cultura que investiga.

 

Centralidade da etnografia para a antropologia.

O pesquisador que entra em contato com diferentes populações deve realizar uma espécie de negociação, inclusive política, com os que pertencem a essa cultura. A dimensão etnográfica confere à antropologia uma peculiaridade única entre as ciências humanas, pois torna esta disciplina um conhecimento que se baseia no estudo de contextos socioculturais específicos e a partir de experiências diretas.

O conceito de cultura ao longo da história

O “conceito de cultura” que atravessa a história não é o antropológico, mas aquele relativo à formação intelectual, por exemplo, cultura na antiguidade clássica grega implicava certa formação nas matemáticas, poesia, filosofia, informação sobre outros povos, domínio de línguas, e capacidade de oratória.

Na Idade Média cultura era o conhecimento baseado nas línguas, latim, grego, leitura, escrita, filosofia, matemática, e evidentemente teologia.

 Tendências nos estudos da Antropologia, variantes no conceito de cultura.

O percurso realizado até agora seguiu, em linhas gerais, a constituição do conceito de cultura na formação das bases do pensamento ocidental, até chegar à formulação da ciência Antropologia. Notadamente nesse percurso a relação entre Homem e Sociedade ficou nas entrelinhas, como que “costurando” os vários momentos essenciais. Inegavelmente chegou-se à conclusão de que o homem é o construtor de sociedade, na variedade de condições dadas por uma história nem sempre escrita, mas sempre presente.

Resta agora traçar rapidamente como a ciência antropológica, em suas várias tendências, chegou a focalizar esse conceito central ao seu campo, “a cultura”.

O Evolucionismo Social

O Evolucionismo Social, ainda no século XIX, se valeu do estudo dos “povos primitivos”, buscando traçar uma linha de evolução do mais simples para o mais complexo, do primitivo para o civilizado. Contudo, nessa trajetória, o foco de análise não foram as raças (diferenças físicas observáveis), mas as diferenças culturais, notadamente de organização social, dos sistemas de parentesco, sobretudo de constituição da família, e também das formas religiosas, embora considerando algumas como “elementares”, portanto não como religiões propriamente.

def. de Edward Burnett Tylor 1871

Cultura é aquele complexo todo que inclui conhecimento, crença, arte, moralidade, lei, costume e quaisquer outras habilidades e hábitos adquiridos pelo homem como um membro da sociedade (Tylor 1872:1)

O termo cultura foi introduzido por E. Tylor em 1871 substituindo o de civilização, mas ao mesmo tempo abrangendo a produção material e espiritual do homem. Contudo Tylor admitia que houvesse um processo evolutivo de transmissão da cultura, que não se dava pela hereditariedade, ou pela genética, mas num processo natural, unilinear, do mais elementar ao mais complexo, obedecendo a leis que a Antropologia descobe e estuda.

Malinowski e o funcionalismo

A corrente que seguiu ao evolucionismo foi o funcionalismo de Malinowski que propunha um modelo para descrição e estudo empírico de culturas, partindo das necessidades humanas, escalonadas em necessidades primárias, aquelas que permitem ao indivíduo sobreviver (alimentação, abrigo, etc.), secundárias (aquelas relacionadas à sobrevivência e permanência do grupo) e terciárias, aquelas que permitem a interação entre grupos, ou culturas distintas.

O funcionalismo se caracteriza pelo estudo das culturas como totalidade, principalmente focalizando as relações funcionais entre as instituições, as quais respondem pela preservação do todo. Bronislaw Malinowski e Radcliffe Brown são autores que representam essa tendência.

Mas também essa tendência não foi aceite por todos os antropólogos, embora reconhecessem que ela era muito útil na sistematização de projetos de pesquisa de uma dada cultura em especial; (aliás, dizem as más línguas que o funcionalismo começou dessa forma com Malinowski).

Franz Boas e seus alunos

A reação ao evolucionismo de Tylor, assim como à ênfase nos estudos funcionalistas de culturas isoladas, e baseados em “necessidades”, veio com Franz Boas, com a ênfase no método comparativo para estudo das culturas, mas alertando para as limitações da comparação. Para Boas seria necessário estudar a história das culturas, sobretudo buscando os chamados “padrões culturais” (Benedict Ruth).

Os “padrões” aos quais Boas e Benedict Ruth se referem não são os padrões de comportamento individual, mas, grosso modo, os estilos de cultura. A postura de Boas e de seus seguidores formalizou-se na Antropologia Cultural, caracterizando a tendência dos estudos antropológicos dos USA. O conceito de “padrão cultural” terá importância significativa no desenvolvimento da antropologia, e foi utilizado por Margareth Mead em seus estudos da adolescência em Samoa, trabalho clássico, que comprovou que o período da “adolescência” é cultural e não biológico, e nos estudos sobre a relação sexo e cultura nas denominadas “culturas primitivas”.

Configuracionismo de Benedict Rut

Outra antropóloga importante nessa mesma tendência foi Ruth Benedict, coube a ela desacreditar o conceito de raça para a espécie humana, bem como estabelecer relações profundas entre padrão cultural e personalidade. Tema desenvolvido por vários autores posteriores, inclusive Kardiner.

Nessas alturas, entre anos 20 e 30 do século XX, outro antropólogo deve ser mencionado, exatamente pelo conceito de cultura que ele desenvolve: Alfred Kroeber conceitua cultura como nível “superorgânico” da existência. Para ele as relações entre aspectos da cultura formam mais que uma “teia de relações”(como os funcionalistas apontavam) porque constituem o modo como o homem se distancia do mundo animal, se adapta ao meio e o altera, constrói a história e a si mesmo. Nesse sentido a cultura, (qualquer que seja), caracteriza a dimensão humana propriamente dita, por isso ela não é natural, é sempre cultural, simbólica, enfim o “superorgânico”.

Outras abordagens ao conceito cultura são: o estruturalismo (Lévi-Strauss) busca identificar as chamadas “regras estruturantes”, ou princípios que organizam o pensamento humano. Basicamente são relações lógicas (pares de oposição), portanto simbólicas que devem ser pesquisadas, na medida em que elas permitem a produção e reprodução da cultura.

Na verdade, o estruturalismo dominou o ambiente acadêmico das ciências humanas e sociais. Ele se constitui mais como um método de investigação, que propriamente uma tendência na Antropologia, na medida em que está presente na  psicologia, sociologia, e constitui a base das ciências da linguagem.

Em paralelo ao estruturalismo na antropologia desenvolveu-se o interpretativismo com Clifford Geertz, a chamada antropologia interpretativa, que busca resgatar e analisar as relações culturais a partir dos sentidos que os próprios grupos lhes atribui. Interpretar não parte da leitura do antropólogo, mas da analise daquilo que move “de dentro” a cultura.

Um último comentário deve ser acrescentado: a antropologia se inicia como ciência afirmando as diferenças entre os humanos, mas se constitui como ciência negando que as diferenças implicam relações hierárquicas entre culturas, afirmando a chamada multilinearidade, negando todo etnocentrismo, e reafirmando o caráter identitário das culturas.

 

A Cultura

A cultura consiste nas ideias abstratas, valores e percepções que marcam o mundo e são refletidas no comportamento das pessoas. A cultura é compartilhada pelos membros de uma sociedade e produz comportamentos inteligíveis para os outros membros dessa sociedade. A cultura é aprendida em vez de herdada biologicamente, e todas as diferentes partes de uma cultura funcionam como um todo integrado.

Porque as culturas existem?

Cada cultura fornece um molde para o pensamento e a ação que ajuda as pessoas a sobreviver e lidar com todos os desafios da existência. Para resistir, uma cultura deve satisfazer as necessidades básicas daqueles que vivem de acordo com suas regras, e deve proporcionar uma existência ordenada para os membros de uma sociedade. Ao fazê-lo, uma cultura deve encontrar um equilíbrio entre os interesses próprios dos indivíduos e as necessidades da sociedade como um todo. Além disso, deve ter a capacidade de mudar para se adaptar a novas circunstâncias ou alterar as percepções das circunstâncias existentes.

Conceito antropológico de cultura

O conceito antropológico de cultura foi uma das ideias mais importantes e de maior influencia no pensamento do século XX. O uso do termo cultura adotado pelos antropólogos do século XIX espalhou-se para outras áreas de pensamento. Uma cultura refere-se àqueles padrões de comportamento característicos de um grupo social específico que foram socialmente transmitidos

Características da cultura

Através do estudo comparativo de muitas culturas humanas, passadas e presentes, os antropólogos adquiriram uma compreensão das características básicas evidentes em todas elas: Toda cultura é socialmente aprendida, compartilhada, baseada em símbolos, integrada e dinâmica. Um estudo cuidadoso dessas características nos ajuda a ver a importância e a função da própria cultura.

A cultura é aprendida e não herdada biológicamente. 

Aprende-se a cultura por crescer com ela, e o processo pelo qual cultura é transmitida de uma geração para a próxima é chamado Inculturação. A maioria dos animais comem e bebem sempre que lhe apeteça. Os seres humanos, são inculturados, a maior parte deles comem e bebem em determinados momentos prescrito culturalmente apesar de sentir fome. 

Os alimentos

As formas de comer variam de cultura para cultura, como também o que é comido, como ele é preparado, como ele é consumido e aonde.  É um factor complexo, pois alimento é usado não somente para satisfazer as necessidades nutricionais.  Quando usado para celebrar rituais e actividades religiosas, a comida  "estabelece relações de dar e receber, de cooperação, de partilha, de um vínculo emocional que é universal" através da inculturação cada pessoa aprende socialmente formas adequadas de satisfazer às necessidades básicas biologicamente e culturalmente determinadas por todos os seres humanos: comida, sono, abrigo, comunidade, auto-defesa e gratificação sexual. 

Satisfazer as necessidades

É importante distinguir entre as necessidades próprias, que não são aprendidas, e maneiras de ficar satisfeitos que aprendemos —cada cultura determina a sua própria maneira de satisfazer às suas necessidades. Como Malinowski ensina.  Por exemplo, a forma como um caçador tutchokwe janta pode variar grandemente daquela de um pastor nômade kwangari.  Comportamento aprendido é exibido pela maioria.  Várias culturas simples possuem uma cultura elementar, cada linhagem local compartilha padrões de comportamento que aprende e que diferem de uma população para outra.  A riqueza da antropologia é aquela de valorizar estes elementos que encontram-se misturados com muitos outros, pois a realidade é sempre mais complexa.

Ralph Linton 1940

A soma total de conhecimento, atitudes e padrões habituais de comportamento partilhados e transmitidos pelos membros de uma sociedade específica

Primeiro, a cultura foi usada para se referir ao “padrão de vida em uma comunidade - as atividades e os procedimentos materiais e sociais que se repetem regularmente” característico de um grupo humano específico. A cultura referia-se ao domínio de fenómenos observáveis, de coisas e eventos “fora” no mundo.

Segundo, a cultura foi usada para se referir ao sistema organizado de conhecimentos e crença pelos quais as pessoas estruturam sua experiência e suas percepções, formulam atos e escolhem entre alternativas. Esse sentido de cultura se refere ao domínio de ideias.

Terceiro, a cultura é um sistema sociocultural para nos referirmos ao padrão de residência, de exploração de recursos, e daí por diante, característico de um dado grupo de pessoas

O termo cultura é às vezes restrito a um sistema ideacional. Culturas nesse sentido compreendem sistemas de ideias compartilhadas, sistemas de conceitos e regras e significados que subjazem às maneiras como as pessoas vivem e são expressas por elas. Assim definida, a cultura se refere àquilo que os seres humanos aprendem, não àquilo que eles fazem ou constroem. Uma dificuldade inicial no estudo da cultura é que não estamos habituados a analisar os padrões culturais; raramente estamos sequer conscientes deles como se nós - ou as pessoas de qualquer outra sociedade - crescêssemos percebendo o mundo através de óculos com lentes que distorcem a realidade. As coisas, eventos e relacionamentos que presumimos estar “fora” são na verdade filtradas por essa categoria. 

AS PRESSUPOSTAS FUNDAMENTAIS DO RACIOCÍNIO ANTROPOLÓGICO:

A PERSPECTIVA HOLÍSTICA

A perspectiva holística teve repercussões importantes nos estilos de pesquisa adotados pelos antropólogos, que por muito tempo preferiram estudar pequenas comunidades, consideradas mais simples nas interconexões entre diferentes aspectos da vida social. Agora, a perspectiva holística é, no entanto, importante e central, pois está intimamente ligada à problemática do contexto.

A QUESTÃO DE CONTEXTO.

Os dados identificados, selecionados e coletados devem ser considerados com base no contexto de origem. Com a perspectiva holística entrando em jogo, o pesquisador é obrigado a levar em consideração todos os outros aspectos dessa cultura. A reconstrução do contexto permite trazer à tona diferentes aspectos e significados que um dado pode assumir se observado de diferentes pontos de vista. A perspectiva contextual também permite que você se conecte a outros contextos e outros fenômenos, dentro de uma única cultura ou entre diferentes culturas.

O OLHAR UNIVERSALISTA E ANTI-ETNOCÊNTRICO.

Desde as suas origens, a antropologia apresentou-se como um conhecimento universalista, que considera, ou seja, toda forma de produção cultural como digna de atenção e útil para o conhecimento da raça humana. Esse aspecto da antropologia se opõe ao etnocentrismo manifestado por todas as culturas, ou à tendência instintiva e racional que leva a acreditar que o próprio comportamento e valores são melhores do que os dos outros.

O ESTILO COMPARATIVO

Desde o início, os antropólogos adotaram o método de comparar fenômenos diferentes para obter constantes. Eles buscavam aqueles elementos que pareciam corroborar suas hipóteses e suas teorias a priori, mas era um método ilustrativo, cuja validade foi dada como certa desde o início.

Durante o século XX, surgiram dois estilos comparativos principais: o primeiro é exercido em sociedades historicamente relacionadas ou geograficamente próximas; permite um maior controle das variáveis ​​e tem a vantagem da precisão descritiva, embora seja limitada pelo fato de não permitir grandes generalizações; o segundo leva em consideração sociedades sem vínculos históricos mútuos e tenta chegar à elaboração de tipos e conclusões mais amplas do que o primeiro método. As limitações são a falta de precisão analítica e o risco de generalização indevida. A vantagem está no fato de oferecer uma visão ampla e sintética dos fenômenos considerados.

A ANTROPOLOGIA DE VOCAÇÃO DIALÓGICA E DE TRADUÇÃO

A pesquisa

Etnologia tem como ponto de partida colocar-se em escuta de uma cultura que talvez tenha signos linguísticos diversos, que requerem uma interpretação, uma tradução, principalmente de tipo conceitual.

 INCLINAÇÃO CRÍTICA E ABORDAGEM RELATIVISTA.

A antropologia não visa preservar as culturas em uma autenticidade abstrata. A função crítica da antropologia não se limita à defesa das culturas mais fracas, mas consiste em identificar as transformações das culturas em diferentes contextos históricos; esta função crítica também põe em causa o etnocentrismo da cultura da qual é expressão. A antropologia também é um conhecimento crítico para consigo mesma, porque não deve idealizar as práticas e os valores dos povos que estuda.

A expressão relativismo cultural (Lévi-Strauss) indica que comportamentos e valores, para serem compreendidos, devem ser considerados dentro do contexto geral dentro

Os paradigmas metodológicos do plano de estudo

 

Na antropologia, houve muitos paradigmas ao longo do tempo: evolucionismo, historicismo, funcionalismo, difusionismo, estruturalismo, neo-evolucionismo, marxismo, neoestruturalismo, perspectiva hermenêutica, etc. Ao contrário do que acontece em outras ciências, na antropologia pode acontecer que vários paradigmas possam constituir simultaneamente pontos de referência para estudiosos desta disciplina.

O caráter pluiriparadigmático da antropologia é consequência do fato de ser um saber que se baseia na experiência etnográfica.

RESOLUÇÃO DO APLICATIVO

Desde o início, a antropologia se apresentou como um conhecimento com implicações aplicativas. Hoje em dia, a antropologia pode fornecer ferramentas de trabalho úteis também no campo educacional, para aqueles professores que lidam com alunos de origens culturais em que os métodos de aprendizagem se baseiam em princípios muito diferentes dos nossos.

A CONDIÇÃO REFLEXIVA E A DESCENTRALIZAÇÃO DO OLHAR

A antropologia é considerada reflexiva no sentido de que, por meio do encontro com sujeitos pertencentes a diferentes culturas, permite explorar sua própria cultura e subjetividade. Esta dimensão é central porque nos permite apreender melhor o ponto de vista dos outros e, ao observar as características positivas de outra cultura, podemos apreciar mais as características positivas da nossa própria, assim como, aprendendo os limites de uma cultura diferente, também nos conscientizamos dos limites de nossa própria cultura. Para isso, devemos 'descentralizar' nosso olhar, tentar nos observar através do olhar dos outros.

Etnocentrismo

A primeira reacção, inevitavelmente, ao encontrar pessoas que usam um tipo diferente de vida é de desprezar o seu comportamento, considerando-o estranho ou erróneo. Essa forma de ver outros modos de vida condicionados pelos próprios padrões culturais é chamado de etnocentrismo. 

Com um pouco de esforço mental podemos começar a nos tornar conscientes dos códigos que normalmente se escondem sob o nosso comportamento cotidiano. Em todo esse processo estamos dependendo de um sistema extremamente complicado de conhecimentos que está armazenado no nosso cérebro, mas que apenas parcialmente acessível ao nosso consciente.

Culturas como sistemas de significados compartilhados

A cultura não consiste em coisas e eventos que podemos observar, contar e medir. Ela consiste em ideias e significados compartilhados i inteligíveis apenas num universo de significados compartilhados de sons e eventos físicos que a tornam inteligível e a transmitem. A cultura é o conjunto de princípios conceituais que estão por detrás dos nossos actos e os padrões culturais que os tornam inteligíveis .

As culturas são sistemas de significados públicos, e não códigos privados nas mentes dos membros individuais, isto aponta para o facto de que a “cultura

angolana” existe antes (e independentemente do) do nascimento de qualquer indivíduo angolano. A tradição cultural é distribuída em diferentes versões entre os membros de uma comunidade. A cultura angolana consiste em um conjunto de regras e significados que transcendem as mentes individuais. Enquanto sistema conceitual a cultura angolana é estruturada de tal modo que não pode ser captada se nós a considerarmos como uma composição daquilo que os angolanos individuais sabem.

Modelo distributivo

A distribuição de uma cultura entre os membros de uma sociedade transcende as limitações do indivíduo na armazenagem, criação e uso da massa cultural. Um modelo distributivo de cultura deve levar em conta tanto a diversidade quanto a comunhão. É a diversidade que aumenta o inventário cultural, e a comunhão aumenta o grau de comunicabilidade entre os membros de uma comunidade (SCHWARTZ, 1978: 423).

Nesta senda a cultura angolana é um sistema que é externo aos membros individuais da sociedade e os transcende. Nas comunidade de Mbanza Kongo e do Cunene o conhecimento do mundo tecnológico varia de pessoa a pessoa de linhagem a linhagem, de aldeia a aldeia segundo a idade, o género e a experiência de vida. Mas por serem angolanos, todos eles compartilham um código de regras e de significados comuns a todas as comunidades.

Mas a organização do conhecimento do mundo enquanto factor individual obedece a sistemas classificatórios e descritivos próprios de uma sociedade. A vida social deve ser organizada de tal maneira que a população seja sustentada como um universo que pertence a um ecossistema.

A uma analise social não foge que há entidades e agentes culturais que criam e causam situações culturais que são simplificados captados e descritos como sistema. Ou seja um conjunto de elementos cognitivos compartilhado e distribuído socialmente como sistema cultural. Portanto a cultura assumiu ao longo da história essas características:

1) É essencialmente dinâmica tanto quanto um agente causativo porque leva a adoptar novas visões e a deixar formas inadaptas

2) É uma algo que apela o indivíduo a desenvolver e assumir uma consciência da realidade, valoriza, portanto, o indivíduo como ser consciente

3) Tem uma evidente dimensão material e pragmática que se manifesta num universo de objectos hábitos e costumes de um povo

4)É algo que se adapta assume e assimila elementos que provem do exterior a elementos refuncionalizados que pertencem ao interior

5) Cria um sentimento social de pertença enquanto factor identitário que conecte muitos indivíduos

 

Os leões do Kakutchi

Por exemplo, a pesquisa mostra um padrão distinto de comportamento entre os leões do Kwando Kubango. Um comportamento não agressivo que gerou uma interação com velhos da região e coletores. Trata-se de regras de comportamento social e que são transmitidas de geração em geração. Infringidas por empresas que quiseram fazer estradas em lugares que os velhos protegiam; de facto logo que invadiram estes lugares «santos» os leões reapareceram a atacar.  Um período de paz de trinta anos mas que foi mudado em resposta às novas circunstâncias. Tiveram que reunir os velhos e pedir desculpa. Dito isto, é importante notar que nem todo o comportamento aprendido é cultural. 

Bibliografia

Tylor, E. B. (1871). Primitive Culture. London: John Murray.

Malinowski, B. (1984). Una teoría científica de la cultura. Madrid: Sarper.

Radcliffe-Brown, A. R. (1973). Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes.

Benedict, R. (2013). Padrões de cultura. Petropolis: Vozes.

Boas, F. (2005). As limitações do método comparativo na antropologia. In Antropologia cultural (pp. 25–39). Rio de Janeiro: Zahar.

Kardiner, A., & Preble, E. (1964). Lo studio dell’uomo. Milano: Bompiani.

Kroeber, A., & Kluckhohn, C. (1952). Culture. A critical Review of Concept and Definition. Cambridge: Museum.

Lévi-Strauss, C. (2015). Antropologia Strutturale. Milano: Il Saggiatore.

Geertz, C. (2008). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.

Linton, R. (1936). The Study of Man. New York: Appleton.

Schwartz, T. (1976). Socialization as Cultural Communication. Berkeley: University of California.

 

5ª Lição 14 de Outubro 2023: Metodo comparativo

 

A comparação

A comparação e a etnografia, dois temas que caracterizam fortemente a antropologia cultural, pois a tornam reconhecível e a acompanham ao longo da sua história através de altos e baixos. A comparação, que aqui é introduzida através de uma conhecida passagem de Ugo Fabietti , é necessariamente um aspecto não só da disciplina antropológica, mas também, de forma mais geral, da cultura e do modo como ela é construída. Na vida quotidiana, de facto, o ser humano procede inevitavelmente pela comparação, quando procura e reconhece as afinidades e divergências entre objectos e conceitos ou quando traz o desconhecido de volta a categorias familiares.

Etnografia

Por seu lado, a etnografia, aqui enquadrada num ensaio já clássico de Jean-Pierre Olivier de Sardan , expressa o fundamento empírico da antropologia cultural. Se ao longo da história da disciplina os antropólogos difundiram descrições, teorizações e pontos de vista, isso aconteceu sobretudo a partir de experiências prolongadas de contacto direto com os contextos de vida em que se concretizam os fenómenos culturais investigados.

 Ugo Fabietti, o antropólogo italiano reflete amplamente sobre as formas que a comparação assumiu historicamente e sobre os pontos fortes, os limites e o potencial desta ferramenta altamente discutida, objeto de debates e confrontos, mas ainda assim essencial para o empreendimento intelectual antropológico ( uma condição paradoxal que foi bem expressa na conhecida piada do antropólogo inglês Edward Evan Evans-Pritchard , segundo a qual “só existe um método na antropologia social, o método comparativo, e isso é impossível”).

Corporativismo evolucionista

A comparação tem sido uma ferramenta fundamental para a antropologia desde o início, mas a forma como tem sido compreendida e utilizada tem variado ao longo do tempo. Na fase inicial do percurso da antropologia cultural como disciplina académica, ou seja, na segunda metade do século XIX, o esforço comparativo foi colocado ao serviço de uma missão científica que pretendia identificar as leis da evolução sociocultural , mas esta operação foi logo submetida a críticas contundentes e, portanto, fortemente deslegitimada. Numa obra com o eloquente título Os limites do método comparativo . (1896), Franz Boas, o primeiro grande crítico do evolucionismo, demonstrou a necessidade de superar os métodos de pesquisa do evolucionismo no final do século. Mais precisamente, o destinatário das críticas da Antropologia Cultural não foi o evolucionismo darwiniano, mas o evolucionismo social, especialmente devido ao uso do método comparativo.

O comparativismo evolucionista examinou objetos culturais materiais e imateriais, desde artefactos até instituições jurídicas, com o objetivo de classificá-los numa única escala universal que vai do “primitivo” ao “civilizado”.

Particularismo histórico

Os parâmetros de avaliação foram profundamente condicionados pelo ponto de vista do observador e não tiveram em conta a especificidade histórica nem os significados atribuídos localmente aos fenómenos culturais, embora apresentem semelhanças morfológicas, na verdade, dois objectos pertencentes a contextos geográfica e culturalmente muito distantes. podem ter, e provavelmente têm significados radicalmente diferentes. Boas propôs abandonar a história conjectural universal para focar a atenção na especificidade irredutível dos traços culturais e na sua história em áreas geográficas limitadas. Assim nasceu o “método histórico” ou “particularismo histórico” na antropologia. Posteriormente, apesar da variabilidade das abordagens, a comparação manteve-se activa com objectivos mais limitados, quer porque se limitou a áreas regionais, quer porque foi reduzida por ambições científicas nomotéticas e purificada por juízos de valor do 'superior/inferior' ou ' tipo 'primitivo/civilizado' que o moldou no paradigma evolutivo. A partir desse momento e ao longo de todo o século XX, a recusa de hierarquizar as diferentes formas de humanidade em termos de evolucionismo social, juntamente com a rejeição de qualquer forma de etnocentrismo, tornou-se cada vez mais um elemento distintivo da antropologia cultural.

A história da etnografia também está entrelaçada com a história da antropologia e com a sucessão de tendências dominantes. No contexto evolutivo, a recolha de dados e a reflexão sobre os mesmos foram confiadas a figuras distintas. Notoriamente, os grandes expoentes do pensamento antropológico e sociológico da era entre os séculos XIX e XX, como Tylor, Frazer, Durkheim e Mauss, nunca se dedicaram à pesquisa de campo. Em vez disso, costumavam processar materiais etnográficos que recebiam de correspondentes no terreno ou trabalhavam a partir de fontes escritas. No que diz respeito a estes números, as alternativas representadas em primeiro lugar pelo americano Morgan, jurista que em meados do século XIX construiu um perfil de antropólogo na área ao trabalhar em estreito contacto com os Hiroquenses cujos interesses protegia, e em segundo lugar do próprio Boas, devem ser sublinhados., que fez pesquisas de campo entre os Kwakiutl do Pacífico Norte, e das Expedições ao Estreito de Torres no final do século, que nasceram como missões científicas de biólogos, psicólogos e médicos, mas embarcaram em atividades etnológicas. Objetivos.

Método etnográfico

A consagração do método etnográfico como traço distintivo da antropologia, porém, remonta a 1922 e está ligada à figura de Bronislaw Malinowski, antropólogo polonês naturalizado inglês. Naquele ano, Malinowski publicou seu volume mais famoso, Argonautas do Pacífico Ocidenta l, com uma introdução que se tornou uma espécie de manifesto do método etnográfico, destinado a influenciar por muito tempo as práticas de pesquisa dos antropólogos. Nesse contexto, o antropólogo recomendou um atendimento intenso e prolongado ao contexto da pesquisa e forneceu algumas coordenadas operacionais quanto à forma de construção e ordenação do material etnográfico. Em tempos mais recentes, e especialmente desde a década de 1980, o debate dentro da disciplina tem questionado a viabilidade, legitimidade e adequação do modelo malinowskiano de trabalho de campo, especialmente na esteira do pós-modernismo. O ensaio de Jean-Pierre Olivier de Sardan, publicado originalmente em 1995, surge em meio a esse clima, com o objetivo de identificar os aspectos-chave da pesquisa antropológica, de destacar as dúvidas e dificuldades que os antropólogos encontram ao fazer etnografia e de reiterar a centralidade de experiência de campo para a antropologia cultural. A dimensão comparativa está intimamente ligada ao discurso da antropologia como conhecimento específico. Embora a própria ideia da antropologia como conhecimento comparativo tenha sofrido profundas mudanças ao longo do tempo, a comparação entre culturas continua sendo um projeto antigo da disciplina. Compare instituições e características culturais; comparar costumes e formas de pensar; colocar os costumes ao lado e classificar por tipos: ritos, mitos, sistemas terminológicos de parentesco, ideias de pessoa e de cosmos, esquemas cognitivos e técnicas de fabricação de determinados instrumentos. Tudo, para a antropologia, pode ser comparado. Seu projeto é tão vasto quanto o mundo e se estende tanto horizontalmente no espaço quanto verticalmente no tempo.

O projeto comparativo pressupõe [...] uma elaboração conceitual que torne os objetos adequados ao projeto em si. Ou seja, qualquer reflexão comparativa, da mais espontânea à mais sistemática, deve desenvolver os critérios da própria comparação. Esses critérios nem sempre são consistentes. Na verdade, como veremos, na maioria das vezes não o são. No entanto, todo projeto comparativo exige que, para poder comparar, os próprios termos da comparação sejam definidos. [...] Um exemplo retirado da história da disciplina pode nos ajudar a esclarecer esse ponto.

A ligação entre um programa de investigação comparativa e os objectos a comparar, entre paradigma e conceito, pode ser exemplificada pelo projecto do evolucionismo do século XIX, com a sua forma particular de representar a cultura que, aliás, gozou de uma longa e feliz existência. Na verdade, a cultura, entendida como um “todo complexo” de natureza “cumulativa”, poderia ser decomposta em partes e elementos separáveis ​​e descritíveis, que poderiam ser comparados com outros deduzidos de diferentes contextos culturais. O projecto comparativo do evolucionismo, que tinha fortes ligações com a tradição iluminista do século anterior, não foi certamente a corrente de reflexão que primeiro enfrentou o desafio comparativo. Contudo, se por antropologia entendemos uma atitude intelectual que visa sistematicamente a consideração da diferença cultural e social, é bastante legítimo acreditar que foi precisamente o projecto comparativo do evolucionismo do século XIX que inaugurou o caminho da antropologia cultural e social.

Contudo, afirmamos anteriormente que o projeto comparativo da antropologia sofreu mudanças bastante notáveis ​​desde então. Se disséssemos qual é a tendência geral destas modificações, poderíamos argumentar que, ao longo do tempo, o estilo comparativo foi marcado por uma consideração cada vez maior dos “significados indígenas” ou, para usar uma expressão agora muito em voga, da “ponto de vista do nativo”. O que acabamos de dizer surgirá no decorrer deste capítulo, no qual teremos a oportunidade de examinar alguns estilos comparativos que, precisamente a partir das primeiras formulações e aplicações sistemáticas, alcançam, na prática, a antropologia da atualidade.

No seu início, o conhecimento antropológico foi caracterizado por muitos pressupostos difíceis de defender hoje (a existência de uma 'sociedade primitiva', a inferioridade mental dos 'selvagens', etc.), mas outros pressupostos continuaram desde então a constituir uma espécie de “ruído de fundo” do discurso da disciplina e, de tempos em tempos, ressurgirem como “pontos sensíveis” de um conhecimento que ainda parece indeciso entre estar mais próximo da ciência ou da literatura. Um desses pontos é a ligação entre comparação e explicação. Na verdade, existe uma concepção de comparação que se considera voltada para explicar os fatos que interessam à antropologia.

[Propondo explicar certos fenómenos, a antropologia há muito tenta produzir uma explicação em termos de relações causais.] É verdade que a explicação de um fenómeno pode consistir na sua descrição, mas na antropologia recorremos principalmente à comparação.

Por que as crianças enfiam os dentes caídos nas fendas das paredes antigas? Por que algumas pessoas acreditam que a reprodução dos seres humanos nada tem a ver com relações sexuais? Por que em certos sistemas de terminologia de parentesco (os sistemas do tipo Omaha) um indivíduo do sexo masculino chama a filha do irmão de sua mãe (primo cruzado matrilinear) de “mãe” em vez de chamá-la de “prima”? Qual é a razão pela qual certas populações equipadas com tecnologia muito simples travam continuamente guerra umas contra as outras? O que levou ao nascimento de sociedades estratificadas? Perguntas deste tipo sempre despertaram a curiosidade dos antropólogos e é através da comparação que estes têm procurado dar respostas (ou seja, dar explicações) aos factos que levaram em consideração. fornecer explicações) aos factos que tomaram em consideração.

Os primeiros antropólogos, muitas vezes sem contacto direto com as populações sobre as quais escreveram, colocaram um ideal de antropologia como ciência “objetiva” antes do ideal de antropologia como experiência etnográfica, encontro, diálogo e conhecimento através da partilha de significados. Eles tiveram, portanto, uma atitude particular em relação aos fatos. Para eles, os fatos eram confiáveis ​​se a fonte que os relatasse fosse. Melhor se fosse o depoimento de uma testemunha ocular, o resultado da observação direta de algum informante remoto confiável. O problema para eles não tinha relação com o de saber qual era o significado daqueles fatos para os interessados, para a população qualquer interpretação que lhes fosse dada pelos interessados.

Nestas condições os factos são os mesmos “dados” que se deduzem, registados pelo olhar do observador (do etnógrafo, do administrador, do missionário, etc.), dos mais diversos contextos culturais: uma instituição matrimonial em Bornéu, uma crença religiosa em Camarões, uma prática mágica na Amazônia, um artefato da Groenlândia, etc.

Nesta perspectiva a explicação depende da comparação porque um determinado costume pode ser colocado em “um tempo”. Este “tempo” em que se localiza o fato a ser explicado é posterior ou anterior a um “outro tempo”, dependendo se se trata de um “tempo” em que se localiza outro fato (do qual se acredita que esse facto derive), ou em que se acredita que se localiza um fato ainda diferente, no qual evolui o próprio fato que deve ser explicado. Vejamos o famoso estudo de 1871 de Lewis H. Morgan sobre sistemas de parentesco. Num dos capítulos mais significativos desta obra, aquele dedicado aos 'problemas relativos à evolução dos sistemas de parentesco', Morgan traça uma série de 'etapas' que, na sua opinião, marcaram o desenvolvimento da instituição familiar e dos sistemas terminológicos relacionados. para isso. Cada etapa é precedida de outra (excepto a inicial da “relação promíscua”) e precede outra (exceto a final correspondente à “família civil”). Em todas as quinze etapas ou etapas. Sem nos determos muito no significado dos termos técnicos utilizados por Morgan (“Malaio”, “costume havaiano” etc.), será interessante ler a seguinte passagem:

Proponho agora considerar o sistema de parentesco de tipo malaio como a primeira fase do sistema classificatório e propor uma hipótese de solução relativamente à sua origem: esta solução baseia-se no costume havaiano e na hipótese da existência de um antigo relação de tipo promíscuo que envolve a coabitação de irmãos (...).

Para tanto será necessário pressupor a existência e o predomínio de uma série de práticas e instituições surgidas em intervalos de tempo ao longo do caminho da experiência humana, que devem necessariamente ter precedido o casamento entre indivíduos solteiros e a própria família entendida no atual significado; práticas que, como muitos processos de desenvolvimento na organização da sociedade, levaram, passo a passo, à constituição de um e de outro (...). Deve-se, portanto, presumir que essas práticas e instituições, consideradas como uma série completa ou dispostas em sucessão, devem ter se desenvolvido lentamente e ainda mais devem ter se espalhado entre diferentes povos à medida que estes progrediam no campo da experiência.

Como foi possível para Morgan argumentar que essas práticas foram colocadas em sucessão umas às outras? A maior ou menor complexidade das diferentes “práticas” e as ligações que puderam ser estabelecidas entre elas foram o resultado de um longo trabalho comparativo realizado em vários continentes, Europa, Ásia, América e Oceania, através da utilização de questionários preenchidos por informantes “residentes”, bem como em dados de primeira mão recolhidos pelo próprio Morgan em algumas reservas indígenas.

Embora para este estilo de comparação os factos não representem um problema, na realidade, precisamente porque são seleccionados de acordo com uma determinada tese, são também neste caso construções criadas pela abstracção das propriedades que o olho do observador presume estarem presentes. a experiência.

No entanto, primeiro Tylor, e logo depois dele Durkheim, introduziram mudanças significativas no uso da comparação. Nas Regras do Método Sociológico de 1895, Durkheim se expressa desta forma:

Não se prova nada quando - como tantas vezes acontece - se contenta em mostrar, através de exemplos mais ou menos numerosos, que, em casos dispersos, os factos variaram conforme a hipótese exige. Nenhuma conclusão geral pode ser tirada de tais acordos esporádicos e fragmentários: ilustrar uma ideia não é o mesmo que demonstrá-la. É necessário comparar não variações isoladas, mas séries de diversas intenções daqueles que o empregam, de prever que, quando um fenómeno varia, aquele (ou aqueles) com os quais o fenómeno está estatisticamente associado também irá variar. Se puder ser provado, especifica Durkheim, “que num certo número de casos dois fenómenos variam de maneira análoga, podemos estar certos de que estamos na presença de uma lei”.

Correlações estatísticas

O método das correlações estatísticas, ou das variações concomitantes (onde cada uma das duas definições identifica, como visto acima, um aspecto do próprio método), liga portanto intimamente a comparação à explicação e, desta forma, a própria comparação ao ideia de causalidade e previsibilidade.

O método das correlações/variações tem tido considerável sucesso no campo da antropologia, e talvez entre todos os estilos comparativos seja aquele que mais do que qualquer outro tenha contribuído para consolidar a ideia da antropologia como conhecimento baseado na comparação. Tem visto amplas aplicações por parte daqueles antropólogos que perseguiram um ideal de antropologia como conhecimento nomotético, orientado não apenas para a enucleação de relações causais entre fenômenos com possibilidades preditivas, mas também para a identificação de regularidades e recorrências. Desse ponto de vista, não surpreende que esse estilo comparativo tenha constituído um procedimento investigativo adotado pelos antropólogos em certo nível de abstração, ou seja, distanciado, como dissemos no início, dos “significados indígenas”. Exemplo disso são as correlações estabelecidas entre traços culturais, no âmbito de projetos como o Cross Cultural Survey animado por George P. Murdock nos Estados Unidos a partir da década de 1930. O próprio Murdock, por outro lado, numa obra fundamental, Estrutura Social de 1949, tentou, através da amostragem de duzentas e cinquenta sociedades, estabelecer correlações/variações estatísticas entre formas de propriedade, terminologias de parentesco e comportamento entre parentes. Por sua vez, no início da década de 1950, George C. Homans e David M. Schneide r tentaram, com base numa metodologia semelhante, estabelecer relações entre as formas de descendência (patrilinear, matrilinear, etc.) e as de casamento. troca. Tanto no caso de Murdock quanto no de Homans e Schneider, que pode ser tomado como emblemático de uma forma de praticar a comparação, não se tratava mais de 'correlacionar' para estabelecer causalmente a sucessão das fases de desenvolvimento da uma instituição. Tratava-se, antes, de correlacionar para estabelecer princípios de validade geral, que teriam desempenhado uma função preditiva em relação à possibilidade de constatar a copresença, ou não, de certas instituições sociais (tipos de residência, formas de propriedade, terminologias de parentesco, modelos de união conjugal, tipos de descendência). Assim concebida, a comparação ainda tinha que se referir a uma ideia de cultura como um “conjunto complexo” de elementos que podem ser abstraídos do seu contexto. Projetos deste tipo baseavam-se, de facto, na ideia de culturas como entidades descritíveis nas suas “partes”, localizadas e delimitadas espacialmente.

[...]

COMPARAÇÕES CONTROLADAS

[...] Em 1965, Evans-Pritchard publicou um ensaio sobre o método comparativo que mais tarde se tornou muito famoso. Embora o declarasse indispensável, ele limitou fortemente as reivindicações clássicas do método incorporado, na tradição da antropologia britânica, pela obra de James G Frazer e, na tradição da antropologia americana, pelo projeto comparativo mais recente de George P. Murdock. Argumentando com estes autores, que na sua opinião estavam demasiado inclinados a praticar comparações indiscriminadas com o objectivo de demonstrar teorias pré-estabelecidas (Frazer), ou correlações transculturais pouco significativas (Murdock), Evans-Pritchard deslocou a ênfase para a procura das diferenças. Na verdade, para ele, mais do que as semelhanças, a antropologia tinha que explicar as diferenças.

[...]

A esse respeito, Evans-Pritchard cita seu caso pessoal de antropólogo incapaz de estabelecer comparações dignas desse nome em relação às populações das regiões nilóticas (Nuer, Dinka, Anuak) por ele estudadas.

Consequentemente, o método comparativo, tal como tem sido predominantemente praticado, não produziu os resultados desejados, e era preciso perguntar por que quanto mais se acumulam dados sobre as sociedades estudadas pelos antropólogos, mais difícil se torna formular leis gerais sobre a vida social. . Na verdade, era mais fácil formular leis comparando alguns dados, mesmo que díspares, do que é hoje, quando cada vez mais casos 'anômalos' parecem questionar continuamente as teorias gerais.

Evans-Pritchard está, portanto, consciente do fato de que a antropologia, acompanhando os desenvolvimentos da pesquisa de campo, está caminhando para uma abordagem progressiva dos “significados indígenas”. Quanto mais esta “abordagem” continua, menos possíveis parecem ser as generalizações do passado, que, por exemplo,

Bibliografia

Fabietti, Ugo. 2010. Elementi di antropologia culturale. Milano: Mondadori.

Olivier de Sardan, Jean Pierre, e Antoinette Tidjani Alou. 2015. Epistemology, Fieldwork, and Anthropology. New York: Palgrave MacMillan.

Evans-Pritchard, Edward. 2011. Antropologia Social. Lisboa: Edições 70.

Boas, Franz Uri. 1896. «The Limitations of the Comparative Method of Anthropology». Science 4(103):901–8.

Morgan, Henry Lewis. 1992. League of the Ho-Dé-No-Sau-Nee or Iroquois. New York: Dodd.

Malinowski, Bronislaw. 1976. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Victor Civita.

Morgan, Henry Lewis. 1871. System of Consanguinity and affinity of the Human Family. Washington: Smithsonian Institution.

Durkheim, Émile. 1919. Les Règle de la Méthode Sociologique. Paris: Félix Alcan.

Murdock, George P. 1965. Social Structure. New York: Free Press.

Homans, George Caspar. 2017. The human group. Oxon: Routledge.

Schneider, David M., e Kathleen Gough. 1961. Matrilineal Kinship. Berkeley: University of California Press.

Evans-Pritchard, Edward. 2021. «O método comparativo em Antropologia Social». Cadernos de campo 30(2):1–16.

 

Técnicas de trabalho de campo

O objetivo do trabalho de campo é compilar informações, dados, sobre o sujeito da pesquisa. Na antropologia cultural, existem variações sobre o tipo de dados relevantes e a melhor maneira de coletá-los.

Abordagem dedutiva

Uma abordagem dedutiva é uma forma de investigação que começa a partir de uma questão ou hipótese de pesquisa e, em seguida, envolve a coleta de dados relacionados à questão.

Def abordagem dedutiva (em pesquisa) forma de Investigação que parte de uma questão ou hipótese de Investigação e implica, a seguir. a coleta de dados relacionados à questão por meio de observações. entrevistas e outros métodos. É mais provável que métodos dedutivos sejam usados ​​para coletar dados quantitativos, informações numéricas sobre, por exemplo, a quantidade de terra em proporção à população ou o número de pessoas afetadas por um determinado problema de saúde.

Abordagem indutiva

(em pesquisa) forma de pesquisa que evita a criação de hipóteses de pré-pesquisa e, em vez disso, toma a orientação para a pesquisa a partir da cultura estudada.

1) dados quantitativos Informação numérica.

2) dados qualitativos informação não numérica.

3) quadro ético analítico no estudo da cultura empregado por um analista externo.

percepções e categorias dos membros da cultura estudada, bem como suas explicações de porque o que é feito é feito. Uma abordagem indutiva é uma forma de pesquisa realizada sem uma hipótese prévia e envolve a coleta de dados por meio de observações não estruturadas e conversas informais e outros procedimentos. O método indutivo em antropologia cultural concentra sua ênfase em dados qualitativos, informações não numéricas, como a compilação de mitos e conversas ou a filmagem de eventos. Em qualquer caso, a maioria dos antropólogos combina métodos indutivos e dedutivos, bem como dados quantitativos e qualitativos.

Colecta e analise dos dados

coleta e análise de dados de método misto, integrando abordagens quantitativas e qualitativas para alcançar uma compreensão mais abrangente da cultura, por meio de observações, entrevistas e outros métodos.

  Perspectiva

Os antropólogos culturais têm rótulos para os dados coletados com cada uma das abordagens.

Etica

 se refere aos dados coletados de acordo com as categorias e abordagens do pesquisador para testar uma hipótese.

Emica

 se refere aos dados coletados que refletem o que os sujeitos de sua própria cultura dizem e entendem, bem como suas categorias de pensamento. Os antropólogos materialistas culturais são mais propensos a colectar dados éticos, enquanto os interpretativistas colectam dados emicos.

Ainda assim, a maioria dos antropólogos culturais colecta os dois tipos de dados.

Abordagem mista

Essa abordagem é chamada de método misto: combina o uso de métodos qualitativos e quantitativos para colectar e analisar dados sobre as experiências individuais das pessoas e historias de vida, bem como dados sobre a comunidade, região ou nível global para fornecer uma perspectiva mais abrangente.

Observação participante

A expressão “observação participante” compreende dois processos: participar ou tornar-se parte da vida das pessoas, ao mesmo tempo que observar com atenção. Essas duas atividades podem parecer simples, mas na prática são bastante complexas.

Ser participante significa que o pesquisador adopta o modo de vida das pessoas que estuda, morando no mesmo tipo de casa, comendo alimentos semelhantes, vestindo roupas semelhantes, aprendendo a língua e participando do seu cotidiano e de eventos especiais. É  lógico que a participação em acto por muito tempo melhora a qualidade dos dados.

Efeito Hawthorne

Quanto mais tempo o pesquisador passa morando com outras pessoas, maior é a probabilidade de elas viverem suas vidas 'normais'. Desta forma, o pesquisador pode cancelar o efeito Hawthorne, é usado para descrever uma mudança no comportamento de um indivíduo que resulta da consciência de estar sendo observado. um viés na pesquisa que ocorre quando os participantes alteram seu comportamento para se adequar às expectativas do pesquisador. O efeito Hawthorne foi descoberto na década de 1930, durante um estudo de uma planta industrial nos Estados Unidos. Durante o estudo, os participantes alteraram seu comportamento de forma que achavam que iria satisfazer o pesquisador.

Um antropólogo não pode estar em todos os lugares, participar de tudo, observar a todos, então ele tem que escolher onde estar ou o que observar. Como mencionado antes, sexo, idade e outros fatores microculturais podem limitar a participação do antropólogo em certas áreas e atividades. A necessidade insuperável de dormir pode fazer com que o antropólogo perca algo importante que acontece à noite, como pode ser o caso de um ritual ou de uma expedição de caça ao luar.

O que é que requere a observação participante

Embora a observação participante seja geralmente equiparada ao termo informal 'sair', na verdade envolve constantemente

1) tomar decisões sobre onde estar em um determinado dia em um determinado horário,

2) o que observar, com quem e o que deixar perder.

3) Dependendo do assunto da pesquisa, a pesquisa participante pode se concentrar em quem vive com quem, quem interage com quem publicamente, quem são os líderes e quem são os seguidores, em que as pessoas trabalham, como se organizam para diferentes atividades, rituais, discussões, festas, etc. rituais e muito mais.

Conversar com as pessoas

Falando com as pessoas o bom senso nos diz que a participação e a observação são importantes, mas podemos nos perguntar o que acontece quando falamos com as pessoas e lhes perguntamos coisas como “o que está acontecendo aqui?”, “O que isso significa?”, “; Por que você está fazendo isso? '. O processo de falar com as pessoas e fazer-lhes perguntas é um componente tão importante da observação participante que o método deveria de fato ser chamado de observação participante e conversa. Os antropólogos culturais usam uma variedade de métodos de coleta de dados que dependendo das conversas com as pessoas, desde bate-papos informais, casuais e não planejados até procedimentos mais formais.

Entrevista

Uma entrevista é uma técnica para colectar dados verbais por meio de perguntas ou de uma conversa guiada. É mais direcionada do que uma conversa casual. Uma entrevista pode incluir apenas duas pessoas, o entrevistador e o entrevistado, ou várias pessoas então será chamada de entrevista em grupo ou entrevista de grupo. Os antropólogos culturais usam diferentes estilos e formatos de entrevista, dependendo do tipo de informação que procuram, da quantidade de tempo disponível e de suas habilidades linguísticas.

Entrevista aberta

O tipo menos estruturado é a entrevista aberta, em que o entrevistado assume o controle do significado da conversa, dos assuntos discutidos e do tempo ocupado em cada um deles. O entrevistador não interrompe nem faz perguntas. Dessa forma, o pesquisador descobre quais as questões importantes para a pessoa.

Questionário

Um questionário é uma ferramenta formal de pesquisa que contém um conjunto preliminar de perguntas feitas pelo antropólogo em uma situação face a face, por correio ou e-mail. Os antropólogos que usam questionários preferem situações em que as entrevistas são realizadas cara a cara. Assim como as entrevistas, os questionários variam no grau de estrutura

O teor das perguntas, parte de fórmulas estruturadas (fechadas) a não estruturadas (abertas). As perguntas estruturadas limitam o espectro de respostas possíveis, por exemplo, que os participantes classifiquem uma determinada questão como 'muito positiva', 'positiva', 'negativa', 'muito negativa' ou 'sem resposta'. Entrevistas não estruturadas geram mais respostas émicas.

Ao elaborar um questionário, o pesquisador deve ter conhecimento suficiente da população estudada para poder desembaraçar questões com significado cultural. Pesquisadores que entregam um questionário previamente preparado para o campo devem consultar outro que já o conheça para ver se faz sentido. Revisões adicionais podem ser necessárias para ajustar o questionário às condições locais. Um estudo piloto usando o questionário com um pequeno número de pessoas na área de investigação pode revelar as partes que requerem revisão.

Combinar observação e conversa

Para uma visão equilibrada da cultura, é essencial combinar a observação do que as pessoas fazem na prática com dados verbalizáveis ​​sobre o que as pessoas dizem que fazem e pensam (Sanjek 2000). As pessoas podem dizer que fazem ou acreditam em algo, mas seu comportamento pode ser muito diferente do que dizem. Por exemplo, você pode dizer que filhos e filhas herdam partes iguais da propriedade da família com a morte de seus pais. A pesquisa sobre o que realmente acontece pode revelar que as filhas não herdam uma parcela igual. Da mesma forma, um antropólogo pode aprender com as pessoas e com a lei que a discriminação por causa da cor da pele é ilegal. Pesquisas sobre o comportamento das pessoas revelam exemplos claros de discriminação. É importante para um antropólogo aprender tanto com o que as pessoas dizem quanto com o que acontece. Ambos são aspectos 'verdadeiros' da cultura.

Métodos de pesquisa específicos

Os antropólogos culturais também usam muitos métodos de pesquisa específicos. Sua escolha depende dos objetivos da investigação.

Histórias de vida

Uma história de vida é um método qualitativo, uma descrição aprofundada da vida de um indivíduo em relação ao pesquisador. Os antropólogos diferem em sua avaliação da história de vida como um método de antropologia cultural. No início do século 20, Franz Boas rejeitou este método como não científico, uma vez que os participantes podiam mentir ou exagerar (Peacock e Holland 1993). Outros discordam dessa perspectiva, argumentando que uma história de vida contém informações muito ricas sobre os indivíduos e sua maneira de pensar, independentemente do quanto eles possam 'distorcê-la'. Por exemplo, alguns antropólogos questionaram a precisão de algumas partes de Nisa: A vida e os tempos de uma mulher !Kung (Shostak , 1981), provavelmente a história de vida mais lida no Japão.

Entrevista técnica investigativa envolve a colecta de dados verbais por meio de perguntas ou conversa dirigida entre pelo menos duas pessoas.

O questionário, um instrumento formal de pesquisa que contém um conjunto preliminar de perguntas feitas pelo antropólogo em uma situação face a face, por correio ou e-mail.  É a história do tamanho de um livro de uma mulher Ju / Wasi do deserto de Kalahari, no sul da África. Apresentado na voz de Nisa, o livro oferece detalhes muito ricos sobre a sua infância e vários casamentos. O valor da narrativa não se baseia na veracidade dos fatos, mas no que aprendemos com Nisa, que é o que ela quer nos ensinar, como ela entende suas experiências para além da veracidade de sua história. As narrativas são 'dados' em antropologia cultural, então é 'verdade' o que diz a Marjorie Shostak .

Selecionar os informantes

Nos primeiros dias da pesquisa de história de vida, os antropólogos tentaram selecionar um indivíduo que fosse um tanto típico, mediano ou representativo. No entanto, não é possível encontrar uma pessoa que seja representativa de toda uma cultura em um sentido científico. Hoje em dia, os antropólogos procuram indivíduos que ocupam nichos sociais especialmente interessantes. Por exemplo, Gananath Obevesekere analisou as histórias de vida de quatro cingaleses, três mulheres e um homem (1981). Todos haviam se tornado devotos e ascetas hindus, que se distinguiam por seus cabelos densamente emaranhados, retorcidos em espirais como uma cobra, permanentemente e impossíveis de pentear. Se tentassem desemaranhá-lo, não teriam sucesso porque uma divindade está presente em seus cabelos. Obevesekere sugere que todas as quatro pessoas sofreram profundos danos psicológicos durante a vida, incluindo ansiedade sexual. As suas greiias simbolizam o seu sofrimento e conferem-lhes uma condição sagrada especial, razão pela qual estão além das normas da vida conjugal e das relações sexuais conjugais.

Estudos de uso do tempo Um estudo de uso do tempo é um método quantitativo que coleta dados sobre como as pessoas gastam seu tempo diário em atividades específicas. Este método é baseado na formação de uma matriz de unidades de tempo padrão e rotulando e codificando as atividades que ocorrem dentro dos intervalos de tempo (Gross 1984). Os códigos de actividade devem ser adaptados aos contextos locais. Por exemplo, os códigos de atividade para vários tipos de trabalho não devem ser úteis em um trabalho de uso do tempo que ocorre em uma casa de repouso. Os dados podem ser coletados por observação contínua ou em intervalos fixos (por exemplo, a cada 48 horas) ou também aleatoriamente. A observação contínua envolve um longo período de tempo e um número limitado de pessoas observadas. Observações ocasionais ajudam a aumentar o número, mas podem perder atividades importantes. Outra opção de coleta de dados é perguntar às pessoas que têm jornais ou agendas.

As histórias de vida são um método antigo de coleta de dados na antropologia cultural. Marjorie Shostak entrevista Nisa durante seu trabalho de campo com Ju / Wasi em 1975. Esta mulher do Sri Lanka cuja história de vida foi analisada por Gananath Obeyesekere. ela é uma sacerdotisa de uma divindade. Ele posa no capilar de sua casa, mostrando seu cabelo emaranhado como cobras.

O que você diria a um antropólogo sobre sua vida?

Textos Muitos antropólogos culturais coletam e analisam material textual, uma categoria que engloba narrativas orais ou escritas, mitos, performances teatrais, ditos discursos, piadas, transcrições das conversas cotidianas das pessoas, matérias na internet e redes sociais.

No início do século XX, Franz Boas coletou milhares de páginas de textos de grupos nativos americanos na costa noroeste do Canadá com mitos, canções, discursos e relatos de como seus rituais são realizados. Essas compilações adicionam um valioso registro de culturas que mudaram desde os dias de seu trabalho de campo.

depois de seu trabalho de campo. Os membros sobreviventes das tribos o consultaram para recuperar aspectos esquecidos de sua própria cultura.

Boas teria se interessado pelos novos estudos de antropologia cultural que analisam o significado social das páginas da web na Internet. Essa rede de redes tem sido rotulada de Caixa de Pandora moderna porque disponibiliza ao público parte ou a totalidade dos conhecimentos e opiniões, corretos ou errados, baseados em evidências ou não. Anna Kata, estudante de antropologia da Universidade McMaster, Canadá, analisou o discurso social, ou compartilhou temas, sobre os perigos da vacinação em vários sites da Internet (2010). Como pano de fundo, ele consultou dados publicados sobre a porcentagem de pessoas nos Estados Unidos (74%) e Canadá (72%) que estão online. Entre eles, entre 75 e 80 por cento pesquisaram informações sobre saúde e 70 por cento deles afirmaram que as informações acessadas influenciaram as decisões que tomaram sobre seu tratamento médico, razão pela qual a Internet desempenha um papel importante na tomada de decisões médicas. Usando o Google como ferramenta de busca, Kata aplicou vários critérios e marcou algumas páginas como antivacinação. Ela visitou um total de oito páginas americanas e canadenses para analisar seu conteúdo. Os temas mais proeminentes que surgiram foram: segurança (vacinas são venenosas), eficácia (vacinas não são eficazes), medicina alternativa favorece um “retorno à natureza” em vez de vacinas, liberdades civis (direitos paternos), teorias conspirações (acusações de ocultar outros interesses ), religião (usufruir do sistema imunológico que Deus tem para nós), desinformação sobre os estudos que são feitos sobre vacinas e chamadas emocionais (testemunhos pessoais). Kata conclui que combater as perspectivas antivacinação com educação é necessário, mas não suficiente. A análise do discurso social na Internet pode ajudar a identificar áreas que precisam de um estudo mais aprofundado.

Fontes históricas e de arquivo Muitos antropólogos culturais que trabalham com culturas com história escrita obtêm informações valiosas sobre o presente a partir de registros do passado preservados nos arquivos de instituições como bibliotecas, igrejas ou museus. Ann Stoler foi pioneira no uso de fontes documentais para entender o presente em seu estudo sobre o colonialismo holandês em Java (1985, 1989). Sua pesquisa trouxe à luz detalhes da política colonial e das relações com a população indígena javanesa.

Os arquivos nacionais de Londres, Paris ou Amsterdã, para citar apenas alguns, contêm registros de contatos e relações coloniais. Arquivos regionais e locais contêm informações sobre propriedade de terras, produção agrícola, práticas religiosas e atividades políticas. As igrejas paroquiais em toda a Europa preservam histórias familiares detalhadas que datam de centenas de anos atrás.

Informações importantes sobre o passado também podem ser obtidas no trabalho de campo com pessoas vivas, por meio de uma abordagem chamada antropologia da memória. Os antropólogos colectam informações sobre as memórias das pessoas, bem como sobre historias de vida.

Vários métodos de pesquisa e projetos de equipe A maioria dos antropólogos culturais usa uma combinação de métodos diferentes. Por exemplo, pense na vasta extensão e quantidade de informações que as entrevistas com 100 pessoas em suas casas podem fornecer e, em seguida, adicione histórias de vida coletadas de um subconjunto de cinco homens e cinco mulheres que fornecerão profundidade, bem como uma longa observação participante.

Os antropólogos, com suas visões aprofundadas sobre as pessoas de carne e osso e a vida real, estão cada vez mais participando de projetos de pesquisa multidisciplinares, especialmente com orientação aplicada. Essas equipes de trabalho enriquecem a investigação adicionando mais métodos e perspectivas. A combinação de dados de entrevistas em grupo face a face, observação participante e desenho de mapas fornece uma riqueza de informações, por exemplo, sobre nomes de lugares Inuit e conhecimento ambiental.

Tomando nota das culturas

Como um antropólogo mantém contato com todas as informações coletadas em campo e as registra para análises futuras? No trabalho de campo, como mais um aspecto da vida contemporânea,

as coisas mudaram desde os velhos tempos, quando um caderno e uma máquina de escrever eram as principais ferramentas. No entanto, fazer anotações detalhadas continua sendo a atividade mais representativa da coleta de dados do antropólogo cultural.

Notas de campo

As notas de campo incluem diários, notas pessoais, descrições de eventos e notas sobre essas notas. Idealmente, os pesquisadores devem fazer anotações todos os dias. Tentar capturar os eventos de um único dia da forma mais completa possível é uma tarefa monumental e pode resultar em dezenas de páginas de anotações, escritas à mão ou datilografadas. Hoje, os laptops permitem que os antropólogos insiram muitas de suas observações diárias diretamente no computador.

Gravações de áudio, vídeo e foto

Os gravadores de áudio e vídeo são um auxílio importante no trabalho de campo, porém seu uso pode levantar problemas, como levantar suspeitas entre os participantes sobre uma máquina que captura suas vozes e rostos, ou de natureza ética entre aqueles cujas vozes são gravadas. E eles medo de que sua identidade seja exposta nas fitas.  A princípio, a existência do “aparato”, como era chamado, despertou em parte curiosidade e em parte suspeitas. Muitos não tinham provado nenhum antes e ficavam fascinados em ouvir a própria voz, mas todos se preocupavam com o que fazer com as gravações ...

Para que as gravações tenham utilidade para análise, é necessário transcrevê-las, parcial ou totalmente. Cada hora de conversa gravada pode levar de cinco a oito horas para ser transcrita.

Como gravações, fotos e vídeos capturam mais detalhes do que notas adesivas. Qualquer pesquisador que viu pessoas realizando um ritual, fez anotações e depois tentou juntar os detalhes, sabe quanto da sequência de atividades é esquecida em poucas horas. A revisão de fotos ou vídeos oferece uma quantidade surpreendente de material esquecido ou perdido. A desvantagem, entretanto, é que se você estiver usando uma câmera ou gravador de vídeo, não poderá fazer anotações ao mesmo tempo.

Análise de dados

Durante o processo de pesquisa, o antropólogo coleta uma grande quantidade de dados em vários formatos. Como você deve organizá-los de uma maneira que faça sentido? Na análise dos dados, assim como na sua coleta, existem duas variedades: qualitativa (descrições baseadas em texto) e quantitativa (apresentação numérica).

Análise de dados qualitativos Os dados qualitativos incluem descrições de notas de campo, narrativas, mitos e histórias, canções e sagas e muito mais. Não existem muitas diretrizes para uma análise qualitativa de dados qualitativos. Um procedimento é pesquisar temas ou padrões. Examinar os assuntos até que, com o tempo, emerge um padrão repetido em palavras e ações. Muitos antropólogos qualitativos usam computadores como uma ferramenta de apoio para selecionar esses tropos (temas-chave). O exame desses dados por computador oferece a capacidade de pesquisar grandes quantidades de dados mais rapidamente e, talvez, com maior precisão do que o olho humano. O campo de softwares acessíveis para este tipo de processamento de dados está se expandindo. A qualidade dos resultados, no entanto, ainda depende de uma entrada completa e cuidadosa dos dados e de um esquema de codificação inteligente, que informa ao computador o que rastrear nos dados.

Portanto, não oferece conclusões, cabendo aos próprios leitores refletir sobre o significado das histórias e o que elas dizem sobre a vida das mulheres beduínas egípcias.

Alguns antropólogos questionam o valor dessas abordagens artísticas interpretativas porque carecem de verificação científica. Muita coisa depende, em sua opinião, do processo de seleção e interpretação do antropólogo individual e quase sempre depende de um pequeno número de casos. Os antropólogos interpretativos respondem que a verificação, em seu sentido científico, não é nem seu objetivo nem um objetivo digno para a antropologia cultural. Em vez disso, eles tentam fornecer uma interpretação plausível e uma nova compreensão da vida das pessoas que oferece detalhes e é rica.

Análise de dados quantitativos A análise de dados quantitativos ou numéricos pode ser realizada de várias maneiras. Alguns dos métodos mais elaborados requerem conhecimento de estatística e muitos requerem o uso de computadores e pacotes de software que podem realizar cálculos estatísticos. A pesquisa do autor sobre famílias de baixa renda na Jamaica envolveu o uso de análise de computador: primeiro dividindo as famílias em três grupos (baixo, médio e alto) e, segundo, calculando as porcentagens de gastos com bens e grupos de bens, como alimentação, habitação e transporte. Dado que o número de agregados familiares era bastante reduzido, a análise poderia ser feita “manualmente”. Mas o uso do computador tornou a análise mais rápida e precisa.

Representando a cultura

A etnografia, ou descrição detalhada de uma cultura viva, com base no estudo e na observação pessoal, é a principal forma que os antropólogos usam para apresentar suas descobertas sobre a cultura. Nas primeiras fases da antropologia cultural, durante a primeira metade do século 20, os etnógrafos escreveram sobre culturas 'exóticas', localizadas longe de suas casas na Europa e na América do Norte. Os primeiros etnógrafos consideravam um determinado grupo ou aldeia como uma unidade em si, com limites claros. Desde a década de 1980, as etnografias mudaram de várias maneiras:

• Os etnógrafos agora tratam as culturas locais levando em consideração sua conexão com forças e estruturas regionais e globais de maior escala. O livro de Edward Fischer , Cultural Logics and Global Economia: Maya Identity in Thought and Practice (2001) trata da questão do activismo político maia na Guatemala e o coloca em um contexto de sistemas econômicos em mudança de escopo maior do que o próprio caso.

• Os etnógrafos focam em um assunto de interesse e evitam uma abordagem mais holística. Laura Miller estudou ideias e práticas sobre corpo e beleza no Japão. Em seu livro Beauty Up : Exploring Contemporary Japanese Body Aesthetics (2006), ela discute salões e produtos de beleza, mudanças nas ideias sobre beleza masculina e feminina e ideias sobre diferenças.

• Os etnógrafos estudam as culturas industriais ocidentais, assim como o resto. A pesquisa de Philippe Bourgois em East Harlem, Nova York, para seu livro, In Search of Respect: Selling Crack in El Barrio, examina como as pessoas em um bairro específico lidam com as condições de pobreza e perigo. Embora este tópico pareça ser mais adequado para a sociologia do que para a antropologia, um antropólogo cultural fornece detalhes mais contextualmente ricos sobre as experiências e perspectivas cotidianas das pessoas com base na observação participante.

 

Ética e pesquisa participativa

A antropologia foi uma das primeiras disciplinas a conceber e adotar um código de ética. Dois eventos nas décadas de 1950 e 1960 levaram os antropólogos a reconsiderar seu papel na pesquisa em relação àqueles que os financiaram e às pessoas que estudaram. O primeiro foi o Projeto Camelot, na década de 1950: um plano do governo dos Estados Unidos para influenciar os líderes políticos da América do Sul a fortalecer seus próprios interesses (Horowitz 1967). O governo dos Estados Unidos contratou alguns antropólogos para colectar informações sobre eventos e líderes políticos sem revelar seu propósito.

O segundo grande problema foi a Guerra do Vietnã (ou Guerra Americana, como as pessoas no Vietnã a chamam), que trouxe à tona na antropologia algumas questões sobre os interesses do governo na pesquisa etnográfica, o papel dos antropólogos em tempo de guerra e a proteção dos as pessoas com quem os antropólogos conduzem suas pesquisas. Dentro da antropologia, surgiram duas posições terrivelmente opostas. Por um lado, a visão de que todos os americanos, como cidadãos, deveriam apoiar o esforço militar dos Estados Unidos no Vietnã. Pessoas nessa posição argumentaram que qualquer antropólogo com informações que poderiam ajudar a minar o comunismo deveria repassá-las ao governo dos Estados Unidos. Por outro lado, defendeu-se que a responsabilidade do antropólogo é, sempre e em primeiro lugar, a proteção das pessoas que estuda, responsabilidade que tem prioridade sobre a política. Essa Pesquisa participativa cultura de aprendizagem perspectiva que  o trabalho do antropólogo com os membros da população estudada é mais como parceiros ou membros de uma mesma equipe do que como “sujeitos”.

Os antropólogos se opuseram à guerra e viram o povo do Vietnã do Sul como vítima do imperialismo ocidental. Eles descobriram casos em que alguns antropólogos forneceram informações ao governo dos Estados Unidos sobre a filiação política de certos indivíduos, resultando em ações militares e na morte de indivíduos nomeados pelo investigador.

Esse período criou a maior divisão da antropologia em toda a história da disciplina nos Estados Unidos. Que Em 1971, liderou a American Anthropological Association (AAA) a adotar um código de ética. O código de ética da AAA afirma que a primeira responsabilidade de um antropólogo é garantir a segurança das pessoas que participam da pesquisa. Um princípio relacionado é que a antropologia cultural não tolera pesquisas encobertas ou secretas.

Atualmente, ambos os princípios éticos têm gerado polêmica entre os antropólogos que discutem se podem ou não participar do Sistema de Terreno Humano dos Estados Unidos (H.T.S.). O HTS busca reduzir as mortes de civis e militares em tempo de guerra usando antropólogos culturais e outros especialistas em cultura local em suas operações no cenário de guerra.

Pesquisa participativa

Um novo direcionamento metodológico busca envolver a população estudada na pesquisa participativa, desde a coleta de dados até a análise e apresentação. A pesquisa participativa é uma perspectiva de aprendizagem da cultura que envolve os membros da população estudada no trabalho do antropólogo, mais como parceiros ou membros da mesma equipe do que como 'sujeitos'.

Desde o início, essa estratégia nos obriga a reconsiderar a forma como o antropólogo afasta as pessoas estudadas, principalmente no que diz respeito ao uso consagrado do termo informante. O termo parece relacionado a espionagem ou guerra e implica um papel passivo de fornecer informações a outra pessoa. Conforme observado anteriormente neste capítulo, os comitês de revisão institucional usam o termo 'sujeitos humanos', que os antropólogos culturais rejeitam por razões semelhantes. Eles preferem o termo participante da pesquisa.

Luke Eric Lassiter é um dos pioneiros em métodos participativos. Em um projeto redentor, ele envolveu seus alunos de antropologia participativa com membros da comunidade afro-americana em Muncie, Indiana. Esse projeto resultou em um livro de autoria compartilhada por Lassiter, seus alunos e membros da Comunidade (2004) .O projeto compilou informações sobre a vida afro-americana que hoje se encontram no arquivo da biblioteca.

Segurança de campo

E! O trabalho de campo pode apresentar sérios riscos físicos e psicológicos para o pesquisador e seus familiares. A imagem do 'antropólogo como herói' silenciou amplamente os dois tipos de riscos. Os perigos no ambiente físico costumam ser graves e podem ser fatais. Na década de 1980, as trilhas escorregadias das montanhas das Filipinas ceifaram a vida de Michelle Zimbalist Rosaldo, uma das figuras mais importantes da antropologia do final do século 20 (ver Figura 1.2, p. 10). As doenças são outro problema comum. Muitos antropólogos contraíram doenças crônicas ou com risco de vida.

A violência desempenha um papel proeminente em muitas, embora não na maioria, das experiências de trabalho de campo. Durante os cinco anos que Philippe Bourgois viveu no East Harlem,

Nova York testemunhou um tiroteio do outro lado de sua janela, o ataque com bombas e metralhadoras a um gari-bombardeio em sua própria casa, uma dúzia de lutas graves e 'exposição quase diária a seres humanos mutilados, alguns deles imersos em crack paranóia, outros sofrendo de delirium tremens e outros em situações patológicas indefinidas, gritos de raiva e insultos com o quanto ele estava rolando ”(1995: 32). Ele foi brutalmente detido pela polícia várias vezes porque não acreditavam que ele fosse um professor investigando, em uma ocasião ele foi roubado por oito dólares. Embora sua pesquisa o colocasse em perigo, também o empurrei para entender, de dentro, a violência diária na vida de pessoas pobres viciadas e desesperadas.

Além disso, algumas pesquisas antropológicas implicam! perigo de violência política ou mesmo de guerra. Uma nova especialidade, antropologia de zona de guerra, pesquisa conduzida em áreas de conflito violento, pode fornecer importantes insights sobre questões como a militarização de civis, sua proteção, a dinâmica cultural do pessoal militar e a reconstrução pós-conflito. (Hoffman e Lubkemann 2005 ) Este tipo de pesquisa exige habilidades e critérios que as aulas de antropologia e manuais de metodologia geralmente não abordam (Nordstrom 1997, Kovats-Bernat 2002). A experiência anterior em zonas de conflito como trabalhador em organizações de ajuda internacional ou militar é útil.

, Ύ em relação ao perigo no que se presume em situações normais de trabalho de campo? Depois de mais de vinte anos no deserto do Kalahari, no sul da África, Nancy Howell (1990) repentinamente percebeu que tinha que enfrentar riscos quando um de seus filhos adolescentes morreu e outro ficou ferido em um acidente de caminhão em Botswana enquanto acompanhava o pai, Richard Lee, que estava fazendo trabalho de campo na época. Nos meses que se seguiram à tragédia, ela ouviu histórias sobre outros acidentes no campo de muitos amigos antropólogos.

Howell contatou a AAA para ver quais avisos essa associação fornecia sobre segurança no trabalho de campo e foi capaz de verificar que a resposta não foi muito grande. A AAA respondeu com apoio financeiro para fazer uma investigação detalhada dos riscos do trabalho de campo da antropologia. Howell projetou uma amostra de 311 antropólogos registrados como funcionários no Guide to Departments da AAA. Ele enviou-lhes um questionário solicitando informações sobre sexo, idade, situação de trabalho, estado de saúde e hábitos de trabalho no campo e pediu informações sobre problemas de saúde e outros riscos que eles experimentaram. Ele recebeu 236 questionários preenchidos, uma alta proporção indicando grande interesse pelo estudo.

Em sua análise, encontrei variações regionais em riscos e perigos. As taxas de risco mais altas ocorreram na África, seguida pela Índia, região da Ásia / Pacífico e América Latina. Howell oferece conselhos sobre como os antropólogos devem se preparar de forma mais eficaz para prevenir e gerenciar os perigos do trabalho de campo. Essas recomendações incluem aumentar a conscientização sobre os perigos entre aqueles que trabalham no campo, treinar trabalhadores de campo em cuidados médicos básicos e aprender sobre segurança no trabalho de campo nas aulas de antropologia.

Os métodos de pesquisa em antropologia cultural percorreram um longo caminho desde a antropologia de mesa. Os tópicos mudaram, assim como as técnicas de coleta e análise de dados. Novas preocupações sobre ética e responsabilidade, bem como segurança no trabalho de campo, continuam a remodelar as práticas de pesquisa. Como os antropólogos culturais investigam a cultura?

Os antropólogos conduzem suas pesquisas fazendo trabalho de campo e usando observação participante. No século XIX, os primeiros antropólogos culturais fizeram antropologia de poltrona, o que significa que aprenderam sobre outras culturas lendo relatórios escritos por exploradores não treinados e outros observadores. O passo seguinte foi a antropologia da grade, na qual o antropólogo (naquela época não havia antropólogos) ia para o campo, mas não vivia com o povo; em vez disso, ele entrevistou alguns membros da população estudada para onde ele ia, geralmente na varanda de sua casa. Os primeiros antropólogos eram todos homens e eram rotineiramente empregados pelos países coloniais para estudar modos de vida nas colônias.

O trabalho de campo e a observação participante tornaram-se a pedra angular da antropologia após as inovações de Malinowski nas Ilhas Trobriand durante a Primeira Guerra Mundial. Sua abordagem enfatizou o benefício de viver no campo por um período prolongado, participando das atividades diárias das pessoas e aprendendo a língua local. Essas características são as questões de identidade da pesquisa em antropologia cultural hoje.

Em resposta aos tempos de mudança, novas técnicas continuam a ser desenvolvidas. Uma das mais importantes é a pesquisa multi-sited, em que o antropólogo investiga um assunto ou tópico em mais de um lugar, e a pesquisa de consumidor, que se baseia em técnicas de pesquisa rápida que obtêm informações sobre design e desenvolvimento de produtos que respondem a as necessidades e preferências dos usuários.

O que significa fazer trabalho de campo?

A pesquisa em antropologia cultural tem várias etapas.

1) O primeiro é selecionar um assunto para pesquisa. Para ser bom, deve ser relevante, oportuno e acessível. Pode vir de uma revisão da literatura, um segundo estudo, eventos atuais e urgentes ou até mesmo pura sorte.

2) Uma vez em campo, a primeira etapa inclui selecionar o local, construir confiança e lidar com o choque cultural. As microculturas influenciam a maneira como os antropólogos ganham confiança e moldam o acesso do antropólogo a domínios culturais específicos. Participar de forma adequada na cultura implica aprender maneiras locais de oferecer presentes e outras trocas que expressem apreço pela hospitalidade, tempo e confiança das pessoas.

Técnicas de pesquisa específicas podem enfatizar a coleta de dados, sejam qualitativos ou quantitativos. Os materialistas culturais tendem a se concentrar em dados quantitativos, enquanto os hermenêuticos ou interpretativos coletam dados qualitativos, embora haja uma sobreposição considerável nas diferentes abordagens, tanto na coleta de dados quanto nas orientações teóricas. No campo, os antropólogos fazem anotações diariamente, muitas vezes à mão, embora os computadores agora também sejam usados. Outros métodos de documentação incluem fotografia e gravações de áudio e vídeo.

A orientação teórica do antropólogo, os objetivos da pesquisa e os tipos de informações coletadas influenciam na perspectiva de apresentação e análise dos dados. Dados quantitativos podem induzir análise estatística e apresentação em tabelas e gráficos. A apresentação de dados qualitativos tem maior probabilidade de ser descritiva.

Que questões são urgentes hoje na pesquisa em antropologia cultural?

As questões éticas têm sido de extrema importância desde a década de 1980. Em 1971, antropólogos americanos adotaram um conjunto de diretrizes éticas de pesquisa para abordar suas preocupações sobre o papel que o antropólogo deveria desempenhar, ou deveria desempenhar, em pesquisas que podem colocar em perigo os seres humanos. O código de ética da AAA estabelece que a primeira responsabilidade do antropólogo é garantir a segurança das pessoas envolvidas. Além disso, os antropólogos culturais não devem se envolver em investigações encobertas e devem sempre explicar seus propósitos às pessoas em estudo, bem como preservar o anonimato de pessoas e lugares.

A investigação partidária é um novo desenvolvimento que responde a preocupações éticas, buscando que a investigação envolva os partidários mais como refrigerantes do que como sujeitos.

A segurança no trabalho de campo é outra questão relevante. O perigo pode chegar aos antropólogos por razões físicas, como doenças infecciosas, ou sociais, como violência política. Um relatório antropológico de 1981 deu conselhos para aumentar a segurança no trabalho de campo.

Bibliografia

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Bourgois, P. (2003). In search of respect. New York: Cambridge University Press.

 

3ª Lição 4 de Novembro 2022: Teorias e conceitos

 

 

Teorias antropológicas Evolucionismo A escola de Boas

1 Particularismo histórico

2 Funcionalismo de difusão e invenção independente

2.1 Malinowski

2.2 História conjectural

2.3 Funcionalismo estrutural

2.4 Do funcionalismo estrutural à análise de conflitos

2.5 A persistência do funcionalismo. Configuracionismo. Neo-evolucionismo. Materialismo cultural

2.6 Cultura e o indivíduo

2.6.1. A culturologia

2.6.2 O super-orgánico

2.6.3 Durkheim e os pioneiros da etnologia francesa

2.6.4 Antropologia simbólica e interpretativa

2.7 Estruturalismo Abordagens processuais

 

TEORIAS ANTROPOLÓGICAS

A antropologia teve vários pais e mães: entre os primeiros estão Lewis Henry Morgan, Sir Edward Burnett Taylor, Franz Boas e Bronislaw 'Malinowski; Entre os últimos estão Ruth Benedict e, acima de tudo, Margaret Mead. Alguns dos pais da antropologia podem realmente ser considerados 'avós': Franz Boas foi, por exemplo, o pai intelectual de Mead e Benedict, e o que agora é conhecido como antropologia Boasiana originou-se principalmente em oposição ao evolucionismo de Morgan e Tylor no século 19.

Quais são as principais perspectivas teóricas que têm caracterizado a antropologia desde seu nascimento, na segunda metade do século XIX. Os primeiros estágios da antropologia foram dominados por perspectivas evolutivas, particularmente aquelas associadas a Morgan e Tylor. O início do século XX testemunhou várias reações à evolução do século XIX. Na Grã-Bretanha, funcionalistas como Malinowski e Alfred Reginald Radcliffe-Brown abandonaram o historicismo especulativo dos evolucionistas em favor do estudo das sociedades actuais. Nos Estados Unidos, Boas e seus seguidores rejeitaram a busca de estágios evolutivos em favor de uma abordagem histórica que, por um lado, traçava as várias mutações entre culturas e, por outro, destacava a disseminação de traços culturais em várias áreas geográficas. Tanto funcionalistas quanto seguidores de Boas viam as culturas como um todo integrado e estruturado; Em particular, os funcionalistas viam na sociedade sistemas reais nos quais as várias partes cooperavam para o bom funcionamento do todo.

Em meados do século XX, após a Segunda Guerra Mundial e a crise do colonialismo, houve um renovado interesse pela mudança, incluindo novas abordagens evolutivas. Outros antropólogos se concentraram na natureza e na base simbólica da cultura, usando perspectivas simbólicas e interpretativas para desenterrar significados e símbolos. Organizado em estruturas e modelos. A partir da década de 1980, houve um interesse crescente pela relação entre cultura e indivíduo, bem como pelo papel da ação humana (agência) na transformação da cultura. Também foi reafirmado o interesse por abordagens históricas, incluindo aquelas que consideravam as culturas locais em relação ao período do colonialismo e os processos de globalização. Visão geral

A antropologia cultural nasceu na segunda metade do século XIX na Inglaterra e nos Estados Unidos. O paradigma dominante da nova disciplina na época era o evolucionismo unilinear, segundo o qual as diferentes sociedades estavam destinadas a passar pelos mesmos estágios evolutivos em tempos diferentes. O americano Morgan e o britânico Tylor são considerados os mais influentes antropólogos evolucionistas. Com Boas e Malinowski, a antropologia entrará em uma nova fase caracterizada por uma metodologia centrada na pesquisa de campo, no conhecimento das línguas nativas e uma menor propensão para generalizações e comparações universais. Além disso, no início do século XX, o estudo das representações coletivas de grupos permitirá à nascente etnossociologia francês (Durkheim , Mauss ) contribuir significativamente para o desenvolvimento da disciplina. Também no decorrer do século XX, o funcionalismo britânico e o particularismo histórico americano irão determinar o arcabouço teórico da antropologia cultural, especialmente em detrimento do evolucionismo. Este último, por volta de meados do século, será recuperado em uma chave multilinear na ecologia e no materialismo cultural americanos (Steward , Harris ). Uma maior atenção às transformações históricas e ao papel do indivíduo na determinação das estratégias culturais estará no centro de novos desenvolvimentos na disciplina, que é cada vez mais crítica da dinâmica colonial e atenta às interações globais. Na segunda metade do século XX, o estruturalismo francês (Lévi-Strauss ) e posteriormente a antropologia interpretativa americana (Geertz ) modificarão significativamente a obra do antropólogo, colocando a disciplina no centro dos debates teóricos e epistemológicos das ciências sociais.

A antropologia contemporânea é caracterizada por uma crescente especialização que se baseia em determinados temas e identidades profissionais definidas. Refletindo essa orientação para a especialização, algumas universidades se afastaram da abordagem holística e biocultural ilustrada neste volume.

EVOLUCIONISMO

Durante o século 19, Morgan e Tylor escreveram volumes que se tornaram verdadeiros clássicos da antropologia. Tylor em Primitive Culture (1871/1958) propôs uma definição clássica de cultura, sugerindo que a cultura era um tópico que poderia ser estudado cientificamente. Os volumes mais influentes de Morgan incluem Ancient Society (1877/1970), The League of the Ho-dé-no-sau-nee ou Iroquois (1851/1999) e Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871 / 1997). O primeiro volume representou um trabalho fundamental da evolução cultural, o segundo foi um dos primeiros estudos etnográficos e o terceiro constituiu o primeiro compêndio sistemático de dados transculturais relativos aos sistemas de parentesco.

A sociedade antiga é um exemplo chave do evolucionismo do século 19 aplicado à sociedade: Morgan presumiu que a sociedade humana evoluiu por uma série de estágios, que ele chamou de estado selvagem, barbárie e civilização. Por sua vez, ele dividiu os estágios de selvagem e barbárie em três períodos: estados selvagens inferior, médio e superior e, da mesma forma, selvageria inferior, média e superior. Na esquematização de Morgan, os primeiros humanos viviam em um estado selvagem inferior, alimentando-se de frutas e bagas; No período intermediário, os homens começaram a pescar e controlar o fogo, enquanto a invenção do arco e flecha empurrou o homem para o limiar do estado selvagem superior. O período da barbárie inferior começou com a criação das primeiras ferramentas de barro cozido; O estágio da barbárie no Velho Mundo baseava-se na domesticação de animais e no cultivo de plantas e, nas Américas, na agricultura irrigada. A etapa da barbárie superior se caracterizou pelo trabalho do ferro e pelo uso de ferramentas de ferro. Finalmente a civilização veio com a invenção da escrita.

O significado particular com o qual Morgan entendeu o evolucionismo é conhecido como evolucionismo unilinear, uma vez que ele presumiu que havia apenas uma linha ou caminho ao longo do qual todas as sociedades evoluíram. Qualquer sociedade em estado de barbárie superior, por exemplo, deveria incluir em seu desenvolvimento evolutivo também todas as fases anteriores (baixo, médio, estado selvagem superior e estado de barbárie inferior e médio): Não foi possível pular uma dessas etapas. Morgan também acreditava que todas as sociedades conhecidas na época poderiam ser incluídas na esquematização que ele propôs: algumas não haviam progredido além do estado selvagem superior, enquanto outras alcançaram o estado de barbárie média e outras ainda cruzaram a fronteira da civilização.

Os críticos de Morgan questionaram os vários elementos de seu esquema, particularmente os critérios que ele usou para definir o progresso. Como os polinésios nunca desenvolveram a arte da cerâmica, de acordo com a esquematização de Morgan, eles estavam confinados ao estado selvagem superior, enquanto na realidade em termos sociopolíticos a Polinésia era uma região avançada, com numerosas tribos e formas de estado como a dos antigos Havaí. Também sabemos hoje que Morgan estava errado ao presumir que as sociedades seguiram um único caminho evolucionário: as sociedades maias e mesopotâmicas, por exemplo, seguiram caminhos diferentes que levaram à civilização, embora fossem baseados em economias totalmente diferentes.

Em Cultura Primitiva (1871/1958), Tylor desenvolveu sua própria abordagem evolucionária para a antropologia das religiões. Como Morgan, Tylor também propôs um caminho unilinear que ia do animismo ao politeísmo, depois ao monoteísmo, finalmente alcançando a ciência. Tylor acreditava que a religião acabaria quando perdesse sua função primária de explicar o inexplicável. Segundo Tylor, a religião ocuparia um lugar menor à medida que a ciência fosse capaz de oferecer explicações cada vez melhores. Tanto Tylor quanto Morgan estavam interessados ​​em sobrevivências, isto é, aquelas práticas que deveriam ter sobrevivido desde os primeiros estágios da evolução até a sociedade contemporânea. A crença atual em fantasmas, por exemplo, representaria uma sobrevivência do estágio animista, ou seja, a crença na existência de seres espirituais. A sobrevivência era vista como prova de que uma sociedade específica havia passado pelos estágios evolutivos anteriores.

Morgan também é conhecido por The League of Iroquois, o primeiro trabalho etnográfico no campo antropológico, baseado mais em um trabalho de campo ocasional do que em uma atividade sistemática e prolongada. Embora considerado um dos fundadores da antropologia, Morgan não recebeu um treinamento profissional adequado como antropólogo: ele exerceu a advocacia no interior do estado de Nova York e gostava de visitar uma reserva indígena Seneca próxima para aprender sua história e As tradições. Os senecas eram uma das seis tribos iroquesas. Graças ao seu trabalho de campo e sua amizade com Ely Parker, um comissário do governo iroquês ​​encarregado de acompanhar os assuntos indígenas durante a guerra civil, Morgan foi capaz de descrever os princípios sociais, políticos, religiosos e econômicos da vida iroquesa. Incluindo a história de sua confederação, definindo os princípios estruturais sobre os quais a sociedade foi baseada

Iroquois. Morgan fez um grande esforço como advogado para ajudar os iroqueses a lutar contra a Ogden Land Company, que estava tentando dominar seu território.

Embora Morgan fosse um defensor ferrenho da causa iroquesa, seu trabalho contém algumas suposições que hoje seriam consideradas racistas. Na Liga dos Iroqueses e em outras obras, lemos afirmações que sugerem, erroneamente, que certos traços culturais (como a caça e um certo tipo de terminologia de parentesco) têm uma base biológica. Morgan presumiu que o desejo de caçar era intrínseco a ser índio, transmitido 'no sangue' e não por meio de um processo de inculturação. Coube a Franz Boas, várias décadas depois, mostrar que os traços culturais são transmitidos culturalmente em vez de geneticamente, comprovando ainda mais a 'maleabilidade' da biologia humana e sua abertura a várias formas de inculturação.

A ESCOLA DE BOAS

Boas é indiscutivelmente o pai das ciências antropológicas nos Estados Unidos e sua subdivisão em quatro disciplinas secundárias. Com Raça, Língua e Cultura (1940/1966), uma coleção de ensaios sobre temas-chave. Na verdade, Boas contribuiu para a antropologia cultural, biológica e linguística. Seus estudos biológicos de imigrantes europeus nos Estados Unidos revelaram e puderam medir a plasticidade fenotípica: os filhos dos imigrantes eram fisicamente diferentes de seus pais não por causa de uma mudança genética, mas porque cresceram em um ambiente diferente. Boas então mostrou que a biologia humana pode ser moldada e modificada pelo meio ambiente, incluindo forças culturais. Boas e seus alunos fizeram um grande esforço para mostrar que, portanto, não era a biologia (e a raça) que determinava a cultura. Em um volume importante, Ruth Benedict (1940) enfatizou o conceito de que grupos humanos pertencentes a múltiplas populações contribuíram para grandes avanços históricos e que a civilização não foi, portanto, uma conquista pertencente a uma única população.

Conforme indicado acima, a subdivisão norte-americana inicial das ciências antropológicas em quatro ramos secundários se originou em torno do interesse pelos nativos americanos: sua cultura, história, língua e características físicas e somáticas. O próprio Boas estudou a língua e a cultura entre os nativos americanos, particularmente entre os Kwakiutls da costa do Pacífico Norte dos Estados Unidos e Canadá.

Particularismo histórico

Boas e seus muitos alunos proeminentes, que estudaram e trabalharam com ele na Columbia University em Nova York, criticaram vários aspectos das teorias de Morgan. Em primeiro lugar, questionaram os critérios usados ​​para definir as várias 'etapas' da evolução humana: argumentaram que o mesmo resultado cultural, por exemplo o totemismo, não poderia ter uma única explicação, uma vez que existiam múltiplos caminhos que conduziam a ele. . A posição de Boas e seus seguidores era chamada de particularismo histórico: se as histórias específicas do totemismo nas sociedades A, B e C revelaram-se todas diferentes, isso significava que essas formas de totemismo tinham causas diferentes, o que as tornava, portanto, não comparáveis. Eles podem ter parecido, mas eles realmente não eram, pois cada um apresentava uma história diferente. Boas e seus seguidores acreditavam que qualquer forma cultural, do totemismo aos clãs, poderia se desenvolver por motivos de qualquer tipo. O particularismo histórico boasiano rejeitou o que os estudiosos chamam de método comparativo, associado não apenas a Morgan e Tylor, mas a todos os antropólogos interessados ​​na comparação transcultural. Os evolucionistas compararam diferentes sociedades na tentativa de reconstruir a história da evolução do Homo sapiens. Antropólogos de épocas posteriores, como Émile Durkheim e Claude Lévi-Strauss , também compararam várias sociedades para tentar explicar fenômenos culturais como o totemismo. Como já foi mencionado e ficará evidente no decorrer deste volume, a antropologia contemporânea considera a comparação intercultural uma ferramenta indispensável.

Invenção Independente E DIFUSÃO

Como será apontado no capítulo dedicado à cultura, as generalidades dos asnos tirali são compartilhadas por algumas empresas, mas não por todas. Para explicar tais generalidades culturais, como totemismo e clãs, os evolucionistas enfatizaram o papel da invenção independente: no final, populações de múltiplas áreas (no curso do desenvolvimento seguindo um caminho evolutivo predeterminado) chegaram à mesma solução para um Problema comum. A agricultura, por exemplo, foi 'inventada' várias vezes. Embora não negassem o valor da invenção independente, os seguidores de Boas enfatizaram a importância da difusão, isto é, o processo de mutação de outras culturas. As unidades analíticas que eles usaram para estudar o fenómeno da difusão

Eram o traço cultural, o complexo de traços e a área cultural. Por traço cultural entendemos algo como arco e flecha; Um complexo de características era a configuração de caça associada ao uso de arco e flecha, enquanto uma área cultural era baseada na disseminação de características e complexos de características em uma área geográfica específica, como Great Plains, Southwest ou a costa do Pacífico Norte da América do Norte. Essas áreas geralmente tinham limites ambientais que limitavam a difusão de traços culturais fora dessa área específica. Para Boas e seus colaboradores, a difusão e o particularismo histórico eram complementares: a difusão dos traços culturais levara ao desenvolvimento das histórias particulares a eles associadas, penetrando e movendo-se em sociedades específicas. Discípulos de Boas como Alfred Kroeber, Clark Wissler e Melville Herskovits estudaram a distribuição de traços culturais e desenvolveram classificações de áreas culturais para os nativos americanos (Wissler e Kroeber ) e a África (Herskovits).

O particularismo histórico baseava-se na ideia de que cada elemento da cultura, como o traço cultural ou complexo de traços, tinha sua própria história distinta e que as formas sociais (como o totemismo em várias sociedades) que podiam parecer semelhantes não eram nada semelhantes. Precisamente em virtude das diferentes histórias que os distinguiram. O particularismo histórico rejeitou a comparação e a generalização em favor de uma abordagem histórica caracterizante, colocando-se assim em contraste com a maioria das orientações de um período posterior.

FUNCIONALISMO

Outro desafio ao evolucionismo (e particularismo histórico) originou-se na Grã-Bretanha. O funcionalismo adiou e ofuscou a busca pelas origens (por meio da evolução e do processo de difusão), focalizando, em vez disso, o papel dos traços e práticas culturais na sociedade contemporânea. As duas principais correntes funcionalistas estão associadas a Alfred Reginald Radcliffe-Brown e Bronislaw Malinowski, antropólogo de origem polonesa que lecionou principalmente na Grã-Bretanha e que, junto com Boas, pode ser considerado o pai da antropologia moderna.

Malinowski

Tanto Malinowski quanto Radcliffe-Brown se concentraram no presente, e não na reconstrução histórica do passado. Malinowski foi um verdadeiro pioneiro De trabalho de campo entre os grupos humanos de seu tempo. Geralmente considerado o pai da etnografia em virtude de seus anos nas Ilhas Trobriand , Malinowski foi um funcionalista em dois sentidos: primeiro, firmemente convencido do valor de seu método etnográfico, ele acreditava que todos os usos, tradições e As instituições de uma sociedade eram integradas e inter-relacionadas, de modo que a mudança de uma delas envolvia a modificação das outras, ou seja, cada elemento era funcional para os outros. Um corolário dessa suposição era que a pesquisa etnográfica poderia começar em qualquer lugar, eventualmente alcançando o restante dos aspectos da sociedade em estudo. Nesse sentido, o estudo das atividades pesqueiras na Trobriand acabaria por levar o etnógrafo a estudar todo o sistema econômico, magia, religião, mitos, comércio e sistemas de parentesco. A segunda leitura da teoria funcional da cultura de Malinowski leva ao funcionalismo das necessidades humanas. Malinowski (1944/1962) acreditava que o ser humano tinha um conjunto de necessidades biológicas universais e que os costumes e tradições se desenvolveram justamente para atender a essas necessidades. A função de cada prática era, portanto, o papel que desempenhava na satisfação dessas necessidades biológicas universais, como a necessidade de comida, sexo, abrigo dos elementos e assim por diante.

História conjectural

Segundo Radcliffe-Brown (1962/1965), apesar da importância da história, a antropologia social não poderia esperar descobrir os acontecimentos dos povos sem sistemas de escrita. (Na Grã-Bretanha, a antropologia cultural é referida como antropologia social.) Radcliffe-Brown não se baseou em reconstruções evolutivas nem difusionistas: uma vez que qualquer história é conjectural, isto é, baseada em conjecturas, levou os antropólogos sociais a se concentrar em Papel desempenhado por práticas específicas na vida das sociedades atuais. Num famoso ensaio, Radcliffe-Brown (1962/1965) examinou o papel predominante do irmão da mãe entre os Thongas de Moçambique. Anteriormente, um clérigo evolucionário que também trabalhava em Moçambique havia explicado o papel especial desempenhado pelo irmão da mãe nesta sociedade patrilinear como uma sobrevivência de uma época em que o domínio da sociedade era matrilinear. (Seguidores do evolucionismo unilinear acreditavam que todas as sociedades humanas passavam por um estágio matrilinear.) Já que Radcliffe-Brown acreditava que a história da sociedade Thonga só poderia ser conjectural por natureza,

Ele explicou o papel do irmão materno em referência às instituições do presente, em vez de confiar na sociedade Thonga do passado. Radcliffe-Brown argumentou que a antropologia social era uma ciência sincrônica ao invés de uma ciência diacrônica, isto é, que estudava as sociedades como elas existem hoje, no presente (em uma perspectiva contemporânea sincrônica) ao invés de ao longo do tempo (perspectiva diacrônica).

Funcionalismo estrutural

A expressão funcionalismo estrutural está associada a Radcliffe-Brown e Edward Evan Evans-Pritchard, outro proeminente antropólogo britânico, famoso por seus muitos volumes publicados, incluindo The Nuer (1940/1975), um clássico definidor da etnografia. Claramente os princípios estruturais pelos quais a sociedade Nuer do Sudão foi organizada. De acordo com o funcionalismo e o funcionalismo estrutural, a função das tradições culturais, normas e práticas sociais é preservar a estrutura social. Na opinião de Radcliffe-Brown, a função de qualquer prática social é o que ela faz, daí o papel que desempenha na preservação do sistema do qual faz parte. Esse sistema, portanto, tem uma estrutura cujas partes operam ou funcionam para preservar todo o mecanismo. Radcliffe-Brown pensava que os sistemas sociais poderiam ser comparados aos sistemas anatômicos e fisiológicos (metáfora orgânica da sociedade): a função dos órgãos e dos processos fisiológicos é justamente preservar a boa funcionalidade do corpo, e o mesmo, segundo ele, ocorria com os usos , tradições, práticas, papéis sociais e comportamento, cuja função era permitir que o sistema social funcionasse sem problemas.

Do funcionalismo ESTRUTURAL Para a análise do conflito

Por causa dessa orientação para a harmonia, alguns modelos de funcionalismo estrutural foram criticados como 'Panglossianos', adjetivo derivado da figura do Doutor Pangloss, personagem do Cândido de Voltaire que nunca se cansou de proclamar o lema 'Em que vivemos é o Melhor de todos os mundos possíveis '. A expressão funcionalismo panglossiano indica a tendência de se considerar o funcionamento das partes não apenas em vista da conservação do sistema (do todo), mas na perspectiva de que isso aconteça de forma ótima, uma vez que qualquer desvio da norma só causaria danos ao sistema. Um grupo de Os antropólogos britânicos da Universidade de Manchester, conhecida como a escola de Manchester, são famosos por suas pesquisas conduzidas nas sociedades da África Austral e por terem orientado a análise social em direções menos ortodoxas do que o funcionalismo estrutural. Em particular, eles investigaram sociedades em forte transformação onde a centralidade do equilíbrio e da harmonia era menor, enquanto era necessário trazer à tona estratégias individuais, contradições internas, conflitos. Os antropólogos de Manchester, Max Gluckman e Victor Turner , devotaram grande parte de suas análises ao tema do conflito (Gluckman, por exemplo, escreveu alguns ensaios sobre os rituais de rebelião). A escola de Manchester, entretanto, não abandonou completamente o funcionalismo: seus seguidores examinaram a maneira como a rebelião e os elementos conflitantes eram regulados e dissolvidos, preservando assim a integridade do sistema.

Persistência DO FUNCIONALISMO

Hoje, uma forma de funcionalismo persiste na visão amplamente aceita de que os sistemas sociais e culturais existem, e que os elementos, ou partes constituintes, que pertencem a esses sistemas estão funcionalmente relacionados (dependendo uns dos outros ), de modo que são covariantes: quando uma parte muda, as outras também sofrem uma mudança. Além disso, permanece a ideia de que alguns elementos - muitas vezes os econômicos - são mais importantes do que outros. Poucos negariam que mudanças econômicas significativas, como o aumento do emprego feminino em empregos remunerados, levaram a mudanças na organização da família e do lar, bem como em variáveis ​​correlatas, como casamento e frequência de divórcios. As mudanças nos padrões de trabalho e família, por sua vez, influenciam outras variáveis, por exemplo, a frequência de participação em serviços religiosos, que no Canadá e nos Estados Unidos teve uma diminuição significativa.

CONFIGURACIONISMO

Dois dos alunos de Boas, Benedict e Mead, desenvolveram uma abordagem da cultura que foi definida como configuracionismo e está ligada ao funcionalismo no sentido de que a cultura também é considerada um sistema integrado neste caso. Vimos anteriormente como os seguidores de Boas traçaram a distribuição geográfica dos traços culturais. Boas

Reconheceu, porém, que a disseminação não foi um processo automático: os traços culturais podem não se espalhar se encontrarem barreiras ambientais ou não forem aceitos por uma cultura específica. Era, portanto, necessário ter um mecanismo que pudesse fazer com que uma determinada cultura se adequasse ao traço que se propagava nela: daí decorria que os traços emprestados de outras culturas teriam de ser modificados para aderir à cultura de adoção. Embora a difusão dos traços culturais possa vir de várias direções, Benedict Ruth destacou que os traços de uma cultura - e mesmo de culturas inteiras - apresentam padrões (ou configurações) definíveis a partir de uma integração unívoca de traços, como ele descreveu em sua obra mais conhecida. Patterns of Culture (1934/1960).

Margaret Mead também encontrou alguns padrões nas culturas que estudou, incluindo as de Samoa , Bali e Papua-Nova Guiné. A principal preocupação de Mead era como as culturas variavam em seus padrões de enculturação. Enfatizando a plasticidade da natureza humana, ele via a cultura como uma força poderosa capaz de criar possibilidades virtualmente infinitas. Mesmo entre sociedades contíguas, os diferentes modelos de enculturação poderiam produzir tipos de personalidades e configurações culturais completamente diferentes. O texto mais famoso de Mead, embora polêmico, é Coming of Age in Samoa (O adolescente em uma sociedade primitiva) (1928/1954): o antropólogo foi às Ilhas Samoa estudar adolescentes indígenas e depois compará-los com Pares americanos. Suspeitando de universais determinados biologicamente, ela presumiu que o período da adolescência das jovens samoanas era diferente da mesma fase de vida e desenvolvimento nos Estados Unidos e que também afetava a idade adulta. Usando suas próprias investigações etnográficas feitas localmente. Mead comparou a aparente liberdade e experimentação sexual dos jovens samoanos com a atitude repressiva da sexualidade nos Estados Unidos. Os resultados que apresentou apoiam a visão de Boas de que é a cultura, e não a biologia, que determina a variação no comportamento e na personalidade humana. O trabalho de campo posterior de Mead entre os Arapesh , Mundugumor e Tchambuli da Nova Guiné fundiu-se em Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas (1935/1967), no qual o antropólogo documentou a variação no comportamento e nos traços de personalidade masculina e feminina entre as várias culturas em estudo. A importância deste volume reside em seu apoio adicional para a perspectiva do determinismo cultural. Como Benedict Ruth, Mead também estava mais interessado em descrever como as culturas Mostraram modelos únicos e foram configurados para explicar como chegaram a tais modelos e estruturas.

NEO EVOLUCIONISMO

Por volta de 1950, com o fim da Segunda Guerra Mundial e um movimento crescente de oposição ao colonialismo, os antropólogos renovaram seu interesse pela mudança cultural e até pela evolução humana. Os antropólogos americanos Leslie White e Julian Steward reclamaram que os seguidores de Boas e de suas teorias tinham, por assim dizer, 'jogado fora o bebê (evolução) com a água do banho (as limitações e falhas específicas dos padrões evolutivos de Século dezanove)'. Os neo-evolucionistas defenderam a necessidade de reintroduzir o próprio conceito de evolução no estudo da cultura - um conceito muito poderoso que, afinal, continua a ser fundamental para a biologia. Então, por que não aplicá-lo também à cultura?

Em The Evolution of Culture (1959), White alegou retornar ao mesmo conceito de evolução cultural usado por Tylor e Morgan, mas agora apoiado por um século de descobertas arqueológicas e um conjunto mais amplo de dados etnográficos. A abordagem de White tem sido definida como evolução, geral, ou seja, baseada no conceito de que ao longo do tempo e por meio de dados arqueológicos, históricos e etnográficos é possível considerar a evolução da cultura como um todo. Por exemplo, as economias humanas evoluíram da caça-coleta na era paleolítica, passando pelas primeiras formas de agricultura e pastoralismo, até formas de agricultura intensiva e industrialização. Do ponto de vista sócio-político, também houve uma evolução de gangues e tribos para chefias e estados. White argumentou que não havia dúvida de que a cultura havia evoluído, mas ao contrário dos defensores do evolucionismo unilinear do século 19, ele percebeu que culturas específicas poderiam evoluir na mesma direção.

No volume Teoria da mudança cultural (1955/1977), que teve uma influência considerável, Julian Steward propôs um modelo evolutivo diferente, que chamou de evolução multilinear, no qual mostrou a forma como as culturas evoluíram em muitas e diferentes linhas: a De um estado independente, por exemplo, tinha sido alcançado seguindo mais de um caminho evolutivo (aquele empreendido por sociedades que usaram métodos de irrigação contra aquelas que não o fizeram). Steward também desempenhou um papel pioneiro no campo da antropologia

Que definiu ecologia cultural, agora geralmente conhecida como antropologia ecológica, que considera as relações entre culturas e variáveis ​​ambientais.

Ao contrário de Mead e Benedict, que não estavam interessados ​​nas causas, White e Steward voltaram sua atenção para esse aspecto. Segundo White, a disponibilidade de energia foi a principal medida e o motor do progresso cultural, ou seja, as culturas progrediram na proporção da disponibilidade anual de energia per capita. Desse ponto de vista, os Estados Unidos são uma das sociedades mais avançadas devido às grandes quantidades de energia controladas e exploradas. A consideração de White de que as sociedades que financiam as reservas naturais são mais avançadas do que aquelas que buscam preservar as energias do planeta parece um tanto irônica hoje. Steward estava igualmente interessado na causalidade, identificando as principais causas da mudança cultural na tecnologia e no meio ambiente.

MATERIALISMO CULTURAL

Ao propor o materialismo cultural como um paradigma teórico, Marvin Harris adaptou os modelos de múltiplas camadas de determinismo associados a White e Steward. Para Harris (1979/1984), todas as sociedades possuíam uma infraestrutura, composta por tecnologia, economia e demografia, ou seja, os sistemas de produção e reprodução sem os quais as sociedades não poderiam sobreviver. A estrutura surgiu da infraestrutura, ou seja, formas de parentesco e descendência, padrões de distribuição e consumo. O terceiro nível consistia na superestrutura, ou seja, religião, ideologia, jogo, aspectos da cultura distantes dos elementos básicos sobre os quais repousa a sobrevivência das civilizações. O conceito-chave de Harris, compartilhado por White, Steward (e, claro, Karl Marx), era que a infraestrutura, em última instância, determina tanto a estrutura quanto a superestrutura.

Harris, consequentemente, se opôs a teóricos (a quem chamou de 'idealistas'), como Max Weber, que defendia o papel principal da religião (a ética protestante) como um elemento capaz de mudar a sociedade. Weber não questionou o fato de o protestantismo ter favorecido o surgimento do capitalismo, mas apenas argumentou que o individualismo e outras características associadas aos primeiros estágios do protestantismo eram particularmente compatíveis com a visão capitalista.

CULTURA E INDIVÍDUOS

A antropologia cultural

É interessante apontar que Leslie White (1949/1969), assumidamente evolucionista e defensor da energia como um parâmetro do progresso cultural, foi, assim como Mead, um ferrenho defensor da importância da cultura: ele considerava a antropologia cultural como um Ciência que ele definiu antropologia cultural. White acreditava que as forças culturais, baseadas na capacidade única dos seres humanos de pensar simbolicamente, contêm um poder que torna marginal o papel dos indivíduos. White se opôs à ideia de que indivíduos específicos foram responsáveis ​​por grandes avanços e mudanças de época, argumentando, em vez disso, que constelações inteiras de forças culturais criaram grandes indivíduos. Durante alguns períodos históricos, como o Renascimento, existiam as condições certas para a expressão da criatividade com o consequente florescimento do gênio humano em múltiplos campos do conhecimento e das artes. Em outras épocas e lugares, homens de grandes mentes poderiam ter vivido, mas a cultura não encorajou a expressão de seus talentos. Como prova dessa teoria. White enfatizou a natureza simultânea das descobertas: muitas vezes no curso da história humana, quando a cultura estava, por assim dizer, 'pronta', indivíduos operando separadamente em lugares diferentes chegaram ao mesmo resultado ou à mesma ideia revolucionária. Os exemplos citados por White incluem a formulação de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace da teoria da evolução por seleção natural, a redescoberta independente da genética de Mendel por três cientistas diferentes em 1917 e a invenção independente do voo pelos irmãos. Wright nos Estados Unidos e Santos Dumont no Brasil.

O super-orgânico

Grande parte da história da antropologia foi dedicada aos papéis e à relativa preeminência da cultura e do indivíduo. Como White, Alfred Kroeber,

Prolífico antropólogo, aluno e colaborador de Boas, sublinhou o grande poder da cultura. Kroeber (1952/1974) definiu a esfera cultural, cujo surgimento possibilitou a evolução dos macacos aos primeiros hominídeos, com o termo superorgânico . O conceito de superorgânico inaugurou um novo campo de análise, separável, embora de importância semelhante, do orgânico (isto é, a vida, sem a qual o superorgânico não poderia existir) e do inorgânico (química e física, a base do mundo orgânico). Semelhante a White (e muito antes dele, Tylor, que primeiro propôs uma ciência da cultura), Kroeber via a cultura como a base da nova ciência, que mais tarde se tornou a antropologia cultural. Kroeber (1923) lançou as bases desta ciência no primeiro livro dedicado à antropologia; Sua tentativa foi tentar demonstrar o poder da cultura sobre o indivíduo, concentrando-se em estilos e modas específicos, como os relacionados ao comprimento das bainhas das roupas femininas. Segundo Kroeber (1944), hordas de indivíduos foram literalmente arrastados, incapazes de reagir, pela alternância de tendências que caracterizaram as várias épocas, acabando sendo cancelados e subjugados pela inconstância dos estilos. Ao contrário de White, Steward e Harris, Kroeber não tentou explicar essas mudanças, mas apenas as usou para demonstrar o poder da cultura sobre o indivíduo: como Margaret Mead, ele era um determinista.

Durkheim e os pioneiros da etnologia francesa

Na França, Émile Durkheim propôs uma abordagem determinística semelhante, clamando por uma nova ciência social baseada no que em francês chamou de consciência colectif / ('consciência coletiva'), embora esta tradução usual não ofereça uma semelhança adequada com a noção de Superorgânico de Kroeber e da culturologia de White. Durkheim argumentou que essa nova ciência seria baseada no estudo de fatos sociais, analiticamente diferente dos indivíduos de cujo comportamento tais fatos foram inferidos. Muitos antropólogos concordam com a suposição central de Durkheim de que o papel do antropólogo é estudar um sistema maior do que o indivíduo. Os psicólogos estudam os indivíduos, enquanto os antropólogos estudam os indivíduos como representantes de uma entidade maior. São precisamente esses sistemas maiores, compostos de posições sociais (ou seja, status e papéis) e perpetuados de geração em geração através do mecanismo de enculturação, os objetos de estudo que os antropólogos devem se preocupar. Os sistemas sociais são obviamente também objeto de estudo para sociólogos e Durkheim, como será indicado no capítulo dedicado à cultura, é commumente considerado um dos pais da antropologia e da sociologia: ele estava de fato preocupado em descrever, por exemplo, as religiões totémicas dos aborígenes Australianos e estudar as taxas de suicídio nas sociedades modernas.

A etnossociologia francesa se desenvolverá em torno dos conceitos de fatos sociais e consciência coletiva, cujas figuras mais importantes do início do século XX (além do próprio Durkheim) são Robert Hertz e sobretudo Marcel Mauss. Ambos farão textos que ainda hoje são considerados fundamentais. Hertz, cuja produção se limita ao morrer jovem, é lembrado por sua Contribuição ao estudo da representação coletiva da morte (1907) e por ter inaugurado a 'antropologia alpina'. Mauss escreverá ensaios importantes, alguns com o próprio Durkheim, e entre 1923 e 1924 seu volume mais conhecido e teoricamente influente: o Ensaio sobre o presente. Em 1925 Mauss, juntamente com Lucien Lévy-Bruhl, contribuíram significativamente para a fundação, em Paris, do institut d'ethnologie, instituição fundamental para o desenvolvimento da pesquisa etnográfica na França, que verá em Marcel Griaule (africanista) e Maurice Leenhardt (oceanista) os principais pioneiros.

ANTROPOLOGIA SIMBÓLICA E INTERPRETATIVA

Victor Turner era um dos colegas de Max Gluckman no Departamento de Antropologia Social da University of Manchester, então membro da chamada Manchester School, antes de se mudar para os Estados Unidos, onde lecionou na University of Chicago e na University of Virginia. . Turner foi o autor de vários volumes e ensaios importantes dedicados a rituais e símbolos: sua monografia intitulada Schism and Continuity in an African Society (1957/1996) ilustra o interesse em elementos conflitantes e sua resolução anteriormente mencionada como um dos Características da escola de Manchester. A floresta dos símbolos (1967/1976) é uma coleção de ensaios dedicados à análise do universo simbólico e dos rituais dos Mvemba da Zâmbia, onde Turner fez a maior parte do seu trabalho de campo. Nestes ensaios Turner examina a forma como os símbolos e rituais são usados ​​para retificar, regular, antecipar e evitar conflitos, além de estudar uma espécie de hierarquia semântica de símbolos, desde suas funções sociais e significados até sua internalização a partir de Parte dos indivíduos.

Turner reconheceu as ligações entre a antropologia simbólica (o estudo dos símbolos em seu contexto social e cultural), uma orientação na qual ele desempenhou um papel pioneiro, e outros campos de estudo, como psicologia, psicologia social e psicanálise. O estudo dos símbolos é de importância primordial no campo psicanalítico: até Sigmund Freud, pai da psicanálise, reconheceu uma hierarquia de símbolos, desde aqueles potencialmente universais até aqueles que tinham um significado apenas para indivíduos específicos e que surgiram durante a análise e interpretação. Dos sonhos. A antropologia simbólica de Turner se consolidou na Universidade de Chicago, onde um de seus colegas, David Schneider , desenvolveu uma abordagem simbólica da cultura americana em American Kinship: A Cultural Account (1968).

Ligada à antropologia simbólica, e relacionada às perspectivas teóricas que se desenvolveram na Universidade de Chicago (e posteriormente na Universidade de Princeton), está Antropologia Interpretativa, cuja figura principal é Clifford Geertz. Como será explicado no capítulo dedicado à cultura, Geertz define cultura como uma série de conceitos baseados em símbolos e aprendizado cultural. Durante o processo de cultura, os indivíduos internalizam um sistema previamente estabelecido de significados e símbolos e usam esse sistema cultural para definir seu próprio mundo, para expressar seus sentimentos e para formular seus julgamentos.

A abordagem da antropologia interpretativa (Geertz 1973/1987, 1983/1988) é abordar as culturas como textos cujos formatos e, em particular, cujos significados devem ser decifrados em contextos históricos e culturais específicos. A abordagem de Geertz lembra a crença de Malinowski de que a principal tarefa do etnógrafo é 'afirmar o ponto de vista do indígena, sua relação com a vida, para realizar sua visão de seu mundo' (1922 / 1973, p. 49, ênfase de Malinowski). Desde a década de 1970, a antropologia interpretativa tem considerado a tarefa de descrever e interpretar o que é significativo para os nativos em estudo. Culturas são textos que os nativos 'lêem' constantemente e que os etnógrafos devem decifrar. De acordo com Geertz (1973/1987), os antropólogos podem escolher o que mais lhes interessa dentro de uma cultura (como (como uma briga de galos balinesa, como em um famoso ensaio de Geertz), completo com detalhes e elaborado a fim de informar os leitores sobre os significados daquela cultura específica; Esses significados são transmitidos por formas simbólicas públicas, incluindo palavras, rituais, práticas e estilos de vida.

Na esteira dos influentes trabalhos de Geertz, uma importante reflexão se desenvolveu na antropologia contemporânea centrada na análise da relação entre antropólogos e seus interlocutores durante a pesquisa de campo, sobre o antropólogo como 'autor' de textos e sobre a natureza epistemológica dos mesmos. Etnografias que afirmam falar de outros (cf. Clifford e Marcus 1986/1997).

ESTRUTURALISMO

No campo antropológico, o estruturalismo está principalmente associado a Claude Lévi-Strauss, um antropólogo francês muito prolífico. O estruturalismo de Lévi-Strauss evoluiu com o tempo, de um interesse inicial nas estruturas de parentesco e sistemas de casamento para um interesse tardio na estrutura da mente humana. Nessa perspectiva, o estruturalismo de Lévi-Strauss não visa explicar relações, temas e conexões entre os diversos aspectos da cultura, mas sim descobri-los, trazendo-os à luz.

Essa perspectiva de investigação antropológica é baseada na crença de Lévi-Strauss de que as mentes humanas possuem traços universais que se originam em certas características comuns do cérebro do Homo sapiens. Essas estruturas mentais comuns levam indivíduos de todo o mundo a usar mecanismos cognitivos semelhantes, independentemente de sua sociedade ou cultura. Dentre essas características mentais universais emerge a necessidade de classificação, isto é, de impor uma ordem sobre os aspectos da natureza, sobre a relação do homem com ela e sobre as relações entre os indivíduos.

Segundo Lévi-Strauss, um dos aspectos universais da classificação é a oposição ou contraste. Embora muitos fenómenos acabem sendo contínuos em vez de separados, a mente os considera como se fossem mais diferentes do que realmente são, devido à necessidade humana de impor uma certa ordem. Um dos meios mais comuns de classificação é a oposição binária: bem e mal, preto e branco, velho e jovem, alto e baixo são antíteses que, segundo Lévi-Strauss, refletem a necessidade humana universal de converter as diferenças de grau Em diferenças de espécies.

Lévi-Strauss verificou esses pressupostos sobre classificação e oposição binária na análise de mitos (e fábulas), mostrando que esse tipo de narração se organiza em torno de blocos de construção simples, ou seja, estruturas elementares simples ou mitos. Examinando os mitos de diferentes culturas, Lévi-Strauss mostra como é possível converter uma história em outra por meio de uma série de operações simples, como:

• Converta o elemento positivo de um mito em seu próprio Negativo correspondente.

• Inverta a ordem dos elementos.

• Substitua o herói masculino por uma heroína.

• Reter ou repetir alguns elementos-chave.

Por meio de tais operações, dois mitos aparentemente diferentes podem provar ser variações de uma estrutura comum, isto é, transformações um do outro. Um exemplo famoso é a análise feita por Lévi-Strauss sobre a fábula da Cinderela, difundida em muitos países, cujos elementos variam de cultura para cultura. Por meio de reversões, oposições e negações, à medida que a história é contada, recontada, disseminada e incorporada em sociedades sucessivas. Cinderela acaba se tornando 'O pequeno limpador de chaminés', contextualmente a uma série de outras oposições (por exemplo, a figura do padrasto em vez da da madrasta) relacionadas à mudança de género de feminino para masculino. Embora o pensamento e a personalidade de Lévi-Strauss tenham dominado em parte e certamente condicionado o desenvolvimento da antropologia francesa, é preciso lembrar que, a partir da década de 1950, desenvolveram-se abordagens teóricas distantes tanto do estruturalismo quanto das perspectivas teóricas e de pesquisa. Os primeiros etnógrafos franceses (por exemplo, Griaule). Georges Balandier propôs uma antropologia mais atenta ao contexto histórico daqueles anos (marcados pelo colonialismo) e às dinâmicas culturais, sociais e econômicas determinadas pela 'situação colonial'. Desta forma, ele orientou a pesquisa antropológica de seus muitos alunos (incluindo Claude Meillassoux e Jean-Loup Amselle) para a valorização das transformações sociais, a recuperação das ferramentas analíticas propostas por Marx e a crítica dos que estão em voga na etnologia clássica.

ABORDAGENS DE PROCESSO

Processos sociais e agência

O estruturalismo foi acusado de ser excessivamente formal e de ignorar os processos sociais, assim como o funcionalismo estrutural anglo-saxão foi criticado pela excessiva centralidade reservada aos aspectos regulatórios e a 'culturologia' americana foi acusada de não dar O peso certo para as estratégias e ações dos indivíduos. No capítulo dedicado à cultura, verá que, convencionalmente, ela tem sido considerada como uma espécie de cola social transmitida de geração a geração, que une os indivíduos em seu passado comum.

Visão Geral das Teorias Antropológicas

Ao invés de algo que é continuamente criado e modificado no presente. A tendência de ver a cultura como uma entidade em vez de um processo está mudando. Na verdade, a necessidade de abordagens procedimentais já se materializou por volta de meados do século XX, quando muitos antropólogos (entre os primeiros, os atribuíveis à escola de Manchester) concentraram suas análises na ação e no processo social. Hoje, os antropólogos contemporâneos enfatizam como, dia após dia, ações, práticas e estratégias de resistência são capazes de criar e recriar cultura (Gupta e Ferguson, 1997b). O conceito de agência refere-se às ações realizadas por indivíduos, tanto sozinhos como em grupo, na criação e transformação de identidades culturais.

A teoria da prática

A abordagem da cultura conhecida como teoria da prática (Ortner 1984) reconhece que os indivíduos dentro de uma sociedade ou cultura são animados por vários motivos e intenções, bem como possuem vários níveis de poder e influência. Esses contrastes podem estar associados a fatores como género, idade, etnia, classe social e outras variáveis ​​sociais. A teoria da prática enfoca como os indivíduos, por meio de suas ações e práticas, influenciam e transformam o mundo em que vivem, reconhecendo a realidade da relação mútua que existe entre a cultura e o indivíduo. A cultura molda as experiências individuais e as respostas individuais aos eventos externos, mas os indivíduos também desempenham um papel ativo no modo como a sociedade funciona e muda. Essa teoria reconhece tanto as restrições impostas aos indivíduos quanto a flexibilidade e variabilidade das culturas e sistemas sociais. Entre os expoentes mais conhecidos da teoria da prática estão a antropóloga americana Sherry Ortner, o antropólogo e sociólogo francês Pierre Bourdieu e o sociólogo inglês Anthony Giddens .

Teoria da acção

Alguns dos princípios básicos da teoria da prática, às vezes também chamada de teoria da ação (Vincent 1990), podem ser rastreados até o antropólogo britânico Edmund Leach, autor do importante volume Political Systems of Highland Burma (1954/1979). Influenciado pelas teorias de Vilfredo Pareto, Leach se concentrou em como os indivíduos operam para alcançar o poder e como suas ações são capazes de transformar a sociedade . Entre os Kachin da Birmânia, agora Mianmar, Leach identificou três formas

Do. Organização sócio-política: gumlao, guiné e Shan. Extremamente simplificando, essas três formas referem-se respectivamente à organização tribal, domínio (chefia) e estado (ver o capítulo sobre sistemas políticos). No entanto, Leach fez uma diferença substancial ao adotar uma perspectiva regional em vez de local: os Kachin participavam de um sistema regional que incluía todas as três formas de organização. Tipologias tradicionais sugerem que tribo, domínio e estados são unidades separadas; Em vez disso, Leach mostrou que eles podiam coexistir e interagir como formas e possibilidades conhecidas por diferentes grupos na mesma região. Leach também mostrou como os Kachin empregam o poder de forma criativa, por exemplo, para converter uma organização do tipo gumlao em uma organização criada, e como negociam suas identidades Dentro do sistema regional. Leach introduziu a processualidade do social nos modelos formais do funcionalismo estrutural: enfocando o poder e a maneira como as pessoas o adquirem e usam, ele foi capaz de mostrar o papel criativo do indivíduo na transformação da cultura.

TEORIA DO SISTEMA MUNDIAL,

ECONOMIA POLÍTICA E GLOBALIZAÇÃO

A perspectiva regional de Leach não era muito diferente de outro desenvolvimento que tomou forma na mesma época. Julian Steward , anteriormente listado como neo-evolucionista, mudou-se para a Columbia University em 1946, onde pôde colaborar com jovens acadêmicos, incluindo Eric Wolf e Sidney Mintz. Steward, Wolf, Mintz e outros planejaram e conduziram um projeto de pesquisa em grupo em Porto Rico, descrito no volume Steward, The People of Puerto Rico (1956). O projeto exemplificou, após a Segunda Guerra Mundial, um afastamento da antropologia das sociedades 'primitivas' e não industriais, que se consideravam de alguma forma isoladas e autônomas, para se concentrar mais nas sociedades contemporâneas, forjadas pelo colonialismo e que participaram plenamente do sistema mundial moderno . O grupo se dedicou ao estudo de diferentes comunidades em Porto Rico: parcelas individuais de pesquisa, como plantações de açúcar, foram escolhidas para investigar melhor as adaptações e os principais eventos na história da ilha. Esse tipo de abordagem permitiu chamar a atenção para a economia, a política e a história. Ao longo de suas carreiras, Wolf e Mintz sempre mantiveram um forte interesse pela história; Wolf escreveu o clássico Formai Europa e povos sem história (1982/1990), no qual os povos indígenas, como os nativos americanos, eram considerados no contexto de eventos do sistema mundial, como o comércio de peles e peles na América do Norte. Wolf se concentrou em como esses 'povos sem história', ou seja, pessoas analfabetas, que careciam de uma herança cultural de histórias escritas, participaram e, ao mesmo tempo, foram transformadas pelo sistema mundial e a expansão do capitalismo. A História do Açúcar de Mintz (1985/1990) é outro exemplo de antropologia histórica que enfoca a política (a rede de relações econômicas e de poder interconectadas): aqui Mintz traça as fases de cultivo e disseminação de Cana-de-açúcar, o papel transformador que o açúcar desempenhou na Inglaterra e seu impacto no Novo Mundo, onde se tornou a base das economias de plantation que utilizavam mão de obra escrava no Brasil e no Caribe. Essas obras de economia política ilustram um movimento da antropologia em direção à interdisciplinaridade, com base em outros campos de estudo, como história e sociologia. Qualquer abordagem antropológica ligada ao sistema mundial também remete ao pensamento de Immanuel Wallerstein, que tratou da teoria do sistema mundial moderno, incluindo os modelos de centro, periferia e semiperiferia, ilustrados na parte final deste manual. Esse tipo de abordagem no campo antropológico tem sido criticado por uma avaliação excessiva da influência de 'forasteiros', ou elementos estranhos, e pela escassa atenção dada às estratégias e capacidade de mudança e transformação dos 'povos sem história'. Além disso, a imagem de um sistema mundial interconectado, mas marcado por fronteiras geográficas e culturais claras, também tem sido rediscutida na esfera antropológica como consequência de uma globalização cada vez mais evidente. Os fluxos globais remodelam o local e, ao mesmo tempo, o local atribui significados e formas particulares ao que é pensado como global. Tudo isso é levado em consideração pela antropologia contemporânea que está redefinindo seus objetos de estudo e metodologias de pesquisa.

CULTURA, HISTÓRIA, PODER

Abordagens mais recentes no campo da antropologia histórica, embora compartilhem de um lado um certo interesse pelo elemento poder com os teóricos do sistema mundial, por outro se concentraram mais

No conceito de agência local, ou seja, nas ações destinadas à transformação de indivíduos e grupos dentro das sociedades colonizadas. A antropologia histórica recente realizou principalmente trabalhos de arquivo, particularmente em áreas como a Indonésia, cujos documentos coloniais e pós-coloniais contêm informações valiosas sobre as relações entre colonos e colonizados e sobre as ações e vários protagonistas do contexto colonial . Os estudos que enfocam a cultura, a história e o poder têm se baseado fortemente na obra de intelectuais como Antonio Gramsci e Michel Foucault.

Conforme ilustrado no capítulo dedicado aos sistemas políticos, Antonio Gramsci desenvolveu o conceito de hegemonia referindo-se a uma ordem social estratificada em que os elementos subordinados se alinham e aderem à condição de dominação, internalizando os valores da hegemonia e aceitando sua dominação como um fato ' Natural'. Pierre Bourdieu (1972/2003) e Michel Foucault (1975/1979) argumentaram que era mais fácil dominar as mentes dos indivíduos do que seus corpos. Além da violência física, as sociedades contemporâneas conceberam várias formas de controle social, incluindo técnicas de persuasão, coerção e gestão de indivíduos, bem como monitorar e registrar suas crenças, comportamentos, movimentos e contatos. Antropólogos interessados ​​na relação entre cultura, história e poder, incluindo Ann Stoler (1995, 2002), examinaram sistemas de poder, dominação, adaptação e resistência em uma variedade de ambientes, incluindo colônias, países pós-coloniais e outros contextos. Estratificado.

ESCOLA SOCIOLÓGICA FRANCÊS

Características gerais

A expressão 'etnologia clássica francesa' é aqui utilizada para indicar aquela tradição que tem seus momentos emergentes na produção teórica de Durkheim, Lévy-Bruhl, Mauss e Lévi-Strauss.

Há pelo menos duas razões que nos permitem isolar esta tradição e atribuí-la, tanto do ponto de vista estritamente teórico como do ponto de vista ideológico, a um campo de pertença específico. Em primeiro lugar, a crença subjacente à reflexão destes autores segundo a qual as sociedades primitivas seriam o lugar onde se torna possível encontrar e observar os fenómenos sociais na sua forma mais simples e elementar. Quer se trate de fenómenos pertencentes à ordem do social em sentido estrito, quer se trate de fenómenos que se podem situar ao nível do simbólico (com Lévi-Strauss estas duas ordens acabarão por ser identificadas), estas os fenómenos aparecem, na perspectiva de todos esses autores, como mais bem analisados ​​em contextos sociais simples, onde passam a adquirir um valor muito elevado do ponto de vista explicativo justamente em virtude da natureza expressiva (total, segundo Mauss) que eles jogar dentro de um ambiente social mal estruturado como o das sociedades 'primitivas'.

Outro fato que permite atribuir características de homogeneidade e continuidade a essa tradição é que todos esses autores acreditam indiscriminadamente na possibilidade da existência de uma 'ciência etnológica'. Deste ponto de vista, a etnologia francesa clássica é a expressão máxima do mito positivista de uma 'ciência das sociedades primitivas'. Para a etnologia francesa clássica, tal ciência pode ser construída com base nos seguintes princípios e estratégias intelectuais.

Em primeiro lugar, como já foi dito, a ideia da natureza elementar dos fatos sociais dentro de contextos sociais “mais simples” que o nosso. Sem possuir o significado estritamente evolutivo que tal ideia poderia ter para os antropólogos vitorianos ou dentro da sociologia de Spencer, não é difícil ver como esta última se transformou no veículo pelo qual o positivismo sociológico britânico se reproduz no contexto da etnologia francesa clássica. Isso se torna mais compreensível se tivermos em mente que no plano teórico a etnologia francesa encontrou suas possibilidades de emergência essencialmente graças ao trabalho sociológico de Durkheim.

Em segundo lugar, dentro dessa tradição 'clássica' e dentro da própria imagem de uma 'ciência das sociedades primitivas', há a necessidade de pensar o objeto - o primitivo - como algo radicalmente distinto e separado da realidade à qual o observador sujeito, o etnólogo, pertence. Só assim se torna de fato possível pensar em poder derivar aquelas condições de análise que, a partir do modelo do procedimento das ciências naturais, isto é, por meio de algo semelhante a um experimento de laboratório, são capazes de conferir ao conhecimento etnográfico aquelas características de coerência e sistematicidade que a tradição científica exige. Essa perspectiva vai entrando em crise gradativamente à medida que o etnólogo acaba se vendo cada vez mais envolvido, tanto profissional quanto emocionalmente, no processo de desconstrução das sociedades primitivas em decorrência da progressiva extensão do modo de produção capitalista nas modalidades do imperialismo . Quem melhor do que ninguém exprimirá esta situação de envolvimento e desorientação emocional face ao desaparecimento do objecto tradicional da etnologia será, e não por acaso, o último expoente da etnologia clássica francesa: Claude Lévi-Strauss. O envolvimento profissional do etnólogo, por outro lado, vai gerar novos problemas teóricos e novas dependências ideológicas que, no final dos anos 1950, encontram seu próprio espaço de reflexão dentro do processo histórico de 'descolonização'. Desta forma, surgirão novos objetos e novos problemas de pesquisa, ambos produtos de uma orientação ideológica diferente e de uma situação político-institucional que enquadra o trabalho do pesquisador: a 'mudança social', a transformação das economias tradicionais, a função das relações de classe dentro as formações sociais em transição, o papel das ideologias tradicionais no contexto das novas dinâmicas sociais desencadeadas pelo neocolonialismo, o etnocídio. Mas esta é a história de hoje.

Factos sociais, consciência e representações coletivas: Durkheim e Lévy-Bruhl

Comte

A nível teórico, a etnologia francesa desenvolveu-se, pelo menos nos seus primórdios, numa relação de clara dependência da sociologia que, a partir de Comte e ao longo do século XIX, constituíra a linha dominante em França no âmbito deste tipo de Educação. Isso significa que as raízes da etnologia francesa se afundam em um saber cujo objeto se construiu em torno de um problema particular, o da legislação social.

O projeto do Comte de um conhecimento da sociedade capitalista-industrial francesa da primeira metade do século XIX e, ao mesmo tempo, instrumento de sua gestão com base em critérios de natureza técnico-científica, sofreu um duro golpe com os acontecimentos de 1870. No nível da teoria sociológica, os eventos da Comuna, com seus efeitos traumáticos na sociedade e na cultura francesas, geraram questões com uma orientação diferente daquelas que poderiam ser formuladas na perspectiva iluminista-positivista de Comte.

No entanto, apesar disso, a ideia comtiana de um social ordenável com base em critérios tecnológicos estava destinada a ressurgir com frequência como um aspecto da ideologia política da França contemporânea. De fato, o que falha na sociologia francesa do final do século XIX não é a confiança em um projeto de 'engenharia social', mas sim a confiabilidade de conceitos e teorias cujo potencial de inteligibilidade se mostrou pouco eficaz diante dos acontecimentos de 1870 .

Durkheim

É na sociologia de Emile Durkheim (1858-1917) que podemos ler tanto a confiança na projetabilidade do social quanto o esforço para desenvolver um novo aparato conceitual capaz de tornar compreensíveis aqueles fenómenos que a racionalidade do sistema Comte apreendeu inadequadamente. Com efeito, se por um lado a perspectiva de partida na qual Durkheim se coloca é a da busca dos fatores normativos dos quais dependem a estabilidade e a continuidade do social, por outro é nas mesmas modalidades conceituais nas quais esses fenómenos são concebidos que mostram o diferente papel que ocupam na sociologia de Comte e na de Durkheim. É o caso, por exemplo, das crenças comuns cuja função socialmente normativa Comte compreendeu perfeitamente. No entanto, a expressão 'crenças comuns' em Comte referia-se essencialmente a procedimentos psíquicos associativos característicos de determinadas fases do desenvolvimento global da sociedade. De fato, dentro da chamada “lei dos três estágios”, é apenas nas fases teológica e metafísica que as crenças comuns podem desempenhar plenamente o papel de elementos estabilizadores do sistema social. Qualquer explicação das relações entre os fenómenos é distorcida por uma perspectiva pré-científica que exclui qualquer possibilidade de validar essa mesma explicação por meio de evidências. O estágio positivo da sociedade e do conhecimento elimina qualquer resíduo teológico e metafísico dos processos de compreensão da realidade, relegando a um estágio anterior de desenvolvimento o elemento a-científico da crença comum. A era positiva que acaba de começar promete, ao contrário, trazer, sobre a sociedade e a natureza, um olhar livre de preconceitos e de qualquer forma de crença: um olhar científico.

A exclusão do estágio positivo da crença comum como fator social normativo refletia aquela ideologia da razão identificável com a ideia de progresso característica do clima intelectual do positivismo do século XIX. A lei dos três estágios de Comte respondia a uma imagem da sociedade capitalista-industrial como a de uma sociedade completamente afastada da influência daqueles fenómenos que aparentemente agiam apenas em contextos sociais pertencentes a fases anteriores do desenvolvimento histórico.

Em vez disso, com Durkheim, a perspectiva muda radicalmente. Os fenómenos sociais de massa emergentes das condições sociais alteradas da França na segunda metade do século XIX constituem o elemento decisivo que torna a imagem comtiana da sociedade capitalista-industrial inaceitável aos olhos de Durkheim. De fato, é claro que mesmo este último é amplamente dominado por forças aparentemente irracionais que têm suas raízes na opinião pública, nas tensões sociais e políticas, nas lutas religiosas. Durkheim se pergunta sobre os elementos que, no entanto, garantem a perenidade da sociedade no tempo. Transgredindo o ponto de vista cientificista de Comte, Durkheim identifica o principal desses elementos na consciência coletiva que em A Divisão do Trabalho Social de 1893 é definido como 'o conjunto de crenças e sentimentos comuns ao membro médio de uma mesma sociedade'. O conceito de consciência coletiva, que Durkheim concebe como uma entidade do eu social possuindo uma existência supraindividual, ou seja, isto é, independente das consciências individuais e dotado de uma lógica de desenvolvimento autónomo, é o que permite ao sociólogo francês pensar todas as sociedades em um espaço homogéneo e, portanto, Γ compará-las nos elementos que as compõem, estabelecer suas diferenças traçando evolução e, finalmente, lançar as bases de uma moral científica que, na linha do projeto de uma sociedade ordenada de Comte, é um ponto de referência: para o reformador.

 Relaciona-se com a maior ou menor intensidade com que a consciência coletiva se manifesta nas diferentes sociedades; o tipo de solidariedade que se estabelece entre os membros de cada um; deles. Desta forma, onde a vida social ocupa todo espaço  da vida do indivíduo, determinando suas escolhas e sentimentos, a consciência coletiva reflete a resistência de uma solidariedade de tipo mecânico que une os indivíduos individuais. Forte será neste caso a reprovação social para qualquer ato que transgrida as normas sociais de comportamento. Nas sociedades onde domina a solidariedade mecânica, a consciência coletiva é tão forte que é coextensiva com as consciências individuais. Nos tipos de sociedade onde prevalece a tendência do indivíduo individual se diferenciar do grupo, ou seja, nas sociedades onde prevalece um tipo orgânico de solidariedade e onde os indivíduos se encontram em sociedade graças a mecanismos que dependem de atos intencionais respondendo a uma vontade pessoal , a consciência coletiva tende a ocupar espaços menores, mas não menos efetivos do ponto de vista da manutenção de uma identidade social comum.

A dicotomia de Durkheim em relação ao modelo de solidariedade reflete mais uma distinção bastante frequente de conveniência no estilo da escrita antropológica do que uma crença no fato de que existem sociedades que podem ser atribuídas tout court a um ou outro tipo. Isso é confirmado pelo fato de que em Durkheim as várias sociedades parecem se organizar ao longo de uma linha contínua que vai de um limite ao outro de uma evolução concebida segundo as modalidades tradicionais de passagem do simples ao complexo. Isso aparece claramente no livro de Durkheim, que mais do que qualquer outro é afetado por sugestões etnológicas: As formas elementares da vida religiosa de 1912.

Este trabalho responde à tentativa de elaborar uma teoria geral da religião e da sociedade através do resgate daqueles elementos - as formas elementares de fato - que passam a fazer parte de todos os sistemas religiosos e sociais.

Para Durkheim, a legitimidade epistemológica dessa operação reside no fato de que o fenómeno religioso constitui um fato sociológico unitário: 'algumas [religiões] podem ser ditas superiores a outras no sentido de que põem em jogo funções mentais superiores', mas se considerando as religiões simples, percebemos que elas 'respondem às mesmas necessidades, desempenham a mesma função, derivam das mesmas causas e, portanto, também podem manifestar a natureza da vida religiosa e, consequentemente, resolver o problema que queremos lidar'. As religiões são, portanto, comparáveis ​​entre si porque, independentemente de seu respectivo grau de complexidade, 'na base de todos os sistemas de fé e todos os cultos deve haver necessariamente um certo número de representações fundamentais e atitudes rituais que cobrem em toda parte o mesmo significado objetivo e cumprem as mesmas funções em todos os lugares'.

O problema de encontrar essas representações fundamentais, ou formas elementares, é resolvido por Durkheim ao assumir que a religião em seu estado original está presente nas sociedades mais simples conhecidas. A partir dessas considerações, Durkheim elabora uma teoria que, desde o totemismo australiano1 (que ele considera, segundo a opinião corrente na época, como o sistema religioso mais simples existente) até a religião positiva, reproduz uma espécie de continuidade (a natureza unitária dos fatos sociais) dentro do qual atuam representações independentes de natureza coletiva, como projeção ideal do grupo social, daquelas dos indivíduos singulares.

Assim, as imagens de animais ou plantas que representam um determinado totem, e as noções mais elaboradas como as de maria (Melanésia), wakan (Sioux), orenda (Iroquois), manitou (Algonkini), etc., noções que expressam um A ideia de força em geral, associada ao totem, símbolo do clã (que para Durkheim é a unidade social primária), expressam a própria força com que a sociedade se impõe aos indivíduos. Estes, por sua vez, através de uma espécie de 'deslocamento' fazem da sociedade um objeto de culto. O que se venera através do ritual não é um determinado animal ou uma determinada planta, mas a própria sociedade (neste caso o clã), que 'mantém vivo em nós o sentimento de dependência perpétua, uma vez que, escreve Durkheim , tem uma natureza própria diferente de nossa natureza como indivíduos e persegue objetivos que lhe são particulares'.

O domínio que a sociedade exerce sobre os indivíduos não é apenas de natureza coercitiva: ao contrário, impõe-se pelo exercício de um poder moral que, segundo Durkheim, nada mais é do que o respeito que os indivíduos têm por ela, poder ao qual eles muitas vezes obedecem contrariamente aos seus próprios interesses. Seja o totemismo australiano, a religião dos antigos ou a de nosso tempo e civilização, sua natureza e função permanecem idênticas: sempre coincidem com a sociedade e a devoção de seus membros a ela, respectivamente. A religião aparece, portanto, como um sistema de representações e ritos por meio dos quais os indivíduos participam mística e coletivamente dessa entidade dotada de uma força sobrenatural (no sentido de não natural) que é a sociedade.

1. Até muito recentemente, o totemismo era considerado uma forma de religião que consistia na identificação de um grupo com um animal, uma planta ou qualquer objeto que assim se tornasse objeto de culto e também um símbolo do ancestral para os indivíduos pertencentes a o grupo. No final desta concessão. O que realmente importa, neste livro de Durkheim, naturalmente não são os resultados ideológicos da pesquisa e os princípios da normatividade social, muito menos a validade das passagens lógicas destinadas a demonstrar a veracidade das teorias nele expostas; As formas elementares da vida religiosa marcam um momento importante na reflexão etnossociológica em que emerge uma perspectiva completamente nova de abordagem do estudo dos fenómenos sociais, não apenas no que diz respeito à tradição comtiana da sociologia francesa, mas também à da etnologia européia. no geral. A partir de Durkheim, fenómenos sociais como religião, instituições legais, normas éticas, etc. não podem mais ser considerados como resultado do progresso intelectual a partir de impressões subjetivas (ver, por exemplo, o nascimento da religião do ponto de vista de um evolucionista como Tylor). Os fatos sociais, que para Durkheim constituem o objeto da sociologia, são de fato identificáveis ​​pelo poder que eles têm de exercer uma coerção sobre os indivíduos: independentes da psicologia do indivíduo e possuindo uma vida autónoma, os fatos sociais aparecem, assim, determinam de fora o comportamento dos membros de uma sociedade e o que, pelo mecanismo impessoal da obrigação e da norma, impõe aos indivíduos a adesão às regras do corpo social a que pertencem.

As formas como essa autonomia e supraindividualida do social são concebidas em Durkheim - isto é, os conceitos de fato social e consciência coletiva - representaram do ponto de vista teórico um elemento decisivo destinado a produzir um espaço original de reflexão dentro da etnologia clássica francesa

Lévy-Bruhl

É a ideia do social como entidade dotada de uma lógica de funcionamento autónomo e independente da compreensão que os indivíduos possam ter dele que constitui o pano de fundo do discurso de Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939) sobre a característica representações coletivas da mentalidade primitiva.

Em Lévy-Bruhl, porém, à problemática da der a uma derivação durkheimiana junta-se outra de natureza mais estritamente filosófica. O tema central da obra de Lévy-Bruhl remonta ao primeiro, ou seja, sua tentativa de encontrar aquelas instâncias supraindividuais que determinam o comportamento dos membros da sociedade. Por outro lado, tanto o corte conceitual particular quanto a inspiração inicial de sua trajetória teórica devem ser rastreados ao segundo. É na Moral e na Ciência dos Costumes de 1903 que podemos localizar a emergência daqueles interesses etnológicos que farão deste filósofo, sucessor de Boutroux na Sorbonne, o teórico da 'mentalidade primitiva'. É um manifesto de relativismo moral que Lévy-Bruhl, longe discípulo de Comte e simpatizante do socialismo, publicou em 1903. Moralidade e ciência nos costumes nasceu de fato como um livro de filosofia para responder a uma pergunta tipicamente filosófica: existe moral objetiva? A crítica de Lévy-Bruhl a qualquer pretensão de elaborar uma moral teórica universalmente válida, ou seja, objetiva no sentido filosófico, coloca seu autor na posição de abrir seu próprio discurso em um campo diferencial: o da etnologia.

Qualquer teoria que busque fundar uma moral objetiva parte do pressuposto mais ou menos consciente segundo o qual existe uma 'natureza humana' sempre e em toda parte idêntica a si mesma, o que equivale, segundo Lévy-Bruhl, a reativar um preconceito etnocêntrico em filosofia . A teoria, argumenta Lévy-Bruhl, não pode fundar nenhuma moralidade, ela pode apenas estudá-la. Estudar moralidade significa, na verdade, tentar entender os diferentes significados que a experiência moral pode assumir em diferentes contextos sociais. Embora a problemática de La morale permaneça em dívida com uma forte inspiração filosófica, é neste texto que Lévy-Bruhl completa sua revolução etnológica. A partir de agora, de fato, seu olhar se voltará para a etnologia como aquele repertório no qual lhe será possível traçar indícios dessa natureza diferencial, não mais apenas do-. experiência moral, mas também daquelas formas de pensamento (funções mentais) que, em harmonia com sua formação de inspiração filosófica, se tornarão o objeto central de sua pesquisa. Na verdade, foram os 'sistemas primitivos de pensamento' que constituíram o objeto de toda a produção teórica posterior de Lévy-Bruhl.

Em Mental Functions in Lower Societies , de 1910, já estão presentes os conceitos que permitirão a seu autor elaborar uma teoria geral da mentalidade primitiva.A estreia etnológica explícita de Lévy-Bruhl ocorre em clara polêmica com a tradição do evolucionismo inglês. A pretensão de explicar as 'representações coletivas' dos povos primitivos a partir de operações mentais de tipo individual e subjetivo aparece a Lévy-Bruhl como um método absolutamente extrínseco à natureza do objeto em consideração. As representações coletivas, por mais bizarras e ilógicas que nos pareçam, não são, como gostariam os evolucionistas, erros de avaliação cometidos pela mente imatura do primitivo na tentativa de rastrear as causas reais dos fenómenos. As representações coletivas são antes de tudo “comuns a um determinado grupo social e transmissíveis de geração em geração”, são representações que se impõem aos indivíduos através da prática social e que, portanto, constituem modelos sociais de atitude mental. Para Lévy-Bruhl, portanto, não se trata de descobrir a genealogia dessas representações. Rejeitou a tentativa evolucionista que consiste em retratar a génese e o desenvolvimento das representações coletivas por meio da reconstrução dos processos psíquicos individuais, Lévy-Bruhl pensa esses fatos sociais como já dados dentro de um contexto social já dado. Por mais que possamos recuar, por mais primitivas que sejam as sociedades observadas, sempre encontramos espíritos socializados, por assim dizer, já tomados por uma multidão de representações coletivas que lhes foram transmitidas pela tradição e cuja origem se perde nas brumas da tempo'. Essa consideração é o que permite a Lévy-Bruhl livrar-se desde o início de um problema que o ponto de vista etnocêntrico dos evolucionistas vitorianos acabou por produzir, a ponto de constituir um verdadeiro obstáculo epistemológico no caminho para a compreensão da diferença: a questão sobre as 'origens ' foi o classificador que permitiu aos evolucionistas organizar os dados etnográficos de acordo com um parâmetro que os impedia de olhar para outras sociedades que não dependiam da perspectiva do progresso cultural.

Todas aquelas representações que a teoria antropológica tinha até então apresentado como algo incompreensível ou mesmo bizarro e obscuro, e que a tradição evolucionista havia interpretado como o produto de uma ingenuidade intelectual, foram assim reconduzidas por Lévy-Bruhl a uma espécie de determinação que deveria ser investigada em sua lógica específica. Como se vê, a distância que separa Lévy-Bruhl da escola evolucionista é enorme.

O universo simbólico do primitivo é, para Lévy-Bruhl, homogéneo ao universo social em que ele se movimenta. É o caráter eminentemente emocional da experiência social que gera o tipo particular de representações coletivas que constituem esse universo simbólico. O grupo social primitivo vive assim uma experiência mística, que se concretiza nas práticas de adoração e execução ritual. Nesse contexto, o indivíduo não tem a possibilidade de desenvolver seu próprio julgamento independente do que lhe é imposto por sua sociedade por meio de representações coletivas de tipo místico. Lévy-Bruhl pode assim falar de uma 'impermeabilidade à experiência' como uma característica da atitude mental do primitivo. Isso tornaria compreensível que os primitivos praticassem a magia independentemente dos resultados que realmente podem ser obtidos por meio dela, pois é a representação coletiva que os impede de focar sua atenção nos dados da experiência objetiva. Ao contrário da nossa, a mentalidade primitiva não é apenas mística, mas também regida por um tipo de lógica que tende a coordenar entre si representações de natureza mística. Essa tendência da mentalidade primitiva de estabelecer relações entre representações a mística é definida por Lévy-Bruhl por meio do termo participação, enquanto, em oposição ao pensamento 'civilizado', o tipo de lógica da qual depende o princípio da participação é definido como pré-lógico. Em Mental Functions, Lévy-Bruhl escreve:

«Orientada diferentemente da nossa, preocupada sobretudo com as relações das propriedades místicas, tendo como lei principal a lei da participação, a mentalidade dos primitivos necessariamente interpreta de maneira diferente da nossa o que chamamos de nós ame a natureza e a experiência”; e em A Mentalidade Primitiva de 1922:

« A mentalidade primitiva preocupa-se, como a nossa, com as causas do que acontece. Mas ele não os procura na mesma direção. Ele vive em um mundo no qual inumeráveis ​​poderes ocultos presentes em todos os lugares estão sempre ativos ou prontos para agir”. Esses inumeráveis ​​poderes ocultos são o que a mentalidade primitiva apreende a sua relação 'participativa', onde a parte corresponde ao todo e onde o gesto ritual prefigura ou mesmo representa ; Facção real. Essa relação participante é o que determina o caráter 'pré-lógico' desse tipo de mentalidade.  O conceito de pré-lógico não designa em Lévy-Bruhl uma forma de pensamento 'menos perfeita' do que aquela designada pelo termo 'lógico'. Significa a-científico, a-crítico e não implica a ideia de precedência temporal no desenvolvimento das faculdades mentais, muito menos significa 'irracional'. O conceito de pré-lógico indica uma diferença qualitativa e não quantitativa entre a atividade mental do primitivo e a do 'civilizado'.

A imagem de sociedades primitivas assim produzida era a de sociedades cujos membros exibiam comportamentos mentais orientados de modo radicalmente diferente daqueles que Lévy-Bruhl considerava característicos dos povos 'civilizados'. Nesta distinção radical entre uma mentalidade pré-lógica e uma mentalidade 'lógica', alguns quiseram ver uma variante do preconceito etnocêntrico que Lévy-Bruhl teria reproduzido de outra maneira. Isso é muito ^provável. Mas essa distinção, que também foi interpretada como refletindo uma espécie de imperialismo ideológico; de classe (porque Lévy-Bruhl, como intelectual positivista, pensa que sua racionalidade é a de qualquer ocidental que não tenha recebido sua educação burguesa) representa a grande tentativa de organizar uma compreensão da diferença desvinculada de procedimentos e esquemas

 Pesquisa evolutiva.

A teoria da 'mentalidade primitiva' é produto de uma operação destinada a inferir ao primitivo seu espaço real de existência e conhecimento. O facto de essa tentativa ocorrer no > espaço conceitual dicotómico representado pela oposição 'mentalidade pré-lógica' / 'mentalidade lógica' é apenas um dos múltiplos efeitos que a falta de uma analítica real pode produzir.

2 O de se opor ' primitivos' e 'civilizados' para produzir uma compreensão da diferença é uma operação muito frequente na história da prática teórica antropológica, mesmo para além do inegável significado operacional que por vezes pode ter. É o caso, por exemplo, de Morgan no que diz respeito à distinção entre sociedades baseadas em relações pessoais e sociedades baseadas em relações de tipo político-territorial; é uma distinção dicotómica que encontramos em Maine quando ele fala de sociedades baseadas em status e sociedades baseadas em contractus; vimos isso em Durkheim com respeito à diferença entre uma sociedade de solidariedade mecânica e uma sociedade de solidariedade orgânica; veremos ressurgir em Lévi-Strauss na forma da distinção entre sociedades frias e quentes; e depois na antropologia mais recente, marxista (sociedades pré-capitalistas/sociedade capitalista) e não-marxista (sociedade com estado/sociedade sem estado); e também em outras ocasiões, para não falar da tradição sociológica que vai de Rodbertus a Tònnies e destes a Max Weber. Estas distinções dicotômicas continuam a ser um exemplo de como, para além do sentido operacional ou retórico que podem assumir, a investigação tende a produzir macrocategorias em sintonia com aquilo que pode assumir as características de um verdadeiro mito científico: o domínio intelectual da dispersão e da diferença.

A dádiva como fato social 'total': Marcel Mauss

Com Marcel Mauss (1872-1950) a tradição durkheimiana atinge um limiar decisivo. Mauss foi o último dos etnólogos de 'câmara' franceses num período em que a pesquisa de 'campo' começava a ser considerada um elemento essencial de garantia tanto do ponto de vista profissional (iniciatório) quanto do ponto de vista de uma correta prática científica. No entanto, é precisamente com Mauss que a etnologia experimentará um renascimento tal que abrirá e alimentará, na França e no exterior, linhas de pesquisa muito heterogêneas e devedoras de diferentes inspirações. Tanto a decolagem da antropologia econômica quanto aquele evento culturalmente importante que foi o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss foram muitas vezes considerados como dois dos múltiplos 'desenvolvimentos' da pesquisa teórica de Mauss. Sua vasta produção tocou os pontos mais díspares da etnologia francesa. Por analítica entendo aqui uma prática de pesquisa, que tenta produzir um modelo teórico diferencial dos objetos levados em consideração de tempos em tempos a inflexão etnológica e sociológica, a ponto de constituir um verdadeiro repertório de percepções possíveis em direções muito diversas.

Dentro dessa produção massiva, porém, destaca-se aquela que pode ser considerada a obra mais famosa de Mauss: o Ensaio sobre a dádiva que apareceu entre 1923 e 1924 no Année sociologique, o prestigioso periódico fundado por Durkheim e ao qual toda uma geração de etnólogos, sociólogos e psicólogos, a maioria dos quais caiu no front durante os anos da Primeira Guerra Mundial.

3 Ensaio sobre a dádiva, que tem como subtítulo «forma e razão da troca nas sociedades arcaicas», atinge efectivamente no final de um amadurecimento teórico que se dá num clima  fortemente dependente da sociologia de Durkheim.

A primeira obra original de Mauss foi dedicada ao estudo das 'formas primitivas de classificação' (Sobre algumas formas primitivas de classificação, 1901-1902). O ensaio, escrito em colaboração com Durkheim, pretendia mostrar como a ordem conceitual das classificações tornou-se inteligível não tanto se considerada como o efeito de uma atitude 'espontânea' da mente humana para agrupar objetos e seres animados que fazem parte do repertório de sua experiência em categorias, mas em vez disso, se considerado como socialmente determinado.

A ideia durkheimiana de um social primitivo como um social simples foi o que levou os dois autores a considerar e ridicularizar a divisão em classes matrimoniais característica das populações australianas, então consideradas as populações mais primitivas da Terra, como o mais simples sistema de organização social existente e buscar uma maneira pela qual a classificação de pessoas, animais e coisas ocorreu de acordo com critérios homólogos. Assim, o social aparece como o elemento que projeta sua própria ordem no sistema de representações. Assim, Durkheim e Mauss escrevem sobre o sistema social australiano: 'Todos os membros da tribo encontram-se classificados em estruturas definidas bem, a classificação das coisas reproduz a classificação dos homens'; e mais adiante: 'O que caracteriza essas classificações é o fato de que nelas as idéias se organizam segundo um modelo fornecido pelas sociedades' .

Essa homologia 'transparente' do social e do simbólico (pelo menos daquele setor da atividade simbólica que pode ser feito coincidir com a atividade de classificação) é claramente o efeito da ideia de um social 'primitivo' como sociais simples. Se por um lado esta ideia levou os dois autores a considerar as sociedades australianas como as mais primitivas e, portanto, as mais simples, por outro serviu-lhes para produzir uma teoria das transformações da mentalidade primitiva ou, de forma mais geral, para dar conta da evolução e modificações da atitude mental perante a realidade envolvente, tanto social como natural.

Para Durkheim e Mauss, uma variação no social corresponde a uma variação homóloga na ordem de classificação. Sociedades simples estruturadas segundo um princípio dicotómico como a dos aborígines australianos corresponderão a um sistema de classificação igualmente simples, enquanto uma sociedade estruturada com base em um modelo mais complexo corresponderá a um sistema de classificação igualmente complexo. De fato, são as modificações do social que, constituindo para o homem a experiência mais imediata do ponto de vista emocional, o levam a modificar a ordem conceitual das coisas:  « É fácil ver que mudanças são introduzidas, devido à segmentação,5 nas classificações. Enquanto os clãs nascidos do mesmo clã originário guardam a memória de sua origem comum, sentem-se relacionados, associados, sentem-se parte de um todo; consequentemente, seus totens e as coisas classificadas sob esses totens permanecem subordinados, em certa medida, ao totem comum do clã como um todo. Mas com o tempo esse sentimento desaparece... Naturalmente, segue-se que a classificação muda. As espécies de coisas atribuídas a cada divisão constituem tantos gêneros separados, colocados em um plano idêntico' (p. 41).

Porém, não é o reconhecimento de um determinismo sociológico que constitui o elemento importante desta obra de Durkheim e Mauss, mas sim a identificação de um princípio de estruturação das instâncias do social e do simbólico que os dois autores consideram homólogos na natureza. De facto, o resultado foi a imagem de uma pluralidade de níveis simbólicos de natureza heterogénea mas estruturados segundo sistemas de relações homólogas entre si.

O ensaio sobre as formas primitivas de classificação, para além do idealismo sociológico de que está impregnado (a estrutura da sociedade muda mas não se sabe por que razão), é importante porque a hipótese da homologia estrutural era precisamente o que teria permitido a Mauss move-se para a busca daqueles elementos do social que ele chama, seguindo o exemplo de Durkheim, fatos sociais) capazes de envolver, em sua ocorrência, a pluralidade global de estruturas homólogas: fatos sociais totais.

Um exemplo de abordagem para o estudo dos fatos sociais totais foi fornecido por Mauss em seu famoso Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós, escrito com a colaboração de Henry Beauchat e publicado em 1904. A diferente disposição 'morfológica' 6 que a sociedade de esses caçadores tende a assumir nas diferentes estações do ano (dispersão de famílias durante o verão e sua concentração durante o inverno), é entendido no significado de- ; tal que possui do ponto de vista sociológico. A tendência desses grupos de se separarem no verão e de se reunirem no inverno (devido às demandas impostas pela caça), deve ser considerada em relação à intensidade variável da vida social: rituais, festas, relações sociais, que atingem sua frequência máxima durante o inverno, cessam durante o verão, quando os grupos se dispersam nas pegadas dos animais. Dessa forma, a vida social dos esquimós apresenta um caráter bipolar que se dá na alternância de fases da vida social caracterizadas pelo 'coletivismo' ou 'individualismo' conforme as relações sociais efectivas vivam ou não seu momento de máxima intensidade. É essa bipolaridade que permeia, em seu ; poder dicotómico de simbolização, os vários níveis do social. As representações de pessoas e coisas, animais e fenómenos naturais estão de fato associadas a um ou outro; termo dessa cisão em torno da qual se constrói a experiência da vida material, social e espiritual desses grupos. Assim, qualquer coisa vem a ser definida e situada no quadro complexo da experiência a partir da referência que tem com um dos dois termos dessa oposição.

' Para a história intelectual e científica de Mauss, a importância deste estudo residia no fato de seu autor ver a morfologia dos grupos sociais não como algo que precisava ser explicado, mas também e sobretudo como algo que permitiam explicar os diferentes aspectos da vida social. Isso significa que Mauss, embora permanecendo na mesma linha de Durkheim, ao privilegiar o estudo das representações que os membros de um grupo tinham de sua vida social e do mundo circundante, tendia a deslocar a análise para o estudo de um aspecto do social considerado decisivo, e isso na convicção de que isso permitia ao etnólogo lançar seu olhar sobre uma multiplicidade de outros aspectos do social que esse aspecto implicava do ponto de vista simbólico, ou seja, das representações coletivas. Nesse sentido, o ensaio de 1904 foi o primeiro exemplo do estudo de um fato social total.

Porém, só cerca de vinte anos depois Mauss voltou explicitamente ao assunto, desta vez focando sua atenção em fatos que os trabalhos etnográficos de Boas e Malinowski haviam entretanto trazido à atenção dos antropólogos. Uma série de trabalhos preparatórios sobre a noção de dinheiro e sobre algumas formas arcaicas de contrato é o que constitui o prólogo da famosa obra publicada entre 1923 e 1924. Com efeito, o legado durkheimiano, enriquecido e manejável por um considerável conhecimento dos mais díspares materiais etnográficos, bem como a perspectiva de abordagem já experimentada no trabalho sobre a estrutura morfológica das sociedades esquimós convergem no Ensaio sobre a dádiva. De facto, tanto a tentativa de encontrar uma homologia estrutural entre formas de organização social e formas de classificação, como a abordagem morfológica, produziram um objecto teórico - o facto social total - cujo significado 'sociologicamente polivalente' que lhe tinha sido atribuído agora permitia a Mauss explorar a natureza de um 'fato' que mais do que qualquer outro provou envolver todos os níveis da vida social: o sistema de serviços econômicos (totais) nas 'sociedades primitivas'.

Além de seu valor respectivo, na verdade muito desigual, os trabalhos etnográficos de Boas sobre as populações da costa Noroeste do Pacífico e os que Malinowski havia realizado recentemente sobre os grupos da Melanésia, demonstraram direta ou indiretamente, a existência, mesmo em sociedades primitivas, de fenômenos de troca e circulação de bens materiais que até então escapavam ao olhar do observador.7 Era, aliás, uma atitude habitual que consistia em considerar 'fenómenos sociais' dotados de certa coerência apenas aquelas práticas ou aspectos da vida indígena que apresentava analogias 'visíveis' com aquelas características da sociedade ocidental. Além disso, o etnocentrismo económico era, como vimos, um componente nada desprezível da ideologia etnológica da época. Deste ponto de vista, nem mesmo Mauss conseguiu escapar, em seu Ensaio sobre a Dádiva, dos efeitos da forma absolutamente ideológica com que Boas havia apresentado as práticas associadas ao potlatch. Graças ao conceito de fato social total, no entanto, abriu-se a possibilidade de lançar o olhar sobre uma série de fenómenos muito complexos, intimamente ligados a outros aspectos da vida social, em particular aqueles de natureza económica que colocam indivíduos e grupos em relação segundo formas de reciprocidade* A esta altura torna-se necessário reconstruir o Ensaio sobre a dádiva em sua discursividade essencial.

Para Mauss, trata-se de dar conta do 'caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente gratuito e gratuito, mas obrigatório e interessado desses serviços' (p. 157). Existem três regras subjacentes ao fenómeno social da doação, nomeadamente a obrigação de dar, receber e retribuir: é através deste conjunto de regras que se estrutura o princípio da reciprocidade. Mauss atribui o princípio obrigatório da reciprocidade a uma 'qualidade' intrínseca dos objetos trocados, uma qualidade que os assimila à pessoa que os possuiu e que permanece neles mesmo depois de terem passado para as mãos de outrem. É a crença na existência e na ação exercida por essa “qualidade” que põe em movimento o sistema de serviços recíprocos, pois a não devolução dos objetos doados produziria a interrupção da troca que por sua vez resultaria em um *dano ao infrator da regra. A 'qualidade' presente na coisa é, de fato, capaz de 'vingar-se' do transgressor, pois é algo que 'participa' na pessoa do dono original, a força mágica (lo hau, segundo a expressão maori) de aquele que doou.

O princípio da reciprocidade vale tanto para indivíduos quanto para grupos envolvidos em operações de troca, mesmo que a natureza do presente como um fato social total apareça em sua devida luz no contexto de fenómenos como os descritos por Malinowski (kula) ou Boas ( potlatch), onde os indivíduos desempenham o mero papel de atores, enquanto as unidades sociais que entram em jogo são grupos maiores, como famílias, clãs, tribos, etc. Essas práticas são, de fato, assimiladas por Mauss ao fenómeno do dom do qual representam variações na direção de 'um ofício de ordem nobre' para estabelecer relações pacíficas (o kula) ou de um 'torneio constante' para adquirir prestígio (potlatch).

Mas aqui cessa a produtividade da análise de Mauss. Segundo Lévi-Strauss, o limite do Ensaio sobre a dádiva consistiria na queda teórica representada pela assunção do hau da coisa doada como razão real e não simplesmente ideológica da troca. Tomada a interpretação indígena 'como é' (maori) do fenómeno e das razões da troca, e de ter feito dela um princípio explicativo de alcance absoluto foi sem dúvida uma operação incorreta, mas não mais do que aquela realizada pelo próprio Lévi-Strauss quando ele, declarando-se explicitamente discípulo do próprio Mauss, promoveu a troca e a reciprocidade ao posto de motor social por excelência. A ruína de Mauss consiste, antes, em não ter tentado definir o sistema social no qual o potlatch se inscreve. Além disso, Mauss, embora tenha feito um progresso considerável em relação a Boas, mostra, no entanto, que adere fielmente à linguagem que este havia empregado para descrever as práticas associadas ao potlatch, considerando-as como características de uma situação de 'mercado' (empréstimo, dinheiro , investimento, etc.). Esse fato levou Mauss a um paradoxo, o de definir o potlatch como um 'mercado sem mercadores', no sentido de que ele percebeu que as mercadorias não circulavam segundo as leis do mercado, mas por um mecanismo de dádiva e de contraprestação. -presentes. Evitando-se o problema da origem dos bens doados e devolvidos, e esgotando a troca a complexidade da esfera económica, essas sociedades acabaram aparecendo como sociedades 'igualitárias', dentro das quais os grupos sociais se harmonizavam graças à tríplice obrigação de 'dar, receber e retribuir'. Mauss, que ao contrário de Boas absolutamente não pensava em encontrar o homo economicus entre os índios Kwakiutl, deslocou assim o problema de compreender o potlatch, e da dádiva em geral, da esfera da produção das mercadorias e de sua circulação segundo critérios homogéneos as relações dos sistemas sociais em que se baseava a própria produção, para a esfera da moralidade. De fato, ele vê no dom o exemplo de como 'as sociedades progrediram na medida em que elas mesmas, seus subgrupos e, finalmente, seus indivíduos, souberam estabilizar suas relações, dar, receber e, finalmente, retribuir' ( pág. 291).

Por um lado, portanto, a contribuição de Mauss para a compreensão dos sistemas sociais foi verdadeiramente grande: consistiu na consideração da dádiva como um 'fato social total' e em ter conseguido, conseqüentemente, deslocar o sentido sociológico nos diferentes níveis prática social e prática simbólica. É assim que, contra o preconceito etnocêntrico, Mauss abriu caminho (aliás, raramente trilhado até há pouco pela mesma tradição dominante da antropologia económica) para a compreensão do lugar diferencial que a economia ocupa na estrutura global das “sociedades primitivas”. ». Mas, por outro lado, o Ensaio sobre a dádiva está na origem de um equívoco teórico que pesou e ainda pesa na reflexão antropológica contemporânea: a assunção da reciprocidade e da troca como princípios explicativos, e sobretudo misteriosos, da lógica de funcionamento do ' sociedades primitivas'.

ANTROPOLOGIA HOJE

Os primeiros antropólogos americanos, como Morgan, Boas e Kroeber, estavam interessados ​​e contribuíram para vários campos de pesquisa ao mesmo tempo. Desde a década de 1970, a tendência dominante na antropologia tem sido a especialização progressiva.

A etnografia também se tornou altamente especializada. Os antropólogos culturais abordam o campo de pesquisa com um problema muito específico e não com o objetivo de produzir uma etnografia holística - ou seja, um relato completo de uma determinada cultura - como fizeram Morgan e Malinowski com seus estudos sobre os iroqueses e os habitantes do Ilhas Trobriand. Boas, Malinowski e Mead foram para um lugar e permaneceram lá por um período específico de tempo para estudar a cultura local. Hoje os campos de estudo se expandiram, com sistemas regionais e nacionais, movimentos de emigração e imigração e diásporas dentro e fora das fronteiras de uma nação. Muitos antropólogos agora acompanham os fluxos de indivíduos, informações, a economia, a mídia em diferentes locais. Essa possibilidade de movimento foi possível graças aos avanços nos transportes e na comunicação. Mas a necessidade de se mover, junto com a necessidade de se adaptar a vários locais, campos e contextos, pode levar a um enxugamento da etnografia tradicional. A antropologia também passou por uma crise de representação, determinada por questões relativas ao papel do etnógrafo e à natureza da autoridade etnográfica.

Por exemplo, que direito têm os etnógrafos de descrever indivíduos ou culturas às quais não pertencem? Alguns acreditam que os relatos de um nativo são mais valiosos e apropriados do que os estudos de um estranho, porque os antropólogos nativos não apenas conhecem melhor a cultura que está sendo estudada, mas também deveriam ter a honra de descrevê-la, o que fariam melhor. A American Anthropological Association, portanto, representa todas as quatro especializações, enquanto inicialmente incluía apenas antropólogos. Agora, existem estudiosos da antropologia biológica, arqueologia, linguística, antropologia cultural e aplicada, e vários grupos nascidos de interesses particulares, como antropologia psicológica, antropologia urbana, as relações entre cultura e agricultura, ou nascidos de identidades particulares, como Antropólogos de pequenas universidades e do Meio-Oeste, ou antropólogos seniores, homossexuais, latinos e assim por diante. Os membros desses grupos baseados em identidade estão convencidos de que são mais qualificados para estudar o traço de identidade que representam do que os membros externos.

Assim, o próprio método científico pode ser questionado. Os céticos dizem que não se pode confiar que a ciência é realizada por cientistas. Ainda segundo os céticos, todo cientista tem uma formação individual ou cultural que dificulta a objetividade e leva a relatos artificiais e tendenciosos que não têm maior valor do que os produzidos por não cientistas.

O que podemos fazer se, começando por mim, continuamos a compartilhar a opinião de Mead de que a antropologia é uma ciência humanística de valor único e absoluto na compreensão e melhoria da condição humana? Devemos tentar estar cientes de nossos preconceitos e de nossa total incapacidade de evitá-los. A melhor abordagem científica parece ser a de combinar a meta inalienável da objetividade com o ceticismo sobre nossa capacidade de alcançá-la.

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4ª Lição 18 de Novembro 2022: Método etnográfico

 

 ETNOGRAFIA: ESTRATÉGIA DISTINTA DE ANTROPOLOGIA

Este capítulo, que se concentra nos métodos da antropologia cultural, abre com uma breve discussão de algumas considerações éticas que os antropólogos enfrentam no momento

qual eles planejam e conduzem suas pesquisas de campo. Este código oferece diretrizes para antropólogos na organização e condução de pesquisas, mas também no trato com colegas de seu país de origem. A discussão dos métodos neste capítulo concentra-se na antropologia cultural e na etnografia em particular. Etnógrafos (trabalhadores de campo em antropologia) tradicionalmente constroem seu trabalho de campo fora de seu país de origem. No país anfitrião, o etnógrafo busca permissão, cooperação e informações de funcionários do governo, académicos e, principalmente, membros da comunidade que pretende estudar. A sensibilidade cultural é fundamental, pois os sujeitos da pesquisa são pessoas em cuja vida o antropólogo se introduz. Os antropólogos precisam estabelecer e manter relacionamentos apropriados, colaborativos e nunca exploradores com colegas e comunidades na nação anfitriã.

Para trabalhar em um estado anfitrião e sua comunidade, os pesquisadores precisam informar os funcionários do estado e colegas sobre o escopo e o capital a ser investido, os resultados iniciais e os impactos da pesquisa. Os pesquisadores devem obter o consentimento de todas as partes envolvidas - desde as autoridades que controlam o acesso ao campo até os membros da comunidade que pretendem estudar. Antes do início da pesquisa, os indivíduos devem ser instruídos sobre o propósito, a natureza e a metodologia da pesquisa, bem como os custos e benefícios potenciais que podem ser derivados dela. O consentimento informado (concordância em participar da pesquisa) deve ser obtido de qualquer pessoa que seja uma fonte de informação ou de qualquer pessoa que possa ser afetada pela pesquisa.

É necessário desenvolver uma metodologia de trabalho global culturalmente apropriada, que entretanto varia de país para país, antes que a própria pesquisa de campo possa começar. Para a nossa pesquisa etnográfica temos que nos despir da oficialidade que só cria destaque e diferencia o antropólogo do ambiente onde pesquisa. Para uma efectiva participação é verdade que se deve entrar no campo devidamente preparados. Boas antes de viajar para a Terra de Baffim apreendeu a língua dos Inuit, esta é a base fundamental para ir no campo. Somos filhos da terra mas acabamos por não conhecer a lingua local da etnia onde nascemos. Por respeito das autoridades devemos ir com toda a documentação, mas não é a documentação que nos autoriza à pesquisa, antes a empatia criada com o informante que nos permite de participar no ambiente onde pesquisamos. Portanto necessita um estudo de ambientação geográfica, cultural e linguística, escolher dentro do universo cultural as amostras que nos permitem a recolha de dados. Criar laços de amizade e irmandade com eles, a primeira regra a actuar è elaborar o consentimento, ter uma base de entendimento com todos sem usar maneiras etnocêntricas de proceder. As pessoas da cidade constroem redes sociais que se estendem até as áreas rurais - onde onde pode ser que façamos o nosso trabalho etnográfico. Através de contactos interpessoais é necessário criar uma rede que nos permite trabalhar em várias aldeias rurais, que representam o nosso campo de investigação. Durante a nossa estadia no campo, devemos tentar manter contacto com os estudiosos e funcionários do governo que nos ajudam e autorizam numa fase inicial. Mais tarde, podemos incluir esses estudiosos como participantes da pesquisa. A rede internet é uma parte importante de qualquer projeto de pesquisa de campo, seja em antropologia cultural ou linguística.

Os antropólogos estão em dívida com as pessoas com quem trabalham no campo e os devem retribuir de forma apropriada. Por exemplo, seria desejável que os antropólogos dos países do norte pudessem incluir colegas da nação anfitriã em seus projetos de pesquisa e pedidos de financiamento, estabelecer relações de colaboração com esses colegas e suas instituições e torná-los participantes da publicação dos resultados de pesquisa.

OS MÉTODOS - ETNOGRAFIA

A antropologia cultural começou a se separar da sociologia por volta do início do século XX. Inicialmente, os cientistas sociais, como o francês Emile Durkheim, transitavam entre a sociologia e a antropologia. Ao teorizar a organização de sociedades simples e complexas, Durkheim levou em conta relatos escritos sobre as religiões indígenas da Austrália (Durkheim 1912-2001), mas também fenómenos de massa (como vários graus de suicídio) em nações modernas (Durkheim 1897-1951). Eventualmente, a antropologia tendeu a se especializar no primeiro assunto, enquanto a sociologia no segundo.

A antropologia desenvolveu-se em um campo diferente quando os primeiros estudiosos, como Bronislaw Malinowski, que realizou o primeiro levantamento de terras nas Ilhas Trobriand (Melanésia), se aventuraram em terras distantes para estudar pequenos grupos de camponeses e agricultores ou, como Franz Boas (1940-1966 ), trabalhou entre os Kwakiutl (nativos americanos). Esse tipo de estudo pessoal de primeira mão dos assentamentos locais é chamado de etnografia. Tradicionalmente, o processo contínuo do antropólogo cultural requer experiência de pesquisa de campo em outras sociedades. Os primeiros etnógrafos viviam em sociedades pequenas e relativamente isoladas com tecnologias e economias simples.

Assim, a etnografia surgiu como uma estratégia de pesquisa em sociedades com maior uniformidade cultural e menos diferenças sociais do que aquelas encontradas nas grandes nações industrializadas modernas. Em tal situação não industrializada, os etnógrafos precisavam considerar menos caminhos de aculturação (o processo pelo qual uma pessoa adquire conhecimento) para entender a vida social. Os etnógrafos tradicionalmente tentaram entender todos os aspectos de uma cultura particular (ou, mais realisticamente, tanto quanto podiam, dadas as limitações de tempo e percepção). Para conseguir isso, os etnógrafos adoptaram uma estratégia de campo livre para colectar informações. Em uma determinada sociedade ou comunidade, o etnógrafo se move de povoado em povoado, lugar em lugar e sujeito a sujeito para descobrir a totalidade e a interconexão dos aspectos da vida social.

Ao expandir nosso conhecimento da esfera da diversidade humana, a etnografia fornece a base para generalizar o comportamento humano e a vida social. A etnografia envolve pesquisa de campo em uma sociedade específica, enquanto a etnologia representa o aspecto comparativo da antropologia cultural. Os objetivos da etnologia são identificar, comparar e explicar as diferenças e semelhanças culturais, bem como construir teorias sobre o funcionamento dos sistemas sociais e culturais.

Os dados etnográficos, colectados através das técnicas antropológicas, podem ser usados para comparar, questionar e elaborar textos sobre sociedades e culturas.

Técnicas de pesquisa etnográfica de campo.

Os etnógrafos usam uma variedade de técnicas para pintar um quadro de estilos de vida observados que, de outra forma, nos pareceriam estranhos. Os antropólogos normalmente empregam várias  técnicas discutidas abaixo (Bernard 1988, O'Reilly 2005).

As características técnicas da pesquisa de campo do etnógrafo incluem os seguintes elementos:

1. Observação direta e em primeira mão do comportamento cotidiano, incluindo observação participante.

2. A conversa desenvolve-se em diferentes graus de formalidade, desde as conversas diários, que ajudam a manter as relações e permitem o conhecimento do que está a acontecer, à entrevista, que pode ser não estruturada ou estruturada. Tabelas de entrevistas ou questionários impressos e formais podem ser usados ​​para confirmar que informações abrangentes e comparáveis ​​estão disponíveis para qualquer pessoa interessada no estudo atual.

3. O método genealógico.

4. Trabalho detalhado com pessoas de dentro em áreas específicas da vida comunitária.

5. Entrevistas aprofundadas geralmente levam à coleta de histórias de vida de pessoas específicas (contadores de histórias).

6. A descoberta de crenças e percepções locais, que podem ser comparadas com as observações e as conclusões do etnógrafos

 7. Os diferentes tipos de investigação orientada para a resolução de problemas.

8. Pesquisa longitudinal - o estudo contínuo e de longo prazo de uma determinada área ou local.

9. Pesquisa de grupo - pesquisa coordenada por um grupo de etnógrafos.

Abordagens em larga escala que refletem a complexidade da vida moderna.

Observação e observação participante

Os etnógrafos devem conhecer seus convidados e geralmente estão interessados ​​na totalidade de suas vidas. Eles precisam prestar atenção a centenas de detalhes da vida cotidiana, eventos sazonais e ocorrências incomuns. Eles têm que observar o comportamento individual e coletivo em diferentes lugares. Eles devem então registrar o que veem quando o veem. As coisas nunca vão parecer tão estranhas como nos primeiros dias e semanas no campo. Com o tempo, o etnógrafo se acostuma e aceita como normais aqueles elementos culturais que inicialmente considerava 'estranhos'. Normalmente, os etnógrafos passam mais de um ano no campo. Isso lhes permite observar todo o ciclo anual. Uma permanência de pouco mais de um ano permite ao etnógrafo reviver a época de sua chegada, quando ainda pode ter perdido alguns eventos e processos devido ao estranhamento inicial e ao choque cultural.

Muitos etnógrafos registam as suas impressões num diário pessoal, que se mantém separado das notas de campo mais formais, ainda que nas últimas décadas a tendência para dar uma dimensão mais narrativa à experiência etnográfica conduza a manter a parte 'técnica' menos separada da privado. Posteriormente, este registro das primeiras impressões ajudará a destacar alguns dos aspectos básicos da diversidade cultural. Esses aspectos incluem cheiros distintos, ruídos que as pessoas fazem, como cobrem a boca ao comer e como olham para os outros. Esses factores, que são tão básicos que parecem triviais, fazem parte do que Bronislaw Malinowski chamou de 'os imponderáveis ​​da vida nativa e do comportamento típico' (Malinowski 1922-1961, p. 20). Essas características de uma cultura são tão fundamentais que a população local as considera um dado adquirido. Eles são básicos demais para serem discutidos, mas o olho desacostumado do antropólogo voador os capta. Portanto, tornando-se familiares, eles se dissolvem no limite da consciência. As primeiras impressões têm um certo valor e, portanto, devem ser registradas. Em primeiro lugar, os etnógrafos devem tentar ser fiéis observadores, registradores e relatores do que veem no campo.

Etnógrafos não estudam animais em gaiolas de laboratório. As experiências que os psicólogos realizam com pombos, galinhas, porquinhos-da-índia e camundongos são bem diferentes do processo etnográfico. Os antropólogos não monitorizam sistematicamente as recompensas e punições dos sujeitos ou sua exposição a certos estímulos. Nossos súditos não são animais que não falam, mas seres humanos. Manipulá-los, controlar seus ambientes ou provocar certos comportamentos experimentalmente não faz parte do processo etnográfico.

Os etnógrafos lutam para estabelecer um relacionamento bom e amigável baseado no contacto pessoal com seus anfitriões. Um dos procedimentos mais característicos da etnografia é a observação participante, que significa participar da vida da comunidade, não apenas estudá-la. Como seres humanos vivendo entre outros seres humanos, não podemos ser observadores completamente imparciais e desapegados. Também temos que participar de muitos dos eventos e processos que estamos observando e tentando entender. Através da participação, podemos aprender como e por que os nativos consideram esses eventos significativos e podemos ver como eles são organizados e conduzidos.

Muitos antropólogos tiveram experiências semelhantes. resultados no campo. A humanidade comum do estudioso e do objeto de seu estudo, do etnógrafo e da comunidade na qual ele faz sua pesquisa, torna a observação participante uma experiência inevitável.

Conversa, entrevista E TABELAS DE ENTREVISTA

Participar da vida local significa que os etnógrafos estão constantemente conversando com as pessoas e fazendo perguntas. À medida que seu conhecimento da língua e da cultura local aumenta, eles entendem algo ir! mais. Existem vários níveis para aprender o idioma no campo. Primeiro, há a fase de nomeação - pedir nomes sobre nomes dos objetos ao nosso redor. Então, somos capazes de fazer perguntas mais complexas e entender as respostas. Começamos então a entender conversas simples entre dois aldeões. Se nossa prática de linguagem for bem o suficiente, podemos até começar a entender discussões públicas animadas e conversas em grupo.

Embora estivéssemos realizando uma análise, nossa abordagem diferia da pesquisa usada sistematicamente por sociólogos e outros cientistas sociais que trabalham em grandes nações industrializadas. Essa pesquisa inclui amostragem (escolha de um grupo de estudo pequeno e administrável de uma população maior) e coleta de dados impessoais. Não apenas selecionamos uma amostra parcial da população total, mas também tentamos entrevistar todos os domicílios da comunidade onde estávamos conduzindo o estudo (ou seja, para obter uma amostra completa). Usamos mais tabelas de entrevista do que questionários. Com o roteiro de entrevista, o etnógrafo conversa face a face com as pessoas, faz perguntas e transcreve as respostas.

Os procedimentos do questionário tendem a ser mais indiretos e impessoais; muitas vezes acontece que é o mesmo entrevistado para preencher o formulário.

Nosso objetivo de obter uma amostra total nos permite conhecer quase todas as pessoas da aldeia e nos ajudou a construir um relacionamento. Nas décadas seguintes, o povo de Arembepe ainda discutia acaloradamente o quanto nos interessávamos por eles, em visitar suas casas e fazer-lhes perguntas. Estávamos em total contraste com os estranhos que os aldeões conheciam, como eles consideravam muito pobre e atrasado para ser levado a sério.

Como outras pesquisas, no entanto, nossa tabela de entrevistas coletou muitas informações comparáveis. Também nos deu a base para estimar fatores e exceções na vida da aldeia. Nossos formulários incluíam uma lista de perguntas feitas a todos. De qualquer forma, durante uma entrevista, muitas vezes surge um novo tópico que pode ser retomado mais cedo ou mais tarde.

Seguimos essas diretrizes em muitas dimensões da vida na aldeia. Uma mulher, por exemplo, uma parteira, tornou-se a informante-chave de que precisávamos quando buscávamos informações detalhadas sobre partos locais. Outra mulher foi iniciada em um culto afro-brasileiro (candomblé) na cidade. Ele voltou regularmente várias vezes para estudar, dançar e ser possuído. Então ela se tornou nossa especialista em candomblé.

Assim, nossos formulários de entrevista nos forneceram uma estrutura que nos direcionou, mas não nos limitou como pesquisadores. Mas ele fez nossa etnografia quantitativa e qualitativa ao mesmo tempo. A parte quantitativa baseou-se na informação recolhida e posteriormente analisada estatisticamente. A dimensão qualitativa originou-se de nossas perguntas, discussões sem objetivo definido, pausas para fofocas e trabalho com nossos informantes privilegiados.

O método genealógico

Como todas as pessoas comuns, muitos de nós aprendemos sobre nossos ancestrais e parentes traçando nossas genealogias. Hoje em dia vários programas de computador nos permitem traçar nossa 'árvore genealógica' e os graus de parentesco. O método genealógico é uma técnica etnográfica bem delineada. Os primeiros etnógrafos desenvolveram uma série

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5ª Lição 25 de Novembro 2022: Etnografia

 

O método genealógico

Como todas as pessoas comuns, muitos de nós aprendemos sobre nossos ancestrais e parentes traçando nossas genealogias. Hoje em dia vários programas de computador nos permitem traçar nossa 'árvore genealógica' e os graus de parentesco. O método genealógico é uma técnica etnográfica bem delineada. Os primeiros etnógrafos desenvolveram uma série O método genealógico é uma técnica etnográfica bem delineada. Os primeiros etnógrafos desenvolveram um conjunto de sinais e símbolos para lidar com parentesco, ancestralidade e casamento. A genealogia é um bloco de construção óbvio para o estudo do parentesco e a descendência que são a base da vida social em sociedades não industrializadas. Na ausência de escrita, a informação genealógica pode ser preservada através da cultura material; na organização de sociedades não industrializadas, onde as pessoas trabalham todos os dias com seus parentes. Os antropólogos precisam colectar dados genealógicos para entender as relações sociais actuais e poder reconstruir sua história. Em muitas sociedades não industrializadas, os laços de sangue formam a base da vida social. Os antropólogos também chamam esse tipo de cultura de sociedades parentais. Nessas sociedades, os membros são todos parentes entre si e passam a maior parte do tempo com seus familiares. Regras de comportamento relacionadas a parentescos particulares são básicas para a vida diária (Carsten 2004). O casamento também é crucial na organização de sociedades não industrializadas, pois o casamento estratégico é praticado entre aldeias, tribos e clãs cria alianças políticas.

Informantes privilegiados

Cada comunidade apresenta pessoas que por acaso, com experiência, talento ou práticas podem trazer de volta as informações mais completas ou úteis sobre aspectos particulares da vida. Essas pessoas são conhecidas como informantes privilegiados, também conhecidos como informantes-chave. Em Kwimba, era migo do professor Lundaya com ele passei a maior parte do tempo na Serra de Kanda, era um homem particularmente conhecedor da história da Serra. Quando lhe pedi para trabalhar comigo numa viagem de campo com os estudantes de antropologia da UAN, um grupo de 30 pessoas subimos a Serra, ele ligou para os velhos de Komgo dia Mpeveleka, que tinham mais informações. Foram eles a nos acolher, e os estudantes ficaram admirados.

Histórias de vida

Nas sociedades não industrializadas, assim como em Luanda, as personalidades, interesses e habilidades individuais variam. Alguns nativos parecem se interessar mais pelo trabalho etnográfico e ajudar mais, são mais interessantes e gentis do que outras pessoas. Os antropólogos desenvolvem suas preferências no campo, assim como fazemos em casa. Muitas vezes, quando encontramos alguém extraordinariamente interessante, colectamos sua história de vida. Esta coleção de experiências de vida fornece um retrato cultural mais íntimo e pessoal que não seria possível de outra maneira. Histórias de vida, que podem ser gravadas em mídia de áudio ou vídeo para futura revisão e análise, revelam como pessoas específicas percebem, reagem e contribuem para as mudanças que impactam suas vidas. Tais gravações podem mostrar as diferenças que existem dentro de uma comunidade, pois o foco está em como diferentes pessoas interpretam e lidam com os mesmos problemas. Muitos etnógrafos incluem a colecta de histórias de vida como uma parte importante de sua estratégia de pesquisa.

Crenças e percepções locais CRENÇAS E PERCEPÇÕES do etnógrafo

Um dos objetivos da etnografia é revelar visões, crenças e percepções locais, que podem ser comparadas com as próprias observações e conclusões do etnógrafo. No campo, os etnógrafos costumam combinar duas estratégias de pesquisa: êmica (voltada para o local) e ética (voltada para o cientista). Esses termos, derivados da linguística, foram aplicados à etnografia por diversos antropólogos. Marvin Harris (1968/2001) divulgou os seguintes significados dos termos. Uma abordagem étnica investiga como as pessoas locais pensam. Como eles percebem e categorizam o mundo? Quais são suas regras de comportamento? O que isso significava para eles? Como eles imaginam e explicam as coisas? Usando a perspectiva êmica, o etnógrafo busca o 'ponto de vista local', baseando-se em como as pessoas locais explicam as coisas e dizem se algo é mais ou menos significativo. O termo insider refere-se aos indivíduos que o etnógrafo deve conhecer no campo, as pessoas que lhe ensinam sobre sua cultura, que oferecem sua perspectiva êmica.

A abordagem ética desloca a lente das categorias, expressões, explicações e interpretações locais para as do antropólogo. A abordagem ética reconhece que os membros de uma cultura muitas vezes investem demais no que estão fazendo para interpretar imparcialmente sua própria cultura. Operando eticamente, o etnógrafo enfatiza o que o observador percebe e considera importante. Como um cientista treinado, o etnógrafo deve trazer um ponto de vista objetivo e abrangente para o estudo de outras culturas. Claro, o etnógrafo, como qualquer outro cientista, é um ser humano dotado de preconceitos culturais que impedem a completa objectividade. Como em outras ciências, o treinamento adequado pode reduzir, mas não eliminar completamente, os preconceitos do observador. Mas os antropólogos extraem experiências para poder comparar os comportamentos das pessoas em diferentes sociedades.

Os etnógrafos geralmente combinam êmica com estratégia ética em suas pesquisas de campo. Expressões, percepções, categorias e opiniões locais ajudam os etnógrafos a entender como as culturas funcionam. Além disso, as crenças locais são interessantes e de grande valor em si mesmas. Além disso, muitas vezes as populações locais não admitem, ou mesmo não reconhecem, certas causas e consequências do seu comportamento. Isso é verdade tanto para os habitantes do mundo

Ocidental e para os povos de outras sociedades. Para descrever e interpretar uma cultura, os etnógrafos devem estar cientes dos preconceitos que decorrem de sua própria cultura, bem como das pessoas que estão estudando.

O antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942), que passou a maior parte de sua vida profissional na Inglaterra, costuma ser considerado o pai da etnografia. Como a maioria dos antropólogos de seu tempo, Malinowski originou a etnografia de resgate, pensando que o trabalho do etnógrafo era estudar e registrar a diversidade cultural ameaçada pela ocidentalização (ver também Boas 1940/1966). Os primeiros relatos etnográficos (etnografias), como o clássico de Malinowski Argonautas do Pacífico Ocidental (1922-1961), eram semelhantes aos relatos dos primeiros viajantes e exploradores ao descrever a descoberta do autor de lugares e povos desconhecidos. No entanto, os propósitos científicos das etnografias as colocaram fora dos textos de exploradores e entusiastas.

Mais recentemente, o estilo que dominou as etnografias 'clássicas' passou a ser caracterizado como realismo etnográfico. O objetivo do autor era apresentar um relato preciso, objetivo e científico de um modo de vida diferente, escrito por alguém que o conheceu em primeira mão. Esse conhecimento veio da imersão em uma língua e cultura estrangeiras. Os etnógrafos derivaram sua autoridade – seja como cientistas seja como “nativos” ou “outras” vezes – de sua própria experiência de pesquisa.

As etnografias de Malinowski foram baseadas na crença de que diferentes aspectos da cultura são conectados e intimamente unidos. Partindo da descrição de uma expedição marítima às Ilhas Trobriand, a etnógrafa segue as conexões entre esse ponto de acesso à cultura e outras esferas, como a magia, a religião, os mitos, o parentesco e o comércio. Em comparação com o trabalho de Malinowski, as etnografias de hoje tendem a ser menos inclusivas e holísticas, concentrando-se em tópicos específicos, como parentesco ou religião.

Segundo Malinowski, uma das tarefas primordiais do etnógrafo é 'apreender o ponto de vista do nativo, sua relação com a vida, perceber qual é sua visão de mundo' (1922/1961; p. 25). Esta é uma boa expressão da necessidade de adotar uma perspectiva êmica, como mencionado anteriormente.

Antropologia interpretativa

Desde a década de 1970, a antropologia interpretativa assumiu a responsabilidade de descrever e interpretar o que é significativo para os nativos. Antropólogos interpretativos como Clifford Geertz (1973) veem as culturas como textos significativos que os nativos estão constantemente 'lendo' e os etnógrafos devem decifrar. De acordo com Geertz, os antropólogos podem escolher qualquer coisa que os interesse dentro de uma cultura, preencher os detalhes e processá-los para informar seus leitores sobre os significados dessa cultura. Os significados são transmitidos por formas simbólicas públicas, incluindo palavras, rituais e costumes.

Uma tendência presente nos escritos etnográficos desde a década de 1980 tem sido questionar os objetivos, métodos e estilos tradicionais, incluindo o realismo etnográfico e a etnografia de resgate (Clifford 1982,1988; Marcus e Cushman 1982). Marcus e Fischer argumentam que a experimentação na escrita etnográfica é necessária porque todos os povos e culturas já foram 'descobertos' e agora precisam ser 'redescobertos... em circunstâncias históricas mutáveis' (1986, p. 24).

Em geral, os antropólogos de campo veem as etnografias tanto como obras de arte quanto como obras de ciência. Os textos etnográficos podem ser vistos como criações literárias nas quais o etnógrafo, como mediador, transmite informações dos 'nativos' aos leitores. Algumas etnografias experimentais são 'dialógicas', ou seja, apresentam a etnografia como um diálogo entre o antropólogo e um ou mais informantes locais (por exemplo, Behar 1993 , Dwyer 1982) . Essas obras enfocam as formas pelas quais os etnógrafos e, consequentemente, seus leitores, se comunicam com outras culturas. No entanto, algumas dessas etnografias foram criticadas por gastar muito tempo em falar sobre o antropólogo e muito pouco tempo descrevendo os nativos e sua cultura.

A etnografia dialógica é um género que faz parte de uma categoria experimental mais ampla - a etnografia reflexiva (Davies 1999 ). Nesse caso, o etnógrafo insere seus sentimentos e reações ao campo diretamente no texto. Estratégias experimentais de escrita emergem em relatos reflexivos. O etnógrafo pode adoptar algumas das regras do romance, incluindo narração em primeira pessoa, conversa, diálogo e histórias. Etnografias experimentais, usando novos métodos para mostrar como é ser samoano ou brasileiro, podem oferecer ao leitor uma compreensão mais rica e complexa da experiência humana.

Relacionada à etnografia de resgate baseada na ideia do presente etnográfico - usada para se referir ao período anterior à ocidentalização, quando a 'verdadeira' cultura nativa estava florescendo. Essa noção muitas vezes dá às etnografias clássicas uma qualidade irreal atemporal. Fornecendo a única nota dissonante nesse quadro idealizado estão os comentários ocasionais do autor sobre comerciantes e missionários, sugerindo que, na realidade, os nativos já faziam parte do sistema mundial. Os antropólogos agora reconhecem que o presente etnográfico é uma construção bastante irreal. As culturas sempre estiveram em contato - e sempre mudaram - ao longo de sua história (Boas 1940-1966). A maioria das culturas nativas já tem tido pelo menos um encontro com estrangeiros antes que os antropólogos se cruzassem com eles. A maioria deles já havia sido incorporada de alguma forma a um sistema colonial ou estado-nação.

Nas etnografias contemporâneas percebemos que as culturas estão em constante mudança e que um relato etnográfico se refere apenas a um determinado momento. Uma tendência atual na etnografia é focar nas maneiras pelas quais as ideias culturais servem a interesses políticos e económicos. Outra tendência é descrever como diferentes 'nativos' específicos participam de processos históricos, políticos e económicos mais amplos (Shostak 1981).

Etnografia ORIENTADA PARA PROBLEMAS

Vemos então uma tendência de abandono de relatos holísticos em direção a etnografias mais “orientadas para o problema”. inações sobre variáveis ​​consideradas relevantes em relação a esse problema. As respostas da população local não são a única fonte de dados. Os antropólogos também colectam informações sobre fatores como densidade populacional, qualidade ambiental, clima, geografia física, dieta e uso da terra. Às vezes, isso envolve medição direta de chuva, temperatura, campos, produção, dieta ou uso do clima (Bailey 1990 ; Johnson 1978). Isso significa que muitas vezes nos pegamos consultando arquivos estatais.

As informações de interesse dos etnógrafos não se limitam ao que as pessoas locais podem fazer e fazem. Em um mundo cada vez mais interconectado e complexo, os nativos carecem de conhecimento sobre muitos fatores que afetam suas vidas. Nossos conselheiros locais podem ser tão enganados quanto nós pelo poder de centros regionais, nacionais ou internacionais.

Pesquisa longitudinal

A geografia agora limita menos os antropólogos do que no passado, quando podia levar meses até chegar ao local do trabalho de campo e as visitas de retorno eram raras. Novos sistemas de transporte permitem aos antropólogos ampliar o escopo de suas pesquisas e retornar ao campo repetidamente. Os relatórios etnográficos agora podem incluir dados de dois ou mais campos. A pesquisa longitudinal é o estudo de longo prazo de uma comunidade, região, sociedade, cultura ou outra unidade de pesquisa, geralmente baseada em visitas repetidas. Um exemplo desse tipo de pesquisa é o estudo longitudinal dos campos de refugiados que acolheram as populações de Mbanza Kongo, No Congo Democrático, durante a guerra em Mbanza Kongo. Este estudo, organizado em 2010  é seja longitudinal (ou seja, cobrindo vários períodos) quanto multisituado (ou seja, considerando vários locais de pesquisa) Kwimba, Kaluka, Mavinga, Luvo (Colson e Scudder 1975 ; Scudder e Colson 1980). Quatro comunas em diferentes áreas foram acompanhadas por anos. Visitas periódicas ao campo base da UNHCR com as pessoas pesquisadas que mais tarde mudaram de Kimpese para Mbanza Kongo são rastreadas e entrevistadas para ver como suas vidas se comportam em ambientes diferentes.

Diferentes questões de pesquisa surgiram enquanto, ao mesmo tempo, dados básicos sobre comunidades e indivíduos continuam sendo colectados. O primeiro foco do estudo foi o impacto com as casas de Mbanza Kongo que tinham sido assaltadas e esvaziadas de portas chapas móveis, e isto implicava mudanças forçadas.  Um outro estudo maior examinou as mudanças na alimentação pois a UNHCR investia com sacos de milho que os Bakongo não comem e isto foi um dos factores de incentivo na fabricação de cerveja Skol, Primus e Doppel, do Kongo, eram os refugiados que alimentavam durante a guerra a produção de cerveja vendendo a macroeira nos mercados congolenses de Kimpese, Songololo que depois transportada em Kinshasa servia para produzir cerveja.

Pesquisa de grupo

Como já mencionado, a pesquisa longitudinal é frequentemente uma pesquisa de grupo. Na minha estadia na Serra de Kanda, no Zaire, por exemplo, entrei pela primeira vez no mundo da antropologia como um 'acampamento de grupo' na década de 2017. Foi um dos locais escolhidos para trabalho de campo dos estudantes da FCSUAN. Por pelo menos três anos, esse programa enviou anualmente 30 estudantes universitários, incluindo o autor, para uma viagem de pesquisa de 10 dias. Tínhamos nos estabelecido em comunidades rurais Lunghezi: Kongo dia Mpeveleka,Kwimba. A Serra de Kanda tornou-se um campo longitudinal. Gerações de pesquisadores monitoraram vários aspectos da mudança e do desenvolvimento. A comunidade de Kwimba cresceu de uma aldeia para uma pequena cidade. Sua economia, religião e vida social foram transformadas (Kottak 2006).

 Os licenciados da Universidade Agostinho Neto têm considerado algumas de nossas informações básicas desde os anos 2014, quando começaram a estudaram várias matérias de Antropologia simbólica, económica, do parentesco e histórica. Em 2017, Bernardo Banga, um estudante de antropologia que fazia pesquisas sobre a antropologia simbólica, viajou para Nkoko para observar padrões simbólicos nas crenças tradicionais Kongo. Em 2018, fez seu trabalho de fim do curso sobre o ritual chá de cozinha praticado na igreja adventista do sétimo dia. Estudou os aspectos surpreendentes da mudança religiosa nos habitantes do Golfo 2 com a chegada do adventismo. Mais tarde realizou um estudo sobre o valor simbólico dos rituais.

Assim, Mbanza Kongo é um local onde vários pesquisadores trabalharam como membros de uma equipe longitudinal. Os pesquisadores (John Thornton) mais recentes se basearam em contactos e descobertas anteriores para aumentar o conhecimento sobre como as pessoas locais se encontram e lidam com novas circunstâncias. Acredito que o estúdio deveria ser um empreendimento em grupo. As informações que conseguimos reunir no passado estão prontas para serem utilizadas pelas novas gerações. Para monitorar as mudanças de atitude e entender a relação entre a Modernidade e a tradição Bortolami elaborou seu estudo sobre as tradições orais e entrevistou velhos de Mbanza Kongo, Damba, Makela, Kwimba, Tomboco e Neto já na década de 2002. Da mesma forma, que comparou mudanças no estilo de vida dos Bakongo.

As forças de mudança de uma única época são muito difundidas e complexas para serem totalmente compreendidas por um 'etnógrafo solitário' - um pesquisador que começa com um projecto e trabalha sozinho, por um período limitado de tempo, e que vê seu campo como relativamente discreto e isolado. Nenhum etnógrafo pode imaginar por muito tempo que seu campo representa algum tipo de entidade primitiva ou autónoma. O etnógrafo não pode nem pensar que tem direitos exclusivos como dono do lugar de pesquisa ou mesmo dos dados coletados. Afinal, essa informação foi produzida em amizade, colaboração e consulta com a população local. Cada vez mais campos antropológicos, incluindo o das Ilhas Trobriand de Malinowski, foram reestudados. Idealmente, os etnógrafos colaboram e continuam o trabalho de seus predecessores. Comparado ao modelo do etnógrafo solitário, o trabalho em equipe ao longo do tempo e no espaço produz maior conhecimento sobre mudança cultural e complexidade social.

Cultura, espaço e dimensão

As seções anteriores sobre pesquisa longitudinal e pesquisa de grupo ilustram uma mudança importante na antropologia cultural. A pesquisa etnográfica tradicional enfocou uma única comunidade ou 'cultura', que foi tratada mais ou menos como isolada e única no tempo e no espaço. A mudança ocorreu na direção de um reconhecimento da existência e dos inevitáveis ​​fluxos de pessoas, tecnologia, imagens e informações. O estudo desses fluxos e conexões agora fazem parte da análise antropológica. E refletindo o mundo de hoje – em que pessoas, imagens e informações se movem como nunca antes – a pesquisa de campo precisa ser mais flexível e distribuída em maior escala. A etnografia é cada vez mais extensa no tempo e no espaço. Malinowski poderia se concentrar na cultura Trobriand e passar a maior parte do tempo em uma analise duma certa comunidade e passa a maior parte do tempo em uma determinada comunidade. Hoje não podemos nos dar ao luxo de ignorar, como fez Malinowski, os 'outsiders' que cada vez mais entram nos lugares de nossos estudos (por exemplo, imigrantes, refugiados, terroristas, guerreiros, turistas, agentes de desenvolvimento). Agora, para complementar nossa análise, são necessárias forças e organizações externas (por exemplo, governos, empresas, organizações não-governamentais) que promovem direitos sobre terras, pessoas e recursos em todo o mundo. Também é importante aumentar a conscientização sobre a existência de diferentes poderes e como eles afetam as culturas e a importância das diferenças dentro da cultura e das sociedades.

O antropólogo Clyde Kluckhohn (1944) começou a ver a antropologia como um serviço público necessário. Poderia fornecer uma 'base científica para abordar o dilema crucial do mundo de hoje: como pessoas de diferentes aparências, línguas mutuamente ininteligíveis e diferentes modos de vida podem coexistir pacificamente'. Muitos antropólogos nunca teriam escolhido essa profissão se não acreditassem que ela pode melhorar o bem-estar da sociedade humana como um todo. Como vivemos em um mundo de Estados falidos, de guerras, de terrorismo, devemos considerar o papel fundamental dos antropólogos no estudo dos fenómenos.

Como muitas outras questões levantadas pela antropologia contemporânea, a guerra e o terrorismo exigiriam vários níveis de análise - local, regional e internacional. É essencialmente impossível encontrar no mundo de hoje fenômenos em nível local que estejam completamente isolados das forças globais.

Nos dois volumes de ensaios editados por Akhil Gupta e James Ferguson (1997a e 1997/;), numerosos antropólogos descrevem os problemas que surgem da tentativa de colocar as culturas em lugares delimitados. John Durham Peters (1997), por exemplo, percebeu que, principalmente devido aos meios de comunicação de massa, as populações que vivem em nossa época vivenciam o local e o global ao mesmo tempo. Ele descreve essas pessoas como culturalmente 'bifocais' - tendo uma visão que lhes permite ver de perto (vendo eventos locais) e uma visão com a qual podem ver à distância (assim vendo imagens à distância). Dada essa 'bifocalidade', suas interpretações do local são sempre influenciadas por informações vindas de fora. Portanto, sua atitude em relação ao céu azul em casa é influenciada pelo conhecimento dos boletins meteorológicos de que um furacão pode estar a caminho. As notícias podem não corresponder às opiniões presentes nas conversas locais, mas as opiniões nacionais entram no discurso local.

Os meios de comunicação de massa, cada vez mais estudados pelos antropólogos, são peculiaridades em termos de cultura e espaço. De quem são essas imagens e opiniões? Que cultura ou comunidade eles representam? Eles definitivamente não são locais. Imagens e mensagens de mídia fluem eletronicamente. A televisão os transporta diretamente para você. A Internet permite que se descubra novas oportunidades culturais com um clique do mouse. A Internet leva-nos a lugares virtuais mas, na realidade, os mass media electrónicos são fenómenos sem espaço, transnacionais na sua abrangência e desempenham um papel na formação e manutenção de identidades culturais.

Os antropólogos estão estudando cada vez mais as populações em movimento. Alguns exemplos incluem pessoas que vivem em locais distantes ou perto de fronteiras nacionais, nômades, migrantes sazonais, sem-teto, refugiados, imigrantes e refugiados. A pesquisa antropológica hoje pode nos levar a viajar com as pessoas que estudamos, acompanhando-as quando se deslocam de aldeia a cidade, quando cruzam a fronteira ou viajam de um país a outro a trabalho. Exilados da globalização, os etnógrafos seguem cada vez mais as pessoas e as imagens que estudam. À medida que a pesquisa de campo muda, com cada vez menos campos definidos em termos espaciais, o que podemos tirar da etnografia tradicional? Gupta e Ferguson citam corretamente a 'ênfase característica da antropologia na rotina diária e na experiência vivida' (1997, p. 5). Ver as comunidades como entidades distintas pode ser coisa do passado. No entanto, “o foco tradicional da antropologia na observação atenta de vidas particulares em lugares particulares” (Gupta e Ferguson 1997, p. 25) tem uma importância duradoura. O método de observação atenta ajuda a distinguir a antropologia cultural da sociologia e da investigação, que discutiremos agora.

A INVESTIGAÇÃO

À medida que os antropólogos se veem trabalhando mais em grandes corporações, eles desenvolvem métodos inovadores de fundir etnografia e investigação (Fricke 1994 ). Antes de considerar tais combinações de métodos de trabalho de campo, é necessário descrever a pesquisa e as principais diferenças entre a etnografia e a pesquisa tradicionalmente empregadas. Trabalhando principalmente em nações grandes e populosas, sociólogos, cientistas políticos e economistas desenvolveram e definiram o modelo da pesquisa, que inclui amostragem, coleta de dados impessoais e análise estatística. A pesquisa geralmente extrai uma amostra (um grupo de estudo administrável) de uma população maior. Ao estudar uma amostra especialmente selecionada e representativa, os sociólogos podem fazer inferências precisas sobre toda a população.

Em pequenas empresas, os etnógrafos precisam conhecer a maioria das pessoas mais familiar é o escrutínio usado nas eleições gerais para prever o resultado. Os meios de comunicação contratam agências para estimar resultados e dão exit polis para descobrir que tipo de pessoas votaram em determinado candidato. Durante o processo de amostragem, os pesquisadores colectam informações sobre idade, sexo, religião, ocupação, renda e preferências políticas. Essas características (variáveis ​​- atributos que variam entre os membros de uma amostra populacional) são o que influenciam as decisões políticas.

O número de variáveis ​​que influenciam a identidade social e o comportamento aumenta com a complexidade social e pode ser considerado uma unidade de medida. Muito mais variáveis ​​afetam a identidade social, experiências e atividades em uma nação moderna do que no caso de pequenas comunidades onde a etnografia se desenvolveu. Por exemplo, em Angola, centenas de factores influenciam nosso comportamento e atitudes sociais. Entre esses elementos está a religião; a religião e a Igreja em que crescemos; se viemos de uma pequena cidade, subúrbio ou cidade; a profissão de nossos pais, a etnia de nossos pais e o nível de renda. Justamente porque a pesquisa trata de grandes grupos diferentes entre si e de amostras e probabilidades, seus resultados devem ser analisados ​​estatisticamente.

A etnografia pode ser usada para substituir ou refinar a investigação. Os antropólogos podem transferir as técnicas pessoais e de primeira mão da etnografia para qualquer ambiente que inclua humanos. Uma combinação de pesquisa e etnografia pode trazer novas perspectivas sobre a vida em sociedades complexas (sociedades grandes e populosas como os Bakongo e governo central). A etnografia também pode ajudar a desenvolver questões relevantes e culturalmente apropriadas que podem ser incluídas na pesquisa.

Nas nossas transferencias para o campo, os alunos da UAN fizeram pesquisas etnográficas sobre os Bakongo, sociedade tradicional, Cultura material, organizações familiares e a organização económica. Outros alunos observaram sistematicamente o comportamento das mulheres durante o trabalho das lavras. Isso inclui a preparação da mandioca, organização alimentar, o comercio de produtos no mercado de Luvo. Outros projetos de 'antropologia moderna' usam técnicas antropológicas para interpretar e analisar os meios de comunicação de massa. Os antropólogos estudam suas próprias culturas há décadas e hoje a pesquisa antropológica está explodindo na maioria dos países africanos. Onde quer que o comportamento humano seja observado, a antropologia está adicionando agua ao seu moinho.

Em qualquer sociedade complexa, muitas variáveis ​​(indicadores sociais) influenciam seu comportamento e opiniões. Precisamente porque devemos ser capazes de identificar, medir e comparar a influência dos indicadores sociais, muitos estudos antropológicos contemporâneos têm uma base estatística. Mesmo no trabalho de campo rural, muito mais antropólogos agora rastreiam amostras, colectam dados quantitativos e usam estatísticas para interpretá-los (Bernard 1988, pag. 316). Informações quantificáveis ​​permitem uma avaliação mais precisa das semelhanças e diferenças entre as comunidades. A análise estatística pode apoiar e completar um relato etnográfico da vida social local.

No entanto, nos melhores estudos, a marca da etnografia permanece: os antropólogos entram na comunidade e devem conhecer as pessoas que dela fazem parte. Participam de atividades locais, redes e associações na cidade ou no campo. Eles observam e experimentam condições e problemas sociais. Eles analisam os efeitos das políticas e programas nacionais na vida local. Acredito que o método etnográfico e a ênfase nas relações pessoais na pesquisa social são dons inestimáveis ​​que a antropologia cultural traz para o estudo de uma sociedade complexa.

ANTROPOLOGIA HISTÓRICA

Disciplina recém-formada, tem suas raízes nos debates fundadores do método, dos campos de interesse, dos caminhos dos interesses demo-etno-antropológicos. A especificidade dos interesses antropológicos tem sido essencialmente definida através de três diretrizes que podem ser identificadas por área de pertencimento territorial: a abordagem anglo-saxônica, a americana e a continental europeia. Ao confiar-nos às definições territoriais, podemos evitar as avaliações implícitas sobre os estatutos epistemológicos utilizados. Para cada uma dessas áreas, as relações com as chamadas disciplinas fronteiriças para uma ciência social relativamente jovem como a antropologia (se tomarmos esse termo como uma conotação unificadora) têm sido problemáticas e contraditórias. Em particular, a partir da segunda metade do século XIX, os antropólogos reafirmaram teimosamente seu distanciamento da história. Com efeito, ao lidar, como os historiadores, com situações específicas, caracterizadas por extrema concretude, ele não pode prescindir de generalizações e aspira à formulação de leis (de comportamento social, de funcionamento das culturas e assim por diante), desta forma a antropologia

pode ser qualificada como uma disciplina nomolética, enquanto a historiografia parece ser uma disciplina mais descritiva projetada para representações do particular. A distância entre as duas disciplinas foi marcada pelos interesses temáticos que inicialmente caracterizaram a antropologia, por muito tempo ocupada com culturas distantes no espaço e sem escrita, onde os historiadores fizeram dos povos distantes no tempo o objeto de seus maiores interesses. Sem esquecer, porém, também a utilização das fontes e a sua relativa legitimidade, tanto que ainda hoje constituem um núcleo quente do debate entre as duas disciplinas. Provavelmente, a maior distinção entre antropologia e historiografia se constitui no fato de que os estudos antropológicos têm investigado as estruturas profundas, as teias latentes de significado, a cultura inconsciente dos grupos humanos, enquanto os historiadores têm lidado principalmente com expressões conscientes. A necessidade de repensar uma relação frutífera entre antropologia e história é claramente expressa por Evans -Pritchards que - não obstante ecoa Boas - quando denunciou o fracasso estéril da antropologia social britânica em sua tentativa de obter uma declaração completa das leis sociológicas, ao seguir o modelo das ciências naturais. Os antropólogos, concluiu ele, tinham que se alinhar no campo histórico: eles tinham que se tornar historiadores sociais de modelos culturais.

O cenário histórico da antropologia parecia indispensável, como afirma Kroeber como historiador da cultura:

«A diferença mais importante entre a história e a antropologia não é a questão das datas, mas o fato de que, em geral, os antropólogos têm muito poucos eventos em seus dados (distintos dos modelos.) matéria-prima dos historiadores. Os historiadores mais habilidosos fundem eventos em modelos ou formulações conceituais; os menos capazes se apegam aos acontecimentos e podem chegar à conclusão de que tudo o que não tem a ver com acontecimentos que aconteceram a indivíduos em períodos determináveis ​​não pode ser histórico. A raridade dos eventos registrados na vida primitiva contribuiu para obrigar os antropólogos a reconhecer as formas ou modelos de cultura. Em suma, eles talvez tenham descoberto mais cultura do que qualquer outro grupo de estudiosos. É verdade que isso aconteceu muito depois que historiadores inteligentes perceberam; mas eles tomaram esse fato como certo e estavam inclinados a lidar com a cultura indireta ou implicitamente, enquanto os antropólogos tornaram-se explicitamente conscientes da cultura» (Kroeber 1936, trad. it. 1974:127-8).

Parece que há nesta longa citação de Kroeber não só a justa simetria no reconhecimento das respetivas competências, especificidades e limites das duas diferentes disciplinas, como também o caminho que será então percorrido nas respetivas áreas de investigação histórico-antropológica. Quando em 1949 o pai do estruturalismo antropológico francês (considerado o mais ferrenho inimigo junto com o funcionalismo malinowskiano da relação entre história e antropologia) examinou as conexões possíveis, ele colocou as duas disciplinas no mesmo plano.

«Nos propomos mostrar que sua diferença fundamental não está nem no objeto, nem no propósito, nem no método; mas que tendo o mesmo objeto (a vida social), a mesma finalidade (uma melhor inteligência do homem) e um método em que varia apenas a dosagem dos procedimentos de pesquisa, distinguem-se sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a história organiza seus dados com base nas expressões conscientes, e a etnologia com base nas condições inconscientes da vida social» (Levi Strauss 1958, it. trans. 1966:30-1).

O caminho era, portanto, aquele que Evans Pritchard havia indicado, convencido de que a abordagem histórica deveria, de alguma forma, estar ligada à investigação estrutural-funcionalista; em seu livro / Senussi da Cirenaica (1948) ele esclarece:

«Acrescentarei que estou convencido de que uma interpretação baseada em critérios funcionalistas (do presente em termos do presente) e outra baseada em critérios históricos (do presente em termos do passado) devem estar ligadas, de uma forma ou de outra , e que ainda não aprendemos a conectá-los satisfatoriamente».

É nessa conexão que o desenvolvimento da disciplina foi construído nas décadas seguintes.

Etnohistória

Do lado historiográfico, não poucos pesquisadores, particularmente na Europa, têm atravessado a fronteira antropológica tanto em termos de método quanto de campos temáticos, sofrendo sua influência de diversas formas e em diversos níveis. Pense na escola 'Armales', em Braudel e Dupront, também em Dumezil , mas sobretudo na 'nova história francesa', em Le Goff, Vovelle, Le Roy Ladurie . A antropologia histórica continua a ser definida nesta área de interferência. Os interesses antropológicos levaram à introdução de novos campos na pesquisa histórica ou a um olhar diferente e mais próximo de temas habituais, colocando questões materiais históricas relacionadas com elementos teóricos, metodológicos e temáticos da antropologia que então delinearam as especificidades

da antropologia histórica. Tornaram-se, assim, competência estrita da antropologia histórica: o conceito de cultura, o método comparativo, a ideia de desenvolvimento multilinear, a desvalorização do acontecimento em favor da longa duração, a micro-história, o estudo das mentalidades, a história da cultura material, história dos marginalizados, busca do primitivo no mundo civilizado, ruralização da história, relações interétnicas e conflitos culturais, história do imaginário, relações de parentesco, técnicas do corpo, história do vestuário , culinária e comida, a história dos sonhos. O tratamento de dados e fontes também muda dentro da antropologia histórica. Sem dúvida, é nessa frente que ainda existem discussões abertas e desconfiança mútua. Em particular, é no uso do arquivo que historiadores e antropólogos se 'encontram'. Para os primeiros, tratava-se de remodular um hábito antigo e profundamente enraizado de atendimento, para os segundos, de entrar num mundo novo para pedir confirmação, identificando congruências e discrepâncias entre as versões do passado recolhidas no terreno e as fixadas em a documentação. Mas se o antropólogo entrou no arquivo, o historiador se aproximou dos dados fornecidos pelo campo e reconheceu sua validade.

Trata-se de uma formação recíproca, especularidade reforçada pela crítica pós-modernista que tem reiterado com maior convicção que não é o passado que determina e explica o presente, mas o presente que 'lê' o passado à luz dos seus interesses e das suas categorias e que o arquivo nunca oferece materiais neutros. Como no caso da história da América colonial e da fronteira em que foi possível repensar a relação entre museu, arquivo e campo que abriu uma perspectiva interpretativa diferente e mais equilibrada. A tentativa de aproximar os historiadores americanos do conceito antropológico de cultura delineou mais um campo de comparação entre antropologia e história: a etno-história que utiliza informações de caráter etnológico para as populações sem escrita a partir da documentação produzida pelos brancos. As fontes de arquivo tornam-se assim copiosas e abundantes. Esta fecundidade é demonstrada pelos trabalhos de John Swanton e Frank Speck sobre os contatos estabelecidos com as tribos indígenas por autoridades governamentais, ordens missionárias, empresas comerciais. O mesmo estudo da África abordou desse ângulo, por vezes, respectivamente, derrubou um dos pilares teóricos das duas disciplinas em relação à possibilidade de usar a história oral. Em particular, Jan Vansina (belga de nascimento e treinado em estrito treinamento histórico em Louvain), ao considerar as fontes para o historiador, resume o seguinte: 'para o historiador, as fontes são fontes: elas podem ser boas ou más, mas não há nada inerentemente menos válido em uma fonte. oral do que em uma fonte escrita. Ao mesmo tempo, a etno-história americana reafirmou em sua revista 'Ethohistory' uma prioridade decisiva para as fontes escritas.

Abriu-se assim uma especularidade entre historiadores e antropólogos que é preparatória para novas perspectivas e visa preencher as lacunas mútuas, a fim de criar um novo ponto de observação e uma abordagem totalizante a partir de um ponto de vista específico. O problema coloca-se sobretudo para a historiografia europeia, por vezes marcada pela vocação de querer ser também mitografia. Há uma necessidade crescente de os estudiosos treinarem uns aos outros para operar com a ajuda de três ferramentas investigativas: museu, arquivo, campo. Nos últimos anos, uma maior aproximação entre historiadores e antropólogos foi determinada sobretudo em relação ao crescimento da chamada 'antropologia das sociedades complexas'. O estudo dessas sociedades pelos antropólogos torna necessário explorar em primeira mão a história das comunidades sujeitas a investigações etnográficas também através de fontes documentais e as diferentes formas de tratá-las. Esta especularidade comprovada permitiu reconhecer a absoluta legitimidade de estudar muitas populações consideradas sem história documentada, rastreando e examinando a documentação dos arquivos coloniais; o melhor exemplo é a pesquisa de Marshall Sahlins reunida no volume Island of History de 1985, recupera uma rica documentação arquivística para os habitantes das ilhas dos Mares do Sul, demonstrando que mesmo para povos exóticos é possível aplicar o método histórico.

Bibliografia

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6ª Lição 2 de Dezembo 2022: Antropologia aplicada

O QUE É ANTROPOLOGIA APLICADA?

A antropologia não é apenas uma ciência do exótico alimentada por estudiosos caprichosos trancados em torres de marfim, mas também um campo intercultural, comparativo e holístico que interage e se comunica com seu público. Pode-se dizer que contempla uma dupla dimensão: a teórica e a prática, pertencente à antropologia aplicada. Este último refere-se à aplicação de dados, perspectivas, teorias e métodos das ciências antropológicas para identificar, avaliar e resolver problemas sociais contemporâneos. Como afirmou Erve Chambers (1987, p. 309), a antropologia aplicada é “o campo de investigação preocupado com as relações entre o conhecimento antropológico e os usos desse conhecimento no mundo por trás da antropologia”.Porque os antropólogos são especialistas em assuntos humanos e mudança social, e porque estudam, compreendem e respeitam os valores culturais, são altamente qualificados para sugerir, planejar e implementar políticas e políticas que afetam indivíduos e populações. As funções nas quais os antropólogos aplicados são a escolha mais apropriada incluem:

Ao mesmo tempo, especialmente na década de 1940, a maioria dos antropólogos se concentrou em aplicar seus conhecimentos. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, antropólogos americanos estudaram a 'cultura à distância' japonesa e alemã na tentativa de prever o comportamento dos inimigos dos Estados Unidos. Após a guerra, os americanos realmente se dedicaram à aplicação da antropologia na área do Pacífico, trabalhando para obter a cooperação nativa com as políticas americanas em vários territórios sob tutela.

A antropologia aplicada moderna difere daquela que anteriormente servia principalmente aos objetivos dos regimes coloniais. A aplicação prática foi uma das principais preocupações dos estágios iniciais do desenvolvimento da antropologia na Grã-Bretanha (no contexto do domínio colonial) e nos Estados Unidos (no contexto da política indígena americana). Antes de voltar nossa atenção para a nova antropologia aplicada é necessário considerar alguns riscos inerentes à antiga.

No contexto do Império Britânico, especificamente nas colônias africanas, Malinowski formado para indicar a antropologia aplicada à esfera colonial, deve centrar-se no processo de ocidentalização, ou seja, a difusão da cultura europeia nas sociedades tribais. Malinowski não questionou nem a legitimidade do colonialismo nem o papel do antropólogo no funcionamento do sistema colonial. Ele não via nada de errado em ajudar os regimes coloniais, por meio do estudo do regime e da exploração da propriedade da terra, a estabelecer a porcentagem da terra nativa que pertencia aos indígenas e a que era destinada aos colonos europeus. O ponto de vista de Malinowski é o exemplo de uma associação histórica, especialmente na Europa, entre antropologia e colonialismo (Maquet 1964).

Hoje em dia, muitos antropólogos aplicados consideram o seu trabalho como uma profissão de cuidado, dedicada a ajudar e assistir as populações locais, tornando-se o porta-voz de indivíduos desfavorecidos na política internacional, ao mesmo tempo que se dedicam a resolver os problemas de clientes que não são pobres nem destituídos de poder. De fato, os antropólogos colaboram com empresas e empresas cujo objetivo é aumentar os lucros de seus clientes: às vezes, questões éticas são levantadas em pesquisas de mercado, justamente porque os antropólogos fazem o possível para ajudar as empresas a operar de maneira mais eficaz, ao mesmo tempo. receita. Tal como acontece na gestão dos recursos culturais, também neste caso existem algumas ambiguidades éticas. As organizações envolvidas na gestão de recursos culturais são geralmente contactadas por empresas que pretendem construir estradas, fábricas ou outros tipos de obras públicas e privadas. Nesses casos, um resultado que demonstre que não há locais que necessitem de proteção especial nos terrenos envolvidos na obra certamente beneficiaria o cliente. A quem deve ir a lealdade do pesquisador e quais poderiam ser os problemas associados ao lado da verdade?

À semelhança dos antropólogos da era colonial, os que trabalham no âmbito da antropologia aplicada também enfrentam dilemas éticos, uma vez que não lhes compete criar as políticas que são chamados a implementar e porque é bastante difícil criticar os programas a que participar diretamente (Escobar 1991, 1994). Organizações profissionais de antropólogos abordaram essas questões estabelecendo códigos de conduta e comitês de ética. Como aponta Tice (1997), a atenção dada aos problemas éticos é hoje um elemento primordial no ensino da antropologia aplicada.

A antropologia passa da teoria à prática e pode se tornar uma ferramenta útil para a gestão e controle de alguns processos induzidos. É o caso, por exemplo, da antropologia do desenvolvimento. A antropologia do desenvolvimento lida com dos problemas sociais induzidos pelo desenvolvimento económico e da sua dimensão cultural. Projectos de desenvolvimento culturalmente compatíveis e destinados ao sucesso são aqueles que buscam mudar apenas o suficiente, sem cair em excessos. Os incentivos à mudança são determinados pela cultura tradicional do povo e pelas pequenas preocupações da vida diária. A estratégia de mudança mais produtiva é basear o modelo social de inovação nas formas sociais tradicionais de cada área afetada.

APLICAÇÕES DE ANTROPOLOGIA

A antropologia aplicada inclui todos os usos de informações e/ou técnicas de disciplinas antropológicas para identificar, avaliar e resolver problemas práticos. Como a ciência antropológica inclui muitos domínios, segue-se que suas aplicações são igualmente numerosas: especialistas em antropologia aplicada na área médica, por exemplo, consideram os contextos e implicações de distúrbios e doenças tanto de um ponto de vista sociocultural quanto biológico. As formas de perceber a saúde boa e ruim, juntamente com os problemas e ameaças atuais que afetam os cuidados de saúde, diferem de cultura para cultura. Várias sociedades e grupos étnicos reconhecem diferentes doenças, sintomas e causas e, portanto, desenvolveram diferentes sistemas de saúde e estratégias de tratamento. A antropologia médica tem um aspecto biológico e cultural diferente conforme o lugar. As formas de perceber a saúde boa e ruim, juntamente com os problemas e ameaças atuais que afetam os cuidados de saúde, diferem de cultura para cultura. Várias sociedades e grupos étnicos reconhecem diferentes doenças, sintomas e causas e, portanto, desenvolveram diferentes sistemas de saúde e estratégias de tratamento. A antropologia médica tem um aspecto biológico e cultural, e é uma ciência teórica e aplicada. Antropólogos médicos aplicados, por exemplo, têm desempenhado o papel de intérpretes culturais em programas de saúde pública, que devem se adaptar à cultura local e ser aceitos pela população local.

Outros antropólogos aplicados trabalham para agências internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), avaliando as dimensões sociais e culturais do desenvolvimento econômico. Os antropólogos são especialistas em culturas locais: trabalhando em estreita colaboração com o povo e valendo-se de sua herança cultural, eles são capazes de identificar condições e necessidades sociais específicas que precisam ser atendidas e que influenciam o sucesso ou o fracasso dos projetos de desenvolvimento.

Os planejadores em Washington ou Paris sabem muito pouco sobre, digamos, a mão-de-obra necessária para cultivar na África rural. Muitas vezes os fundos destinados a subsidiar projetos de desenvolvimento acabam por ir para o lixo sem a intervenção de um antropólogo que trabalhe localmente com a população para identificar as reais necessidades, solicitações, prioridades e constrangimentos.

Os projetos de desenvolvimento geralmente estão fadados ao fracasso se os planejadores ignorarem a dimensão cultural do desenvolvimento. Os problemas decorrem da falta de atenção às condições socioculturais existentes e a consequente falta de aderência entre as propostas teóricas e a realidade objetiva.

Um exemplo disso é um projeto decididamente ingénuo e culturalmente incompatível que está ser realizado no Sul de Angola, cuja principal fraqueza era tentar converter os !Kung nómadas em agricultores. Os responsáveis ​​pelo planejamento do projeto da nossa faculdade, especialistas em políticas, não tinham evidências concretas de que os !Kung, em cujo território o projeto seria implementado, realmente quisessem mudar sua economia de subsistência. O território dos nómades seria usado para a construção de novas fazendas comerciais e os !Kung seriam transformados em fazendeiros.

O projecto, envolveu a colaboração de um licenciado em antropologia muito desejoso em ganhar algo, negligenciou completamente os problemas sociais locais, enquanto os potenciais obstáculos teriam sido imediatamente percebidos por qualquer antropólogo. Espera-se que os !Kung abandonem voluntariamente um estilo de vida que levam por gerações para trabalhar cultivando milho, massango e massambala beneficiando de enchadas e catanas. O que diabos poderia tê-los motivado a desistir de sua liberdade e mobilidade para trabalhar como agricultores sedentários? Certamente não os escassos ganhos que os planejadores do projeto haviam estimado: pois conseguiram obter pelo Ministério uma boa verba. Projectos já realizados para colonizar os !Kung fracassaram por não ter tido em conta a sua cultura. Construíram reservas com casas, janelas, agua corrente, electricidade chamaram os !Kung e entregaram-lhe as chaves de casa. Ficaram alguns dias, mas ao verem suas caras reflectidas nos vidros das janelas fugiram todos abandonando as casas. Pois o reflexo foi considerado por eles uma grave ameaça para a vida.

Para evitar projetos tão irrealistas e criar esquemas de desenvolvimento mais adequados culturalmente e mais próximos da realidade social local efectiva, as organizações internacionais de desenvolvimento garantem hoje sempre a colaboração de antropólogos na fase de planejamento de projetos, juntamente com agrónomos, economistas, veterinários, geólogos, engenheiros e especialistas em saúde. O projecto que esta a ser realizado entre os Kung foi insistentemente dirigido por uma professora de Ciências políticas hábil no interessar instituições políticas, mas completamente incompetente sobre a cultura !Kung e indisposta no trabalho de campo, pois tem medo de viajar e permanecer entre eles. Os especialistas em antropologia aplicada também exploram suas habilidades em estudar a dimensão humana da degradação ambiental (por exemplo, desmatamento, poluição, etc.), examinando como o meio ambiente afeta os seres humanos e como as atividades humanas, por sua vez, afetam a biosfera e a própria Terra.

Especialistas em antropologia aplicada também operam na arqueologia aplicada em Mbanza Kongo declarado por isso património da humanidade, normalmente chamada de arqueologia pública, inclui atividades como gestão de recursos culturais, arqueologia de contrato, programas de educação pública e preservação do património. Mas obtida a declaração tudo caiu no esquecimento e as escavações foram esquecidas tornando-se perigosas para quem passeia. O objetivo da gestão de recursos culturais em Mbanza Kongo é decidir o que precisa ser protegido e preservado e salvaguardar informações importantes sobre o Reino do Kongo, mesmo quando não é possível salvar determinados locais. As atividades de gestão de recursos culturais incluem não apenas a conservação de sítios de alto interesse arqueológico, mas também a autorização da destruição de casas construídas sobre os sítios arqueológicos. Não a caso altas entidades políticas ao ouvir que o Ministério da cultura teria ocupado vastas áreas de interesse arqueológico se apressaram em construir hotéis mesmo ao lado do antigo palácio real do Rei do Kongo...

Os antropólogos culturais devem ser consultados para influenciar as políticas sociais ao destacar os estreitos laços de parentesco existentes entre aldeias e bairros da cidade cuja organização social era anteriormente considerada 'fragmentada' ou 'patológica'. Um exemplo é a fronteira do Luvo onde as famílias do Congo e as famílias de Angola pertencem ao mesmo grupo parental. Este facto relativiza os confins traçados na conferencia de Berlim entre Angola e Congo. Há sugestões que os antropólogos devem dar para a melhoria do setor educacional onde emergem estudos etnográficos de turmas escolares e comunidades da periferia. A antropologia linguística mostra a influência das diferenças linguísticas (Lingala, Kikongo, português) na aprendizagem escolar. Em geral, o objetivo da antropologia aplicada é identificar formas eficazes e respeitosas de ajudar as populações tradicionalmente estudadas pelos antropólogos.

Outro uso da antropologia aplicada pode ser encontrado no campo da educação, especialmente em sociedades caracterizadas pela presença de estrangeiros Estudos e consultorias antropológicas podem ajudar a identificar problemas de comunicação e ensino entre professores e crianças ou jovens de diferentes culturas.

Os pesquisadores antropológicos e educacionais trabalham em salas de aula, residências particulares e outros ambientes pertinentes à educação: os estudos que realizam podem produzir conselhos e sugestões para as políticas a serem adotadas no campo educacional. Tanto os especialistas em antropologia aplicada como em antropologia teórico-acadêmica estudam os fenômenos migratórios das áreas rurais para as cidades e centros urbanos e além das fronteiras nacionais. Pesquisas em antropologia urbana com foco em migração, etnia, pobreza e outros assuntos relacionados geralmente têm como alvo os países ocidentais.

Os antropólogos aplicados trabalham (regular ou ocasionalmente, em período integral ou parcial) para clientes não académicos, como governos, agências de desenvolvimento, organizações não governamentais (UNHCR), igrejas, associações  étnicas, grupos de interesse, empresas e agências de serviços sociais e provedores de educação, além de colaborar com grupos que promovem, gerenciam e avaliam programas e políticas destinadas a influenciar o comportamento humano e as condições sociais. O campo da antropologia aplicada inclui processos de mudança e desenvolvimento em contextos ocidentais e não ocidentais (cf. Ervin 2005).

A ANTROPOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

A antropologia aplicada tem como campo de interesse a aplicação de perspectivas, teorias, métodos e dados antropológicos para identificar, avaliar e resolver problemas sociais. A antropologia do desenvolvimento é o ramo da antropologia aplicada que se interessa pelos problemas sociais induzidos pelo desenvolvimento econômico e sua dimensão cultural. Os antropólogos do desenvolvimento não apenas implementam políticas de desenvolvimento planejadas por outros, mas também planejam e orientam essas políticas. (Para uma discussão mais detalhada das áreas de foco da antropologia do desenvolvimento, ver Escobar 1995, Ferguson 1994 e Robertson 1995.)

Os antropólogos desenvolvimentistas frequentemente enfrentam dilemas éticos (Escobar 1991, 1995): sua preocupação com a diversidade cultural muitas vezes não é respeitada. Quantas vezes tentei de fazer compreender uma colega de ciências políticas que o projecto sobre os !Kung era de estilo neocolonial, mas inutilmente, era já prestabelecido, até na linguagem a usar. Enfim, onde antigamente havia a missão civilizadora dos colonos, hoje os esforços para expandir a indústria e a tecnologia colonizam ainda mais e operam profundas mudanças culturais. A ajuda a países estrangeiros geralmente não vai para onde a necessidade e o sofrimento são maiores, mas é direcionada com base em prioridades políticas, econômicas e estratégicas, conforme percebido pelos doadores, líderes políticos e grupos de interesse poderosos. Uma vez que os interesses dos planejadores nem sempre coincidem com os melhores interesses das populações locais, embora o objectivo da maioria dos projetos de desenvolvimento seja melhorar a qualidade de vida, os padrões culturais de vida geralmente caem fora da área receptora.

Os etnógrafos, estudando os povos no nível local, têm uma visão clara do impacto dos planos de desenvolvimento nacionais e internacionais nos designados 'beneficiários': de fato, a pesquisa no nível local frequentemente revela algumas inadequações das medidas usadas pelos economistas para avaliar o desenvolvimento e o bem-estar econômico de uma nação. Por exemplo, a renda per capita e o produto interno bruto não medem a distribuição real da riqueza: como a primeira é uma média e a segunda um total, seus valores podem aumentar à medida que os ricos ficam mais ricos e os pobres mais pobres.

O Patrimônio nacional

A promoção da unidade nacional está frequentemente entre os objetivos das políticas de desenvolvimento recentes: maior equidade implica menos pobreza e uma distribuição mais equitativa da riqueza. No entanto, para isso, os projetos devem contar com o apoio de governos abertos a mudanças. Normalmente, porém, os ricos e poderosos, cuja maioria pertence à classe política, relutam em aceitar projetos que ameacem seus interesses pessoais.

Certos tipos de projetos de desenvolvimento, particularmente projetos de irrigação, têm maior probabilidade de aumentar a desigualdade da riqueza, ou seja, ter um efeito negativo sobre a equidade. Uma distribuição inicialmente desigual de recursos (especialmente terra) muitas vezes se torna ainda menos equitativa após o projeto. Como os insumos são canalizados para ou através dos ricos, o impacto social das novas tecnologias tende a ser maior, produzindo efeitos negativos na qualidade de vida e na equidade.

Muitos projetos relacionados com a pesca também tiveram resultados negativos em termos de equidade. Na Bahia, Brasil (Kottak 2006), proprietários de veleiros (mas não não proprietários) tiveram a oportunidade de obter empréstimos para fornecer motores para seus barcos. Para saldar a dívida, os proprietários aumentavam a porcentagem da pescaria daqueles que usavam seus barcos para a pesca e, ao longo dos anos, usavam os lucros crescentes para comprar barcos maiores e mais caros. O resultado foi a estratificação, ou seja, o nascimento de um grupo de pessoas ricas em uma comunidade inicialmente igualitária. Esses eventos dificultaram a iniciativa de indivíduos e interferiram no desenvolvimento subsequente da indústria pesqueira. Com barcos tão caros, os jovens que outrora teriam buscado uma carreira na indústria pesqueira não tinham mais a oportunidade de possuir seus próprios barcos, então buscavam um emprego remunerado em terra. Para evitar tais resultados, as agências de crédito precisariam visar jovens pescadores empreendedores, em vez de conceder empréstimos apenas a proprietários e comerciantes já estabelecidos.

ESTRATÉGIAS DE INOVAÇÃO

Os antropólogos que lidam com os problemas sociais relacionados com o desenvolvimento económico, e com a sua dimensão cultural, devem trabalhar em estreita colaboração com os locais para avaliar as suas expectativas e necessidades de mudança e contribuir para a sua concretização. Se as necessidades reais do local forem demasiadas, é preciso resolver o problema do desperdício de dinheiro no financiamento de projetos de desenvolvimento inadequados, mas necessários, ou totalmente inapropriados. A antropologia do desenvolvimento é capaz de selecionar as necessidades dos locais e ajustar os projetos de acordo. É necessário identificar projetos que priorizem as pessoas, consultando-as e sendo sensível às suas necessidades declaradas (Cernea 1991). Só então os antropólogos desenvolvimentistas podem procurar maneiras socialmente compatíveis de implementar o projeto.

Os projetos de desenvolvimento rural em todo o mundo que são projetos de desenvolvimento econômico culturalmente compatíveis são duas vezes mais bem-sucedidos financeiramente do que os não culturalmente compatíveis (Kottak 1990, 1991). Estes resultados demonstram que o recurso à perícia da antropologia aplicada ao planeamento, para assegurar a compatibilização cultural, tem vantagens indubitáveis ​​em termos de custos-resultados. Para maximizar os benefícios sociais e econômicos, os projetos devem:

Excesso de inovação

Em meu estudo comparativo, os projetos que se mostraram compatíveis e bem-sucedidos foram aqueles que evitaram a falácia de inovação: as pessoas resistem a projetos de desenvolvimento que impõem mudanças substanciais em seu cotidiano, principalmente aqueles que interferem nos meios de subsistência. Geralmente as pessoas estão dispostas a mudar apenas o suficiente para manter o que já possuem. Os incentivos à mudança de comportamento são determinados pela cultura tradicional e pelas preocupações mesquinhas da vida cotidiana: os valores típicos da cultura local não são abstractos Os políticos geralmente assumem que a mudança é para melhor. Mas que tipo de mudança? De nossa discussão sobre a falácia do excesso de inovação, podemos extrair algumas lições para aplicar em nossa vida cotidiana.

Como a maioria das pessoas, os habitantes das aldeias angolanas costumam buscar mudanças que lhes permitam manter ou melhorar, rua, agua, corrente eléctrica mas não mudar completamente os seus estilos de vida que desde então levam. Imagine que eu; um estranho da cultura !Kung à frente de uma organização que não está familiarizado com a cultura dessa organização, esse líder deve seguir o exemplo do antropólogo e eu estudo a cultura local antes de tentar mudá-la; Devo tentar entender o que funciona e o que não funciona, o que os nativos (ou seja, os homens e mulheres que fazem parte da organização) querem e o que realmente precisam; depois disso, se a mudança parecer em linha com o que surgiu, o líder deve determinar onde planejá-la e implementá-la! forma menos destrutiva possível. Novamente, ele deve seguir a Técnica do Antropólogo Aplicado:

1) Consultar locais e usar sua ajuda e suporte durante o processo de mudança.

2) Para ser um 'agente de mudança' eficaz é preciso ouvir e tentar

3) Adaptar a inovação, certificando-se de que ela se adequa à cultura local.

Este processo de estudo e colaboração ilustra a mudança participativa, ou seja, a mudança de baixo para cima. No entanto, a mudança de cima para baixo muitas vezes apresenta problemas: um líder que escolhe um curso de ação de cima para baixo geralmente recorre ao plano de ação de outra organização, talvez derivado dele. Cenários normalmente não modificados não funcionam. Assim como o plano de ação linguística do nosso cérebro é modificado cada vez que para se adaptar a uma linguagem específica, o de uma organização deve ser flexível o suficiente para poder ser modificado e adaptado a uma organização específica. ser descartado. Os erros induzidos por planejamento de planos de ação e excessiva inovação não são apenas lições vagas extraídas de projetos de desenvolvimento fracassados: são considerações de vital importância para qualquer líder que pretenda levar uma organização adiante ou mudá-la. 'trabalhar melhor', 'progredir', 'melhorar a técnica', 'aumentar a eficiência' ou 'adotar novas técnicas'

de intervenção). Seus objetivos são práticos e específicos: melhorar o rendimento de um campo de arroz, acumular recursos para uma cerimónia, mandar os filhos para a escola ou ter dinheiro suficiente para pagar os impostos em dia. Os objectivos e valores de quem produz para subsistência são diferentes dos que produzem para liquidez, assim como são diferentes das filosofias de intervenção dos planejadores do desenvolvimento. Ao planeaar é necessário levar em conta os diferentes sistemas de valores.

Os projetos malsucedidos geralmente são económica e culturalmente incompatíveis. Por exemplo, um projecto no Norte de Angola promoveu o cultivo de milho, esperando que essa prática se encaixasse em um sistema existente de cultivo de mandioca dos Bakongo. O cultivo desses produtos para venda não era tradicional na área e, portanto, entrava em conflito com as prioridades agrícolas existentes e com os interesses do mercado tradicional. Além disso, as técnicas de trabalho para a produção de milho eram praticamente desconhecidas, e obviamente  os os agricultores atribuíam prioridade à mandioca. Conclusão foram os próprios trabalhadores das ONG em Angola no após guerra que se preocuparam de vender o milho às fábricas de cerveja Primus, Skol e Doppel de Kinshasa.

Em todo o mundo, os problemas decorrentes dos projetos são atribuídos à atenção inadequada à cultura local e à consequente falta de adaptação a ela. Outro projeto imprudente e incompatível foi o demasiado inovador destinado à construir centralizados no Cunene para os !Kung e teve como principal falha o desejo de converter pastores nômades em agricultores sedentários, ignorando os direitos tradicionais à terra. Uma das lamentações dos !Kung foi que os fazendeiros comerciais - se apoderaram de grande parte dos territórios dos nómadas enquanto estes eram obrigados a se estabelecer e começar a cultivar os campos. Os planejadores esperavam ingenuamente que os !Kung itinerantes desistiriam de seu modus vivendi tradicional para trabalhar três vezes mais arduamente, cultivando massango, massambala e colhendo milho.

Subdiferenciação

A falácia da subdiferenciação é a tendência de ver os “países menos desenvolvidos” como mais semelhantes entre si do que realmente são. As agências de desenvolvimento frequentemente ignoram a diversidade cultural (por exemplo, entre o Portugal e Angola) adoptando uma abordagem uniforme para lidar com povos muito diferentes. Muitos projetos, desconsiderando a diversidade cultural, tentaram impor ideias incompatíveis de propriedade e unidades sociais.

Um exemplo de modelos europeus e americanos inoportunamente propostos (o do indivíduo solteiro e o da família elementar) é representado por um projeto para a África Ocidental destinado a uma área em que a unidade social elementar era a família extensa (Kanda). O projeto teve sucesso, apesar do modelo social falho, pois os participantes usaram suas redes tradicionais de famílias extensas para atrair novos colonos. No final, o dobro de indivíduos esperados se beneficiou do projeto, pois membros de famílias extensas se concentraram na área-alvo do projeto. Nesse caso, os assentados modificaram o projeto que lhes fora imposto, seguindo os princípios de sua sociedade tradicional.

O segundo modelo social estrangeiro de aplicação duvidosa, comum na estratégia de desenvolvimento, é o cooperativo. O estudo comparativo de projetos de desenvolvimento rural revelou que as novas cooperativas não tiveram sucesso e que as únicas que tiveram sucesso foram aquelas que exploraram instituições comunitárias pré-existentes no nível local. Este é o corolário de uma regra mais geral: os grupos de participantes são mais eficazes quando baseados na organização social tradicional ou na similaridade socioeconômica entre os membros.

Nenhum dos modelos sociais estrangeiros - nem a fazenda com família elementar, nem a cooperativa - tem um passado irrepreensível em termos de desenvolvimento.

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7ª Lição 23 de Dezembro 2022: O método de pesquisa

 

ETNOGRAFIA: ESTRATÉGIA DISTINTA DE ANTROPOLOGIA

Este capítulo, que se concentra nos métodos da antropologia cultural, abre com uma breve discussão de algumas considerações éticas que os antropólogos enfrentam no momento onde eles planejam e conduzem suas pesquisas de campo. Este código oferece diretrizes para antropólogos na organização e condução de pesquisas, mas também no trato com colegas de seu país de origem. A discussão dos métodos neste capítulo concentra-se na antropologia cultural e na etnografia em particular. Etnógrafos (trabalhadores de campo em antropologia) tradicionalmente constroem seu trabalho de campo fora de seu país de origem. No país anfitrião, o etnógrafo busca permissão, cooperação e informações de funcionários do governo, académicos e, principalmente, membros da comunidade que pretende estudar. A sensibilidade cultural é fundamental, pois os sujeitos da pesquisa são pessoas em cuja vida o antropólogo se insere. Os antropólogos precisam estabelecer e manter relacionamentos apropriados, colaborativos e nunca exploradoras com colegas e comunidades na nação anfitriã.

Para trabalhar em um estado anfitrião e sua comunidade, os pesquisadores precisam informar os funcionários do estado e colegas sobre o escopo e o capital a ser investido, os resultados iniciais e os impactos da pesquisa. Os pesquisadores devem obter o consentimento de todas as partes envolvidas - desde as autoridades que controlam o acesso ao campo até os membros da comunidade que pretendem estudar. Antes do início da pesquisa, os indivíduos devem ser instruídos sobre o propósito, a natureza e a metodologia da pesquisa, bem como os custos e benefícios potenciais que podem ser derivados dela. O consentimento informal (concordância em participar da pesquisa) deve ser obtido de qualquer pessoa que seja uma fonte de informação ou de qualquer pessoa que possa ser afetada pela pesquisa.

É necessário desenvolver uma metodologia de trabalho global culturalmente apropriada, que entretanto varia de país para país, antes que a própria pesquisa de campo possa começar. Antes de chegar a Angola em 1983, obtive um visto para entrar em Angola, onde passei meses em Makela a estudar e praticar o idioma Kikongo. Eu precisava aprender Kikongo, a língua do Norte de Angola. Assim que cheguei no município do Pombo, A Sanza, conheci alguns velhos locais Malungu Xaba dos Buengas e o catequista Morais e quis aproveitar dos seus conhecimentos e obter conselhos sobre meus projetos. Mais tarde, quando fui capturado e numa viagem de cinco meses cheguei providencialmente na Jamba que se encontrava no território da etnia nganguela e coloquei-me a aprender a língua dos soldados Ovimbundu e do povo Nganguela. Comecei estudar graças ao dicionário de Le Guennec , encontrado na biblioteca da Jamba “Pole Pole”, onde foi-me permitido entrar. Encontrei varias vezes o presidente da Unita Jonas Malheiro Savimbi na Jamba. Também tive sorte de encontrar e viver junto aos sobas nganguela de Kanga onde mais tarde passei a viver no 87, o soba Sakandingo, o soba Kahunu, o soba kwangari Konorate Hamunhera e conhecer a DGLOG na base logístico-administrativa de Likuwa onde morei do 86 até 88. Mais tarde, estabeleci um relacionamento amigável com quimbandas que conheciam as práticas mágicas do povo nganguela na pequena base onde inicialmente me estabeleci: Kanga. Refiro-me ao velho cego Campolongo que tanto me ensinou, mas também ao kwanhama Ndahepele. As pessoas dos Centros de Produção constroem redes sociais que se estendem até as bases militares, mas também os presos do CR 30, vinham a trabalhar para ganhar com a sua enchada sumos de milho - é com eles que eu iria fazer a maior parte do meu trabalho etnográfico. Através de contactos interpessoais criei uma rede que me permitiu viajar na Neriquinha, e nas aldeias ao longo do rio Kuvia que de Mavinga descia até Santa Cruz do Kwando. Apesar dos numerosos jacarés atravessei de canoa em 1990 o rio Kwito até chegar nas proximidades de Sofoe alem Kuvango passei em várias aldeias rurais, numa das quais emprestaram-me um cavalo para facilitar o meu campo de investigação. Mas encontrava-me na R.M. 17 que não era aconselhável, pois poderia fugir da mata. Durante minha estadia forçada no Kwando Kubango, tentei manter contacto com os estudiosos e padres que viviam no lado do governo mas era muito perigoso ter correspondência com aqueles que na mata chamavam de inimigo. Mais tarde, quando tive a possibilidade de  retornar a Menongue, comecei a reelaborar todos os dados de pesquisa recolhidos em sete anos de mata num trabalho que mais tarde a Eurilink University de Roma em 2017 publicou, fazia parte de um  projecto de pesquisa de campo, seja em antropologia cultural financiado pela Cooperação Italiana.

Os antropólogos estão em dívida com as pessoas com quem trabalham no campo e devem retribuir de forma apropriada. Por exemplo, seria desejável que os antropólogos dos países africanos pudessem incluir colegas americanos ou ingleses em seus projetos de pesquisa. Foi assim que conheci John Kelly Thornton que mais tarde tutorou meu trabalho de doutoramento, enfim estabelecer relações de colaboração com esses colegas e suas instituições e fazer parte da publicação de os colegas que pesquisam encoraja o antropólogo a aprofundar sua pesquisa. O compromisso ético mais profundo do antropólogo é com o povo que ele pretende estudar. Etnografia refere-se ao estudo de 'primeira mão' de assentamentos culturais locais - os locais de pesquisa de campo. Ao observar e trabalhar de perto com a população local, os etnógrafos conhecem os detalhes mais subtis de suas vidas. As histórias de vida revelam experiências pessoais em relação à cultura. A informação genealógica é importante em sociedades onde a vida social é organizada em torno ao parentesco, descendência e casamento. A pesquisa longitudinal é o estudo sistemático de uma área ou campo de pesquisa ao longo do tempo. A etnografia multi-local, incluindo mais de um local de pesquisa, seja conduzida por um grupo ou por um único indivíduo, é cada vez mais comum. Tradicionalmente, os antropólogos culturais trabalham em pequenas empresas, os sociólogos nos países modernos. Graças à maior presença de pessoas instruídas nesses contextos, pesquisadores desse tipo utilizam questionários, que são preenchidos pelos próprios sujeitos da pesquisa. Os sociólogos estudam amostras para fazer inferências sobre uma população maior. Dada a diferença que existe entre diferentes nações modernas, até os antropólogos adoptam certos procedimentos investigativos. No entanto, os antropólogos usam a pesquisa de 'primeira mão' como uma característica da etnografia.

OS MÉTODOS - ETNOGRAFIA

A antropologia cultural começou a se separar da sociologia por volta do início do século XX. Inicialmente, os cientistas sociais, como o francês Emile Durkheim, transitavam entre a sociologia e a antropologia. Ao teorizar a organização de sociedades simples e complexas, Durkheim levou em conta relatos escritos sobre as religiões indígenas da Austrália (Durkheim 1912-2001), mas também fenômenos de massa (como vários graus de suicídio) em nações modernas (Durkheim 1897-1951). . Eventualmente, a antropologia tendeu a se especializar no primeiro assunto, enquanto a sociologia no segundo.

A antropologia desenvolveu-se em um campo diferente quando os primeiros estudiosos, como Bronislaw Malinowski, que realizou o primeiro levantamento de terras nas Ilhas Trobriand (Melanésia), se aventuraram em terras distantes para estudar pequenos grupos de camponeses e agricultores ou, como Franz Boas (1940-1966 ), trabalhou em reservas indígenas (nativos americanos). Esse tipo de estudo pessoal de primeira mão dos assentamentos locais é chamado de etnografia. Tradicionalmente, o processo contínuo do antropólogo cultural requer experiência de pesquisa de campo em outras sociedades. Os primeiros etnógrafos viviam em sociedades pequenas e relativamente isoladas com tecnologias e economias simples.

Assim, a etnografia surgiu como uma estratégia de pesquisa em sociedades com maior uniformidade cultural e menos diferenças sociais do que aquelas encontradas nas grandes nações industrializadas modernas. Em tal situação não industrializada, os etnógrafos precisavam considerar menos caminhos de aculturação (o processo pelo qual uma pessoa adquire conhecimento) para entender a vida social. Os etnógrafos tradicionalmente tentaram entender todos os aspectos de uma cultura particular (ou, mais realisticamente, tanto quanto podiam, dadas as limitações de tempo e percepção). Para conseguir isso, os etnógrafos adoptam uma estratégia de campo livre para colectar informações. Em uma determinada sociedade ou comunidade, o etnógrafo se move de povoado em povoado, lugar em lugar e sujeito a sujeito para descobrir a totalidade e a interconexão dos aspectos da vida social.

Ao expandir nosso conhecimento da esfera da diversidade humana, a etnografia fornece a base para generalizar o comportamento humano e a vida social. Destacamos que a etnografia envolve pesquisa de campo em uma sociedade específica, enquanto a etnologia representa o aspecto comparativo da antropologia cultural. Os objetivos da etnologia são identificar, comparar e explicar as diferenças e semelhanças culturais, bem como construir teorias sobre o funcionamento dos sistemas sociais e culturais.

Uma vez recolhidos os dados etnográficos, coletados através das técnicas discutidas aqui, podemos usá-los para comparar, questionar e fazer generalizações sobre sociedades e culturas.

Devemo-nos concentrar nas técnicas de pesquisa etnográfica de campo. Os etnógrafos usam uma variedade de técnicas para pintar um quadro de estilos de vida observados que, de outra forma, nos pareceriam estranhos. Os antropólogos normalmente empregam várias (se não todas) das técnicas discutidas abaixo (ver também Bernard 2006, O'Reilly 2004).

TÉCNICAS ETNOGRÁFICAS

As características técnicas da pesquisa de campo do etnógrafo incluem os seguintes elementos:

1. Observação directa e em primeira mão do comportamento cotidiano, incluindo observação participante.

2. A conversa desenvolve-se em diferentes graus de formalidade, desde os chats diários, que ajudam a manter as relações e permitem o conhecimento do que está a acontecer, à entrevista, que pode ser não estruturada ou estruturada. Tabelas de entrevistas ou questionários impressos e formais podem ser usados ​​para confirmar que informações abrangentes e comparáveis ​​estão disponíveis para qualquer pessoa interessada no estudo atual.

3. O método genealógico.

4. Trabalho detalhado com pessoas de dentro em áreas específicas da vida comunitária.

5. Entrevistas aprofundadas geralmente levam à coleta de histórias de vida de pessoas específicas (contadores de histórias).

6. A descoberta de crenças e percepções locais, que podem ser comparadas com as observações e conclusões do etnógrafo.

7. Os diferentes tipos de investigação orientada para a resolução de problemas.

8. Pesquisa longitudinal - o estudo contínuo e de longo prazo de uma determinada área ou local.

9. Pesquisa de grupo - pesquisa coordenada por um grupo de etnógrafos.

10. Abordagens em larga escala que refletem a complexidade da vida moderna.

Observação e observação participante

Os etnógrafos devem conhecer seus convidados e geralmente estão interessados ​​na totalidade de suas vidas. Eles precisam prestar atenção a centenas de detalhes da vida cotidiana, eventos sazonais e ocorrências incomuns. Eles têm que observar o comportamento individual e coletivo em diferentes lugares. Eles devem então registrar o que veem quando o veem. As coisas nunca vão parecer tão estranhas como nos primeiros dias e semanas no campo. Com o tempo, o etnógrafo se acostuma e aceita como normais aqueles elementos culturais que inicialmente considerava 'estranhos'. Normalmente, os etnógrafos passam mais de um ano no campo. Isso lhes permite observar todo o ciclo anual. Uma permanência de pouco mais de um ano permite ao etnógrafo reviver a época de sua chegada, quando ainda pode ter perdido alguns eventos e processos devido ao estranhamento inicial e ao choque cultural.

Muitos etnógrafos registam as suas impressões num diário pessoal, que se mantém separado das notas de campo mais formais, ainda que nas últimas décadas a tendência para dar uma dimensão mais narrativa à experiência etnográfica conduza a manter a parte 'técnica' menos separada da privado. Posteriormente, este registro das primeiras impressões ajudará a destacar alguns dos aspectos básicos da diversidade cultural. Esses aspectos incluem cheiros distintos, ruídos que as pessoas fazem, como cobrem a boca ao comer e como olham para os outros. Esses fatores, que são tão básicos que parecem triviais, fazem parte do que Bronislaw Malinowski chamou de 'os imponderáveis ​​da vida nativa e do comportamento típico' (Malinowski 1922-1961, p. 20). Essas características de uma cultura são tão fundamentais que a população local as considera um dado adquirido. Eles são básicos demais para serem discutidos, mas o olho desacostumado do antropólogo voador os capta. Portanto, tornando-se familiares, eles se dissolvem no limite da consciência. As primeiras impressões têm um certo valor e, portanto, devem ser registradas. Em primeiro lugar, os etnógrafos devem tentar ser precisosobservadores, registradores e relatores do que veem no campo.

Etnógrafos não estudam animais em gaiolas de laboratório. As experiências que os psicólogos realizam com pombos, galinhas, porquinhos-da-índia e camundongos são bem diferentes do processo etnográfico. Os antropólogos não monitoram sistematicamente as recompensas e punições dos sujeitos ou sua exposição a certos estímulos. Nossos súditos não são animais que não falam, mas seres humanos. Manipulá-los, controlar seus ambientes ou provocar certos comportamentos experimentalmente não faz parte do processo etnográfico.

Os etnógrafos lutam para estabelecer um relacionamento bom e amigável baseado no contato pessoal com seus anfitriões. Um dos procedimentos mais característicos da etnografia é a observação participante, que significa participar da vida da comunidade, não apenas estudá-la. Como seres humanos vivendo entre outros seres humanos, não podemos ser observadores completamente imparciais e desapegados. Também temos que participar de muitos dos eventos e processos que estamos observando e tentando entender. Através da participação, podemos aprender como e por que os nativos consideram esses eventos significativos e podemos ver como eles são organizados e conduzidos.

Como exemplo de observação participante, deixe-me descrever alguns aspectos de minha pesquisa etnográfica no Kwando Kubango, uma vasta província no sul leste de Angola, e na província do Zaire do Norte de Angola. Durante minha estada de 7 anos na Jamba em 1966-67, observei e participei da vida dos Nganguela em muitas ocasiões, mesmos as mais delicadas dos mahamba. Dei uma ajuda em tempos de fome, juntando as aldeias que não tinham charrua para lavrar e recuperando as antigas formas de colaboração que existiam na cultura nganguela. Participei nas sementeiras de massango e nassambala e na preparação do tchimbombo. Durante uma cerimônia de enterro, foi submetido por um ancião a um ritual apotropaico purificando os meus pés no fogo. Entrei na tumba da aldeia de Sakandingo e observei como as pessoas embrulham o cadáver, e como a vida não morre com a experiência do decesso, pois até os mortos são capazes de sorrir. Acompanhei os Bakongo de Mbanza Kongo em Songololo e Kimpese quando fugiram na guerra de 1999. Observei como eles lidavam com estranhos e às vezes me oferecia para ajudar quando surgiam problemas.

Em Likuwa, aprendi a pescar com Paulo, um meu amigo cubano preso que trabalhava na oficina da DGLOG, trabalhei com os bois em Kanga para recolher o milho necessário  com camponeses locais. Em Mbanza Kongo construí um centro para crianças abandonadas na rua, e por adolescentes ndoki possuídos pelo feitiço. Todas aquelas crianças precisavam de acompanhamento especializado fora da aldeia num centro de acolhimento que aprontamos juntamente a Giorgio Zulianello. Percorri longas distancias em várias ocasiões ao longo do rio Mbridge na Serra de Canda, bebi maluvu, lungwila, ndoka, kissangwa e os !Kung me ofereceram vingundu, para celebrar novos nascimentos, circumcisõs e casamentos onde fui dei meu nome a charás  e o meu apelido a uma menina abandonada que mais tarde no ritual do alembamento apresentei como parte materna. Muitos antropólogos tiveram experiências semelhantes. A humanidade comum do estudioso e do objeto de seu estudo, do etnógrafo e da comunidade na qual ele faz sua pesquisa, torna a observação participante uma experiência inevitável e entusiasmante.

Conversa, entrevista E TABELAS DE ENTREVISTA

Participar da vida local significa que os etnógrafos estão constantemente conversando com as pessoas e fazendo perguntas. À medida que seu conhecimento da língua e da cultura local aumenta, eles entendem algo ir! mais. Existem vários níveis para aprender o idioma no campo. Primeiro, há a fase de nomeação - pedir nomes sobre nomes dos objetos ao nosso redor com caderneta na mão para apontar. Então, somos capazes de fazer perguntas mais complexas e entender as respostas. Começamos então a entender conversas simples entre dois Bakongo. Se nossa prática de linguagem for bem o suficiente, podemos até começar a entender discussões públicas animadas e conversas ritmadas por provérbios entretidas pelos velhos que são autênticos docentes nesta universidade popular onde quem tem sorte de entrar sai com enormes conhecimentos.

Uma técnica de colecta de dados que usei em Kindeje  envolveu um mais velho que tinha recolhido dois preciso cadernos cheios de provérbios e dei-me conta da preciosidade da cultura oral, esta técnica etnográfica que inclui sentar-se a mesa entrevistar, escutar, escrever. Em 1996, no trabalho de campo em Lufu gar na RDC eu tentei preencher os nomes de 660 Bakongo refugiados na missão de Songololo conheci o precioso trabalho pére Roger, Dimuke. Entrei em Kwilo Ngongo com uma Yamaha XT,  participei em Matadi juntamente ao abbè Ali a celebrações inesquecíveis.

Com os resultados passamos a ter um censo e informações básicas sobre a aldeia. Anotamos o nome, a idade e o sexo de cada membro da família. Compilamos dados sobre tipo de família, suas origens, religião, empregos actuais e anteriores, renda, despesas, nutrição, posses de terra e muitos outros itens apontando tudo nas nossas 26 agendas cheias de preciosos dados.

Embora estivéssemos realizando uma análise, nossa abordagem diferia da pesquisa usada sistematicamente por sociólogos e outros cientistas sociais que trabalham em grandes nações industrializadas. Essa pesquisa inclui amostragem (escolha de um grupo de estudo pequeno e administrável a partir de uma população maior) e colectando dados pessoais. Não apenas selecionamos uma amostra parcial da população total, mas também tentamos entrevistar todos os domicílios da comunidade onde estávamos conduzindo o estudo (ou seja, para obter uma amostra completa). Usamos mais tabelas de entrevista do que questionários. Com o roteiro de entrevista, o etnógrafo conversa face a face com as pessoas, faz perguntas e transcreve as respostas.

Os procedimentos do questionário tendem a ser mais indiretos e impessoais; muitas vezes acontece que é mesmo entrevistando que se preenche o formulário.

Nosso objetivo de obter uma amostra total nos permitiu conhecer quase todas as pessoas da aldeia e nos ajudou a construir um relacionamento. Nas décadas seguintes, o povo da Serra de Kanga ainda discutia acaloradamente o quanto nos interessávamos por eles, em visitar suas casas e fazer-lhes perguntas juntamente aos alunos do terceiro e quarto ano de antropologia da UAN. Estávamos em total contraste com abordagens etnocentricas que consideravam o povo muito pobre e atrasado para ser levado a sério.

Como outras pesquisas, no entanto, nossa tabela de entrevistas colectou muitas informações comparáveis. Também nos deu a base para estimar factores e excepções na vida da aldeia. Nossos formulários incluíam uma lista de perguntas feitas a todos. De qualquer forma, durante uma entrevista, muitas vezes surge um novo tópico que pode ser retomado mais cedo ou mais tarde.

Seguimos essas diretrizes em muitas dimensões da vida na aldeia. Os Velhos de Kongo dia Mpeveleka, por exemplo, tornaram-se a informante-chave de que precisávamos quando com os estudantes buscávamos informações detalhadas sobre o alembamento praticado antigamente. Em Kanga no Kwando Kubango fui iniciado à praticas terapêuticas usando as ervas e raizes da floresta. Nestes lugares voltamos regularmente várias vezes para estudar, apreender e possuir estes preciosos conhecimentos. É assim que Kaunu e Campolongo preferiam ser curados por mim sem ir noutros quimbandas.

Assim, nossos formulários de entrevista nos forneceram uma estrutura que nos direcionou, mas não nos limitou como pesquisadores. Mas ele fez nossa etnografia quantitativa e qualitativa ao mesmo tempo. A parte quantitativa baseou-se na informação recolhida e posteriormente analisada estatisticamente. A dimensão qualitativa originou-se de nossas perguntas, discussões sem objetivo definido, pausas para fofocas e trabalho com nossos informantes privilegiados.

O método genealógico

Como todas as pessoas comuns, muitos de nós aprendemos sobre nossos ancestrais e parentes traçando nossas genealogias. Hoje em dia vários programas de computador nos permitem traçar nossa 'árvore genealógica' e os graus de parentesco. O método genealógico é uma técnica etnográfica bem delineada. Os primeiros etnógrafos desenvolveram uma série de sinais e símbolos para lidar com parentesco, descendência e casamento. A genealogia é um bloco de construção óbvio na organização de sociedades não industrializadas, onde as pessoas trabalham todos os dias com seus parentes. Os antropólogos precisam colectar dados genealógicos para entender as relações sociais atuais e poder reconstruir sua história. Em muitas sociedades não industrializadas, os laços de sangue formam a base da vida social. Os antropólogos também chamam esse tipo de cultura de sociedades baseadas na linhagem (kanda). Nessas sociedades, os membros são todos parentes entre si e passam a maior parte do tempo com seus parentes, os filhos passam bom tempo com seu Ngudi a nkazi (tio materno). Regras de comportamento relacionadas a parentescos particulares são básicas para a vida diária (Van Wing, 1938). O casamento também é crucial na organização de sociedades não industrializadas, pois o casamento estratégico entre aldeias, linhagens e clãs cria alianças políticas.

Informantes privilegiados

Cada comunidade apresenta pessoas que por sua, experiência, talento ou prática podem trazer de volta as informações mais completas ou úteis sobre aspectos particulares da vida. Essas pessoas são conhecidas como informantes privilegiados, também conhecidos como informantes-chave. Em Kwanza, a Aldeia de Dalton passei muito tempo com um mais velho chamado Sabão que era particularmente conhecedor da história do povo. Mais para lá na aldeia de Tiva o velho Radio, parente do Sabão, tinha mais informações sobre o assunto. A Sumi o velho Mungamuni sobreviveu em muitas guerras mas morreu em Mbanza Kongo com uma doença que muitos interpretaram como castigo. Em Nkoko, outro velho Nzusi Kyassuka teria sido fuzilado se não interviesse para protege-lo. O Lundaya me ajudou por anos na Serra de Kanda. O Mestre Indo juntou-se a mim no caminho de masseke e na serra de Butu e contou-me detalhes ricos sobre as tradições orais dos Bakongo.

Histórias de vida

Nas sociedades não industrializadas, assim como em nossa pequena cidade, as personalidades, interesses e habilidades individuais variam. Alguns nativos parecem se interessar mais pelo trabalho etnográfico e ajudar mais, são mais interessantes e gentis do que outras pessoas. Os antropólogos desenvolvem suas preferências no campo, assim como fazemos em casa. Muitas vezes, quando encontramos alguém extraordinariamente interessante, colectamos sua história de vida. Esta coleção de experiências de vida fornece um retrato cultural mais íntimo e pessoal que não seria possível de outra maneira. Histórias de vida, que podem ser gravadas em mídia de áudio ou vídeo para futura revisão e análise, revelam como pessoas específicas percebem, reagem e contribuem para as mudanças que impactam suas vidas. Tais gravações podem mostrar as diferenças que existem dentro de uma comunidade, pois o foco está em como diferentes pessoas interpretam e lidam com os mesmos problemas. Muitos etnógrafos incluem a coleta de histórias de vida como uma parte importante de sua estratégia de pesquisa.

Abordagem ética e émica

Um dos objetivos da etnografia é revelar visões, crenças e percepções locais, que podem ser comparadas com as próprias observações e conclusões do etnógrafo. No campo, os etnógrafos costumam combinar duas estratégias de pesquisa: êmica (voltada para o local) e ética (voltada para o cientista). Esses termos, derivados da antropologia de Morgan, foram aplicados à etnografia por diversos antropólogos. Marvin Harris (1968/2001) divulgou os seguintes significados dos termos. Uma abordagem émica investiga como as pessoas locais pensam. Como eles percebem e categorizam o mundo? Quais são suas regras de comportamento? O que isso significava para eles? Como eles imaginam e explicam as coisas? Usando a perspectiva êmica, o etnógrafo busca o 'ponto de vista local', baseando-se em como as pessoas locais explicam as coisas e dizem se algo é mais ou menos significativo. O termo insider refere-se aos indivíduos que o etnógrafo deve conhecer no campo, as pessoas que lhe ensinam sobre sua cultura, que oferecem sua perspectiva êmica.

A abordagem ética desloca a lente das categorias, expressões, explicações e interpretações locais para as do antropólogo. A abordagem ética reconhece que os membros de uma cultura muitas vezes investem demais no que estão fazendo para interpretar imparcialmente sua própria cultura. Operando eticamente, o etnógrafo enfatiza o que o observador percebe e considera importante. Como um cientista treinado, o etnógrafo deve trazer um ponto de vista objetivo e abrangente para o estudo de outras culturas. Claro, o etnógrafo, como qualquer outro cientista, é um ser humano dotado de preconceitos culturais que impedem a completa objetividade. Como em outras ciências, o treinamento adequado pode reduzir, mas não eliminar completamente, os preconceitos do observador. Mas os antropólogos extraem experiência para poder comparar os comportamentos das pessoas em diferentes sociedades.

Os etnógrafos geralmente combinam êmica com estratégia ética em suas pesquisas de campo. Expressões, percepções, categorias e opiniões locais ajudam os etnógrafos a entender como as culturas funcionam. Além disso, as crenças locais são interessantes e de grande valor em si mesmas. Além disso, muitas vezes as populações locais não admitem, ou mesmo não reconhecem, certas causas e consequências do seu comportamento. Isso é verdade tanto para os habitantes do mundo ocidental e para os povos de outras sociedades. Para descrever e interpretar uma cultura, os etnógrafos devem estar cientes dos preconceitos que decorrem de sua própria cultura, bem como das pessoas que estão estudando.

O antropólogo polonês Bronislaw Malinowski (1884-1942), que passou a maior parte de sua vida profissional na Inglaterra, costuma ser considerado o pai da etnografia. Como a maioria dos antropólogos de seu tempo, Malinowski originou a etnografia de resgate, pensando que o trabalho do etnógrafo era estudar e registrar a diversidade cultural ameaçada pela ocidentalização (ver também Boas 1940/1966). Os primeiros relatos etnográficos (etnografias), como o clássico de Malinowski Argonautas do Pacífico Ocidental (1922-1961), eram semelhantes aos relatos dos primeiros viajantes e exploradores ao descrever a descoberta do autor de lugares e povos desconhecidos. No entanto, os propósitos científicos das etnografias as colocaram fora dos textos de exploradores e entusiastas.

Mais recentemente, o estilo que dominou as etnografias 'clássicas' passou a ser caracterizado como realismo etnográfico. O objetivo do autor era apresentar um relato preciso, objetivo e científico de um modo de vida diferente, escrito por alguém que o conheceu em primeira mão. Esse conhecimento veio da imersão em uma língua e cultura estrangeiras. Os etnógrafos derivaram sua autoridade – tanto como cientistas quanto como “nativos” ou “outras” vozes – de sua própria experiência de pesquisa.

As etnografias de Malinowski foram baseadas na crença de que diferentes aspectos da cultura são conectados e intimamente unidos. Partindo da descrição de uma expedição marítima às Ilhas Trobriand, a etnógrafa segue as conexões entre esse ponto de acesso à cultura e outras esferas, como a magia, a religião, os mitos, o parentesco e o comércio. Em comparação com o trabalho de Malinowski, as etnografias de hoje tendem a ser menos inclusivas e holísticas, concentrando-se em tópicos específicos, como parentesco ou religião.

Segundo Malinowski, uma das tarefas primordiais do etnógrafo é 'apreender o ponto de vista do nativo, sua relação com a vida, perceber qual é sua visão de mundo' (1922/1961; p. 25, grifo de Malinowski ). Esta é uma boa expressão da necessidade de adotar uma perspectiva êmica, como mencionado anteriormente. Desde a década de 1970, a antropologia interpretativa assumiu a responsabilidade de descrever e interpretar o que é significativo para os nativos. Antropólogos interpretativos como Clifford Geertz (1973) veem as culturas como textos significativos que os nativos estão constantemente 'lendo' e os etnógrafos devem decifrar. De acordo com Geertz , os antropólogos podem escolher qualquer coisa que os interesse dentro de uma cultura, preencher os detalhes e processá-los para informar seus leitores sobre os significados dessa cultura. Os significados são transmitidos por formas simbólicas públicas, incluindo palavras, rituais e costumes.

Uma tendência presente nos escritos etnográficos desde a década de 1980 tem sido questionar os objetivos, métodos e estilos tradicionais, incluindo o realismo etnográfico e a etnografia de resgate (Clifford 1982,1988; Marcus e Cushman 1982). Marcus e Fischer argumentam que a experimentação na escrita etnográfica é necessária porque todos os povos e culturas já foram 'descobertos' e agora precisam ser 'redescobertos... em circunstâncias históricas mutáveis' (1986 , p. 24).

Em geral, os antropólogos experimentais veem as etnografias tanto como obras de arte quanto como obras de ciência. Os textos etnográficos podem ser vistos como criações literárias nas quais o etnógrafo, como mediador, transmite informações dos 'nativos' aos leitores. Algumas etnografias experimentais são 'dialógicas', ou seja, apresentam a etnografia como um diálogo entre o antropólogo e um ou mais informantes locais (por exemplo, Behar 1993 , Dwyer 1982). Essas obras enfocam as formas pelas quais os etnógrafos e, conseqüentemente, seus leitores, se comunicam com outras culturas. No entanto, algumas dessas etnografias foram criticadas por gastar muito tempo falando sobre o antropólogo e muito pouco tempo descrevendo os nativos e sua cultura.

A etnografia dialógica é um gênero que faz parte de uma categoria experimental mais ampla - a etnografia reflexiva (Davies 1999 ). Nesse caso, o etnógrafo insere seus sentimentos e reações ao campo diretamente no texto. Estratégias experimentais de escrita emergem em relatos reflexivos. O etnógrafo pode adotar algumas das regras do romance, incluindo narração em primeira pessoa, conversa, diálogo e humor. Etnografias experimentais, usando novos métodos para mostrar como é ser samoano ou brasileiro, podem oferecer ao leitor uma compreensão mais rica e complexa da experiência humana.

Relacionada à etnografia de resgate estava a ideia do presente etnográfico - usada para se referir ao período anterior à ocidentalização, quando a 'verdadeira' cultura nativa estava florescendo. Essa noção muitas vezes dá às etnografias clássicas uma qualidade irreal atemporal. Fornecendo a única nota dissonante nesse quadro idealizado estão os comentários ocasionais do autor sobre comerciantes e missionários, sugerindo que, na realidade, os nativos já faziam parte do sistema mundial. Os antropólogos agora reconhecem que o presente etnográfico é uma construção bastante irreal. As culturas sempre estiveram em contato - e sempre mudaram - ao longo de sua história (Boas 1940-1966). A maioria das culturas nativas já havia tido pelo menos um encontro com estrangeiros antes que os antropólogos se cruzassem com eles. A maioria deles já havia sido incorporada de alguma forma a um sistema colonial ou estado-nação.

Nas etnografias contemporâneas percebemos que as culturas estão em constante mudança e que um relato etnográfico se refere apenas a um determinado momento. Uma tendência atual na etnografia é focar nas maneiras pelas quais as ideias culturais servem a interesses políticos e econômicos. Outra tendência é descrever como diferentes 'nativos' específicos participam de processos históricos, políticos e econômicos mais amplos (Shostak 1981).

Etnografia ORIENTADA PARA PROBLEMAS

Vemos então uma tendência de abandono de relatos holísticos em direção a etnografias mais 'orientadas para o problema'. Embora os antropólogos estejam interessados ​​no contexto completo do comportamento humano, é impossível estudar tudo, e o trabalho de campo geralmente faz perguntas específicas. Hoje a maioria dos etnógrafos chega a campo com um problema específico para investigar e coletar informações em variáveis ​​consideradas relevantes em relação a esse problema. As respostas da população local não são a única fonte de dados. Os antropólogos também coletam informações sobre fatores como densidade populacional, qualidade ambiental, clima, geografia física, dieta e uso da terra. Às vezes, isso envolve medição direta de chuva, temperatura, campos, produção, dieta ou uso do clima (Bailey 1990 ; Johnson 1978). Isso significa que muitas vezes nos pegamos consultando arquivos estatais.

As informações de interesse dos etnógrafos não se limitam ao que as pessoas locais podem fazer e fazem. Em um mundo cada vez mais interconectado e complexo, os nativos carecem de conhecimento sobre muitos fatores que afetam suas vidas. Nossos conselheiros locais podem ser tão enganados quanto nós pelo poder de centros regionais, nacionais ou internacionais.

Pesquisa longitudinal

A geografia agora limita menos os antropólogos do que no passado, quando podia levar meses até chegar ao local do trabalho de campo e as visitas de retorno eram raras. Novos sistemas de transporte permitem aos antropólogos ampliar o escopo de suas pesquisas e retornar ao campo repetidamente. Os relatórios etnográficos agora podem incluir dados de dois ou mais campos. A pesquisa longitudinal é o estudo de longo prazo de uma comunidade, região, sociedade, cultura ou outra unidade de pesquisa, geralmente baseada em visitas repetidas. Um exemplo desse tipo de pesquisa é o estudo longitudinal do distrito de Gwembe, na Zâmbia (Figura 4.2). Este estudo, organizado em 1956 como um projeto longitudinal por Elizabeth Colson e Thayer Scudder, continua com Colson, Scudder e seus parceiros de várias nacionalidades. Assim, como costuma acontecer com a pesquisa longitudinal, o estudo de Gwembe também mostra a pesquisa em equipe - ou seja, pesquisa coordenada por vários etnógrafos. O projeto de pesquisa de Gwembe é tanto longitudinal (ou seja, cobrindo vários períodos) quanto multisituado (ou seja, considerando vários locais de pesquisa) (Colson e Scudder 1975; Scudder e Colson 1980). Quatro aldeias em diferentes áreas foram acompanhadas por cinquenta anos. Visitas periódicas à aldeia fornecem dados básicos sobre população, economia, parentesco e comportamento religioso. As pessoas pesquisadas que se mudaram são rastreadas e entrevistadas para ver como suas vidas se comportam em comparação com aquelas que permaneceram na aldeia.

Diferentes questões de pesquisa surgiram enquanto, ao mesmo tempo, dados básicos sobre comunidades e indivíduos continuam sendo coletados. O primeiro foco do estudo foi o impacto de uma grande barragem hidrelétrica, que submeteu a população de Gwembe a mudanças forçadas. A barragem também levou à construção de estradas e outras atividades que aproximaram o povo Gwembe do resto da Zâmbia (Colson 1971; Scudder 1982; Scudder e Habarad 1991).

Mais tarde, a educação tornou-se o foco da pesquisa. Scudder e Colson (1980) examinaram como a educação ajudou a acessar novas oportunidades, bem como aumentou a diversidade social entre pessoas com diferentes níveis de educação. Um terceiro estudo maior examinou as mudanças nos fatores de fabricação de cerveja e bebida, incluindo o crescimento do alcoolismo, em relação a mudanças nos mercados, transporte e exposição aos valores da cidade (Colson & Scudder, 1998).

Pesquisa de grupo

Graças a um financiamento obtido pelo Departamento de Antropologia (DA) da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN), os estudantes do quarto ano do curso de Antropologia tiveram a possibilidade de viver uma profunda experiência de full immersion no campo. Depois ter visitado os sítos arqueológicos e os lugares históricos e memoriais mais significativos da antiga capital do Reino do Kongo, os participantes decidiram entrar no domínio específico da actividade antropológica. Tiveram a possibilidade de experimentar a capacidade de enfrentar situações novas e falar com pessoas desconhecidas, na recolha de dados durante o trabalho de campo realizado nas aldeias ao longo da estrada que conduz à comuna fronteiriça de Luvo. Com o presente trabalho, queremos publicar os resultados e as reflexões conclusivas dessa experiência à luz das intuições que os grande mestres de antropologia nos fornecem.

Este artigo nasce da experiência da viagem de trabalho de campo realizada em Mbanza Kongo durante o mês de Setembro 2016 com os estudantes do 4.º ano do curso de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN). Após 4 anos de estudo teórico era necessário um tempo dedicado ao trabalho de campo; constatamos que há grandes dificuldades na pesquisa quando nos limitamos simplesmente a acumular dados teóricos que não são comprovados no terreno. Se se quer entender o que é uma ciência, não se deve considerar unicamente as suas teorias e descobertas (ou aquilo que afirmam os seus defensores): deve-se, igualmente, observar as estratégias implementadas por aqueles que a praticam. Na antropologia, ou pelo menos na antropologia social, aqueles que praticam a ciência antropológica fazem etnografia. E é na compreensão do que é a etnografia, ou mais precisamente o que a etnografia faz, que se pode começar a entender o fundamento da análise antropológica como forma de conhecimento (GEERTZ 1987: 41-42).

2 Embora todos os antropólogos estejam de acordo em afirmar que qualquer estudo sério sobre a sociedade deve fazer referência a um ou outro trabalho empírico, nem todos concordam acerca da relevância e da relação que o trabalho de campo tem para a sucessiva síntese teórico-antropológica. Ao longo da história da antropologia, sempre se observou coexistência de experiência de investigação no campo e da interpretação de vários textos provenientes doutras fontes, como sejam os textos produzidos por viajantes, missionários, soldados, administradores, escritores, historiadores, antropólogos, etc. A análise abrange o estudo do material visual, como filmes, documentários, fotografias, desenhos, etc. A recolha de dados é facilitada por meio de questionários e da evidência directa de dados recolhidos através de informantes.

3 Embora a tradição atribua a Bronislaw Malinowski o papel de fundador da etnografia moderna, na realidade, é ela o resultado de um processo muito mais complexo que se desenvolve ao longo do século XIX até às primeiras décadas do século XX: isso permite ver que ele não foi o primeiro antropólogo a teorizar a pesquisa de campo, nem o primeiro a produzir um trabalho etnográfico a partir de uma longa permanência no campo comunicando com populações autóctones na língua nativa. Ele próprio o reconhece na sua introdução aos Argonautas quando cita além de Seligman, Bastian, Tylor, Morgan e os psicólogos alemães (cf. MALINOWSKI 1966: 7).

4 As razões pelas quais os antropólogos começaram a dedicar-se pessoalmente e de forma sistemática, à recolha de dados etnográficos são diferentes: antes de tudo a necessidade de verificar pessoalmente os dados da reflexão teórica proposta por outros autores dentro da antropologia académica. Nisto foram ajudados pelo facto que podiam ter acesso mais rápida e facilmente nas regiões onde os países coloniais impuseram o seu domínio.

5 O trabalho de campo de Malinowski nas Ilhas Trobriand assumiu na tradição antropológica o papel de experiência arquetípica, e recebeu o tratamento de mito considerável, mas, depois da publicação dos seus diários cheios de expressões etnocêntricas, os antropólogos se interrogaram sobre a veracidade dos seus métodos, factos que levaram a crítica de Clifford Geertz:

6 «Bronislaw Malinowski, em A Diary in the Strict Sense of the Term, fez com que os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos antropólogos parecessem bastante inverossímeis. O mito do pesquisador de campo semicamaleão, que se adapta perfeitamente ao ambiente exótico que o rodeia, um milagre ambulante em empatia, tacto, paciência e cosmopolitismo, foi de um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, um dos maiores responsáveis pela sua criação» (GEERTZ 2004: 85).

7 De acordo com esta visão Malinowski tornou-se o protótipo do antropólogo, que representava o ideal profissional fundado sobre o conhecimento directo e pessoal do objecto de estudo e sobre a dupla característica de pesquisador e de teórico. Qual seria, segundo Malinowski, a primeira característica da pesquisa etnográfica? «Em qualquer ramo do conhecimento, os resultados de uma pesquisa científica devem ser apresentados de maneira totalmente neutra e honesta» (MALINOWSKI 1997: 18). E nisto estamos todos de acordo, pois mesmo a ler a literatura antropológica que diz respeito à Angola, quantos erros se encontram por falta de objectividade! Em seguida, pois é importante recriar as circunstâncias onde se efectuou a pesquisa, uma vez que devemos fornecer a «descrição das condições sob as quais as observações foram efectuadas e as informações recolhidas» (idem). É o eterno problema do contexto, pois, sem se contextualizar uma pesquisa criamos uma realidade pendurada no ar. Mas quando é que uma fonte etnográfica possui valor científico? Quando é fruto de observações directas efectuadas no campo e as informações recolhidas espelham as declarações, as interpretações e o modo de pensar de quem vive em loco. Muitas vezes, acontece que a partir das primeiras informações colhidas até a elaboração dos resultados finais apresentados na reflexão antropológica ocorre uma enorme distância que elimina considerações importantes acerca das condições sobre as quais a pesquisa foi realizada. Essa distância deve ser eliminada. Na experiência que aqui relatamos, a sorte foi que uma vez acabado o trabalho de campo nas aldeias de Sumpi, Ndembo, Nkoko, Lula, Kibenga e Luvu, tivemos — ainda que sendo considerado pouco —, um dia inteiro destinado à elaboração do material recolhido no campo, e pudemos observar a grande dificuldade dos nossos estudantes em apontar quais eram afinal os dados mais importantes recolhidos tendentes a permitir uma reflexão antropológica. Alguns repetiram estereótipos acumulados durante o curso mas sem uma efectiva aplicação do rico material recolhido.

Estranhamento

8 A primeira dificuldade que o antropólogo se depara é aquela de encontrar-se imprevistamente fora do seu mundo, longe do seus amigos, a lidar com pessoas que possuem mentalidade e comportamento diferentes. É o impacto dos contactos com a alteridade cultural. O antropólogo experimenta um momento de estranhamento, pois ninguém o guia, ninguém ajuda, ninguém o aconselha, e dessa forma se predispõe para sentimentos de fracasso, desânimo e solidão. A mesma situação pude observar nos estudantes que pesquisaram em Luvu: o caótico mundo do mercado fronteiriço criou dificuldades para lidar e possibilitar conversar com as pessoas que vendiam e estas, perante as primeiras perguntas, perceberam que estes que queriam informações detalhadas acerca dos artigos que vendiam podiam ser espiões ou polícias, portanto negavam-se a prestar informações. Como se sabe, a fronteira é geralmente bem vigiada e ocorreu que naquele dia o mercado se realizava do outro lado da fronteira, na República Democrática do Congo, e o vaivém dos vendedores era limitado; mas foi esta mesma razão que levou uma aluna a atravessar a fronteira para entrar no mercado da RDC e efectuar a sua pesquisa. No entanto, esse facto passou despercebido até o momento desta voltar a Angola e o seu regresso acabou por se tornar uma aventura rocambolesca.

9 Portanto, o etnógrafo nos primeiros momentos deve romper o gelo e não deve se deixar levar pelas primeiras impressões; o contacto com pessoas simples deve colocar o pesquisador à vontade, favorecendo uma certa inserção. Em1988, durante uma viagem efectuada a pé pelas aldeias do Kwandu-Kuvangu, as pessoas permaneciam indecisas em contactar-me, pois, suspeitavam que eu fosse um dos muitos soldados que ali passavam. Quem rompeu o gelo foram os animais da aldeia, que se aproximaram interessados pela minha presença; o contacto destes foi interpretado pelos populares como um bom sinal, e então, logo a seguir, todos vieram cumprimentar-me e interessaram-se por mim, com o intuito de tentar perceber as razões dessa viagem e porque eu estava ali. Neste contexto, Malinowski sugere que a fim de se evitar malentendidos, o etnógrafo deve evitar perguntas embaraçosas e concentrar a sua atenção na cultura material:

«Primeiro, para começar com temas que não levantassem suspeitas, comecei a "fazer" tecnologia. Alguns nativos estavam ocupados a fabricar um ou outro objecto. Era fácil observá-los e obter os nomes das ferramentas e mesmo algumas expressões técnicas sobre os procedimentos, mas logo se esgotou o assunto» (MALINOWSKI 1997: 20).

10 Os estudantes, na viagem de pesquisa que realizamos, apesar de serem todos angolanos, poucos percebiam a língua local, o kikongo, mas a distância linguística não prejudicou a abordagem antropológica e quase todos conseguiram entrar empaticamente no mundo dos Bakongo; algumas alunas foram objecto de galantarias e outras receberam até propostas de casamento; alguns mais-velhos prometeram-lhes terras caso estas estivessem dispostas a fixar-se aí. Possivelmente esteve a seu favor o facto de virem da capital e de serem todos angolanos, ou a simplicidade com a qual se apresentaram, enfim, foi uma abordagem óptima sem posições etnocêntricas e o que mais admira, tudo se realizou em pouco tempo. A minha experiência é que, por vezes, somente depois de alguns anos o antropólogo é aceite. Uma observação de Malinowski nos ajuda a reflectir acerca disso:

«Existe uma diferença enorme entre uma escapadela esporádica na companhia dos nativos e um contacto real com eles. O que significa isto? Da parte do etnógrafo, significa que a sua vida na aldeia — no início é uma aventura muitas vezes estranha e desagradável, outras vezes intensamente interessante — assume depressa um curso natural em harmonia progressiva com aquilo que o rodeia» (MALINOWSKI 1997: 22)

11Trata-se, então, de estabelecer uma estreita relação entre os conceitos fornecidos pela teoria antropológica e a prática etnográfica, entendida como descrição de uma realidade percebida através da full immersion na cultura, no intuito de obter uma visão coerente da sociedade e da mesma cultura abordada holísticamente. Não nos esqueçamos que a finalidade é compreender o ponto de vista de quem vive no campo, no esforço de entreter relacionamentos que permitam de colher o ritmo de vida, a visão do mundo dos nativos. Pois, uma das finalidades que anima o antropólogo é oferecer à comunidade científica um texto fruto das suas observações e experiências no campo. O já conhecido método da observação participante, na sua forma clássica, consiste numa pesquisa realizada por um único pesquisador e baseada na suposta neutralidade do observador participante. O estudioso passa um longo período de tempo de permanência no campo, para facilitar o estudo da língua que praticará participando nas actividades diárias da população. A experiência imediata, empática e subjectiva do etnógrafo baseada numa abordagem positivista permitir-lhe-á uma profunda compreensão das estruturas culturais e sociais e dos significados elaborados através da observação participante. Tudo isso baseia-se no pressuposto de que há factos sociais a serem descobertos: e poderão ser descobertos somente respeitando a sensibilidade dos que lá vivem, considerando importantes, para o estudo do contexto social, o conjunto de normas e valores que animam os nativos.

 

Deixar que os factos sociais falem por si mesmo

12A análise dos factos sociais constitui um momento importante da actividade intelectual do antropólogo. Os factos sociais falam por si quando a abordagem é feita com desapego e a análise é conduzida com base numa lógica indutiva (TENTORI 1969: 29). E Malinowski acrescenta que «não precisamos confiar tanto em reinterpretações indiretas ou simbólicas dos factos, mas podemos com plena confiança deixar os fatos falarem por si mesmos» (MALINOWSKI 1973: 103-104).

13Através da observação participante nasce um modo de escrever específico: a monografia onde os resultados são expostos através dum modelo linguístico-narrativo, elaborado para obter uma compreensão holística da totalidade socio-cultural. O modelo é elaborado através duma forma de narrativa impessoal, ligada a uma suposta objectividade e neutralidade do autor que de facto participa no contexto socio-cultural mas mantém-se destacado dos fenómenos que estuda.

«O autor é, simultaneamente, o seu próprio cronista e historiador; e embora as suas fontes sejam, sem dúvida, facilmente acessíveis, elas são também altamente dúbias e complexas; não estão materializadas em documentos fixos e concretos, mas sim no comportamento e na memória dos homens vivos» (MALINOWSKI 1997:19).

14O grande defeito deste modelo etnográfico emerge na fase de reproduzir a imagem da sociedade «tradicional» que, contrariamente ao dinamismo de Georges Balandier, se manifesta desprovido de mudança e de história. A preocupação de ser objectivos na descrição das culturas produziu, a nível de objecto da antropologia, uma imagem estática das culturas seguindo moldes e parâmetros individuais, fechados numa atmosfera atemporal. O entusiasmo que nasce pela empatia com o fenómeno que se manifesta gera, num primeiro momento, a alegria por ter colhido o profundo significado de algo que não se conhecia. Os estudantes que acompanhamos a Mbanza Kongo voltaram do trabalho de campo nas aldeias de Sumpi, Ndembo, Nkoko, Lula entusiastas; o entusiasmo nasceu pela impressão de ter tido uma verdadeira full immersion no campo, auxiliada pela colaboração activa prestada pelos informantes. Dificilmente põe-se o problema das mudanças que se operam ao redor do fenómeno cultural. Acha-se que seja tal como se manifesta. Quando chega o momento de apresentar os dados colhidos na pesquisa, e este momento chegou no dia seguinte para os estudantes do 4.º ano: todos lutavam para obter antes de tudo um efeito de persuasão no público que os escutava. Um relatório etnográfico não é a elaboração dum elenco daquilo que se viu e se ouviu, mas é uma complexa operação de escrita, que tem como finalidade a produção duma representação do fenómeno segundo princípios antropológicos.

«Agora, nenhum desses autores — como Bronislaw Malinowski, Gregory Bateson, Marcel Griaule ou Edward Evans-Pritchard (só para citar alguns) — pensou ingenuamente que os "factos" poderiam falar "por si", mas cada um deles orquestrou mais ou menos habilmente o seu próprio material, introduzindo, como sabemos, elementos que conferiram e deram originalidade e autoridade à sua pesquisa de campo (talvez apenas tentando dar a impressão — de acordo com um ideal "científico" — que os eventos poderiam realmente falar "por si"). Deve-se, contudo, admitir que os autores não perderam tempo em reflectir sobre sua própria experiência etnográfica e se o fizeram foi quando compilaram as páginas de alguns diários mais ou menos secretos» (FABIETTI-MATERA 1998: 16).

15A maneira como antropólogo leva a cabo o trabalho de campo, embora seja o fulcro da disciplina antropológica, e apesar de respeitar os princípios da literatura antropológica, tem sido mantida fora do campo de elaboração analítica e teórica pois o que interessa é o dado etnográfico colhido e não o item de estratégias e tácticas colocadas no acto para obter o dado. A este respeito o antropólogo Clifford Geertz acrescenta:

«[...] o que um verdadeiro etnógrafo deve apropriadamente fazer é isso: ir ara lá, e voltar com informações sobre a maneira como as pessoas vivem lá, e tornar essas informações acessíveis para a comunidade científica de forma a serem aproveitadas, sem vaguear nas bibliotecas meditando sobre questões literárias, interesse excessivo que, na prática, geralmente significa não ter qualquer interesse nos métodos de construção dos textos etnográficos e aparece como uma espécie de encerramento pouco saudável em si mesmos, e na melhor das hipóteses um desperdício de tempo» (GEERTZ 1990: 9)

16Após ter apurado os mais diferentes métodos, ter escolhido aqueles que ad hoc se aplicassem à situação específica de Mbanza Kongo, ultrapassados os sentimentos ambivalentes, dúvidas e dificuldades, tensões e intuições, a astúcia e estratégias, amizades e conflitos que provinham de literaturas paralelas, informais, nos encontramos imprevistamente face a face com os Bakongo. A perspectiva da observação participante de Malinowski era o método real e adequado, mas podia ser visto como uma mera descrição de uma estratégia que na realidade visava recolher dados mas manipulava o informante servindo-se da sua amizade e simpatia para chegar cinicamente a obter informações necessárias à compreensão dos dados etnográficos.

17Lembro que chegado o momento de recolher os estudantes (eles compunham um grupo de seis) distribuídos pelas aldeias de Mbanza Kongo, havia quem voltava com mandioca, outros com cana-de-açúcar, outras com sacos de «makeso» e exibiam alegres o sinal do acolhimento que tiveram, outros beberam maluvu e comeram selelés. Na verdade, a experiência subjectiva do etnógrafo, com base na participação e na empatia, é tão importante no processo de investigação que, por vezes, é totalmente excluída na descrição etnográfica. Esta ocultação de subjectividade é baseada numa concepção de que a observação deve ser «realista» derivada das ciências naturais e da confiança incondicional à linguagem analógica que permite a representação do mundo, mas se isto era válido na velha antropologia hoje é inadmissível.

Pilares da pesquisa etnográfica

18Portanto, colocando de parte a subjectividade, o antropólogo constitui um dos pilares sobre os quais construir o mito duma identificação empática perfeita com o objecto de estudo, mito que a publicação em 1967 dos diários de Malinowski tem, em definitivo, deconstruído com a abertura de uma discussão frutífera dentro da comunidade científica. Baseada nos quatro pilares que delimitam o perímetro das suas possibilidades descritivas, a Antropologia é considerada uma ciência que está assente sob os princípios seguintes: a oralidade, a atemporalidade, a alteridade e a dimensão inconsciente dos grandes fenómenos abordados no estudo (FABIETTI-MATERA 1998: 18). No caso específico de Mbanza Kongo, a oralidade é o ambiente onde a cultura africana é veiculada durante a permanência nas aldeias e onde os estudantes recolheram contos e mitos de fundação, que estimularam o pesquisador para entrar no ambiente da tradição oral. Um conto que provenha de um fundo mítico ganha autoridade por si só; continuamente rebuscado, é relembrado e celebrado como constituinte identitário de um grupo. Com efeito, tal como Michel de Certeau lembra, a

«[...] cultura popular, determinada por seu oposto, é oral, mas a oralidade se torna outra coisa a partir do momento em que o escrito não é mais o "símbolo" mas a "cifra" e instrumento de um "fazer a história", nas mãos de uma categoria social» (CERTEAU 1982 : 185)

19Esta categoria social pode ser identificada com os velhos que são, ao mesmo tempo, conservadores e artífices da tradição, que lembram, criam e celebram para enfrentar um presente que necessita de ser enquadrado dentro dos moldes socio-culturais da cultura local. No nosso caso, Nzuzi Kyasawuka, o chefe Maurício Kabungulu Ne Nkanga e o regedor Manuel Raimundo. Narrando as repartições de terra, as subidas à montanha Nimi Ntumbe, e os feitos gloriosos da linhagem Ne Nkanga, celebraram, numa atmosfera de atemporalidade, as maravilhas ou avatares da expansão e ocupação bakongo daquela área. Trata-se de mitos de fundação que constituem o cerne da cultura kongo e desenvolvem um corte estrutural sob forma histórica de uma crónica revestida de atemporalidade: cada episódio modula a estranheza com um elemento cosmológico particular (montanha, lagoa, peixe, pássaro, homem, etc.), acrescentando o seu efeito próprio à série na qual a diferença é, ao mesmo tempo, o princípio gerador e o objecto em que acreditar. Estes mitos de fundação, enfim, têm o poder de introduzir e apresentar a sociedade bakongo (CERTEAU 1982: 218).

20Eis aqui, portanto, um outro elemento básico da nova antropologia: a atemporalidade. Estas áreas de investigação são caracterizadas por uma particular atenção às regiões de fronteira, onde são permitidas meta-culturas (lingala) e mestiçagens de elementos que tornam o híbrido aceite numa abordagem centrada no estudo da alteridade e delimitada a um lugar circunscrito do campo (Nkoko). O estudo das áreas fronteiriças e as situações de contacto culturais, coadjuvadas pela troca de bens comerciais no mercado de Luvo, têm ajudado a despertar a antropologia do sono metodológico concentrando-a nas alteridades culturais.

«Este trabalho é, de facto, uma hermenêutica do outro. Transporta para o novo mundo o aparelho exegético [...] que, nascido de uma relação necessária com a alteridade [...], foi aplicado, [...] a muitas outras totalidades ainda estrangeiras. Uma vez mais extrai efeitos de sentido da relação com o outro. A etnologia irá tomar-se uma forma de exegese que não deixou [...] com o que articular sua identidade numa relação com o passado ou o futuro, com o estranho ou a natureza» (CERTEAU 1982: 221)

21O método do estudo detalhado de uma limitada área começa a revelar as suas limitações quando se tenta usá-lo em contextos geográficos e sociais maiores e mais complexos a partir da aldeia (Sumpi, Ndembo, Nkoko, Lula) até a vilas e cidades tais como Mbanza Kongo, Luanda, considerando os grandes reinos da África Ocidental (Reino do Kongo) e, mais geralmente, as áreas de contacto culturais (Luvu).

22A alteridade, outro grande pilar da antropologia, obriga que sejam estudados bairros extremamente heterogéneos nas origens étnicas e na renda económica dos seus habitantes, e torna-os factores que produzem identidade e sentido de pertença, não tanto através do simples facto das pessoas residirem lá, mas porque se auto-percebem e são percebidas pelos outros como seus habitantes. É a dialéctica da construção identitária que relaciona a identidade à alteridade.

Desmitizar

23Abordamos o problema relacionado com a aplicação à realidade urbana de Mbanza Kongo: um método elaborado para o estudo do conceito de «área urbana natural», definida como a unidade funcional básica do espaço urbano, que pode ser analisada de acordo com o método antropológico da de-construção. Porque deconstruir? Face à continua celebração gloriosa e à invenção de dados culturais que nunca existiram, o antropólogo se destaca da celebração gloriosa do reino do Kongo, que transforma o mito em realidade ideológica.

24Uma entidade que não coincide com a direcção na circunscrição administrativa, mas tende a identificar áreas arqueológicas da cidade de Mbanza Kongo, às quais são atribuídas informalmente nomes e características específicas, por assim dizer pertencentes ao fundo cultural celebrativo do reino do Kongo, para além de qualquer planeamento institucional.

25A natureza urbana da função duma cidade seria a de satisfazer as necessidades dos indivíduos dando-lhes um ambiente de vida que é relativamente homogéneo de acordo de critérios como etnia, status económico e status social, como factores de coesão interna e condições para relacionar os cidadãos de Mbanza Kongo com os aldeãos moradores das suas periferias.

26Na verdade, a área urbana de Mbanza Kongo é caracterizada por uma quantidade elevada de estruturas administrativas que se sobrepõem na mesma malha da cidade, e que são caracterizadas por estilos de vida, identidades e cosmovisões, entre eles muito diferentes que demarcam e destacam indivíduos pertencentes à mesma linhagem mas que vivem nas aldeias limítrofes (Kunga Paza, Mbanza Mazina). Há, portanto, uma fractura entre a descrição das características externas e superficialmente observadas da tal chamada área natural urbana e a visão do mundo dos seus habitantes, vista a recomposição urbana determinada por fenómenos de «refoulement». São dinámicas territoriais que se tornaram dinámicas culturais, que incidiram na representação da cidade de Mbanza Kongo, que antigamente era caracterizada pela visibilidade e rigidez das suas fronteiras internas e pela coincidência entre sinais externos e razões sociais. Agora, enquanto análise do fenómeno urbano na sua totalidade e na sua especificidade não pode ser determinante em virtude da artificialidade com que as comunidades urbanas, tais como Kwimba, Martins Kidito, Álvaro Buta, Vwandembo, estão isoladas no seu contexto peri-urbano mais amplo e interferem na lógica da agregação urbana.

O campo

27Decidimos, portanto, recuar no caminho de Luvu, pois estávamos hospedados no bairro Mfumu. Em pouco tempo tivemos que redefinir o campo, sem ter em conta das limitações decorrentes de uma aplicação acrítica do termo «campo» como uma área geograficamente definida, um conceito que deveríamos ter revisto em relação ao contexto cultural no qual éramos projectados para descrever e interpretar.

28A antiga lei colonial de repovoamento forçou as populações que viviam em ajuntamentos residenciais nas terras baixas a recuar para as grandes vias de comunicação, no sentido de permitir o controlo populacional após o início da luta armada de libertação nacional; essa concentração em áreas administrativas que infelizmente não eram tão férteis tal como eram as zonas das baixas, provocou uma mudança nas relações entre os grupos originando naturalmente fenómenos de conflito social; este componente deveria entrar igualmente na análise antropológica da populações moradoras das zonas limítrofes da cidade.

29Os fenómenos migratórios, mesmo aqueles que se verificaram no passado por causa das guerras, deviam merecer uma maior atenção quanto à delimitação dos critérios de campo, ou seja, na definição dos procedimentos analíticos-metodológicos que particularizam historicamente e circunscrevem o espaço da pesquisa. Portanto, na nossa ida a Mbanza Kongo, era indispensável estudar as áreas urbanas e as situações de contacto cultural entre esta e as suas periferias, com vista definir metodologicamente o contexto da pesquisa. Os limites da nossa análise estavam relacionados à realização de pesquisas etnográfica com pessoas que pertenciam a uma organização social e económica complexa, composta por um conjunto de vastas regiões multilingues e multi-étnicas, unidas entre si por fenómenos históricos que mais tarde definiram o reino do Kongo. Portanto, para estudar a nova forma de vida social era necessário reformular o conceito de delimitação do campo: nesta nova perspectiva, o campo não existe como uma entidade pré-constituída, mas como uma realidade que passo a passo deve ser «construída». Escolhemos, portanto, afastarmo-nos da confusão da vida da própria cidade de Mbanza Kongo, as suas complexas lógicas de agregação e composição, a grande confusão de idas e vindas de motoqueiros e viaturas, para limitarmo-nos às áreas em que, como antropólogos, seríamos capazes de observar e recolher dados significativos e quantitativamente gerenciáveis.

Multilocalidade

30Enfrentamos um dos problemas típicos da abordagem tradicional, ou seja, o da relação entre informantes e antropólogo. Trata-se dum problema de máxima importância, pois, nos envolvíamos nos grupos estudados com os objectivos que a investigação e a metodologia pretendia utilizar. Os objectivos diziam respeito aos grandes tópicos do estudo antropológico: cultura material, economia, organização social, sistemas de parentesco, etc., etc. Apuramos que nas áreas delimitadas a mobilidade dos indivíduos e dos grupos era um factor que mesmo na história tinha provocado um certo nomadismo sem ter em conta dos novos fluxos migratórios: estes factos exigiam o desenvolvimento de novas ferramentas e métodos de pesquisa. A este ponto devia ser necessário abordar o método da etnografia multilocal, pois os Exikongo de Mbanza Kongo estavam contemporaneamente presentes em Luanda, Nzeto, Matadi, Kinshasa, Paris e/ou Londres.

31Nas histórias de vida que recolhemos nas visitas às aldeias aplicamos uma «poética» que dava espaço a objectos intangíveis, metáforas, contos, histórias de vida, mitos de origem e conflitos, provocados pelo «nomadismo contemporâneo» entre os Bakongo. Se as práticas etnográficas contemporâneas não envolvem mais de um lugar onde efectuar o trabalho de campo e limitam-se unicamente a um só lugar, mesmo a conotação de «exótico» tradicionalmente associado com o trabalho do antropólogo irá cair. Agora, muitos antropólogos efectuam a sua investigação em «família» de contextos, e se anteriormente definir a residência do antropólogo constituía um problema agora, no mundo global, os contextos etnográficos e os campos são redefinidos em sentido multilocal e o antropólogo vive de contextos mediáticos e socio-culturais líquidos (BAUMAN 2000).

Interpretar

32Esta nova forma de antropologia exige de nós uma reflexão específica e inclusive a capacidade do pesquisador de distanciar-se do seu tema, para criar e manter um universo social onde os estudos são reconfigurados numa dimensão atemporal do trabalho etnográfico. O trabalho etnográfico deve contemplar pausas curtas, frequentes, por vezes prolongadas durante um período de vários anos.

33Para entender a complexidade dos contextos contemporâneos, não podemos basear-nos apenas na observação directa e na recolha de testemunhos orais ou de informantes mais ou menos conscientes. Por isso mesmo, a análise das fontes tradicionais deve ser combinada com a análise doutros «textos» e estudos: desde o Jornal de Angola à TPA, até os documentos administrativos do Governo da Província do Zaire, da análise de discursos políticos até ao dos materiais folclóricos e visuais, etc., tudo conta hoje como fonte inestimável e recurso que deve ser utilizado pelo pesquisador.

«A etnografia é um trabalho de imagem [...]. Se quer discutir, e muitas vezes violentamente, com um argumento [...], ou seja alegando o facto que escrevendo etnografia trata-se de histórias, criam-se as imagens, confeccionam-se pacotes de simbolismos e desdobram-se tópicos» (GEERTZ 1990: 149-150).

34Neste cada vez mais complexo quadro, o pesquisador é obrigado a apresentar as suas escolhas teóricas para examinar e esclarecer os caminhos metodológicos, para reflectir sobre as complexas relações que animam os dados colectados, com as suas experiências e interpretações. A necessidade de interpretar realidades simbólicas e actividades sociais devia partir do significado que estas tinham para nós que escutávamos, mas também do complexo mítico-celebrativo daqueles que nos contavam. A nossa abordagem consistiu em assumir a posição de ver as coisas do ponto de vista dos habitantes de Mbanza Kongo. Era neste contexto que devíamos descobrir o significado da existência das pessoas estudadas, e do seu contexto social.

35Um estudioso não pode «interpretar» a alteridade cultural a partir das suas categorias ou deixando-se levar pelo fluxo dos seus sentimentos, emoções, ou pelo menos não pode ser este o único procedimento para dar ordem e sentido à experiência. O antropólogo deve reservar as suas noções e interpretações dos factos sociais e da sua existência para concentrar-se nas experiências das outras pessoas a partir do interior, como parte da sua concepção, captar o significado das formas simbólicas e factos culturais observáveis.

O trabalho de campo

36A abordagem antropológica que procuramos de realizar consistiu em conviver e interagir com as pessoas que pretendíamos compreender. Trata-se de uma abordagem que se coloca numa substancial diferença e se distancia dos métodos anteriormente adoptados por sociólogos e políticos. O trabalho de campo em Mbanza Kongo não pretendia apenas transcrever ou descrever a realidade etnográfica, mas sim dialogar e estabelecer uma ponte entre o ponto de vista de Ambrósio Miezi, Mungamuni, Soleil, Nzusi Kyasawuka, o chefe Ambrósio Neves, o regedor Manuel Raimundo que nos informavam (abordagem émica) na tentativa de aplicar os princípios antropológicos que estudamos ao longo do curso (posto de vista ético) (SCHAFFHAUSER 2010: 257-269).

Os primeiros passos

37Há dois tipos de antropologias que foram praticadas no passado: a primeira é a dita «antropologia de gabinete»; trata-se, com efeito, da antropologia praticada por Edward Burnett Tylor ou por James Georges Frazer, dois autores que produziram obras famosas, tais como Primitive Culture (TYLOR 1871) e O Ramo de Ouro (FRAZER 1920), e isso muito antes dos pesquisadores se decidirem pela observação directa no terreno, com vista a efectuar recolhas de informação acerca das populações em causa; os «antropólogos de gabinete» (antropologia de mesa), tal como eram designados, tinham descoberto um dos fundamentos da tarefa antropológica localizada na forma holística de compreender o comportamento das diferentes sociedades do mundo e ver em que maneira poderiam ser comparadas. O segundo tipo era designado por «antropologia da varanda». Neste segunda fase o antropólogo fazia o esforço de sair do gabinete e ir ao encontro dos fenómenos culturais que estudava no próprio lugar onde eles se davam. O antropólogo permanecia sentado, a espera dos informantes nativos que eram alinhados em fila fora da casa que o hospedava. A casa pertencia, geralmente, a um oficial da administração colonial ou a um comerciante. Os informantes aguardavam pacientemente que fossem convocados para recolha de dados etnográficos. Quem acabou com esta tradição foi Bronislaw Malinowski que revolucionou a antropologia com o trabalho que realizou nas Ilhas Trobriand, no início do século XX. Ele rompe com a tradição dos antropólogos de gabinete ou de varanda e consolida o método etnográfico. Sendo a cultura um aparato instrumental para tratar os problemas concretos e enfrentá-los no contexto onde aparecem, o estudioso devia estudá-los holisticamente no campo. Tratava-se de actividades, atitudes, objectos que diziam respeito a formas importantes e vitais inseridas em instituições sociais tais como a família, a aldeia, a etnia e os centros de poder. Era necessário analisar processos culturais que eram observados e estudados como sistemas culturais:

«Há algum esquema universal, aplicável a todas as culturas humanas, que possa ser útil como um guia para o trabalho de campo e como um sistema de coordenadas no estudo comparativo, seja ele de caracter histórico, evolutivo ou que simplesmente almeje chegar s leis gerais de correspondência?» (DURHAM 1986: 170)

38O grande Malinowski (1975) defendia que para a realização de um bom trabalho de campo o antropólogo precisava adoptar os seguintes critérios: a) ter um contato directo e mais estreito com os nativos; b) evitar o contacto com os colonos; c) acompanhar continuamente a vida da etnia que se estuda para a apreender os fenómenos quotidianos, a partir da observação directa. Apesar de Malinowski não mencionar o termo observação participante, a noção apresentada acima, bem como outras considerações em seu estudo levam-nos a crer que este método esteve sempre presente no seu trabalho.

«Qual é então a magia desse etnógrafo, pela qual ele é capaz de evocar o verdadeiro espírito dos nativos, a verdadeira imagem da vida tribal? Como de costume, o sucesso só pode ser obtido por uma paciente e aplicação sistemática de uma série de regras de senso comum e conhecidos princípios científicos, e não pela descoberta de qualquer atalho maravilhoso levando aos resultados desejados sem esforço ou dificuldade. Os princípios do método podem ser agrupados em três rubricas principais. Em primeiro lugar, naturalmente, o aluno deve possuir verdadeiros objectivos científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia moderna. Em segundo lugar, ele deve colocar em boas condições de trabalho, ou seja, em geral, viver sem outros homens brancos, mesmo entre os nativos. Finalmente, ele tem que aplicar uma série de métodos especiais de recolha, manipulação e fixação dos dados. Algumas palavras devem ser ditas sobre estas três bases de trabalho de campo, começando com o segundo como o mais elementar» (MALINOWSKI 1966: 6).

39Tratava-se, portanto, de apreender o ponto de vista dos Bakongos, a sua relação com a vida e compreender a visão do seu mundo, estas são as regras básicas que compõem o modelo ideal da etnografia. Historicamente, ficou comprovado que, anterior ao trabalho de campo realizado nas ilhas Trobriand, W.H. Rivers já havia explicitado muito dos pressupostos de Malinowski. No entanto, foram as pesquisas de Malinowski que ganharam visibilidade modificando a prática antropológica, centrada agora no ponto de vista do nativo e justamente por isso Rivers passou quase despercebido.

40Na década de 1960, profetizava-se o desaparecimento da pesquisa de campo por recusa do «indígena» que, entretanto, abandonara o status de «selvagem» que lhe fora atribuído e transformara no cidadão de nações independentes. No entanto, Lévi-Strauss enfatiza que o principal objecto da etnografia eram as diferenças culturais e essas dificilmente desaparecem. Outros questionamentos metodológicos se apresentam na reflexão sobre a interpretação do que se passa lá, para o que se diz aqui, relacionam-se principalmente aos questionamentos abordados por Geertz. «É no acto de escrever que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica». Clifford Geertz separa duas etapas na investigação, o estar lá e o estar aqui. O olhar e o ouvir fazem parte da etapa do «estar lá», e o acto de escrever relaciona-se ao «estar aqui». Trata-se de uma contextualização da cultura nativa, um processo de interpretação da cultura, balizada pelas categorias básicas ou pelos conceitos da disciplina. De qualquer forma, uma coisa parece clara: mais e mais anos de pesquisa conduziram os antropólogos, especialmente no contexto norte-americano, a praticar o trabalho de campo por conta própria na sociedade onde pesquisavam. Pode-se, em parte, atribuir isso ao aumento de interesse pela dimensão social da antropologia científica. Seria mesmo de acrescentar que alguns especialistas chegam a afirmar que o único trabalho eficaz que o antropólogo poderia levar adiante é exercido dentro da sua própria sociedade. Em seguida, passa a partir de uma posição para outra extrema.

Como trabalhar no campo

41É a partir do diálogo entre o conhecimento nativo e o conhecimento do pesquisador que se compõe o trabalho do antropólogo e é através da simetria desses conhecimentos que se constrói a etnografia:

«As impressões de campo não são, portanto, apenas recebidas pelo intelecto, mas exercem um verdadeiro impacto na personalidade total do etnógrafo, fazendo com que diferentes culturas se comuniquem na experiência singular de uma única pessoa [...]. Aqui o encontro de um sujeito [o antropólogo] com um Outro origina uma primeira tentativa de transcrever as impressões e os memorandum numa série de apontamentos. Trata-se dos "apontamentos de campo", o conjunto gráfico é formado por genealogias incompletas, frases mancas, nomes, traços, ideias, hipóteses, croquis de casas ou mapas de caminhos a percorrer» (FABIETTI 1998: 21) .

42O risco sempre presente é desnaturalizar a cultura do outro, é inventar a cultura para si. A antropologia favorece, em determinadas pessoas e em determinados contextos, uma reestruturação da visão do mundo. Na antropologia, «a pesquisa de campo é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve. [...] O lugar da pesquisa de campo no fazer da antropologia não se limita a uma técnica de colecta de dados, mas é um procedimento com implicações teóricas especificas». Se é verdade que técnica e teoria não podem ser desvinculadas, no caso da antropologia a pesquisa etnográfica é o meio pelo qual a teoria antropológica se desenvolve e se constitui como teoria, quando desafia os conceitos estabelecidos pelo confronto entre (1) a teoria e o sentido comum que o pesquisador leva para o campo; e (2) a observação entre os nativos que estuda. Não há como propriamente ensinar a fazer pesquisa de campo, pois apesar de existir um modelo «ideal», assim como algumas rotinas comuns, não há uma norma ou regra que sirva como baliza para a pesquisa de campo de todos.

A pesquisa etnográfica

43Não são apenas as diferentes culturas que constituem o objecto da antropologia, mas também os complexos e diferentes mundos. A antropologia é um dos lugares para pensar a diferença ou para explicar racionalmente a diferença de mentalidades dos outros. Ela valoriza essa diferença, na tentativa de apreendê-la sem suprimi-la, pensá-la em si mesma, como ponto de apoio para impulsionar o pensamento, não como objecto a ser simplesmente explicado ou descrito. A experiência de campo nos leva não só a reconsiderar a noção mas, principalmente, a repensar a antropologia e colocá-la em suspensão com o método da observação participante.

«Apesar de tudo o que lhe pode ter sido dito sobre o trabalho de campo, apesar de todas as descrições de outras culturas e outras experiências de campo que ele pode ter lido, o antropólogo antes de chegar ao seio das pessoas que ele vai estudar é capaz de se sentir solitário e indefeso. Ele pode ou não saber algo sobre as pessoas com as quais trabalha, ele pode até mesmo ser capaz de falar a sua língua, mas o facto é que, como qualquer pessoa, ele deve começar do zero. É enquanto pessoa e então como participante, que começa a sua descoberta da cultura sujeita. Ele já experimentou a "cultura" como uma abstração acadêmica, uma coisa supostamente tão diferente e multifacetada, mas monolítica, que é difícil de entender ou visualizar. Mas enquanto ele não puder "observar" essa cultura nos seus particulares, tudo aquilo não lhe é de grande ajuda» (WAGNER 1975: 14).

44Os antropólogos parecem combinar dois géneros de abordagens no campo. A primeira, com o trabalho dos informantes em que o antropólogo interroga e observa, dando a ideia de ser um nativo que vive do trabalho etnográfico e não o contrário. A segunda abordagem, é a observação de eventos cuja participação se baseia unicamente pelo facto de estar lá. Num primeiro momento, os nativos podem recusar-se de interagir; todavia, com percepções e sensações que são distintas das deles, experimenta-se de forma indirecta as sensações, percepções e pensamentos do outro, já que somos impulsionados pelas mesmas forças que levam o nativo a se identificar com o outro. Para efectuar uma abordagem precisa, sobretudo, estar num lugar acessível onde a comunicação involuntária e desprovida de intencionalidade cria uma situação de comunicação interactiva.

45Há uma espécie de «incompreensão entusiasta», onde é possível admirar sem imitar, sendo «possível relatar subjectividades alheias sem recorrer a pretensas capacidades extraordinárias para obliterar o próprio ego e para entender os sentimentos de outros seres humanos» (GEERTZ 1997: 106). Dito de outra maneira, a compreensão dos informantes é independente do facto que o antropólogo tenha a sensação de estar sendo aceite (ibidem). Apesar de Geertz afirmar e não defender a falta de sensibilidade, as suas considerações soam de maneira pouco sensível para compreender as subjectividades do nativo.

46A aproximação pesquisador/informante através da experiência da comparticipação contribui significativamente para o trabalho de campo, pois não é o tempo no campo que vai influenciar a relação do antropólogo com o nativo, tal como Malinowski defendeu. O pesquisador sempre será um intruso na comunidade e, por isso, obterá algumas informações, porém, outras poderá ser quase impossível obtê-las. Entrar em sintonia, que é completamente diferente de colocar-se dentro da pele do outro, é uma forma de compreender o trabalho de campo através da experiência que permite diminuir a distância entre o pesquisador e o interlocutor. Desta forma, o método de observação participante parece estar ultrapassada pelas dinâmicas interactivas, que dão origem a uma antropologia dialógica.

Mbanza Kongo, de 7 a 11 de Setembro de 2016

47Partimos eufóricos de Luanda no dia 7 de Setembro, constituindo no total uma comitiva de 35 pessoas; depois de algumas horas de euforia passadas por se ter furado um pneu, chegamos a Mbanza Kongo, sede da província do Zaire, onde permanecemos até ao dia 11 de Setembro 2016. Estávamos todos animados e curiosos por realizar esta visita de estudo e trabalho de campo ao Município de Mbanza Kongo. Este programa foi incentivado pela Vice-Decana para a área de investigação, Dra. Luzia Milagre, que acumula as suas funções com a chefia do Departamento de Antropologia, e enquadrava-se no âmbito do plano curricular do curso de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto (UAN). O projecto envolveu a participação de docentes e discentes do referido curso. Mas quais eram as causas fundamentais dessa viagem? Era necessário partir para outro lugar para pesquisar e estudar a cultura? A este respeito ensina o Fabietti:

«Isto porque os antropólogos devem apresentar, antes a si mesmos e depois aos outros, o objecto dos seus estudos através de uma linguagem — e ainda mais através de trabalho escrito — construindo uma "representação" que é determinada pelo quadro epistemológico, normativo, estilístico e académico que lhe permite reconhecer como "válido" o resultado da sua pesquisa» (FABIETTI-MATERA 1999: 121). 

48O projecto que aqui expômos refere-se a um itinerário de formação caracterizado pelo uso, no processo de aprendizagem, de centros culturais arqueológicos, históricos, museológico da cultura tradicional kongo abordada em todos os seus aspectos na tentativa de desenvolver as competências dos estudantes do 4.º ano de antropologia da FCS-UAN envolvidos na aplicação de teorias e métodos antropológicos no campo.

49Por outras palavras, era necessário que o itinerário de formação fluísse num ambiente de trabalho específico com o objectivo de pôr em acto uma certa habilidade profissional e aumentar a capacidade de inserção numa cultura angolana diferente.

Os objectivos da visita

50O objectivo fundamental era procurar oferecer aos estudantes um terreno fecundo, que lhes permitisse aplicar as técnicas e métodos de recolha de dados estudados e apreendidos pelas disciplinas do curso de Antropologia durante os cursos académicos. A escolha de Mbanza Kongo inseriu-se nas iniciativas tendentes a apoiar o projecto da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Cultura e a Ciência (Unesco), ao procurar valorizar esta cidade angolana como um bem cultural pertencente à humanidade; o outro objectivo visava o cumprimento (embora de forma tímida) do slogan, intitulado «Antropologia fora da academia», que há muito se vem propagando nos corredores do nosso Departamento de Antropologia.

51Procuramos, portanto, interagir e fruir dos bens culturais demográficos e antropológicos que encontramos no ambiente de Mbanza Kongo, incentivando a responsabilização perante os conteúdos adquiridos e visando a oportunidade de aplicar e exercer directamente técnicas de abordagem sobre a alteridade cultural.

52Isto foi possível na visita aos lugares arqueológicos e ao museu do palácio real, que ocupou toda a actividade do primeiro dia. Há relatos de factos e acontecimentos que evidenciam a mentalidade mítico-celebrativa dos Bakongo, face aos quais é necessário aplicar uma sábia deconstrução para obter o dado cultural íntegro.

Participação na pesquisa

53A participação na investigação científica e o levantamento de dados foi possível através da colaboração activa dos estudantes e isso permitiu a busca de novos conhecimentos com relação aos âmbitos de pesquisa delimitados e atribuídos a cada grupo, nomeadamente: actividade e produção, estrutura organizacional e parentesco, cultura material, organização económica e comércio, alteridade cultural e convivência. Essa investigação assumiu muitas formas: empírica no campo (observacional), analítica dos dados culturais (antropologia aplicada), experimental na colecta e na descrição (etnográfica), teórica e aplicada (na síntese antropológica).

54Essa investigação visava a habilitar o aluno no contexto antropológico, através de: estudo e organização bibliográfica, colaboração no projecto de pesquisa, colecta e processamento de dados etnográficos, discussão em grupo sobre os resultados, preparação, apresentação e discussão de processamento e avaliação dos resultados no local de pesquisa para produzir novos conhecimentos e activar os processos de mudança cultural e operacional.

A abordagem antropológica

55O impacto com a nova alteridade cultural bakongo favoreceu o alcance do objectivo pretendido, tendente a melhorar a qualidade da colecta dos dados, a análise e os resultados dos processos aplicados através de uma sistemática revisão das actividades de pesquisa de campo divididas nas seguintes fases: formação para o campo e atribuição de actividades específicas aos seis (6) grupos formados; identificação das áreas de pesquisa e questões a serem formuladas no questionário; identificação do conjunto de informações a serem colectadas por cada grupo, que fossem relevantes para a análise antropológica; a identificação dos informantes de referência e o seu consequente relacionamento; a análise dos dados recolhidos para os efeitos de uma comparação documentada e os padrões referenciados; definição das estratégias antropológicas apropriadas para melhorar a pesquisa.

56Como referências no terreno da pesquisa, contamos com a valiosa colaboração de dois antropólogos da Oxford University, que de há um tempo a esta parte têm estado a efectuar pesquisas na província do Zaire. Tratam-se do Professor Ramon Sarró, Associate Professor in the Social Anthropology of Africa, e sua esposa, que introduziram os estudantes nas tarefas do trabalho de campo, aconselhando-os e instruindo-os oportunamente. Os objectivos da pesquisa e os elementos marcantes da experiência realizada diziam respeito a aquisição de competências técnicas: como operar no campo; passando pelas competências profissionais: como elaborar cientificamente os dados etnográficos; pelas formas organizacionais: como estruturar uma pesquisa científica; e, finalmente, pelos modos comportamentais: como observar e como participar. Os níveis adquiridos foram: uma experiência básica de campo e o aperfeiçoamento de técnicas antropológicas.

Como conseguimos apreender

57Foi importante e decisiva a inserção no contexto socio-cultural kongo numa postura individual e grupal de pesquisa, que envolveu as seguintes actividades: observação etnográfica directa, colecta de dados, execução de técnicas operativa e a elaboração dos resultados de pesquisa.

58O tempo dedicado a cada actividade ocupou dois dias de viagem (ida e volta a Mbanza Kongo, dias 7 e 11 de Setembro), e foi subdividido em três dias de trabalhos de campo (8-10 de Setembro), meio dia de visita aos lugares históricos-arqueológicos (dias 8 e 10 de Setembro), meio dia de instrução sobre as técnicas operativas no campo (tarde do dia 8 de Setembro), um dia de trabalho do campo nas aldeias (9 de Setembro), meio dia de análise dos dados (10 de Setembro), meio dia de exposição da síntese antropológica elaborada com a presença qualificada dos professores e dos operadores sociais do Centro de Acolhimento (tarde do dia 10 de Setembro).

59A equipa dos responsáveis científicos do trabalho de campo era formada por três docentes. Foi marcante o relacionamento entre os cinco membros componentes e os seis grupos que se reuniram para verificar e avaliar as exposições dos seis secretários de cada um dos grupos, que forneceram uma relação conclusiva do trabalho de campo.

O contexto histórico-etnográfico: os Bakongo

60A etnia Bakongo acha-se fixada a Norte e a Noroeste da República de Angola, até os limites fronteiriços com a República Democrática do Congo. Os confins deste território se situam entre o 4° paralelo latitude Sul e o meridiano 11° longitude Leste.

61O centro urbano mais importante é a cidade de Mbanza Kongo. Os limites culturais são fixados pelo rio Zaire a Norte, pela Ponta do Padrão até Noki que segue uma linha convencional que acompanha o 5° paralelo de latitude Sul até ao rio Kwango. Este limite constitui uma espécie de fronteira com as etnias Manyanga, Nsundi, Mbata, Lula, Nkanu e, mais a Leste, com os Bayaka da região de Kasongo-Lunda (SWARTENBROECKX 1973: VI). A região é atravessada pelo rio Zaire, nome que acaba por ser utilizado para designar todo o território. Este rio nasce fora de Angola na República Democrática do Congo, percorre 150 Km e desagua no Oceano Atlântico nas proximidades de Soyo. Deste topónimo regional, levou a que após a proclamação da independência de Angola passasse a designar a província do Zaire. Na área também encontramos um outro grande rio, chamado Mbridge, que desagua no Atlântico. Um pouco mais abaixo, essa mesma zona é banhada pelo rio Loje, que desagua no oceano perto de Ambriz. Em geral, pela sua posição entre o 4° e o 18° grau de latitude Sul, a região dos Bakongo apresenta um clima que é comum às faixas equatoriais com baixas pressões; mais a Sul inicia a zona de transição caracterizada por baixas pressões e anti-ciclones tropicais. Por este motivo, muitas vezes, o clima a Norte se apresenta com nuvens e com chuvas em abundância. O terreno é ondulado com depressões nas proximidades dos rios que formam lombas em direcção Norte-Sul.

62No que diz respeito à composição étnica, os principais grupos bakongo são: Muxikongo (habitante do Kongo) da antiga capital do reino do Kongo, ocupam actualmente os municípios de Tomboko, Noki, Kwimba e Mbanza Kongo, Bembe e Lukunga. Os Bazombo (habitantes do Zombo) que possuem como centros de expansão em Makela ma Zombo, Mbanza Zombo e Damba e os Basolongo (habitantes do Solongo) instalados nas antigas cidades na costa atlântica de Soyo, Nzetu e Ambriz. Além destes três grupos mais importantes, encontramos também na região os Nsoso, Suku, Ngenze, Koji, Vili, Bayombe, Woyo, Kakongo e Nsundi (de Cabinda), Bayaka (das regiões de Sakandika e além Benga e Kimbele), os Bapombo (da região de Sanza Pombo e Bwenga) e os Mahungu (cf. FELGAS 1965: 24). Segundo Van Wing (1959: 39-40), pela análise das diversas tradições, pode-se inferir que esta subdivisão étnica seja o resultado da ocupação progressiva e do consequente no território por parte dos Bakongo.

63Tem sido comum pensar-se que, guiados por Nakongo, as primeiras vagas de populações terão atravessado o rio Kwango e ter-se-ão instalado no delta formado pelos rios Kwilu e Tawu. Uma segunda vaga, sempre guiados por Nakongo, terá invadido a região de Mbata até chegar a Mpemba. Estes últimos, subdivididos em diferentes linhagens teria ocupado todo o territorio até chegar a margem esquerda do rio Nzadi a Nkisi para se instalar na região de Mbata. O chefe deles, designado Ntinu, reconhecendo a superioridade de Nakongo teria guiado um grupo numeroso de Bakongo até ocupar o planalto formado pelos rios Mpozo ou Mupozo e Lwezi. O ponto de referência deste grupo era a actual cidade de Mbanza Kongo, designado pelas linhagens que aí se instalaram, Kongo dya Ntotila (Congo do soberano). O grupo que ocupou a fertil região de Mpemba desenvolveu-se de tal forma que as terras cultiváveis não chegavam para todas as linhagens. Segundo uma antiga tradição, a antepassada Mpemba Nzinga propôs que uma parte continuasse sua viagem para a região de Mpemba, enquanto que uma outra poderia ter migrado para dominar outros territórios. O mito de fundação que está na base desta migração diz o seguinte:

«Quando o nosso antepassado Nakongo e a nossa antepassada Ngudi a Nkama se estabeleceram em Mbanza Kongo, os descendentes multiplicaram-se de tal forma que muitos ficaram sem terra para cultivar. Então os mfumu a makanda reuniram-se e se decidiram a visitar a antepassada Mpemba Nzinga. Ela, depois de ter escutado as queixas respondeu-lhes: "de cada linhagem deve sair um chefe com as suas mulheres os seus filhos e outros familiares e partir para dominar outras terras". Nos dias que se seguiram prepararam-se para a viagem. Quando acabaram Mpemba Nzinga comprimentou os seus filhos. Aos integrantes da linhagem Mpangu deu-lhes um cão que lhes indicou o caminho na direcção Este-Nordeste. A proposta foi aceite pelos chefes das linhagens que escolheram dentro da linhagem as famílias que deveriam emigrar. Os Mbamba marcharam na direcção Oeste ocupando os territórios da costa oceânica. Os Bansundi pararam a frente do rio Nzadi e se instalaram na margem direita do rio. Os Bampangu dirigiram-se a Oeste e povoaram as margem do rio Nzadi a Nkisi e, mais tarde, ocuparam a margem direita fundando povoados em Mpangu-Lwando» (VAN WING 1959: 41).

64Segundo Van Wing, este mito seria uma possível explicação da origem das províncias de Mbamba, Mbata, Nsongo, Nsundi e Mpangu. As grandes aldeias que mais tarde se formaram nestas regiões tomaram o nome da antepassada da respectiva linhagem. Os Bampangu fundaram Mbanz’a Mpangu, uma cidade que recebeu o nome da antepassada Mpangu. Este topónimo tinha sido dado em virtude de um ritual chamado Tombola Mwana (levanta a criança), que é celebrado por cada membro dos Bampangu quando nasce uma criança e passou a constituir uma espécie de divisa do grupo, a partir do enunciar do provérbio que ficou como símbolo da fundação dessa linhagem:

Mpangu i luvila lwa nsi.
«Mpangu é a linhagem que fundou a terra»

Etimologia de Mbanza Kongo

65Durante a visita à cidade para perceber o novo ambiente recorremos a entrevistas, visita as estações arqueológicas e ao Museu dos Reis do Kongo e procuramos também fontes bibliográficas que nos permitissem a recolha de mais informações. Mais tarde, no intuito de melhor compreender a alteridade, dedicamos um bom tempo à reflexão e à análise dos dados recolhidos para formular um texto que pudesse ser antropológico.

66Estando a cidade de Mbanza Kongo situada num lugar visível, ou melhor, numa colina aprazível e à vista de todos, eis aqui a principal razão pela qual, como veremos adiante, o termo Mbanza significa literalmente em kikongo «lugar onde se estendem coisas», «lugar colocado acima», «aquilo que está situado no cume da montanha ou colina», portanto, um lugar onde se reúne muita gente: Mbanza cidade do grande Rei. O verbo banzama significa «estender», «espalhar» e demonstra então que esta cidade foi objecto de movimentos. O termo Kongo significa «caçador», nessa mesma língua. Apesar dos diversos sentidos que são atribuídos a esse nome, em geral, Mbânza indica localidade, aldeia ou região que geralmente tem o formato de cidade ou de capital.

«O que significa? Decompõe-se em Mbânza e Kôngo. O primeiro deriva de bânzama e significa cidade, aldeia principal, residência do chefe, cemitério. O verbo bânzama é, por seu lado, verbo de estado de banza, o que quer dizer estar estendido, estar visível, etc. Neste sentido, Duarte Lopez confirma-o quando relata que a cidade principal, Mbânza-Kôngo, também chamada de Nkûmb’a Wungûdi, foi visível apesar de se distanciar. O segundo elemento do nome da capital é Kongo, nome do país. Assim, Mbânza-Kôngo é a capital do Kôngo [...]. Na verdade, como topónimo, Mbânza-Kôngo deve ser portador da sua própria História. Porquê? Só o facto de ser o primeiro e último nome da capital do povo do Kôngo, de um povo diversificado em termo de espaço, leva literalmente a pensar desta maneira. Entre os elementos do mosaico bantu, Kôngo conservou o nome de Mbânza-Kôngo, porque foi a referência desta etnia. Ora, a história deles não começa no actual Mbânza-Kôngo, ou melhor, São Salvador. Pois, Duarte Lopez confirma esse facto quando aprende que a cidade também foi chamada Nkûmb’a Wungûdi. Além disso, e como veremos adiante, a palavra aumenta a credibilidade, ao falar da sua etimologia. Mbânza deriva de bânzama, vânzama ou ainda de yânzakana que significa estender, espalhar, pôr em cima, levantar para cima, pôr no tecto» (BATSIKAMA 2010: 108).

Memória histórica de Mbanza Kongo fixada na tradição oral

67Segundo a tradição oral a antepassada (avó) (nkaka a sina) comum de todos os Bakongo seria Nzinga. Kinzinga seria a primeira das linhagens que deu origem às outras «Nzinga wa Nzinga» Mvila zawonso Nzinga. Em kikongo há um ditado que a este respeito lembra: «Nzinga I nto a makanda mawonso». Uma outra tradição refere que Nzinga filha de Nkuwu, casou com Nimi e deste casamento, nasceu três filhos: dois rapazes Vita a Nimi e Mpanzo a Nimi. Nasceu também uma menina Lukeni lia Nimi. Estes três filhos estariam na base da comunidade ou sociedade kongo. Há uma célebre expressão proverbial que sintetiza esta tradição: makuku matuta malambila Kongo. São três as pedras colocadas no fogareiro que servem para construir o Kongo. Os nomes de Nzinga, Vita a Nimi, Mpanzo a Nimi, e Lukeni deram origem às grandes linhagens (Luvila). A personagem chamada Vita a Nimi, por ter assumido diversas funções é conhecida também como Ne Vunda, Nsaku e Masamba. Foi ele que preparou o caminho para os outros irmãos, pois administrava e negociava: «Nsaku Malele, waleleka sinza ye myongo» (saneou todas as dificuldades). Nsaku ou Masamba, wasamba è kongo aquele que traçou o caminho rumo ao reino do Kongo, Nsi a Kongo.

68O segundo filho, Mpanzu a Nimi era, por natureza, questionador e disputador, audacioso e de uma tenacidade incrível: Mbwila ngo kivumina ngo (agarra o leopardo, não o temo). Mpanzu, era também um excelente agricultor e um hábil cozinheiro. Por isso, foi também conhecido como Mbamba a ngolo ou Mpanzu Kawunga, ou seja perito de minas, pois sabia fabricar e inventar.

69A rapariga Lukeni lwa Nimi, era conhecida também por Vuzi. Era de uma beleza excepcional, intocável: «Kavuzwa Lusala» (não se lhe pode arrancar uma pena) era muito delicada na escolha de alimentos, recusava tudo, preferia apenas a carne. Esta delicadeza inspirada pela beleza lhe valeu o nome de Nkenge a Lukeni lwa Nimi. Ela casou-se e teve doze filhos e assim, o sonho de seus pais se concretizou. Ela se tornou Nsanda wakaya è nata wawuta è nza ye nzenze (a árvore Nsanda estendeu os seus inúmeros ramos e dai nasceu o mundo e os grilos). Desta forma, ela se tornou a mãe de todos Bakongo.

70O fundador da antiga cidade de Mbanza Kongo foi Nimi a Lukeni ou Ntinu Wene, filho de Nimi a Nzima, e ocupou um território marcado por doze nascentes, partilhando-as com as doze (12) famílias fundamentais ou makanda que mais tarde passaram a disputar o poder político através de eleições. Estas doze linhagens são: Kinvuzi, Nsunda a Mpumbu, Kintumba a Mvemba, Kinanga, Kimyala, Kintinu ou Nekongo, Mpanzo a Nkanga, Mvemba a Lukeni, Kinzinga, Nemafuta, Mpanzo a Nimi e Kinzanga a Malunga. A organização social baseava-se no sistema de parentesco matrilinear e portanto toda organização social, política, económica obedecia a esse princípio. À kanda pertencem todos os membros que se consideram descendentes de um antepassado feminino comum. Daí o facto de a terra ser propriedade da kanda, sendo distribuída segundo as linhagens paternas chamadas Lumbu.

As fontes bibliográficas antigas

71Estas doze famílias ou linhagens formaram a capital do antigo reino do Kongo. Durante o período colonial Mbanza Kongo passou a ser designada São Salvador do Congo e isso até 1975. Mas a cidade fora fundada durante o período pré-colonial, antes da chegada dos portugueses e era a capital de uma dinastia federal que governava desde 1483. Com a fundação de Luanda em 1575, Mbanza Kongo torna-se o centro de interesse para os portugueses que dela fazem a capital administrativa e a sede de actividades que iam processar-se por todo o interior e mesmo pelo norte, no reino do Kongo. Este reino, aliás, em guerras civis frequentes por causa da luta pelo poder, acaba por se esfacelar e fica praticamente destruído com a morte do soberano na batalha de Mbwila ou Ambuíla, em 1665 (1981: 3).

72Em face disso, a cidade ficou desprotegida e foi vandalizada, seguindo-se um longo período de lutas de resistência anticoloniais dos séculos XVIII e XIX, sendo sucedidas por guerras civis que eclodiram no século XX. O nome São Salvador do Congo apareceu pela primeira vez com Álvaro II rei do Kongo entre os anos de 1568 e 1587. As fontes antigas nos informam que no dia dedicado a São Tiago padroeiro de Mbanza Kongo, os missionários assistiram a uma parada bélica (sangamento) que representava a guerra feita pelas tropas do rei Afonso Mvemba Nzinga na conquista de Mbanza Kongo. Desta forma os Bakongo celebravam os faustos duma etnia real e representavam a memória das origens. Por isso mesmo, estas consideravam-se superiores às outras etnias.

A decadência

73O missionário Luca de Caltanissetta na sua Relatione descreve a situação de Mbanza Kongo, quando numa viagem de regresso a Kusu Pete (Damba) passando por Mbanza Kongo em 1678, observou que a cidade se encontrava já abandonada e destruída depois do ataque de Pedro Bula III nesse ano. O missionário observou a destruição da capital dos Bakongo e lamenta: «[...] agora tornou-se uma mata de árvores e pastagem para os búfalos» (CALTANISSETTA 1690-1701a: 167). Das plantas e árvores de frutas que dominavam a cidade ele reconheceu goiabeiras, lemba-lemba, limoeiros, prugne, saponetti; pegou em duas plantas para transplantá-las a Kusu e fazer coroas lindíssimas (idem: 168). O abandono da cidade é um dos sinais da decadência do reinado destruído por lutas: «Cada um dos Senhores do Congo querem consertar o Congo a seu modo [...] esta é a mísera e deplorável condição dos senhores do Congo, que todos os grandes senhores do Reino são mortos» (1690-1701a: 197-311).

74Na segunda metade do 1700, quando Frei Raimundo de Dicomano descreve a catedral de Mbanza Kongo, ela estava já completamente arruinada, pois, tinham ficado somente as paredes; na verdade, o seu telhado era de capim e por isso se destruía facilmente; dos outros numerosos edifícios tinham ficado somente destroços cobertos de capim (DICOMANO 1798: 3). Para o Frei Raimundo de Dicomano era difícil aceitar que um rei vivesse assim como todos os outros numa simples cubata de capim.

75No dia 4 de Dezembro de 1779, um numeroso grupo de missionários portugueses desembarcaram em Luanda e depois de uma breve permanência nesta cidade, «doentia pelos muitos calores e falta de chuva», Frei Rafael foi destinado pelo Geral e pelo bispo no Reino do Congo «se determinou viesse eu para o Congo com outros padres também escolhidos por ter vindo logo que chegámos uma embaixada do Rei do Congo pedindo Missionários, e fomos para aquele Reino destinados» (RAPHAEL DE CASTELO DE VIDE 1781: 23).

76Ele foi logo informado acerca do estado de decadência que reinava naquela corte real e na capital Mbanza Kongo: «se admirava a Corte adornada de muitas Igrejas, mas hoje tudo está em terra. Na Corte, sempre havia um Vigário Geral e muitos Padres, hoje não tinha ninguém» (idem, 1781: 27).

77Enfim no dia 30 de Junho de 1782 depois de onze meses de viagem entraram em Mbanza Kongo designada naquele tempo por Bemba. A situação de decadências vem a ser descritas elencando as doze igrejas arruinadas entre as quais aquela de Santo António onde estavam sepultados os reis do Kongo. Nesta Igreja oficiavam os «Padres Barbadinhos Italianos, quase da mesma sorte, e foi a última que as guerras arruinaram com as casas dos Padres, e dos Escravos» (idem, 1781: 130).

Os primeiros etnógrafos

78Uma fonte importante que fornece informações fidedignas acerca da cidade de Mbanza Kongo é Holman Bentley, um missionário inglês que que chega a Mbanza Kongo em 1879, juntamente com a cônjuge, Comber, Crudington e John Hartland. Este mostrou ser um verdadeiro observador, pois descreve as caravanas e as diferentes actividades comerciais ali praticadas, analisa os cantos de acolhimento, as diferentes formas de contratos, os preços e as maneiras de fixá-los e a organização dos mercados. Com a mesma atenção descreve o seu encontro com o rei do Kongo, fornecendo informações particulares muito importantes acerca dos rituais de acolhimento, cerimónias de oferendas e das informações prestadas (BENTLEY 1888: 122-127).

79De Mbanza Kongo enquanto urbe tinham ficado somente alguns sinais do estilo e da dignidade real nas cerimónias da corte e nas relações que esta estabelecia com as linhagens reais de Cabinda e do Loango. O rei Dom Pedro V, que Holman Bentley encontrou, exercitava somente um poder nominal, pois a zona da sua administração extendia-se praticamente até sessenta quilómetros de Mbanza Kongo. Foram os Portugueses que com suas manobras políticas favoreciam a sua impopularidade, concorrendo com isso para a queda do regime. Decaído o reino do Kongo, os Bakongo espalharam-se por Angola e nos dois Congo cultivaram o sonho de reconstituí-lo, mediante uma constante oposição ao sistema colonial, chegando a celebrar, desta forma, a memória histórica de um passado glorioso. Sobre o assunto Balandier escreve: «Alguns dentre eles se agarram ao símbolo para ver se é possível recriar as condições de reconstituir o reino: e torna-se para eles um instrumento de combate politico» (BALANDIER 1963: 42).

Jean Cuvelier

80Representa aquele que deu início, conjuntamente com Jos Van Wing, ao estudo etnográfico dos Bakongo e concentrou a sua actividade na zona confinante com a fronteira angolana, então pertencente à Belgica e povoada por um grupo Bakongo que falavam uma variante kikongo, o kimanyanga (BOCKIE 1993: 3-6). Em 1928 Jean Cuvelier começou a publicar os resultados sobre a história e a cultura kongo numa revista escrita em kikongo: Kukiele. Nessas publicações — que no começo tinham o título de Lusansu — começou a propôr as tradições orais como fontes históricas que permitiam a reconstituição do passado dos Bakongo.

81O seu interesse foi incentivado pelo estudo do manuscripto, Nsosani a Kingudi, pertencente a Mpetelo Boka, um catequista, que em 1912 recolheu os mitos de fundação e as origens das linhagens kongo. Em 1934, Cuvelier baseando-se no manuscripto de Boka publicou o famoso Nkutama a Mvila za Makanda, que nos permite reconstituir alguns traços fundamentais da cultura kongo.

82Alguns autores pretenderam explorar em termos ideológicos os resultados destes estudos; é claro que dada a longa história do messianismo kongo, isso impele qualquer antropólogo a reflectir; não obstante isso, no entanto há sempre alguns elementos que contribuem para uma melhor compreensão da cultura kongo que podemos aproveitar (BATSIKAMA 2011).

83Apesar de todas as tensões divisionistas, pois os dignitários das províncias do reino não queriam mais pagar o mpaku (taixa anual) ao rei, a preocupação fundamental assentava na ideia de manter a unidade (ngwizani ye kintwadi) de todo o reino. Mas não faltavam dificuldades, pois estando perante a questão de taxas exorbitantes alguns preferiram retirar-se: Mu diambu dia mpaku angolo ankaka batina (CUVELIER 1932: 5). Uma outra característica do reino era a sua extensão, e por isso, a intensa mobilidade que mais tarde viria a aumentar as causas das guerras. Um ditado citado por Cuvelier afirma que o que se segue: «Colocamos a cabeça no ducado de Nsundi e esticamos as pernas no ducado de Mbamba», (Nsundi tufila ntu, Mbamba tulambula malu) (CUVELIER 1932: 5).

84Um outro elemento importante é o respeito pelas autoridades, um elemento fundamental passível de ser captado numa série de provérbios. Cito um deles que diz textualmente: «O feixe de ramos de palmeira quando transportado na cabeça, ao bater um com o outro parecem dizer: respeitai-vos uns aos outros» (Ntete a mbasa bevovanga: zita...zita...zitasyana). Acerca disso Cuvelier observa que no ano de 1700 rebentou uma guerra no ducado de Nsundi motivado por uma grave falta de respeito, já que foi atribuído a um cão o nome do duque: Vita dibwidi è kuma bavene kwa mbwa nkumbu à mfumu à Mbanza Nsundi: ne Kiangala (CUVELIER 1932: 5). Um outro elemento característico da sociedade kongo assenta no facto de se rejeitar qualquer forma de individualismo; em apoio dessa tese encontramos um outro provérbio que adverte que um indivíduo sozinho não pode ser considerado uma pessoa mas simplesmente uma sombra: Mosi kininga. Ole muntu. Portanto, há muitos elementos pertencentes à tradição oral que indicam características extremamente importantes e que nos permitem entender o espírito da cultura kongo.

Os Bakongo e a antropologia

85Foi Georges Balandier quem primeiro tratou de reordenar o sistema social dos Bakongo, no quadro da história colonial dos últimos séculos. Pois, ao voltar percorrer as etapas da história da escravatura, observou um handicap demográfico difícil de restabelecer e transformou os relacionamentos dentro desta sociedade, diferenciando-a em dois grupos. Um grupo foi chamado Kongo dya mindele, ou seja aqueles que, comprometidos com os «brancos» tornaram-se comerciantes, assimilando os traços culturais europeus. O outro foi chamado Kongo dya Ngunga e era formado por aqueles que se opunham aos «brancos», declarando-se fiéis à tradição.

86De facto, o antigo reino do Kongo manteve a sua unidade e independência até às invasões jagas (yaka) de 1568, e renasceu das suas cinzas com a ajuda dos Portugueses até 1665, ano em que a realeza foi dizimada na Batalha de Ambuíla (Mbwila), saindo assim da órbita da colónia portuguesa de Angola até 1881, quando ressurgiu para a Colónia de Angola através da acção do Padre D. António Barroso.

A visita aos lugares arqueológicos de Mbanza Kongo

87O centro histórico de Mbanza Kongo, classificado desde 10 de Junho de 2013 como património histórico nacional, integra o valioso acervo incluído na candidatura à lista do Património Mundial da UNESCO, sob o título Mbanza Kongo, cidade a desenterrar para preservar. Entre os bens a classificar contam-se o Palácio Real (hoje museu dos Reis do Congo), a árvore sagrada conhecida por Yala Nkuwu, o Lumbu (tribunal consuetudinário), o Kulumbimbi (antiga Sé Catedral) e o cemitério dos Reis do Congo. Mbanza Kongo recebeu em 1992 a visita do Papa João Paulo II.

88O fim dos conflitos em Angola trouxe de regresso à terra de origem milhares de angolanos, muitos dos quais terão sido absorvidos pelas suas comunidades tradicionais. No entanto, Mbanza Kongo não dispõe ainda de infraestruturas de saneamento básico, saúde, educação e outras, adequadas para responder às necessidades decorrentes do forte aumento da população que acabou por se fixar nas zonas urbanas. Nos últimos anos, a estrutura municipal e o governo provincial do Zaire têm desenvolvido grandes esforços para colmatar estas carências.

89A viagem efectuada a Mbanza Kongo permitiu à comitiva observar e fazer um estudo in loco sobre a cultura local, juntamente com estudos comparativos sobre a realidade cultural de outros grupos, nomeadamente, a exegese local sobre alguns rituais, as diferentes formas de linhagens e de parentesco, deculturação, administração política, aculturação, etc.

Kulumbimbi

90Trata-se de um dos lugares sagrados dos Bakongo; o Kulumbimbi, ou seja, a antiga catedral de Mbanza Kongo, primeiro sinal de cristianismo na África Austral, começou a ser construída em 1517 e terminada em 1526, sendo dedicada a São Salvador, durante o reinado de D. Afonso Mvemba Nzinga. Este o nome cristão de São Salvador acabou por ser atribuido à capital do Kongo, substituindo assim o nome autóctone Mbanza Kongo. Mais tarde, a igreja foi elevada à categoria de catedral com o título de S. Salvador pela Bula Papal «Super specula militantis Ecclesiae», que em 20 de Maio de 1596 erigia a diocese do Congo.

91Naquele tempo a igreja de S. Salvador era grande e espaçosa, sendo construída de pedra e cal, e os cónegos e clérigos cantavam nela o ofício. Ali estavam sepultados alguns dos antigos reis (ROMANO 1649: 102-103). D. Francisco de Soveral, bispo do Congo (1627-1642), no seu relatório para a Santa Sé em 1640, afirma que a catedral tinha bons paramentos e outras alfaias litúrgicas.

«Foi no reinado de D.João II, poucos anos depois da descoberta do Congo por Diogo Cam, que começou a propaganda religiosa no reino do Congo, sendo Gonçalo de Sousa, quem, em 3 de Maio de 1491, lançou a pedra fundamental da igreja de Santa Cruz em Embasse, hoje São Salvador do Congo, elevada a Sé Catedral em 1534. De toda a propaganda religiosa que seguiu esta instalação se apagaram todos os vestígios morais… O vetusto arco da Sé foi respeitado por imposição nossa, quando o superior da missão católica, cónego Sebastião José Alves, o quis também demolir para lhe aproveitar a pedra» (LEAL 1914: 351).

Yalankuwu

92O Yalankuwu, a árvore sob a qual se desenrolavam as reuniões e os julgamentos encontra-se no Lumbu, isto é, no interior da cercadura da casa do soberano kongo. Se observarmos com atenção, essa árvore tem no início do tronco, à esquerda, por cima das cabeças, um corte, o que faz com que o ramo prossiga na vertical. Era nesse ramo que era dependurada a nsinga ou corda com a qual o réu era executado. Depois de eliminado o ramo nunca mais ali se procedeu a mais nenhuma execução. Os anciãos acreditam até hoje que a queda de um ramo ou galho desta árvore secular é sinal de mau presságio.

Tadi dya bukikwa

93Elementos materiais (carvões, cerâmicas diversas e dentre os quais cachimbos) recolhidos durante escavações arqueológicas realizadas em Mbanza Kongo a partir de Maio de 2006, no antigo mercado e lugares circundantes, situados nas proximidades do caminho que leva a Mbanza Mazina, foram enviados para um laboratório especializado nos Estados Unidos da América (USA), e os seus resultados datam de 1439, mostrando assim que os antepassados Bakongo permaneciam nesses lugares e utilizavam esses materiais. Portanto, Tadi dya Bukikwa, conhecido como o antigo palácio real dos reis do Kongo, terá sido construído entre os anos 1435 e 1496, e isso antes da chegada à capital kongo dos navegadores portugueses.

Sungilu

94Numa área adjacente ao museu, está localizado o sungilu, isto é, o necrotério, onde eram tratados os corpos dos reis defuntos e em seguida embalsamados. Quando um soberano falecia, o seu cadáver era transportado para o sungilu, onde era lavado e em seguida levado para mpindi è tadi, a casa mortuária, onde era recebido por mamãs especializadas na arte de embalsamar. Na casa mortuária, o cadáver era estendido numa maca aquecida em baixo por fogo brando, tendente a garantir o escorrimento de toda a água contida no corpo, processo esse que tornava possível a conservação natural do defunto, podendo levar esse processo de seis meses a um ano, período durante o qual os funcionários superiores do reino preparavam a eleição do novo soberano, o sucessor do falecido.

95O séquito do rei, incluindo a equipa das mamãs que estavam encarregadas de embalsamar o seu corpo, tinha a obrigação de manter sigilo sobre a morte do soberano até à eleição do seu sucessor e isso para prevenir quaisquer desordens e invasões durante o período de transição.

Mpindi à tadi

96Era o local onde, depois de se ter tratado e defumado o corpo do falecido soberano era colocado em sepultura; situava-se em cima dum penhasco que olha para o vale do rio Lwidi, onde se aguardava até pelo menos um ano pela chegada dos manis ou representantes dos Ntotela provenientes das províncias de Mbamba, Mpangu, Mbata, Nsundi, Soyo.

*** ***

97Enfim, abordamos o argumento da história de Mbanza Kongo, mas não sendo o nosso campo específico de análise preferimos entrar no concreto abordando a cultura local; a este respeito fomos facilitados pelas aldeias colocadas ao longo da estrada que conduz de Mbanza Kongo à fronteira de Luvu. Para um efectivo encontro com a cultura local nos subdividimos em grupos. Isto visava o treinamento para o trabalho comum, considerando-se necessário delimitar o âmbito da pesquisa e avaliar o seu impacto formativo com a capacidade de colher dados etnográficos que enriquecessem a análise antropológica.

98A fim de proceder a uma análise objectiva e uniforme dos factos culturais, económicos, políticos, organizacionais, cada grupo definiu a duração da actividade de pesquisa através da elaboração de um projecto e do preenchimento de um questionário permitindo obter uma imagem geral do facto cultural e dando provas da existência dos dados etnográficos recolhidos.

99Para o efeito, a equipe formada por três docentes (Kavula, Hebo, Bortolami) atribuiu a cada grupo tarefas específicas a serem executadas no dia 9 de Setembro durante a permanência dos alunos nas aldeias de Sumpi, Ndembo, Nkoko, Nkama, Lula, Boa Esperança, pertencentes à comuna de Lukosa e ao município de Mbanza Kongo. A comissão dos três docentes decidiu credenciar aos seis grupos os seguintes âmbitos de pesquisa: antropologia da nutrição: a preparação, consumo e venda dos alimentos a serem pesquisados na vila de Sumpi; a estrutura social e ciclo da vida na aldeia Ndembo; a antropologia política: organização social, chefes tradicionais, exercício do poder e linhagens na aldeia de Nkoko; a cultura material em Nkama; a antropologia do parentesco e iniciação masculina em Lula; e, por fim, a antropologia económica na fronteira de Luvo-Boa Esperança. Cada grupo foi incentivado a individualizar e adquirir habilidades na colheita dos dados etnográficos que ocorreram no campo de trabalho através da aplicação de instruções e procedimentos que permitiram a interacção com os informantes e a realização de actividades antropológicas específicas, o uso de técnicas e métodos de pesquisa. A abordagem cultural permitiu a aplicação de procedimentos e instruções, que se estenderam para os aspectos relacionais não somente a nível de dinâmica entre os membros dos seis grupos que pesquisavam mas também com os informantes e o povo da aldeia onde o grupo pesquisava. Isto favoreceu uma maior inserção no ambiente da pesquisa e um impacto profissional no exercício das actividades antropológicas.

100Os métodos aplicados no campo por cada grupo eram diferentes para cada situação, mas foi principalmente adoptada a observação participante e participativa, prestando atenção a evitar em tudo abordagens etnocêntricas, supervisionando os dados culturais e aplicando um sistema de avaliação e análise que tivessem o corte antropológico.

101A participação dos grupos de trabalho no estudo e o aperfeiçoamento das técnicas de pesquisa foram excelentes e pela primeira vez os alunos reflectiram sobre a importância de aplicar noções abstractas e conceitos assumidos em quatro anos de formação académica ao campo concreto e real onde a cultura vive e muda.

102Nos cinco dias passados nas viagens efectuadas incentivamos a tarefa de aprendizagem através da interação com o grupo e os colegas que assumiram responsabilidade para as seguintes tarefas: delimitar o âmbito de pesquisa. Subdividir as tarefas na colheita de dados. Realizar um questionário e um guião nas entrevistas. Analisar antropologicamente os dados etnográficos recolhidos. Elaborar um texto e fazer a exposição dos resultados na assembleia geral.

103Nas actividades realizadas no âmbito dos trabalhos de grupo os alunos documentaram-se e puderam incluir na revisão dos processos e procedimentos a literatura científico-antropológica estudada durante o curso (Franz Boas, Bronislaw Malinowski, Margareth Mead, Edward Evans Evans-Pritchard, A. R. Radcliffe Brown, etc.). Esta documentação bibliográfica serviu de base para a acreditação, a identificação dos factos sociais (M. Mauss) habilitando os estudantes a gerir práticas de pesquisa, dando postura científica às discussões em grupo e favorecendo o desempenho de tarefas que cada membro assumiu durante o trabalho de campo. Estas tarefas foram supervisionadas e monitorizadas por parte da equipe dos professores.

104No trabalho dos seis grupos os estudantes abordaram: a pesquisa e a organização da documentação antropológica, as leituras científicas e a discussão em grupo, a análise antropológica dos dados etnográficos recolhidos no campo, a preparação duma relação acerca dos resultados da pesquisa, a sua apresentação e discussão na assembleia geral, a produção de directrizes ou procedimentos de auto-avaliação das actividades realizadas, a revisão de procedimentos de trabalho e a tentativa de organizar um método de pesquisa.

O contexto geográfico da pesquisa

105Para melhor perceber as pesquisas etnográficas apresentamos em seguida os vários lugares onde estas foram efectuadas.

Sumpi

106A vila de Sumpi, pertence ao município de Mbanza Kongo, do qual dista cerca de 30 Km. Tem aproximativamente 4.852 habitantes. A vila é composta por sete bairros que, conforme explicou o informante Garcia Moniz são: Ngandu, Kibenga, Wawana, Mazina, Ntala, Mwingo e Lumwenu. Cada bairro tem o seu respectivo soba e o regedor. Trata-se de um povo acolhedor e muito alegre e hospitaleiro, que tende a conservar os seus valores culturais. A nossa chegada foi brindada com um pequeno almoço onde nos prepararam batata doce, mandioca, jinguba e café. Na hora do almoço foi-nos oferecido funji com kizaka. O nosso trabalho terminou às 17.00 horas.

Ndembu

107Ndembu é uma comuna da Província do Zaire localizada a 38 km do município de Mbanza Kongo. O surgimento desta comuna, atestado por fontes da época, data do século XVI. Segundo o nosso entrevistado Pedro Lusende, Ndembu significa lugar de solução de problemas ou medicamento para cuidar do corpo, mas significa também local onde há comida. A nossa entrevista teve lugar no dia 9 de Setembro de 2016, às 8h40m e fomos acompanhados pelos seguintes informantes: tata Pedro Lusende, tata Sebastião, mama Luísa Lombo e Maria Glória. O acolhimento foi óptimo, fomos recebidos com kikwanga e makayabo.

Nkoko

108A comuna de Nkoko está localizada na região nordeste de Mbanza Kongo. Está ladeada por dois rios: Lukosa, que significa «concha» e Bula, que significa «separação». Pesquisamos o significado dos rios supracitados no contexto da língua local o kikongo. Quanto ao significado da palavra Nkoko, o entrevistado Maurício Kabungulu, conselheiro da comuna nos informou que Nkoko significa «rio». O mesmo acrescentou que o outro significado é de «acolhimento», ou seja, «venham todos sentar-se no luando». O senhor Manuel Raimundo, regedor de Nkoko, atribuiu ao nome «nkoko» o significado de «burro do mato». No que diz respeito à fundação do Bairro, notou-se a presença duma grande quantidade desse animal que designavam por «nkoko».

109Um dos nosso informantes, Maurício Kabungulu, nascido no ano de 1926, conselheiro de Nkoko, pertence à linhagem de Ne Nkanga (esta era a kanda de pertença, que significa família real e natos da comuna). Enquanto conselheiro do bairro ele tem a função de acudir a situações desagradáveis, coadjuvar o soba, pois é ele que conhece a configuração sociocultural da comunidade (desde o aspecto tangível e intangível da cultura local). O avô Maurício Kabungulu, acrescentou dizendo que «[...] a fundação da comuna de Nkoko data do século XVI, tendo como fundador Ndongala ya Suka. Quanto ao seu desenvolvimento fala-se do hospital construído no ano de 1960, que influenciou fortemente o crescimento demográfico da comuna. Pois, algumas pessoas que buscavam assistência médica, acabavam por aí fixar-se».

110As famílias recomeçavam as suas vidas na comuna de Nkoko. Notamos que actualmente a comuna de Nkoko constitui um ajuntamento residencial com moradores de vários lugares, e por isso, onde o fenómeno de etnicidade é claramente visível, pois, aí estão presentes pessoas oriundas ou pertencentes a várias linhagens, tais como: Ne Nkanga, Lukenyi, Vemba, etc. Pusemos a escuta as nossas próprias concepções, para deixar que fossem os próprios do lugar a nos explicar a lógica interna da cultura local e que nos conduzissem fielmente à sua compreensão. Isso parece-nos ter sido alcançado; ademais, conseguimos, por exemplo, perceber o significado do rio Bula na aldeia de Nkoko. Fomos acompanhados pelo senhor Miguel Mingwedi que, enquanto informante, nos ajudou na recolha de dados e na exegese de alguns rituais.

Nkama

111Nkama é uma aldeia que fica a cerca de 52 Km a NE da cidade de Mbanza Kongo. A vegetação é semi-densa num solo argiloso com configurações montanhosas, num clima sub-tropical propício ao cultivo. As famílias são 55 e moram em casas feitas de adobo e cobertas de capim e decoradas de bambús. A população pratica o comércio, a pesca e a agricultura. A caça colectiva termina com uma distribuição respeitando os padrões tradicionais. Parte da carne vai para o proprietário das munições, mais exactamente a cabeça do animal, uma perna vai para o proprietário da arma. Sendo o consumo básico da mandioca na alimentação kongo, nos campos é a planta que mais é cultivada. É confeccionada numa forma comercial através da kikwanga. A sua preparação ocupa uma boa parte da actividade doméstica feminina, por ser uma boa fonte de rendimento na economia familiar. As crianças colaboram com os pais nos trabalhos do campo, sobretudo durante o período das pausas escolares.

Luvu

112A comuna de Luvu está localizada a 57 quilómetros de Mbanza Kongo na Província do Zaire. O troço tem sido usado para transacção de pessoas e bens. Durante a nossa estadia, verificamos a entrada e saída de produtos diversos, tais como: refrigerantes, plásticos, produtos de beleza, materiais gráficos, materiais electrónicos, descartáveis, etc. Actualmente, o produto mais vendido é o cimento, que substituiu o arroz. Semanalmente são comercializados mais de duzentos camiões de cimento. O grande afluxo de cimento alertou as autoridades fronteiriças que bloquearam por um certo tempo os camiões. Notamos um espectáculo de relações sociais, cruzamento de etnicidade, de populações oriundas da RDC e de diversas regiões de Angola.

As relações entre os grupos

113A 10 de Setembro, último dia da permanência na província, reunimos todos os grupos. Estiveram presentes os dois antropólogos da Universidade de Oxford, o Professor Ramon e a sua esposa, com vista efectuar uma avaliação das nossas actividades. O encontro baseou-se em quatro critérios: a capacidade de iniciativa na abordagem cultural; a identificação do campo de pesquisa antropológicos e a investigação com os informantes; a abordagem holística a cultura bakongo e o compromisso individual do antropólogo na colecta de dados etnográficos.

1. Aldeia de Sumpi: a cultura alimentar

114O grupo que trabalhou em Sumpi era constituído pelos seguintes alunos: Jandira Coimbra Sermão, Madalena Emília Pereira, Mariana Paulo Lukamba, Sebastião Sicalivo, Sofia Manuela Teca Finda. É sabido que todo o trabalho de investigação científica requer que sejam traçados determinados objectivos, de modo que sejam alcançados os melhores resultados e, de facto, a justificativa do tema levado a cabo por este grupo tratou de três níveis: social, científico e académico. A nível social este trabalho faz-nos compreender como as sociedades preservam a cultura alimentar e como preparam os alimentos. Iniciamos o nosso trabalho às 8.00 horas tendo como guia o jovem Adilson Nzinga, que nos conduziu até à lavra do senhor Garcia. Durante o percurso tivemos que escalar e descer montanhas, atravessar matas e rios e isso com o risco de nos perder, pois o nosso guia tinha esquecido o caminho que levava até a lavra do seu avô. Apos ter pedido explicações e de ter chamado o pastor Mungamuni, o mesmo foi ao nosso encontro e levou-nos até a sua lavra onde encetamos conversa de trabalho e, posteriormente, este levou-nos à sua casa. Apuramos então que os alimentos mais frequentes cultivados e cozinhados na aldeia de Sumpi são kizaka, feijão, kikwanga, couve, funji, mutete, gergelim, wangila, repolho, ratos da mata, morcegos (ngembo), makaxiquila, tolos, bagre, etc.

115Recebemos informações acerca dos seguintes alimentos: Couve a maza, que é uma comida utilizada nas cerimónias de casamento; ela é preparada com determinados ingredientes, dentre os quais a muamba e é colocada na mesa e oferecida aos noivos. Ninguém pode tocar na panela sem que antes os noivos o permitam; o chamado mutete é a semente de abóbora que é descascada, pisada e reduzida a pó. Tira-se do pilão e se coloca em água morna ou em tomate, depois amassa-se para se extrair um óleo que deverá servir como condimento para outros alimentos.

116No que diz respeito ao processo de preparação de determinados pratos, interessamo-nos inicialmente pela kikwanga. É um tipo de alimento que é popularmente conhecido em todo o Norte de Angola; é feito a partir da mandioca que depois de descascada, é colocada na água do rio durante dois dias para macerar e retirar-lhe todas as impurezas. Em seguida, é retirada, lavada e colocada num grande recipiente onde deverá permanecer durante uma semana para ganhar acidez, constituindo aquele o resultado que lhe vai conferir o sabor característico da kikwanga. Depois deste processo, aquele composto é cozinhado em banho-maria e a seguir o que dela resulta é embalada em folhas (makaya) e fervida novamente.

117Um dos pratos tradicionais locais é a couve ya maza que é assim preparado: começa-se por cortar a couve e colocá-la na panela juntamente à muamba de jinguba e/ou muamba de dendém. Acrescenta-se tomate e cebola e depois de quase fervida coloca-se um ovo. Este preparado é consumido com mandioca fervida ou com kikwanga.

118Conclusão: podemos dizer que a cultura alimentar do povo de Sumpi é preservadora de hábitos e costumes tradicionais. São povos muito solidários e unidos.

2. Aldeia Ndembo: a organização e a estrutura familiar

119O grupo constava dos seguintes alunos: Esmeralda E. Luís Morais, Elisa José Agostinho, Iracelma Faustina Restino, Gilson Garcia Júlio Capaca e Marcos Paulo Luamba. O tema de pesquisa era a organização e a estrutura familiar. O grupo tinha que investigar acerca da linhagem familiar, do casamento, da relação entre sogra, genro, filha e sobrinhas. Apurou-se que o sistema de descendência é matrilinear e isso é sobretudo atestado numa parte considerável da África central, oriental e austral. A organização social é baseada nas linhagens (makanda) e é o tabu do incesto que fundamenta a organização social matrilinear. Quem infringe este tabu deve prestar contas à sociedade; destaca-se que dentre os bens a pagar a um dignitário local, o Mfumu a kanda, estão uma cabra e vinho de palma (malavu), um passo que permite a dissolução imediata da união incestuosa. Entretanto, quem persistir no acto incestuoso expõe à morte os seus próprios filhos. O casamento é precedido pelo alembamento com uma mulher pertencente a uma kanda diferente, e a apresentação da dote (vinho de palma, cerveja e outros ingredientes). Quem não reunir esses meios contrai uma dívida que poderá ser paulatinamente paga ao longo do matrimónio. A mulher tem o poder de dar à luz e, portanto, os filhos que gera no casamento pertencem à linhagem materna (kanda). Por sua vez, o esposo permanece adstrito à sua própria linhagem. Assim se percebe porque são prestadas mais atenção ao filho da irmã e não ao seu próprio filho. Os herdeiros dos bens deixados pelos defuntos são os bana ba nkazi.

120Conclusão: em trabalhos de campo, o estudo da organização social e dos sistemas de descendência são os mais difíceis de captar e perceber as suas articulações, pois requerem geralmente uma longa permanência e observação constante no terreno, com vista perceber-se as suas múltiplas nuances. Notou-se aqui que as dificuldades encontradas consistiram exactamente em comunicar na língua kikongo e desse modo ultrapassar a deficiência dos informantes que nos julgavam pessoas estranhas. Mesmo que se falasse a língua local, os informantes não poderiam responder correctamente muitas das questões colocadas, porque geralmente elas são especializadas. O conhecimento sobre o ordenamento dos sistemas de parentesco e das relações no casamento, implicam geralmente longas permanências dos investigadores que paulatinamente vão captando as suas particularidades. Ao ampliarmos os nossos conhecimentos sobre a prática do terreno, muito ganhamos em perceber que será necessário voltar em outras ocasiões em busca daquilo que aqui foi iniciado, apenas tocado de leve.

3. A comuna de Nkoko: a memória histórica

121O grupo de trabalho nesta comuna era composto por Antónia José Faz Tudo, Bernardo Banga, Domingos Kanganjo, Madalena Bernardo e Pedro Venâncio. O assunto a tratar nesta pesquisa era o de procurar fornecer ferramenta epistemológica para a compreensão do estudo da linhagem e da organização socio-cultural. O objectivo era de compreender as linhagens e a forma de organização social. Começamos a nossa pesquisa às 9.00 horas e terminamos às 17.00 horas, tendo sido empregue no total 8 horas no trabalho de campo. Conseguimos entrevistar quatro anciãos: Ambrósio Mieze (foi o nosso orientador), Manuel Raimundo (o regedor), Ambrósio Neves (o soba) e o avó Maurício Kabungulu. Recolhemos o mito de origem desse povoado, que foi narrado pelo avô Mauricio: segundo este, o líder, Ndongala Ngumba, dirigiu o povo até a montanha Nimi Ntumbe e aí repartiu as terras entre os três Mfumu a kanda das três linhagens: Ntumba a Mvemba recebeu o território de Kinsundi; Nsiamusaku recebeu o terreno de Kumizambanza e Ne Nkanga que foi quem dirigiu o grupo. Este seria o mito de fundação da actual comuna de Nkoko. O nosso informante foi Ambrósio Miezi, que nos disse que se lembrava de três sobas: Pedro Comprido, Manuel Lombada e Ambrósio Neves (o actual). Actualmente a região é um espectáculo de etnicidade, pois é visível aqui uma grande diversidade de culturas. Fácil foi constatar que há pessoas provenientes dos grupos étnico-linguísticos akwakimbundu e umbundu. Algumas dessas pessoas ocupam cargos de liderança na comuna de Nkoko, mas nunca o cargo de Conselheiro da Comuna que é exclusivo da linhagem Ne Nkanga. São os membros desta linhagem que devem coadjuvar o soba nos assuntos da comunidade, pois estes acham-se depositários das antigas tradições que dizem respeito às linhagens, às normas e aos costumes, comportamentos e terras. Para além de muitos factores que contribuíram para o crescimento habitacional da comuna de Nkoko, foi-nos informado que no ano 1970 havia um hospital cujas ruínas ainda podem ser observadas actualmente. Esse hospital teve um papel de capital importância no desenvolvimento e crescimento habitacional de Nkoko. As pessoas que procuravam assistência médica no hospital de Nkoko mais tarde acabavam por estabelecer-se aí. O avó Maurício Kabungulu, informou acerca do caso de traição por parte de sua esposa. Em casos como esse, apuradas as culpas o tribunal procedia desta forma: a mulher tinha que pagar multa ao seu marido e esta tinha a obrigação de arranjar uma outra esposa para ele. A multa consistia em bens diversos, como cabritos, vinho de palma e eventualmente outros. No que tange ao ritual fúnebre, quando o marido perde a sua esposa, ele não pode ir ao enterro da esposa, deve petrmanecer em casa. Permanece solteiro durante um ano e a seguir a família da falecida se preocupa de arranjar uma outra esposa para ele. No percurso da nossa entrevista o avó Maurício Kabungulu disse que «A modernidade veio estragar tudo, pois já vai um ano que perdí a minha esposa e até agora os familiares dela não trazem mulher para mim». O avó Maurício disse isto com o semblante triste e sombrio, pelo que constatamos que apesar desta situação de empasse o mesmo vive triste por permanecer ainda solteiro.

4. A aldeia Nkama: a organização social

122O grupo constava dos seguintes alunos: Delfina Neves, Ermelinda Diogo, Nguinamau José, João Mutembi. O tema de pesquisa era a gestão do poder no contexto tradicional da linhagem Nlaza a Kongo.

123A população de Nkama é acolhedora e hospitaleira. O nosso informante foi o senhor Domingos de 68 anos de idade, chefe de família e conselheiro do Mfumu a Vata. A aldeia é constituída por 80% da população proveniente de áreas linguístico-culturais diferentes, ou seja, das províncias do Uíje e do Bengo; muitos populares, durante o tempo da guerra tiveram que atravessar a fronteira e abrigar-se nos campos de refugiados das Nações Unidas em Songololo e Kimpesse, na RDC. Após os acordos definitivos de paz de 4 de Abril de 2002, esses populares regressaram e se abrigaram em Nkama.

124O poder sobre a linhagem é exercido por uma autoridade chamada Mfumu a Kanda, mas a organização administrativa da aldeia é exercida pelo Mfumu a Vata.

125A terra identifica quem a trabalha, portanto, confere atributos identitários que definem quem a possui e a cultiva. Quem administra os terrenos é o Mfumu a Ntoto; trata-se duma autoridade cuja tarefa é distribuir as terras aos membros da linhagem. É ele quem conhece a terra e sabe medir os seus limites, e por isso distribui as terras que são propriedade da kanda a qualquer indivíduo interessado em trabalhar nela praticando agricultura. Em Nkama, o Mfumu a Vata é escolhido dentro da linhagem matrilinear Nlaza Kongo.

5. Aldeia Lula: o ciclo da vida e rituais de passagem

126O grupo era composto pelos seguintes estudantes: Lourdes Mirella Diogo Torres Francisco, Madalena António José, Zeferino Simão Caxala, Zenaide Calunga Gomes.

127A aldeia Lula é muito movimentada. Possui um clima ameno sem grandes disparidades térmicas, distando aproximadamente 60 quilómetros da cidade de Mbanza Kongo. Trata-se duma localidade que começou a ser habitada aí por volta dos anos 1930 e que foi destruída sucessivamente durante as guerras coloniais e pós-coloniais, sendo esses sobretudo os motivos que obrigaram as suas populações a emigrar para a vizinha República Democrática do Congo. É esta a aldeia onde nasceu em 12 de Janeiro 1923 o nacionalista angolano Holden Roberto.

128O topónimo Lula deriva do lingala significa «nós gostamos muito», amor, gosto ou prazer, estamos unidos. Esse nome foi atribuído num contexto de tensões e conflitos entre os membros do ajuntamento. Assim, esse nome lembra, portanto, a todos a necessidade de se gerir com cuidado e parcimónia os conflitos. A aldeia foi repovoada e reconstruída em 1992. Impressionou-nos o acolhimento por parte dos habitantes e sobretudo por parte do senhor Garcia, que foi o informante principal. Criou-se logo um bom clima, de ambiente alegre onde os ânimos permaneceram sempre bem calmos e assim se permaneceu, aceitando estes as nossas entrevistas que duraram 5 horas de trabalho.

129A população da aldeia vive de agropecuária e comércio. Fomos incentivados a conhecer o seu estilo de vida, o ciclo de vida e os rituais de passagem.

130Entre os rituais que acompanham o nascimento duma criança é de interesse o ritual nkumba ungudi, que se explica com o corte do cordão umbilical. Calcula-se o seu comprimento antes do corte extendendo o cordão até o joelho do bebé é assim que vem amarrado e cortado. A parte cortada é enterrada atrás da casa. Alimentação principal do recém-nascido é leite materno, em seguida papas e bolachas ou funji com água e sal. A educação da criança começa em tenra idade, tão logo ela começa aprenda a falar. Aos cinco ou seis anos é encaminhada para escola primária e começa apreender os trabalhos domésticos. A partir dos 8 até 9 anos de idade a criança ajuda também nas actividades comerciais. A iniciação para os meninos com 8-9 anos de idade é impartida com a circuncisão que em kikongo diz-se nsangalavwa. Trata-se de um ritual de passagem que estabelece a maturidade e a pertença definitiva do membro à sua linhagem; o ritual a que se submete torná-lo-á mwan’a kanda. O ritual prevê o corte do prepúcio através duma a navalha chamada mbele ndovala. Na circuncisão era usada a nsidikwa, que servia como anestésico para atenuar as dores durante o corte do prepúcio. Após a operação como terapia se amarrava no pénis uma folha de bananeira, o nsoko wa dikondo, que servia para ajudar a sarar a ferida. Durante a iniciação, o rapaz apreende o valor e a função da vida sexual que tem por fim a procriação. O rapaz que não se submete a este ritual vive como um marginalizado e é considerado um nkwa suti, que significa «incircunciso» e não pode viver lado a lado com os circuncidados. Mais tarde, durante o período do noivado, será rejeitado pelas mulheres da comunidade. A solução estará na submissão ao nsangalavu, isto é, cerimónia em que o indivíduo é iniciado durante alguns meses, purificado e passa a ser admitido à função procriadora. O período em que geralmente o indivíduo é submetido à cerimónia de circuncisão constituía uma verdadeira escola de vida, pois era aí onde formava o carácter e onde se forjavam as virtudes e a personalidade do mwan’a kanda.

131 Em geral, a morte e sobretudo a morte de uma criança, tem sempre uma causa; ela é sempre considerada uma acção do feitiço (lokila); o culpado é o ndoki, e este é reconhecido através de um julgamento ordálico onde se usa a casca muito amarga duma árvore chamada nkasa. Se o indivíduo apontado for inocente vomitará a nkasa, mas se for culpado morrerá. A morte de um velho é quase sempre considerada como consequência da sua acção; se for um velho honrado o nome passará para um membro mais novo que nasce, significando assim que a vida dele continua no meio da kanda. Para propiciar a caça e a pesca, a chuva e a fertilidade e nas doenças, o seu nome será invocado e o espirito do defunto terá a função de proteger a família.

6. O mercado de Luvu: economia e comércio

132 O grupo era composto dos seguintes estudantes: António Frederico Domingos Tucha, Gabriela Mavinga de Oliveira, Elizabeth Sungo, Jaime Jamba, Manuel Francisco e Ungana Fernandes. Tendo em conta o trabalho de campo aqui realizado, foi possível observar e compreender o ritmo de vida deste povo; de acordo com a pesquisa, foi possível entender que a população desta comuna se dedica inteiramente ao comércio deixando de lado as actividades produtivas. A maior parte da população é oriunda de vários pontos do país e da RDC. Existem algumas hospedarias, armazéns para o depósito de produtos, uma loja da Unitel, uma agência bancária do Banco de Poupança e Crédito (BPC) e algumas barracas para os comerciantes fazerem as suas refeições. Os alimentos que são vendidos nas barracas são: funji, kizaka, fumbwa, feijão, peixe, massa, arroz, carne seca e fresca, frangos, etc., etc. O custo duma refeição é de mil kwanzas e normalmente é constituída por um prato de funji com carne guisada e kizaka. Os meios de transportes usados para as mercadorias são camiões (de cimento), motorizadas de duas ou três rodas, pessoas que transportam na cabeça e em carros de mão. Todos os produtos passam pela alfândega para a confirmação e legalização, pois, todo o produto passa a fronteira. Como informantes tivemos o senhor Trésor (Trezor) que mora nos arredores do mercado e que nos informou que ele faz a vida vendendo sacos comprados em Kimpese (RDC) e que os vem vender aqui no mercado de Luvu. Esses sacos, cujo preço unitário é de 500 kwanzas, servem para transportar os bens comerciais. Segundo um outro informante, o senhor Risi, um caçador que é residente na aldeia de Nkoko, os animais abatidos são imediatamente vendidos, cozinhados e consumidos pelos comerciantes. O senhor Roger, responsável da alfândega, explicou-nos que os produtos são fiscalizados a partir das facturas apresentadas e de acordo com o valor facturado é aplicada uma taxa alfandegária que se baseia na «conhecida» pauta aduaneira. Relativamente ao lugar do mercado, foi-nos informado que existe uma cooperação entre autoridades do Congo e de Angola, já que há alternância semanal (numa semana o mercado é feito do lado angolano e na outra ele passa para a RDC). Constatou-se, porém, que quando o mercado ocorre no lado de Angola há uma maior organização em virtude do controle policial e da higiene, enquanto que se verifica uma maior agitação quando o mercado ocorre na RDC. A moeda usada frequentemente é o kwanza, o franco congolês da RDC e o dólar americano. Actualmente, a causa do alto nível de inflação que se tem verificado, se deve ao facto do franco congolês da RDC ser mais respeitado do que o Kwanza de Angola. Observe-se que o cimento é um dos produtos que é sempre comercializado em dólar. Concluindo, observamos que o mercado fortalece os laços de amizade entre as populações fronteiriças.

Conclusão

133 Quando foi realizada a reunião alargada onde os secretários dos seis grupos expuseram os resultados do fieldwork, estiveram também presentes tanto o Dr. Ramon Sarró, antropólogo, professor associado da Oxford University, quanto sua esposa. Ele, e sobretudo a sua esposa, interagiram durante as exposições dos nossos alunos, focalizando pontos de interesse antropológico. Entretanto, que pelo interesse por estes demonstrado através das questões colocadas, constatei que desconheciam alguns quantos dados e elementos etnográficos que os alunos souberam colectar e explicar. No fim do encontro quisemos saber do Dr. Ramon sobre qual seria o seu ponto de vista acerca da qualidade dos estudantes do 4.º ano de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais (FCS), em relação aos seus estudantes da Oxford University. A sua resposta foi pronta: «Os meus estudantes abundam em livros, e portanto, o suporte bibliográfico é melhor, mas não possuem a prática e a experiência na recolha de materiais e dados que foi claramente demonstrado aqui pelos vossos estudantes, que são privilegiados por viverem em lugares onde a cultura, objecto da análise antropológica, vive, progride e se manifesta».

134 Os estudantes da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Agostinho Neto têm, portanto, que reflectir sobre a necessidade de tomarem consciência das múltiplas riquezas culturais que o país possui e acerca da necessidade e do dever de valorizá-las e isso através do estudo e da formação que apenas a antropologia lhes pode garantir.

Cultura, espaço e dimensão

As seções anteriores sobre pesquisa longitudinal e pesquisa em grupo ilustram uma mudança importante na antropologia cultural. A pesquisa etnográfica tradicional enfocou uma única comunidade ou 'cultura', que foi tratada mais ou menos como isolada e única no tempo e no espaço. A mudança ocorreu na direção de um reconhecimento da existência e dos inevitáveis ​​fluxos de pessoas, tecnologia, imagens e informações. O estudo desses fluxos e conexões agora faz parte da análise antropológica. E refletindo o mundo de hoje – em que pessoas, imagens e informações se movem como nunca antes – a pesquisa de campo precisa ser mais flexível e distribuída em maior escala. A etnografia é cada vez mais extensa no tempo e no espaço. Malinowski poderia se concentrar na cultura Trobriand e passar a maior parte do tempo em umem uma determinada comunidade. Hoje não podemos nos dar ao luxo de ignorar, como fez Malinowski, os 'outsiders' que cada vez mais entram nos lugares de nossos estudos (por exemplo, imigrantes, refugiados, terroristas, guerreiros, turistas, agentes de desenvolvimento). Necessário para integrar o nosso análise são agora as organizações e forças externas (por exemplo, governos, empresas, organizações não-governamentais) que estão promovendo os direitos sobre a terra, as pessoas e os recursos em todo o mundo. Também é importante aumentar a conscientização sobre a existência de diferentes poderes e como eles afetam as culturas e a importância das diferenças dentro da cultura e das sociedades.

O antropólogo Clyde Kluckhohn (1944) começou a ver a antropologia como um serviço público necessário. Poderia fornecer uma 'base científica para abordar o dilema crucial do mundo de hoje: como pessoas de diferentes aparências, línguas mutuamente ininteligíveis e diferentes modos de vida podem coexistir pacificamente'. Muitos antropólogos nunca teriam escolhido essa profissão se não acreditassem que ela pode melhorar o bem-estar da sociedade humana como um todo. Como vivemos em um mundo de Estados falidos, de guerras, de terrorismo, devemos considerar o papel fundamental dos antropólogos no estudo dos fenómenos.

Como muitas outras questões levantadas pela antropologia contemporânea, a guerra e o terrorismo exigiriam vários níveis de análise - local, regional e internacional. É essencialmente impossível encontrar no mundo de hoje fenómenos em nível local que estejam completamente isolados das forças globais.

Nos dois volumes de ensaios editados por Akhil Gupta e James Ferguson (1997a e 1997/;), numerosos antropólogos descrevem os problemas que surgem da tentativa de colocar as culturas em lugares delimitados. John Durham Peters (1997), por exemplo, percebeu que, principalmente devido aos meios de comunicação de massa, as populações que vivem em nossa época vivenciam o local e o global ao mesmo tempo. Ele descreve essas pessoas como culturalmente 'bifocais' - tendo uma visão que lhes permite ver de perto (vendo eventos locais) e uma visão com a qual podem ver à distância (vendo assim imagens de longe). Dada essa 'bifocalidade', suas interpretações do local são sempre influenciadas por informações vindas de fora. Portanto, sua atitude em relação ao céu azul em casa é influenciada pelo conhecimento dos boletins meteorológicos de que um furacão pode estar a caminho. As notícias podem não corresponder às opiniões presentes nas conversas locais, mas as opiniões nacionais entram no discurso local.

Os meios de comunicação de massa, cada vez mais estudados pelos antropólogos, são peculiaridades em termos de cultura e espaço. De quem são essas imagens e opiniões? Que cultura ou comunidade eles representam? Eles definitivamente não são locais. Imagens e mensagens de mídia fluem eletronicamente. A televisão os transporta diretamente

para você. A Internet permite que você descubra novas oportunidades culturais com um clique do mouse. A Internet leva-nos a lugares virtuais mas, na realidade, os mass media electrónicos são fenómenos sem espaço, transnacionais na sua abrangência e desempenham um papel na formação e manutenção de identidades culturais.

Os antropólogos estão estudando cada vez mais as populações em movimento. Alguns exemplos incluem pessoas que vivem em locais distantes ou perto de fronteiras nacionais, nômades, migrantes sazonais, sem-teto, refugiados, imigrantes e refugiados. A pesquisa antropológica hoje pode nos levar a viajar com as pessoas que estudamos, acompanhando-as quando se deslocam de aldeia a cidade, quando cruzam a fronteira ou viajam de um país a outro a trabalho. Como veremos no Capítulo 16, Exilados da globalização, os etnógrafos seguem cada vez mais as pessoas e as imagens que estudam. À medida que a pesquisa de campo muda, com cada vez menos campos definidos em termos espaciais, o que podemos tirar da etnografia tradicional? Gupta e Ferguson citam corretamente a 'ênfase característica da antropologia na rotina diária e na experiência vivida' (1997α, p. 5). Ver as comunidades como entidades distintas pode ser coisa do passado. No entanto, “o foco tradicional da antropologia na observação atenta de vidas particulares em lugares particulares” (Gupta e Ferguson 1997: p. 25) tem uma importância duradoura. O método de observação atenta ajuda a distinguir a antropologia cultural da sociologia e da investigação, que discutiremos agora.

A INVESTIGAÇÃO

À medida que os antropólogos se veem trabalhando mais em grandes corporações, eles desenvolvem métodos inovadores de fundir etnografia e investigação (Fricke 1994). Antes de considerar tais combinações de métodos de trabalho de campo, é necessário descrever a pesquisa e as principais diferenças entre a etnografia e a pesquisa tradicionalmente empregadas. Trabalhando principalmente em nações grandes e populosas, sociólogos, cientistas políticos e economistas desenvolveram e definiram o modelo da pesquisa, que inclui amostragem, (um grupo de estudo administrável) de uma população maior. Ao estudar uma amostra especialmente selecionada e representativa, os sociólogos podem fazer inferências precisas sobre toda a população.

Em sociedades pequenas, os etnógrafos precisam conhecer a maioria das pessoas, (um grupo de estudo administrável) de uma população maior. Ao estudar uma amostra especialmente selecionada e representativa, os sociólogos podem fazer inferências precisas sobre toda a população.

Em sociedades pequenas, os etnógrafos precisam conhecer a maioria das pessoas, mas dado o tamanho e a complexidade das nações, a pesquisa não pode deixar de ser mais impessoal. Pesquisadores que usam pesquisas chamam as pessoas que estudam respondentes, ou seja, aqueles que respondem a perguntas durante uma pesquisa. Às vezes, os pesquisadores os entrevistam pessoalmente. Outras vezes, após uma reunião inicial, eles pedem aos entrevistados que preencham um questionário. Em outros casos, os pesquisadores imprimem questionários para selecionar aleatoriamente os membros da amostra ou para entrevistar alunos de pós-graduação ou telefonar para eles. (Em uma amostra aleatória, todos os membros da população têm uma chance igual, calculada estatisticamente, de serem escolhidos. Uma amostra aleatória é selecionada por meio de procedimentos, como tabelas de números aleatórios, que podem ser encontradas em muitos livros de estatística.) Geralmente se concentra em um pequeno número de variáveis ​​(por exemplo, fatores que afetam a votação) em vez da totalidade da vida das pessoas.

Tem sido tradicionalmente realizado em pequenas sociedades não industriais, onde as pessoas muitas vezes não sabem ler ou escrever.

Geralmente é realizado em países modernos onde a maioria das pessoas não é analfabeta e pode preencher os questionários por conta própria.

Faz uso limitado de estatísticas, pois as comunidades que estuda tendem a ser pequenas em tamanho, com pouca diferença além de idade, sexo e personalidade individual.

Ele se baseia fortemente em análises estatísticas para fazer inferências sobre populações grandes e diversas e se baseia em dados coletados de um pequeno subconjunto de uma determinada população.

mais familiar é o escrutínio usado nas eleições gerais para prever o resultado. Os meios de comunicação contratam agências para estimar resultados e dão exit polis para descobrir que tipo de pessoas votaram em determinado candidato. Durante o processo de amostragem, os pesquisadores coletam informações sobre idade, sexo, religião, ocupação, renda e preferências políticas. Essas características (variáveis ​​- atributos que variam entre os membros de uma amostra populacional) são o que influenciam as decisões políticas.

O número de variáveis ​​que influenciam a identidade social e o comportamento aumenta com a complexidade social e pode ser considerado uma unidade de medida. Muito mais variáveis ​​afetam a identidade social, experiências e atividades em uma nação moderna do que no caso de pequenas comunidades onde a etnografia se desenvolveu. Por exemplo, na América do Norte contemporânea, centenas de fatores influenciam nosso comportamento e atitudes sociais. Entre esses elementos está a religião; a religião do país em que crescemos; se viemos de uma pequena cidade, subúrbio ou cidade; a profissão de nossos pais, a etnia de nossos pais e o nível de renda. Justamente porque a pesquisa trata de grandes grupos diferentes entre si e de amostras e probabilidades, seus resultados devem ser analisados ​​estatisticamente.

A etnografia pode ser usada para substituir ou refinar a investigação. Os antropólogos podem transferir as técnicas pessoais e de primeira mão da etnografia para qualquer ambiente que inclua humanos. Uma combinação de pesquisa e etnografia pode trazer novas perspectivas sobre a vida em sociedades complexas (sociedades grandes e populosas com estratificação social e governo central). A etnografia também pode ajudar a desenvolver questões relevantes e culturalmente apropriadas que podem ser incluídas na pesquisa.

Em minhas aulas em Ann Arbor, Michigan, os alunos fizeram pesquisas etnográficas sobre irmandades, fraternidades, equipes, organizações universitárias e a população local sem-teto. Outros alunos observaram sistematicamente o comportamento em locais públicos. Isso inclui quadras de squash, restaurantes, bares, estádios, mercados lojas de departamento e classes escolares. Outros projetos de 'antropologia moderna' usam técnicas antropológicas para interpretar e analisar os meios de comunicação de massa. Os antropólogos estudam suas próprias culturas há décadas e hoje a pesquisa antropológica está explodindo na maioria dos países ocidentais. Onde quer que o comportamento humano seja observado, a antropologia está adicionando grãos ao seu moinho. Em qualquer sociedade complexa, muitas variáveis ​​(indicadores sociais) influenciam seu comportamento e opiniões. Precisamente porque devemos ser capazes de identificar, medir e comparar a influência dos indicadores sociais, muitos estudos antropológicos contemporâneos têm uma base estatística. Mesmo no trabalho de campo rural, muito mais antropólogos agora rastreiam amostras, coletam dados quantitativos e usam estatísticas para interpretá-los (ver Bernard 2006). Informações quantificáveis ​​permitem uma avaliação mais precisa das semelhanças e diferenças entre as comunidades. A análise estatística pode apoiar e completar um relato etnográfico da vida social local.

No entanto, nos melhores estudos, a marca da etnografia permanece: os antropólogos entram na comunidade e devem conhecer as pessoas que dela fazem parte. Participam de atividades locais, redes e associações na cidade ou no campo. Eles observam e experimentam condições e questões sociais. Eles analisam os efeitos das políticas e programas nacionais na vida local. Acredito que o método etnográfico e a ênfase nas relações pessoais na pesquisa social são dons inestimáveis ​​que a antropologia cultural traz para o estudo de uma sociedade complexa.

ANTROPOLOGIA HISTÓRICA

Disciplina recém-formada, tem suas raízes nos debates fundadores do método, dos campos de interesse, dos caminhos dos interesses demo-etno-antropológicos. A especificidade dos interesses antropológicos tem sido essencialmente definida através de três diretrizes que podem ser identificadas por área de pertencimento territorial: a abordagem anglo-saxônica, a americana e a continental europeia. Ao confiar-nos às definições territoriais, podemos evitar as avaliações implícitas sobre os estatutos epistemológicos utilizados. Para cada uma dessas áreas, as relações com as chamadas disciplinas fronteiriças para uma ciência social relativamente jovem como a antropologia (se tomarmos esse termo como uma conotação unificadora) têm sido problemáticas e contraditórias. Em particular, a partir da segunda metade do século XIX, os antropólogos reafirmaram teimosamente seu distanciamento da história. Com efeito, ao lidar, como os historiadores, com situações específicas, caracterizadas por extrema concretude, ele não pode prescindir de generalizações e aspira à formulação de leis (de comportamento social, de funcionamento das culturas e assim por diante), desta forma a antropologia

pode ser qualificada como uma disciplina nomolética, enquanto a historiografia parece ser uma disciplina mais descritiva projetada para representações do particular. A distância entre as duas disciplinas foi marcada pelos interesses temáticos que inicialmente caracterizaram a antropologia, por muito tempo ocupada com culturas distantes no espaço e sem escrita, onde os historiadores fizeram dos povos distantes no tempo o objeto de seus maiores interesses. Sem esquecer, porém, também a utilização das fontes e a sua relativa legitimidade, tanto que ainda hoje constituem um núcleo quente do debate entre as duas disciplinas. Provavelmente, a maior distinção entre antropologia e historiografia se constitui no fato de que os estudos antropológicos têm investigado as estruturas profundas, as teias latentes de significado, a cultura inconsciente dos grupos humanos, enquanto os historiadores têm lidado principalmente com expressões conscientes. A necessidade de repensar uma relação frutífera entre antropologia e história é claramente expressa por Evans-Pritchards que - não obstante ecoa Boas - quando denunciou o fracasso estéril da antropologia social britânica em sua tentativa de obter uma declaração completa das leis sociológicas, ao seguir o modelo das ciências naturais. Os antropólogos, concluiu ele, tinham que se alinhar no campo histórico: eles tinham que se tornar historiadores sociais de modelos culturais.

O cenário histórico da antropologia parecia indispensável, como afirma Kroeber como historiador da cultura:

«A diferença mais importante entre a história e a antropologia não é a questão das datas, mas o fato de que, em geral, os antropólogos têm muito poucos eventos em seus dados (distintos dos modelos.) matéria-prima dos historiadores. Os historiadores mais habilidosos fundem eventos em modelos ou formulações conceituais; os menos capazes se apegam aos acontecimentos e podem chegar à conclusão de que tudo o que não tem a ver com acontecimentos que aconteceram a indivíduos em períodos determináveis ​​não pode ser histórico.

A raridade dos eventos registrados na vida primitiva contribuiu para obrigar os antropólogos a reconhecer as formas ou modelos de cultura. Em suma, eles talvez tenham descoberto mais cultura do que qualquer outro grupo de estudiosos. É verdade que isso aconteceu muito depois de historiadores inteligentes terem notado; mas eles tomaram esse fato como certo e estavam inclinados a lidar com a cultura indireta ou implicitamente, enquanto os antropólogos tornaram-se explicitamente conscientes da cultura» (Kroeber 1936, em 1952, trad. it. 1974:127-8). Parece que há nesta longa citação de Kroeber não só a justa simetria no reconhecimento das respetivas competências, especificidades e limites das duas diferentes disciplinas, como também o caminho que será então percorrido nas respetivas áreas de investigação histórico-antropológica. Quando em 1949 o pai do estruturalismo antropológico francês (considerado o mais ferrenho inimigo junto com o funcionalismo malinowskiano da relação entre história e antropologia) examinou as conexões possíveis, ele colocou as duas disciplinas no mesmo plano.

“Nos propomos mostrar que sua diferença fundamental não está nem no objeto, nem no propósito, nem no método; mas que tendo o mesmo objeto (a vida social), a mesma finalidade (uma melhor inteligência do homem) e um método em que varia apenas a dosagem dos procedimentos de pesquisa, distinguem-se sobretudo pela escolha de perspectivas complementares: a história organiza seus dados com base nas expressões conscientes, e a etnologia com base nas condições inconscientes da vida social» (Levi Strauss 1958, it. trans. 1966:30-1).

O caminho era, portanto, aquele que Evans Pritchard havia indicado, convencido de que a abordagem histórica deveria, de alguma forma, estar ligada à investigação estrutural-funcionalista; em seu livro / Sentissi di Cirenaica (1948, italiano trad. 1979) ele esclarece:

«Acrescentarei que estou convencido de que uma interpretação baseada em critérios funcionalistas (do presente em termos do presente) e outra baseada em critérios históricos (do presente em termos do passado) devem estar ligadas, de uma forma ou de outra , e que ainda não aprendemos a conectá-los satisfatoriamente».

É nessa conexão que o desenvolvimento da disciplina foi construído nas décadas seguintes. Do lado historiográfico, não poucos pesquisadores, particularmente na Europa, têm atravessado a fronteira antropológica tanto em termos de método quanto de campos temáticos, sofrendo sua influência de diversas formas e em diversos níveis. Pense na escola 'Armales', em Liraudel e Dupront, também em Dumezil, mas sobretudo na 'nova história francesa', em Le Goff, Vovelle, Le Roy Ladurie. A antropologia histórica continua a ser definida nesta área de interferência. Os interesses antropológicos levaram à introdução de novos campos na pesquisa histórica ou a um olhar diferente e mais próximo de temas habituais, colocando questões materiais históricas relacionadas com elementos teóricos, metodológicos e temáticos da antropologia que então delinearam as especificidades

da antropologia histórica. Tornaram-se, assim, competência estrita da antropologia histórica: o conceito de cultura, o método comparativo, a ideia de desenvolvimento multilinear, a desvalorização do acontecimento em favor da longa duração, a micro-história, o estudo das mentalidades, a história da cultura material, história dos marginalizados, busca do primitivo no mundo civilizado, ruralização da história, relações interétnicas e conflitos culturais, história do imaginário, relações de parentesco, técnicas do corpo, história do vestuário , culinária e comida, a história dos sonhos. O tratamento de dados e fontes também muda dentro da antropologia histórica. Sem dúvida, é nessa frente que ainda existem discussões abertas e desconfiança mútua. Em particular, é no uso do arquivo que historiadores e antropólogos se 'encontram'. Para os primeiros, tratava-se de remodular um hábito antigo e profundamente enraizado de atendimento, para os segundos, de entrar num mundo novo para pedir confirmação, identificando congruências e discrepâncias entre as versões do passado recolhidas no terreno e as fixadas em a documentação. Mas se o antropólogo entrou no arquivo, o historiador se aproximou dos dados fornecidos pelo campo e reconheceu sua validade.

Trata-se de uma formação recíproca, especularidade reforçada pela crítica pós-modernista que tem reiterado com maior convicção que não é o passado que determina e explica o presente, mas o presente que 'lê' o passado à luz dos seus interesses e das suas categorias e que o arquivo nunca oferece materiais neutros. Como no caso da história da América colonial e da fronteira em que foi possível repensar a relação entre museu, arquivo e campo que abriu uma perspectiva interpretativa diferente e mais equilibrada. A tentativa de aproximar os historiadores americanos do conceito antropológico de cultura delineou mais um campo de comparação entre antropologia e história: a etno-história que utiliza informações de caráter etnológico para as populações sem escrita a partir da documentação produzida pelos brancos. As fontes de arquivo tornam-se assim copiosas e abundantes. Esta fecundidade é demonstrada pelos trabalhos de John Svvanton e Frank Speck sobre os contatos estabelecidos com as tribos indígenas por autoridades governamentais, ordens missionárias, empresas comerciais. O mesmo estudo da África abordou desse ângulo, por vezes, respectivamente, derrubou um dos pilares teóricos das duas disciplinas em relação à possibilidade de usar a história oral. Em particular, Jan Vansina (belga de nascimento e treinado em estrito treinamento histórico em Louvain), ao considerar as fontes para o historiador, resume o seguinte: 'para o historiador, as fontes são fontes: elas podem ser boas ou más, mas não há nada inerentemente menos válido em uma fonte oral do que em uma fonte escrita. Ao mesmo tempo, a etno-história americana reafirmou em sua revista 'Ethohistory' uma prioridade decisiva para as fontes escritas.

Abriu-se assim uma especularidade entre historiadores e antropólogos que é preparatória para novas perspectivas e visa preencher as lacunas mútuas, a fim de criar um novo ponto de observação e uma abordagem totalizante a partir de um ponto de vista específico. O problema coloca-se sobretudo para a historiografia europeia, por vezes marcada pela vocação de querer ser também mitografia. Há uma necessidade crescente de os estudiosos treinarem uns aos outros para operar com a ajuda de três ferramentas investigativas: museu, arquivo, campo. Nos últimos anos, uma maior aproximação entre historiadores e antropólogos foi determinada sobretudo em relação ao crescimento da chamada 'antropologia das sociedades complexas'. O estudo dessas sociedades pelos antropólogos torna necessário explorar em primeira mão a história das comunidades sujeitas a investigações etnográficas também através de fontes documentais e as diferentes formas de tratá-las. Esta especularidade comprovada permitiu reconhecer a absoluta legitimidade de estudar muitas populações consideradas sem história documentada, rastreando e examinando a documentação dos arquivos coloniais; o melhor exemplo é a pesquisa de Marshall Sahlins reunida no volume Island of History de 1985, recupera uma rica documentação arquivística para os habitantes das ilhas dos Mares do Sul, demonstrando que mesmo para povos exóticos é possível aplicar o método histórico.

Na Itália, a forte tradição da historiografia sempre influenciou a pesquisa antropológica e demológica. A antropologia de De Martino segue uma estrutura historicista, embora combinada com elementos marxistas e heideggerianos. O estudo das culturas camponesas do sul é conduzido tanto por meio de trabalho de campo quanto pela reconstrução histórica das origens dos fenômenos identificados, como luto, práticas e crenças mágicas, tarantismo apuliano, feitiço napolitano. Desde os anos oitenta do século passado, porém, multiplicaram-se os estudos de interesse histórico-antropológico, em particular as contribuições sobre o uso de arquivos e fontes escritas relativas a alguns aspectos da história das classes populares, também e sobretudo em relação à o da unidade italiana. Afinal, os historiadores da era moderna há muito demonstram um interesse particular pela antropologia, como demonstram os trabalhos de Carlo Ginzburg, Edoardo Gremii e Giovanni Levi. Recentemente, os últimos estudos sobre os acontecimentos dos chamados bárbaros, a partir dos estudos do historiador medieval Walter Pohl, têm enriquecido o panorama do debate em relação às sugestões

do que tem sido chamado de escola de Viena. Ter definido os celtas, alemães, citas como um povo foi resultado de uma operação a posteriori, preenchendo categorias definidas a priori com dados empíricos e, sobretudo, parece necessário reler as fontes latinas a partir de Tácito. Igualmente incontornável é a referência à historiografia de gênero e à história das mulheres que utilizaram de forma inovadora a relação entre a grande história, as fontes 'domésticas' e as fontes orais.

Os interesses da antropologia histórica ganham maiores articulações através da antropologia interpretativa, que põe em jogo o espaço-tempo e as competências e fontes presumidas recíprocas a serem tratadas. O risco é concentrar o interesse da antropologia histórica na interpretação do passado à luz do presente mas, por outro lado, apenas devolvendo à pesquisa histórico-antropológica as chaves interpretativas de uma cultura através dos espiões desse paradigma indicativo a que se refere Carlo Ginzburg é possível restaurar experiências e horizontes de sentido que correriam o risco de serem negados e esquecidos.

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8ª Lição 6 de Janeiro 2023: Linguagem e comunicaçao

 

LINGUAGEM E CULTURA

São como dois lados de uma moeda. A linguagem é uma parte da cultura, no entanto, é mais do que isso, pois a linguagem é o meio pelo qual a cultura é comunicada, expressa e aprendida. Com o desenvolvimento da cultura humana, alguns meios de comunicação - uma linguagem - também foram desenvolvidos. Somente os humanos têm capacidade para linguagem, gramática, sintaxe e fala. Em qualquer idioma, um número ilimitado de sentenças possíveis pode ser construído e usado para transmitir um número infinito de idéias culturais. Isso permite que os humanos comuniquem idéias culturais e significados simbólicos de uma geração a outra de forma cumulativa, e constantemente criem novas idéias culturais. Por causa disso, a linguagem humana é significativamente diferente de qualquer outro sistema de comunicação animal. A linguagem classifica o mundo ao nosso redor. Classifica as coisas; classifica ações; classifica nossas experiências. Objectos e eventos são ordenados por idioma em categorias de tempo e espaço. Isso é o que a “gramática” faz além de executar muitas outras funções. Cada idioma tem sua própria gramática. A “lógica” de uma cultura é também a “lógica” da sua linguagem, como ela ordena o mundo.

A EVOLUÇÃO DA LÍNGUA

O QUE É A LINGUAGEM?

A linguagem , que pode ser falada (língua falada) ou escrita (linguagem escrita), é o nosso principal meio de comunicação. A escrita existe há cerca de 6000 anos: a linguagem originou dezenas, talvez centenas de milhares de anos antes do nascimento da escrita, embora ninguém seja capaz de identificar uma data precisa. Como a cultura em seu sentido mais geral.

Macacos, como esses chimpanzés do Congo, usam sistemas de chamada para se comunicar na natureza. Os sistemas vocais que possuem são constituídos por um número limitado de sons (ou chamadas), emitidos em resposta a um estímulo ambiental específico.

A língua é transmitida através da aprendizagem como parte do processo de inculturação. A linguagem é baseada em associações arbitrárias e aprendidas entre as palavras e as entidades que essas palavras representam ou designam. Uma complexidade de linguagem - ausente nos sistemas de comunicação de outros animais - permite que os seres humanos criem imagens elaboradas, discutam o passado e o futuro, compartilhem suas experiências com outras pessoas, beneficiando-se das dos outros.

Sistemas de recolha

Somente os seres humanos possuem a faculdade da fala: nenhum outro animal recorre a um sistema de expressão que se aproxima da complexidade da linguagem. Os sistemas de comunicação natural de outros primatas (grandes símios e chimpanzés) são referidos como sistemas de recordação. Esses sistemas consistem em um número limitado de sons, ou chamadas, que são produzidos apenas a certos estímulos ambientais.

Essas chamadas podem variar em intensidade e duração, mas são muito menos flexíveis do que a linguagem, uma vez que são automáticas e não podem ser combinadas entre si. Quando os primatas encontram comida e perigo simultaneamente, eles só podem emitir um grito: eles são incapazes de combinar o grito por comida e o grito para sinalizar perigo em uma única expressão que lhes permita sinalizar a presença de ambas as situações (comida e perigo). No entanto, em um certo ponto da evolução humana, nossos ancestrais começaram a combinar os vários gritos e entender essas combinações. O número de expressões também se expandiu, acabando por se tornar demasiado grande para ser transmitido, mesmo que parcialmente, através da herança genética: a comunicação foi, portanto, progressiva e quase totalmente baseada no processo de aprendizagem.

Embora os primatas que vivem na natureza usem sistemas de recordação, o aparelho vocal dos macacos não tem uma conformação adequada para a fonação. Até os anos sessenta do século XX, as tentativas de ensinar a língua falada aos macacos sugeriam a falta de habilidades linguísticas nesses animais. Nos anos cinquenta, um casal criou um chimpanzé, Viki, como um membro da família, sistematicamente tentando ensiná-lo a falar, no entanto, Viki conseguiu aprender apenas quatro palavras ('mãe', 'pai', 'para cima' e 'copo').

Língua gestual

Experimentos mais recentes mostraram que os macacos são capazes de aprender a usar a própria linguagem, embora não a falem. Muitos macacos aprenderam a conversar com os seres humanos usando outros meios além da língua falada. Um desses sistemas de comunicação é a língua gestual, amplamente utilizada por pessoas surdas-mudas. Este tipo de linguagem emprega um número limitado de unidades gestuais básicas análogas aos sons da língua falada; Essas unidades são então combinadas para formar palavras maiores e unidades semânticas.

O primeiro chimpanzé a aprender a Língua Americana de Sinais (ASL) foi Washoe, uma fêmea que morreu em 2007 aos 42 anos. Washoe, capturada na África Ocidental, foi confiada em 1966 a R. Allen Gardner e Beatrice Gardner, cientistas da Universidade de Reno, Nevada, quando ela tinha um ano de idade. Quatro anos depois, Washoe mudou-se para Norman, Oklahoma, em uma fazenda que mais tarde foi transformada em Instituto para Estudos de Primatas. Washoe revolucionou o debate sobre a capacidade dos macacos de aprender a língua. No início, ela morava em uma casa móvel e nunca ouviu ninguém falar: em sua presença, os pesquisadores sempre usavam a linguagem de sinais para se comunicar. O chimpanzé gradualmente adquiriu um vocabulário de mais de 100 sinais que representam palavras da língua inglesa. Aos dois anos de idade, Washoe começou a combinar cinco sinais em frases rudimentares, como 'você, eu, saia, logo'.

Outro scimpanzé que tentou aprender a usar a Língua de Sinais, Lucy, mais jovem que Washoe de um ano. Lucy morreu, ou foi morta por caçadores furtivos, em 1986, depois de ser reintroduzida na África 'selvagem' em 1979. De seu segundo dia de vida até se mudar para a África, Lucy viveu com uma família em Norman, Oklahoma. Roger Fonts, um pesquisador empregado pelo Instituto de Estudos de Primatas nas proximidades, visitava a casa de Lucy duas vezes por semana para testar e melhorar suas habilidades em linguagem de sinais. Durante o resto da semana, Lucy usava a linguagem de sinais para conversar com seus pais adotivos. Após a aquisição da linguagem, Washoe e Lucy mostraram inúmeros traços humanos: amaldiçoaram, brincaram, contaram mentiras e tentaram ensinar linguagem a outros animais.

Quando ela estava irritada por algum motivo, Washoe chamou os outros macacos do instituto de 'macacos feios', e insultou Lucy com a expressão de seu 'gato sujo'. Chegando à casa de Lucy, Fouts uma vez encontrou uma pilha de excrementos no chão. Quando perguntado o que era, o macaco respondeu: 'sujo, sujo'.

sua maneira de apontar para as fezes, e quando Fouts perguntou a ela de quem era 'sujo, sujo', Lucy apontou para a colaboradora de Fouts, Sue. Quando o homem a fez entender que ele se recusava a acreditar nela, o chimpanzé acusou o próprio Fouts.

Transmissão cultural

A transmissão cultural de um sistema de comunicação por meio da aprendizagem é um atributo fundamental da linguagem. Washoe, Lucy e outros chimpanzés tentaram ensinar a linguagem de sinais a outros animais, incluindo seus próprios filhos. Washoe havia ensinado alguns gestos a outros chimpanzés na instituição, incluindo seu filho Sequoia, que morreu na infância (Fouts, Fouts e Van Cantfort 1989).

Em virtude de seu tamanho e força adulta, os gorilas provam ser sujeitos menos adequados do que os chimpanzés para tais experimentos. 1 gorila macho adulto pesa cerca de 180 quilos e as fêmeas adultas adultas podem facilmente atingir 110 quilos. Justamente por isso, o trabalho feito pela psicóloga Penny Patterson com gorilas na Universidade de Stanford parece mais 'imprudente' do que o relativo aos experimentos feitos com chimpanzés. Patterson criou sua gorila fêmea (agora totalmente crescida e crescida), Koko, em um trailer perto de um museu de Stanford. O vocabulário de Koko excede o de qualquer outro chimpanzé: o animal usa regularmente 400 sinais de linguagem corporal e já usou cerca de 700 deles pelo menos uma vez.

Koko e os chimpanzés também mostram que os grandes símios compartilham outra habilidade de linguagem com os humanos: a produtividade. Os falantes costumam usar as regras de sua própria língua para criar expressões completamente novas que sejam compreensíveis para outros falantes da mesma língua. Koko, Washoe, Lucy e outros macacos mostraram que os macacos também são capazes de usar a linguagem de forma produtiva. Lucy usou gestos que já conhecia para indicar 'fruttabere' (a melancia); Washoe, ao ver um cisne pela primeira vez, cunhou o termo 'ave aquática' e Koko, que conhecia os gestos correspondentes a 'dedo' e 'pulseira', criou a expressão 'pulseira de dedo' quando ganhava um anel.

Chimpanzés e gorilas têm habilidades de fala rudimentares e podem não ser capazes de desenvolver um sistema gestual na natureza.  No entanto, quando recebem tal sistema, eles demonstram inúmeras habilidades humanas para aprender e usá-lo. Claramente, o uso da linguagem pelos macacos é resultado da intervenção e do ensino humanos: os experimentos mencionados aqui não sugerem que os grandes símios sejam capazes de inventar a linguagem (como, na verdade, nem os bebês humanos o são); no entanto, os macacos bebês conseguiram aprender o básico da língua de sinais, demonstrando que são capazes de usá-la de forma produtiva e criativa, embora não com o nível de destreza e complexidade exibidos pelos humanos que usam a língua de sinais.

Como os humanos, os macacos também podem tentar ensinar sua língua aos outros. Lucy, sem perceber totalmente a diferença entre a mão de um primata e a pata de um felino, uma vez tentou dobrar a pata de seu gato de estimação para fazê-la fazer um sinal da linguagem de sinais americana; Em vez disso, Koko ensinou alguns gestos com as mãos a Michael, um gorila macho seis anos mais novo que ela.

Os grandes símios também demonstraram a capacidade de mover (ou transferir) a linguagem, ausente nos sistemas de memória e um elemento primário da linguagem. Normalmente cada recordação está ligada a um estímulo ambiental, como a alimentação por exemplo; os gritos são emitidos apenas quando tal estímulo está presente. Deslocamento, nesse sentido, significa que os humanos são capazes de falar sobre coisas que não estão imediatamente presentes: não precisamos ver os objetos antes de mencioná-los dizendo o termo correspondente. De facto, as conversas humanas não são limitadas em termos espaciais: podemos discutir o passado e o futuro, compartilhar nossas experiências com outras pessoas e, por sua vez, nos beneficiar delas.

Patterson descreveu vários exemplos da capacidade de transferência de Koko (Patterson 1978): Certa vez, o gorila expressou arrependimento e desapontamento por ter mordido Penny três dias antes. Koko também usou o sinal correspondente a 'depois' para adiar ações que ela não queria fazer.

A origem da linguagem

 

A linguagem proporcionou uma imensa vantagem adaptativa ao Homo sapiens. Ele permite que a sociedade humana acumule uma riqueza de informações excedendo em muito o armazenado por qualquer outro grupo não humano. A linguagem é uma ferramenta excepcionalmente eficaz para a aprendizagem. Como somos capazes de falar sobre coisas com as quais não temos experiência direta, podemos antecipar as respostas antes de encontrarmos os estímulos. O processo de adaptação pode ocorrer mais rapidamente no Homo sapiens do que em outros primatas, pois nossos meios e ferramentas de adaptação são mais flexíveis.

COMUNICAÇÃO NÃO VERBAL

A linguagem é nosso principal meio de comunicação, mas não é o único que usamos: nos comunicamos quando transmitimos informações sobre nós mesmos aos outros e recebemos deles informações semelhantes. Nossas expressões faciais, postura corporal, gestos e movimentos, mesmo que inconscientes, oferecem informações sobre nós e nossos estados de espírito, e fazem parte de nossos estilos de comunicação. Deborah Tannen (1990) ilustrou as diferenças nos estilos de comunicação de homens e mulheres americanos, e seus comentários vão muito além da linguagem: ela observou que as mulheres e meninas americanas tendem a olhar diretamente nos olhos umas das outras enquanto falam, a diferença entre homens e mulheres assuntos. Os machos são mais propensos a olhar para a frente do que se virar e fazer contato visual direto com alguém, especialmente outro homem sentado atrás deles. Além disso, em grupos de conversação, os homens americanos tendem a relaxar e descontrair, enquanto as mulheres americanas, embora possam adotar uma postura semelhante quando estão em grupos compostos apenas por mulheres, na presença de homens tendem a assumir posturas mais rígidas e compostas .

Kinesics é o estudo da comunicação através de movimentos corporais, posturas, gestos e expressões faciais. Relacionado com a cinésica está o exame das diferenças culturais no espaço privado e as demonstrações de afeto ilustradas no capítulo dedicado à cultura. Os linguistas prestam atenção não apenas ao que está sendo dito, mas também a como está sendo dito e às características que vão além da linguagem, mas ainda são significativas. O entusiasmo do orador é expresso não só através de palavras, mas também com expressões faciais, gestos e outros sinais que comunicam uma certa animação. Para dar ênfase, muitas vezes acompanhamos nossas palavras com gestos, como um movimento agitado das mãos; para expressar nossos humores, empregamos formas de comunicar tanto verbal como não verbal: entusiasmo, tristeza, alegria, arrependimento. Variamos o tom e a intensidade de nossas vozes; nos comunicamos por meio de pausas estratégicas e até do silêncio. Uma estratégia de comunicação eficaz pode passar pela alteração do tom de voz, do nível de intensidade vocal e de formas gramaticais específicas, como frases declarativas ('eu sou...'), imperativas ('vamos lá...') e frases interrogativas directas ('Você está...?'). A cultura nos ensina que certos maneirismos e estilos devem acompanhar certos tipos de conversa. O comportamento, tanto verbal quanto não-verbal, que exibimos quando nossa equipe de futebol ganha um grande jogo seria inadequado em um funeral ou quando discutimos um assunto particularmente sério.

A cultura desempenha sempre um papel importante na formação do que é 'natural': os animais comunicam através do cheiro e usam o seu próprio cheiro para marcar o território, explorando assim uma espécie de meio de comunicação 'químico'. Nas sociedades ocidentais, as indústrias que produzem perfumes, cremes dentais e desodorantes partem do conceito de que o sentido olfativo desempenha um papel preponderante na comunicação e nas interações sociais. No entanto, diferentes culturas são mais tolerantes a odores 'naturais' do que a nossa. Num nível intercultural, acenar com a cabeça nem sempre tem um significado afirmativo, assim como balançar a cabeça de um lado para o outro nem sempre tem um significado negativo. Os brasileiros balançam o dedo para dizer não, os americanos dizem 'uh-uh' para fazer uma afirmação, enquanto em Madagascar um som semelhante é usado para expressar discordância. Os padrões de 'ócio' e descanso também variam: ao ar livre, ao descansar, algumas pessoas sentam ou deitam no chão, enquanto outras se agacham e outras ainda sentam com as costas apoiadas no tronco de uma árvore.

Os movimentos corporais comunicam algumas diferenças sociais importantes: os brasileiros de classes sociais mais baixas, especialmente as mulheres, quando estendem a mão para pessoas de classe alta, não a apertam com convicção; em muitas culturas, o aperto de mão masculino parece muito mais

 

Os antropólogos estudam a linguagem em seu contexto social e cultural. A antropologia linguística ilustra o interesse antropológico típico em comparação, variação e mudança. Uma característica fundamental da linguagem é a sua constante mudança. Alguns especialistas em antropologia linguística reconstroem línguas antigas comparando as expressões idiomáticas contemporâneas que se originaram delas, chegando assim a importantes descobertas históricas; Outros estudam as diferenças de linguagem para destacar os vários padrões de pensamento e múltiplas visões de mundo espalhadas por uma infinidade de culturas. Os sociolinguistas examinam a diversidade linguística nos Estados-nação, que vão desde o multilinguismo até os vários dialetos e estilos usados dentro de uma única língua, para mostrar como a linguagem falada reflete uma série de diferenças sociais.

Não há dúvida de que os animais têm a capacidade de se comunicar, as abelhas usam uma dança elaborada para comunicar a presença de água. Os macacos, chimpanzés e outros primatas desenvolveram sistemas de chamadas para comunicar a presença de predadores. Alguns primatas aprenderam a linguagem com sinais para se comunicar, responder perguntas e realizar outras tarefas limitadas. No entanto, a comunicação humana em contraste com a comunicação animal é verbal, usa símbolos convencionais, tem palavras com significados, pode transmitir idéias culturais, envolve uso espontâneo, tomada de turnos, a dupla camada de sons e palavras, referência a objetos não presentes, e presença de estrutura e criatividade. Em nenhum sistema de comunicação animal todos estes critérios estão presentes, nem as estruturas de comunicação de qualquer primata envolvem gramática de qualquer tipo.

Como essa habilidade dos humanos em adquirir a linguagem evoluiu?  Em outras palavras, a seleção natural favoreceu formas entre as quais a capacidade de linguagem se desenvolveu. Várias hipóteses foram oferecidas a respeito do 'porque' da evolução da linguagem, ou seja, porque a capacidade de desenvolver a linguagem. Chomsky argumentou que há uma base cognitiva inata para a linguagem humana, que os bebês estão predispostos ao aprendizado da linguagem e à aquisição da linguagem infantil.   Com relação a quando a capacidade de linguagem começou a evoluir, alguns argumentaram que o Homo erectus, que surgiu na África há cerca de 2 milhões de anos, tinha capacidade para alguma forma de linguagem com base na presença de duas áreas do cérebro relacionadas à linguagem. Os neandertais também são vistos como capazes de falar e de possuir alguma forma de linguagem. Outros especialistas discordam, alegando que a linguagem só apareceu com o Homo sapiens (Lieberman 1998).

A ESTRUTURA DA LINGUAGEM

Como a cultura, a linguagem é padronizada. Como o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1915) apontou, as unidades de linguagem que carregam significado são bilaterais.

1) Dum lado temos as características físicas que compõem a palavra. Essas características consistem em sons, ou vibrações das cordas vocais, transmitidas pelo ar, que emanam de uma pessoa e são recebidas pela orelha de outros.

2) O outro lado consiste no significado da palavra ou o que ela significa. Por exemplo, a palavra árvore é composta de uma série particular de sons - a / r / v -/ o/ r e significa: o mesmo objeto é referido como arbre em francês e tree em inglês e baum em alemão. Assim, a conexão entre qualquer combinação de sons que compõem uma palavra e seu significado é, na maior parte, arbitrária - isto é, não há conexão intrínseca e natural entre os sons de uma palavra e seu significado. Ocasionalmente, há alguma conexão natural entre o som e o significado, como ocorre em palavras que imitam fenômenos naturais, como zumbido e assobio. A linguagem não é, portanto, completamente arbitrária.

Estrutura fonêmica

Mencionamos que a linguagem é padronizada. Vamos começar no nível do som, os blocos de construção da linguagem. Cada língua tem um pequeno número de sons básicos, geralmente entre vinte e quarenta, que são usados em várias combinações para compor as unidades de significado. Essas unidades de som básicas são chamadas de fonemas. Todas as línguas são construídas da mesma maneira. A partir de um pequeno número de fonemas, dispostos de maneiras diferentes, um número infinito de palavras pode ser produzido.

 Assim, os mesmos fonemas em uma ordem diferente produzem uma palavra com um significado diferente. Os fonemas de uma linguagem formam uma estrutura ou sistema. Os fonemas podem ser divididos em vogais e consoantes.

Estrutura Morfêmica

As unidades da linguagem que carregam significado são chamadas de morfemas. Morfemas não são equivalentes a palavras, porque algumas palavras podem ser divididas em unidades menores que carregam significado.  Cada um desses morfemas é, por sua vez, composto de fonemas. Às vezes, duas ou mais formas, isto é, combinações de fonemas, têm o mesmo significado. Toda língua tem a sua própria estrutura morfêmica.

RELATIVIDADE LINGUÍSTICA

Quando os linguistas começaram a encontrar línguas não relacionadas ao indo-europeu, uma família linguística cujas línguas eram faladas na Europa, eles pensaram (incorretamente) que as línguas recém-descobertas como aquelas faladas pelos nativos africanos poderiam ser analisadas em termos de categorias gramaticais latinas. Esses linguistas eram etnocêntricos em sua abordagem e denominavam idiomas “avançados” se fossem falados por pessoas que eram “civilizadas”. Dizia-se que Bushmen e Pigmeus eram considerados em um nível cultural mais baixo, falavam línguas “primitivas”.  Boas demonstrou convincentemente que era necessário analisar cada idioma em termos de sua própria estrutura.

UNIVERSAIS LINGUÍSTICOS

Anteriormente, apontamos que a antropologia usa o método comparativo para investigar semelhanças culturais e diferenças culturais. A linguística adota a mesma abordagem. As diferenças entre as línguas são imediatamente evidentes e as semelhanças apontam para os universais na linguagem. Existem duas abordagens para descobrir os universais na linguagem. Na primeira abordagem a  conclusão é: todas as línguas têm vogais e consoantes, substantivos e verbos e alguma forma de construção negativa. A segunda abordagem é baseada na ideia de Noam Chomsky: existe na mente humana uma gramática universal, uma “faculdade de linguagem”, que é baseada na estrutura cognitiva. Enquanto a primeira abordagem é empírica e indutiva, a segunda, que discutimos anteriormente, é altamente teórica e dedutiva.

LINGUAGEM E COGNIÇÃO

Existe uma relação íntima e próxima entre linguagem e experiência. O estudo de Boas sobre a língua Kwakiutl, que o levou ao seu conceito de relatividade linguística, inclui uma discussão de como, em kikongo, o falante deve indicar como ele ou ela sabe sobre uma ação que outras pessoas estão realizando. Por exemplo, na frase: «Mwana nkento mu sukula kena». É necessário, em kikongo, fazer as seguintes distinções: O orador realmente viu a mulher lavando a roupa? O locutor inferiu que ela estava lavando roupas a partir do barulho que ouviu? Se a mulher lava habitualmente a sua roupa usar-se-à outra forma verbal: «Mwana nkento osukulanga»  Boas fez a observação geral de que, em todas as línguas, as regras gramaticais são obrigatórias. Os falantes kikongo geralmente não estão cientes dessas regras gramaticais, embora guiem todos os enunciados. Boas apontou que tais regras gramaticais permanecem inconscientes. A relação entre a linguagem e como a sociedade organiza a experiência também foi explorada pelo estudante de Boas, Edward Sapir. Ele argumentou que a linguagem era um guia para a realidade social. As conceituações do mundo real são vistas, em grande medida, como baseadas inconscientemente no uso da linguagem de uma sociedade.

ETNOSEMANTICA

Existe uma conexão estreita entre a maneira como a linguagem é organizada e a maneira como a cultura é organizada. Isso pode ser visto mais claramente pelo exame de um domínio cultural específico, como a organização e classificação do mundo dos animais, o mundo das plantas ou o sistema de cores. Todas as línguas bantas dividem os seres num determinado número de classes.  Em kikongo, há a primeira classe se refere a pessoas em geral, a segunda classe abrange nomes de pessoas constituídas em dignidade, parentesco. A terceira classe reune nomes concretos referidos a seres vivos, árvores, partes do corpo; e assim por diante (Del Fabbro-Petterlini 1977: 27-38). O mundo dos animais é separável de outros domínios do mundo. É distinto do domínio das plantas, embora ambos estejam vivos em contraste com o mundo inanimado de rochas e solos.

 Cada linguagem emprega sua própria lógica cultural ao fazer classificações. A investigação antropológica deste tópico é conhecida como etnosemântica.

Saussure fez uma distinção entre langue e parole, isto é, entre linguagem e fala. Para obter informações sobre um idioma, o pesquisador de campo observa e registra muitos exemplos de fala. Esses exemplos são analisados para se obter uma imagem da gramática, ou estrutura subjacente, da “langue” dessa linguagem.

A sociolinguística

 Recentemente, os antropólogos linguistas têm se interessado por um modo mais integrativo de entender como a linguagem organiza a vida social. A linguagem é parte integrante da construção da vida social; Ele também fornece uma janela sobre o processo social. A linguagem forja a compreensão cultural compartilhada e atua como um meio de troca social e conexão entre as pessoas. No entanto, assim como as escolhas comportamentais (ou a agência) de cada indivíduo são limitadas pelas regras de sua estrutura social, também os padrões de fala são limitados pela gramática da linguagem. O padrão da fala usado pelos indivíduos fornece a força inicial para a mudança de linguagem.

Discurso masculino e feminino

Em muitas sociedades, há distinções entre fala masculina e feminina, embora, é claro, homens e mulheres falem entre si como membros da mesma comunidade de fala. À medida que os bebês e as crianças pequenas aprendem sua língua e sua cultura, eles estão simultaneamente aprendendo o comportamento feminino e específico do sexo masculino, bem como formas apropriadas de fala relacionadas ao género. Recentemente, essa simples oposição binária entre masculino e feminino foi substituída por «género» um conceito que traduz uma gama de modalidades femininas e masculinas disponíveis aos falantes em qualquer ponto no tempo. Em uma pesquisa de diferenças entre a competência comunicativa masculina e feminina (que significa gramática e adequação de uso) em vários contextos linguísticos em Angola, se observa que os homens dominam a conversa em vários ambientes diferentes, embora não todos, interrompendo as mulheres que controlam os tópicos da conversa e ficam em silêncio. Os homens falam mais, juram mais e usam formas imperativas para fazer as coisas. Em contraste, as mulheres usam mais discurso experimental, usam mais formas linguísticas associadas ao seu mundo e fazem um uso maior de respostas mínimas (como 'uh-huh') para indicar o apoio ao palestrante. Nas conversas dos velhos, um padrão diferente surge. Enquanto os homens discordam ou ignoram as expressões do outro, o estilo das mulheres nas conversas com outras mulheres é colaborativo. Elas tendem a falar sobre pessoas e sentimentos, e não sobre coisas. Em contraste, os homens buscam um estilo de competitividade, afirmação individual e poder, e discutem assuntos atuais, viagens e desporte. A maioria dos homens é orientada e condicionada pelas “normas hegemônicas da masculinidade ”.

 género e linguagem no local de trabalho também tem sido objeto de pesquisa há algum tempo. Pesquisas iniciais mostraram que, para a interação profissional-leiga, como entre médicos e pacientes, o género é um fator significativo.  Abordagens mais recentes se concentraram em como homens e mulheres usando o discurso no local de trabalho constroem posições de igualdade ou autoridade dependendo do contexto. Quando as mulheres assumiram posições de autoridade, a natureza do local de trabalho e os estilos discursivos usados ​​tornaram-se mais complexos.

 As mulheres com aspirações à liderança enfrentam um dilema - a menos que aprendam a operar nos estilos masculinos que dominam tantos locais de trabalho, elas não serão levadas a sério. . As mulheres nem sempre assumem um papel subordinado usando formas educadas de discurso, em contraste com o estilo assertivo da fala masculina. Entre os Bakongo se observa que os homens tendem a não expressar seus sentimentos abertamente, não são conflituosos, não mostram raiva e se comportam com discrição, especialmente em ocasiões cerimoniais. Em contraste, as mulheres tendem a falar de maneira direta, expressando diretamente a raiva e as críticas que podem insultar a pessoa a ser abordada.

Morte da língua 

Quando uma língua morre, isso significa que a cultura morreu junto com ela? A linguagem é frequentemente usada como um importante marcador de identidade cultural ou étnica, como apontamos para os afro-americanos. Quando uma comunidade é bilíngue na sua língua nacional e na língua dominante do estado-nação, descobrimos que cada idioma pode ter suas próprias funções e que mudar de um idioma para outro segue padrões previsíveis. Mesmo quando a tendência para o monolinguismo progride, e somente a geração dos avós fala fluentemente a língua indígena, padrões subjacentes podem ser perpetuados.  Woodbury conclui que, embora não possamos presumir que uma cultura tenha morrido quando uma língua morreu, uma maneira fundamental de organizar o mundo circundante eventualmente desaparece quando uma língua morre, porque simplesmente não pode ser traduzida nas palavras e frases da língua dominante. De acordo com Woodbury, “a perda de uma linguagem leva a um desmoronamento, ou reestruturação, ou reavaliação da tradição cultural” (1993: 14). Uma grande erosão das línguas indígenas ocorreu após a colonização português. A recente resposta de muitos grupos indígenas angolanos, como o Bakongo, foi de manter e rejuvenescer a própria língua desenvolvendo materiais da língua local usando o alfabeto fonético para ensinar a língua a seus filhos em um ambiente escolar.

 

Quais são as maneiras pelas quais os indivíduos nascidos numa determinada sociedade aprendem a sua língua e a sua cultura, e os comportamentos que os indivíduos nessa cultura consideram apropriados? Qual é a relação do indivíduo com a sua cultura, as diferentes personalidades dentro das culturas e as formas de lidar com os indivíduos cujo comportamento está fora das normas da sua cultura? Isso se relaciona com a maneira de encarar as doenças mentais em determinadas culturas e como os inovadores e rebeldes, em determinadas sociedades são considerados doentes mentais.

COMO AS CRIANÇAS APRENDEM 

O aprendizado da língua começa antes mesmo do nascimento da criança. Recentes estudos e técnicas de pesquisa mostraram que o feto pode ouvir e distinguir a voz de sua mãe dos outros sons, como a música ou ruído, filtrados pelo líquido amniótico, já no último trimestre antes do nascimento. Os estímulos auditivos provocam mudanças na frequência cardíaca do feto e nas respostas motoras, como chutar. Como se demonstrou o recém-nascido identifica imediatamente a voz de sua mãe, fica claro que esse reconhecimento é aprendido no período pré-natal, quando o feto aprendeu a reconhecer os tons de voz e o estresse da mãe (Karmiloff e Karmiloff-Smith 2001: 43-44). . Estudos sobre a percepção da fala dos bebês mostraram que “os bebês quando nascem percebem quase todas as tonalidades da voz e são capazes de. . . aprender qualquer linguagem natural ”(Tomasello e Bates 2001: 16). Aos quatro dias ou mais cedo, os recém-nascidos sabem distinguir os fonemas e perceber as sílabas. Eles podem distinguir a diferença entre as características rítmicas da linguagem da mãe e outras línguas. Os bebês franceses chupam com mais força quando ouvem francês e menos quando ouvem russo. Entre seis e doze meses, as crianças perdem a capacidade de perceber os contrastes da fala enquanto se esforçam de dominar a estrutura sonora da própria comunidade de linguística. Há uma linguagem especial que as mães usam quando interagem com seus bebês. Em algumas culturas, as mães podem falar com o feto. Repetições e perguntas com entonação ascendente são usadas para atrair a atenção da criança. O “tom agudo e exagerado de entonação do bebê [torna] especialmente interessante para as crianças” (2007: 110). Isso serve para demonstrar que “a dinâmica da interação social desempenha um papel no interesse prestado pela criança frente à linguagem”. No entanto, Schieffelin mostrou que em algumas culturas os pais mal falam com seus bebês até que estes produzam a fala. Nesse ponto, eles conversam com a criança em linguagem adulta (1985). Há uma considerável mudança transcultural na medida em que os pais e outros adultos modificam a sua fala quando se dirigem às crianças ou até falam diretamente com crianças, mas as crianças ainda aprendem a língua, portanto o desenvolvimento da linguagem não pode depender da linguagem usada pela mãe quando se dirige á criança.

Os bebês inicialmente respondem às diferenças fonéticas de uma maneira “neutra em termos de linguagem, mas sua percepção da língua  torna-se mais específica até o final do primeiro ano de vida” (Polka et al. 2007: 156). A de seis meses, os bebês adquirem a capacidade de distinguir o som da vogal duma língua diferente e começam a declinar (Gerken 2007: 175). Há portanto um “filtro do idioma nativo” que entra em acção. A criança também se familiariza com o padrão de palavras e com o padrão de estresse, usado muitas vezes pela mãe. Nem sempre os bebes são capazes de detectar o significado da linguagem adulta.

Até agora, temos nos preocupado com a percepção infantil da fala, mas o que dizer da produção de fala pelos bebês? Entre dois e três meses de idade, o bebê aprende a criar sons, o bebê produz sons não-lingüísticos; entre quatro e seis meses, seu balbucio marginal consiste em sons semelhantes a vogais e consoantes; a partir de sete meses, há uma passagem para as vogais e consoantes tais como  são produzidas; aos dez meses, a língua nativa do bebê começa a afetar os tipos de sons produzidos; logo após o primeiro ano, a produção de palavras geralmente começam (Karmiloff e Karmiloff-Smith 2001: 56, 57). A construção do vocabulário infantil relaciona-se a fatores externos como o sexo - as meninas tendem a produzir a linguagem mais cedo do que os meninos porque o cérebro das meninas amadurece um pouco mais rápido. A competência e inteligência linguística das mães, o nível socioeconômico materno, a educação dos pais, a competência social e as atitudes em relação à educação dos filhos também são fatores relacionados à maneira como os pais interagem com a criança (Karmiloff e Karmiloff-Smith 2001: 60). Embora os bebês não produzam palavras compreensíveis até entre doze e vinte meses, eles podem entender as palavras antes desse ponto. Foi recentemente demonstrado que crianças até quatorze meses também podem aprender palavras referidas a objetos (Disendruck 2007: 271). Como Saffran e Thiessen observam, “um processo que é crítico para a aprendizagem de palavras é a capacidade de detectar correspondência entre palavras e objetos e formar uma associação entre eles” (2007: 74). Aos vinte e quatro meses, as crianças pequenas podem produzir cinquenta palavras diferentes. A princípio, palavras isoladas são usadas para designar conceitos e categorias inteiras - o uso da palavra cachorro para todos os animais de quatro patas. Aprender os significados das palavras não ocorre no vácuo. O desenvolvimento cognitivo e os constrangimentos sociais (isto é, aspectos do ambiente social da criança) desempenham um papel na aprendizagem de línguas. Como Baldwin e Meyer notam: “Desde os 12 meses de idade, as próprias crianças se deixam conduzir pelo indicações provenientes dos adultos para formular as inferências sobre referência e significado” (2007: 100 ). De acordo com as evidências, a idade em que os bebês começam a detectar primórdios de sintaxe varia de sete meses para o meio e o segundo ano (Gerken 2007: 184-85).

APREENDENDO A CULTURA

A aprendizagem de formas linguísticas  específicas está intimamente relacionada ao contexto cultural no qual a aprendizagem ocorre.

Portanto as crianças são educadas e crescem partilhando «normas comportamentais específicas centradas no respeito são necessárias para fazer a sociedade funcionar e garantir a sobrevivência» (Bolin 2006: 151). Esta é uma sociedade igualitária onde as crianças são «introduzidas numa cultura de respeito'. . . para outras pessoas e as divindades, mas [também]. . . para todas as formas de vida» (Bolin 2006: 33). As crianças são criadas numa atmosfera permissiva e, em tenra idade, são «introduzidas na lei não escrita da reciprocidade, que marca toda a vida kongo». Eles crescem dentro de uma família extensa e participam de atividades adultas, aprendendo através da observação em um ambiente onde as crianças são tratadas com respeito e assumem tarefas de trabalho quando se sentem prontas para elas. Embora a norma de reciprocidade também seja encontrada em muitas outras sociedades, há pouca informação sobre quando ela é introduzida no ciclo de vida. A autossuficiência é uma característica mais valorizada em algumas sociedades do que em outras. Com a idade de quatro anos ou até mais cedo, as crianças percebem que as pessoas podem ter falsas crenças e mentiras. Eles aprendem a dizer quando os outros estão mentindo para eles e também como se mente. As crianças aprendem a lidar com mentiras sociais. No entanto, é errado mentir para os filhos pequenos. Diferentes culturas enfatizam valores diferentes nas suas práticas de educação infantil. Enquanto alguns enfatizam sinceridade e autoconfiança, outros enfatizam exatamente o oposto - que a criança deve aprender sua posição subordinada adequada em relação aos mais velhos. Algumas culturas enfatizam a necessidade de promover o apego entre pai e filho, e outros ensinam a criança a mentir para manter os sentimentos verdadeiros dos outros. É evidente que cada cultura favorece um certo tipo de pessoa. Para conseguir isso, as crianças são criadas para se comportarem de maneiras culturalmente desejáveis.

São como dois lados de uma moeda. A linguagem é uma parte da cultura, no entanto, é mais do que isso, pois a linguagem é o meio pelo qual a cultura é comunicada, expressa e aprendida. Com o desenvolvimento da cultura humana, alguns meios de comunicação - uma linguagem - também foram desenvolvidos. Somente os humanos têm capacidade para linguagem, gramática, sintaxe e fala. Em qualquer idioma, um número ilimitado de sentenças possíveis pode ser construído e usado para transmitir um número infinito de idéias culturais. Isso permite que os humanos comuniquem idéias culturais e significados simbólicos de uma geração a outra de forma cumulativa, e constantemente criem novas idéias culturais. Por causa disso, a linguagem humana é significativamente diferente de qualquer outro sistema de comunicação animal. A linguagem classifica o mundo ao nosso redor. Classifica as coisas; classifica ações; classifica nossas experiências. Objetos e eventos são ordenados por idioma em categorias de tempo e espaço. Isso é o que a “gramática” faz além de executar muitas outras funções. Cada idioma tem sua própria gramática. A “lógica” de uma cultura é também a “lógica” da sua linguagem, como ela ordena o mundo.

 

A EVOLUÇÃO DA LÍNGUA


Não há dúvida de que os animais têm a capacidade de se comunicar, as abelhas usam uma dança elaborada para comunicar a presença de água. Os macacos, chimpanzés e outros primatas desenvolveram sistemas de chamadas para comunicar a presença de predadores. Alguns primatas aprenderam a linguagem com sinais para se comunicar, responder perguntas e realizar outras tarefas limitadas. No entanto, a comunicação humana em contraste com a comunicação animal é verbal, usa símbolos convencionais, tem palavras com significados, pode transmitir idéias culturais, envolve uso espontâneo, tomada de turnos, a dupla camada de sons e palavras, referência a objetos não presentes, e presença de estrutura e criatividade. Em nenhum sistema de comunicação animal todos estes critérios estão presentes, nem as estruturas de comunicação de qualquer primata envolvem gramática de qualquer tipo.
Como essa habilidade dos humanos em adquirir a linguagem evoluiu? Em outras palavras, a seleção natural favoreceu formas entre as quais a capacidade de linguagem se desenvolveu. Várias hipóteses foram oferecidas a respeito do 'porque' da evolução da linguagem, ou seja, porque a capacidade de desenvolver a linguagem. Chomsky argumentou que há uma base cognitiva inata para a linguagem humana, que os bebês estão predispostos ao aprendizado da linguagem e à aquisição da linguagem infantil. Com relação a quando a capacidade de linguagem começou a evoluir, alguns argumentaram que o Homo erectus, que surgiu na África há cerca de 2 milhões de anos, tinha capacidade para alguma forma de linguagem com base na presença de duas áreas do cérebro relacionadas à linguagem. Os neandertais também são vistos como capazes de falar e de possuir alguma forma de linguagem. Outros especialistas discordam, alegando que a linguagem só apareceu com o Homo sapiens (Lieberman 1998).

 

A ESTRUTURA DA LINGUAGEM


Como a cultura, a linguagem é padronizada. Como o linguista suíço Ferdinand de Saussure (1915) apontou, as unidades de linguagem que carregam significado são bilaterais.

 
1) Dum lado temos as características físicas que compõem a palavra. Essas características consistem em sons, ou vibrações das cordas vocais, transmitidas pelo ar, que emanam de uma pessoa e são recebidas pela orelha de outros.
2) O outro lado consiste no significado da palavra ou o que ela significa. Por exemplo, a palavra árvore é composta de uma série particular de sons - a / r / v -/ o/ r e significa: o mesmo objeto é referido como arbre em francês e tree em inglês e baum em alemão. Assim, a conexão entre qualquer combinação de sons que compõem uma palavra e seu significado é, na maior parte, arbitrária - isto é, não há conexão intrínseca e natural entre os sons de uma palavra e seu significado. Ocasionalmente, há alguma conexão natural entre o som e o significado, como ocorre em palavras que imitam fenômenos naturais, como zumbido e assobio. A linguagem não é, portanto, completamente arbitrária.

Estrutura fonêmica

Mencionamos que a linguagem é padronizada. Vamos começar no nível do som, os blocos de construção da linguagem. Cada língua tem um pequeno número de sons básicos, geralmente entre vinte e quarenta, que são usados em várias combinações para compor as unidades de significado. Essas unidades de som básicas são chamadas de fonemas. Todas as línguas são construídas da mesma maneira. A partir de um pequeno número de fonemas, dispostos de maneiras diferentes, um número infinito de palavras pode ser produzido.
Assim, os mesmos fonemas em uma ordem diferente produzem uma palavra com um significado diferente. Os fonemas de uma linguagem formam uma estrutura ou sistema. Os fonemas podem ser divididos em vogais e consoantes.

Estrutura Morfêmica


As unidades da linguagem que carregam significado são chamadas de morfemas. Morfemas não são equivalentes a palavras, porque algumas palavras podem ser divididas em unidades menores que carregam significado. Cada um desses morfemas é, por sua vez, composto de fonemas. Às vezes, duas ou mais formas, isto é, combinações de fonemas, têm o mesmo significado. Toda língua tem a sua própria estrutura morfêmica.

RELATIVIDADE LINGUÍSTICA

Quando os linguistas começaram a encontrar línguas não relacionadas ao indo-europeu, uma família linguística cujas línguas eram faladas na Europa, eles pensaram (incorretamente) que as línguas recém-descobertas como aquelas faladas pelos nativos africanos poderiam ser analisadas em termos de categorias gramaticais latinas. Esses linguistas eram etnocêntricos em sua abordagem e denominavam idiomas “avançados” se fossem falados por pessoas que eram “civilizadas”. Dizia-se que Bushman e Pigmeus eram considerados em um nível cultural mais baixo, falavam línguas “primitivas”. Boas demonstrou convincentemente que era necessário analisar cada idioma em termos de sua própria estrutura.

UNIVERSAIS LINGUÍSTICOS

Anteriormente, apontamos que a antropologia usa o método comparativo para investigar semelhanças culturais e diferenças culturais. A linguística adota a mesma abordagem. As diferenças entre as línguas são imediatamente evidentes e as semelhanças apontam para os universais na linguagem. Existem duas abordagens para descobrir os universais na linguagem. Na primeira abordagem a conclusão é: todas as línguas têm vogais e consoantes, substantivos e verbos e alguma forma de construção negativa. A segunda abordagem é baseada na ideia de Noam Chomsky: existe na mente humana uma gramática universal, uma “faculdade de linguagem”, que é baseada na estrutura cognitiva. Enquanto a primeira abordagem é empírica e indutiva, a segunda, que discutimos anteriormente, é altamente teórica e dedutiva.

 

LINGUAGEM E COGNIÇÃO

Existe uma relação íntima e próxima entre linguagem e experiência. O estudo de Boas sobre a língua Kwakiutl, que o levou ao seu conceito de relatividade linguística, inclui uma discussão de como, em kikongo, o falante deve indicar como ele ou ela sabe sobre uma ação que outras pessoas estão realizando. Por exemplo, na frase: «Mwana nkento mu sukula kena». É necessário, em kikongo, fazer as seguintes distinções: O orador realmente viu a mulher lavando a roupa? O locutor inferiu que ela estava lavando roupas a partir do barulho que ouviu? Se a mulher lava habitualmente a sua roupa usar-se-à outra forma verbal: «Mwana nkento osukulanga» Boas fez a observação geral de que, em todas as línguas, as regras gramaticais são obrigatórias. Os falantes kikongo geralmente não estão cientes dessas regras gramaticais, embora guiem todos os enunciados. Boas apontou que tais regras gramaticais permanecem inconscientes. A relação entre a linguagem e como a sociedade organiza a experiência também foi explorada pelo estudante de Boas, Edward Sapir. Ele argumentou que a linguagem era um guia para a realidade social. As conceituações do mundo real são vistas, em grande medida, como baseadas inconscientemente no uso da linguagem de uma sociedade.

ETNOSEMANTICA

Existe uma conexão estreita entre a maneira como a linguagem é organizada e a maneira como a cultura é organizada. Isso pode ser visto mais claramente pelo exame de um domínio cultural específico, como a organização e classificação do mundo dos animais, o mundo das plantas ou o sistema de cores. Todas as línguas bantas dividem os seres num determinado número de classes. Em kikongo, há a primeira classe se refere a pessoas em geral, a segunda classe abrange nomes de pessoas constituídas em dignidade, parentesco. A terceira classe reune nomes concretos referidos a seres vivos, árvores, partes do corpo; e assim por diante (Del Fabbro-Petterlini 1977: 27-38). O mundo dos animais é separável de outros domínios do mundo. É distinto do domínio das plantas, embora ambos estejam vivos em contraste com o mundo inanimado de rochas e solos.
Cada linguagem emprega sua própria lógica cultural ao fazer classificações. A investigação antropológica deste tópico é conhecida como etnosemântica.
Saussure fez uma distinção entre langue e parole, isto é, entre linguagem e fala. Para obter informações sobre um idioma, o pesquisador de campo observa e registra muitos exemplos de fala. Esses exemplos são analisados para se obter uma imagem da gramática, ou estrutura subjacente, da “langue” dessa linguagem.

A sociolinguística

Recentemente, os antropólogos linguistas têm se interessado por um modo mais integrativo de entender como a linguagem organiza a vida social. A linguagem é parte integrante da construção da vida social; Ele também fornece uma janela sobre o processo social. A linguagem forja a compreensão cultural compartilhada e atua como um meio de troca social e conexão entre as pessoas. No entanto, assim como as escolhas comportamentais (ou a agência) de cada indivíduo são limitadas pelas regras de sua estrutura social, também os padrões de fala são limitados pela gramática da linguagem. O padrão da fala usado pelos indivíduos fornece a força inicial para a mudança de linguagem.

Discurso masculino e feminino

Em muitas sociedades, há distinções entre fala masculina e feminina, embora, é claro, homens e mulheres falem entre si como membros da mesma comunidade de fala. À medida que os bebês e as crianças pequenas aprendem sua língua e sua cultura, eles estão simultaneamente aprendendo o comportamento feminino e específico do sexo masculino, bem como formas apropriadas de fala relacionadas ao género. Recentemente, essa simples oposição binária entre masculino e feminino foi substituída por «género» um conceito que traduz uma gama de modalidades femininas e masculinas disponíveis aos falantes em qualquer ponto no tempo. Em uma pesquisa de diferenças entre a competência comunicativa masculina e feminina (que significa gramática e adequação de uso) em vários contextos linguísticos em Angola, se observa que os homens dominam a conversa em vários ambientes diferentes, embora não todos, interrompendo as mulheres que controlam os tópicos da conversa e ficam em silêncio. Os homens falam mais, juram mais e usam formas imperativas para fazer as coisas. Em contraste, as mulheres usam mais discurso experimental, usam mais formas linguísticas associadas ao seu mundo e fazem um uso maior de respostas mínimas (como 'uh-huh') para indicar o apoio ao palestrante. Nas conversas dos velhos, um padrão diferente surge. Enquanto os homens discordam ou ignoram as expressões do outro, o estilo das mulheres nas conversas com outras mulheres é colaborativo. Elas tendem a falar sobre pessoas e sentimentos, e não sobre coisas. Em contraste, os homens buscam um estilo de competitividade, afirmação individual e poder, e discutem assuntos atuais, viagens e desporte. A maioria dos homens é orientada e condicionada pelas “normas hegemônicas da masculinidade”.
género e linguagem no local de trabalho também tem sido objeto de pesquisa há algum tempo. Pesquisas iniciais mostraram que, para a interação profissional-leiga, como entre médicos e pacientes, o género é um fator significativo. Abordagens mais recentes se concentraram em como homens e mulheres usando o discurso no local de trabalho constroem posições de igualdade ou autoridade dependendo do contexto. Quando as mulheres assumiram posições de autoridade, a natureza do local de trabalho e os estilos discursivos usados tornaram-se mais complexos.
As mulheres com aspirações à liderança enfrentam um dilema - a menos que aprendam a operar nos estilos masculinos que dominam tantos locais de trabalho, elas não serão levadas a sério. . As mulheres nem sempre assumem um papel subordinado usando formas educadas de discurso, em contraste com o estilo assertivo da fala masculina. Entre os Bakongo se observa que os homens tendem a não expressar seus sentimentos abertamente, não são conflituosos, não mostram raiva e se comportam com discrição, especialmente em ocasiões cerimoniais. Em contraste, as mulheres tendem a falar de maneira direta, expressando diretamente a raiva e as críticas que podem insultar a pessoa a ser abordada.

Morte da língua

Quando uma língua morre, isso significa que a cultura morreu junto com ela? A linguagem é frequentemente usada como um importante marcador de identidade cultural ou étnica, como apontamos para os afro-americanos. Quando uma comunidade é bilíngue na sua língua nacional e na língua dominante do estado-nação, descobrimos que cada idioma pode ter suas próprias funções e que mudar de um idioma para outro segue padrões previsíveis. Mesmo quando a tendência para o monolinguismo progride, e somente a geração dos avós fala fluentemente a língua indígena, padrões subjacentes podem ser perpetuados. Woodbury conclui que, embora não possamos presumir que uma cultura tenha morrido quando uma língua morreu, uma maneira fundamental de organizar o mundo circundante eventualmente desaparece quando uma língua morre, porque simplesmente não pode ser traduzida nas palavras e frases da língua dominante. De acordo com Woodbury, “a perda de uma linguagem leva a um desmoronamento, ou reestruturação, ou reavaliação da tradição cultural” (1993: 14). Uma grande erosão das línguas indígenas ocorreu após a colonização português. A recente resposta de muitos grupos indígenas angolanos, como o Bakongo, foi de manter e rejuvenescer a própria língua desenvolvendo materiais da língua local usando o alfabeto fonético para ensinar a língua a seus filhos em um ambiente escolar.

Bibliografia

Kottak, C. P. (2012). Antropologia culturale. McGraw-Hill.

Tannen, D. (1996). Gender and Discourse. Oxford University Press.

Lieberman, P. (1984). The Biology and Evolution of Language. Harvard University Press.

Barnard, A. (2007). Anthropology and the Bushman. Oxford: Berg.

Jean, F. (1938). Leçons de Kikongo. Grammaire et exercise. Tumba: Mission Catholique.

Del Fabbro, R., & Petterlini, F. (1977). Gramática Kikongo. Padova: Laboratório di restauro di Santa Giustina.

Hudson, R. A. (2000). La Sociolínguistica. Anagrama.

Mead, M. (1971). Macho e Fêmea. Petrópolis: Vozes.

Woodbury, A. (1981). Study of Chevak Dialect of Central Yup’ik Eskimo. University of California.

 

9ª Lição 9 de Junho 2023: Histórias de vida

Premissa

O que significa ser um antropólogo ou sociólogo nativo? Existe uma antropologia nativa? Se sim, como ela difere da antropologia não nativa? Como a antropologia é tradicionalmente uma disciplina que estuda o 'Outro' e se propõe como objetivo “apreender o ponto de vista do nativo?”, a questão do nativismo é importante. No entanto, não tem recebido a atenção que merece. Esta lição aborda a questão das história de vida e questiona seus significados e suas implicações para o conhecimento antropológico. A lição argumenta que a antropologia como disciplina, ou seja, como campo regulado por uma epistemologia específica e certas regras para seus escritos conferem aos seus adeptos uma identidade específica que os torna parte integrante de um mesmo templo. No entanto, a lição também mostra que a antropologia requer uma dupla pertença.

Desde a publicação de Writing Culture em 1986 , os antropólogos reconheceram melhor que seu ofício é antes de tudo escrever e que escrever não é apenas um meio pelo qual se compreende o real, mas, ao contrário, é uma maneira de dar-lhe significado (Clifford, Marcus 1986).

O que é a historia de vida

Uma história de vida é um método qualitativo, uma descrição aprofundada da vida de um indivíduo em relação ao pesquisador. Os antropólogos diferem nas suas opiniões acerca da história de vida como um método de antropologia cultural. No início do século 20, Franz Boas rejeitou este método como não científico, uma vez que os participantes podiam mentir ou exagerar (Peacock e Holland 1993). Outros discordam dessa perspectiva, argumentando que uma história de vida contém informações muito ricas sobre os indivíduos e sua maneira de pensar, independentemente do quanto eles possam 'distorcê-la'. Por exemplo, alguns antropólogos questionaram a precisão de algumas partes de Nisa: A vida e os tempos de uma mulher !Kung (Shostak  , 1981), provavelmente a história de vida mais lida no Japão.

Entrevista técnica investigativa envolve a colecta de dados verbais por meio de perguntas ou conversa dirigida entre pelo menos duas pessoas.

O questionário, um instrumento formal de pesquisa que contém um conjunto preliminar de perguntas feitas pelo antropólogo em uma situação face a face, por correio ou e-mail.  É a história do tamanho de um livro de uma mulher Ju / Wasi do deserto de Kalahari, no sul da África. Apresentado na voz de Nisa, o livro oferece detalhes muito ricos sobre a sua infância e vários casamentos. O valor da narrativa não se baseia na veracidade dos fatos, mas no que aprendemos com Nisa, que é o que ela quer nos ensinar, como ela entende suas experiências para além da veracidade de sua história. As narrativas são 'dados' em antropologia cultural, então é 'verdade' o que diz a Marjorie Shostak .

História de vida como método antropológico

A história de vida não oferece os "dados” como tradicionalmente a pesquisa etnográfica oferece ao antropólogo convencional, com certeza constitui uma rica tentativa de reunir material útil para a sucessiva reflexão antropológica que sintetiza aquilo que o trabalho de campo forneceu. O estilo com a qual se apresenta é autobiografico e portanto a sua postura abertamente subjectiva. “Certamente não é ficção, embora os documentos de história de vida mais interessantes tenham uma sensibilidade, um ritmo e uma urgência dramática que qualquer romancista adoraria conseguir” (Becker, 1993, p. 212).

As histórias de vida exigem um trabalho de campo específico realizado com métodos particulares. Nas histórias de vida o impacto com a realidade é emocional e dramático, recorre a forma e fantasia, e cria um mundo simbolico e artisticamente unificado. A fidelidade para com o mundo  é um aspecto de importância menor.

A história de vida segue uma estrutura narrativa, que espelha as histórias existenciais e muitas vezes podem aparecer ambíguas e nem sempre 'relacionadas à experiência' ou amplamente dominadas por uma forma cultural ou estrutura narrativa típica.

O indivíduo que conta se organiza em torno a eventos significativos para si e sua família e muitas vezes a estrutura cultural da narrativa prevalece, produzindo uma ficção cultural .  Para o pesquisador pode costituir uma dificuldade ao ver que a realidade histórica se mimetiza  com a experiência de quem conta. “Até que ponto as histórias relatam ou descrevem eventos ou experiências conforme eles ocorreram? Ou vice-versa, até que ponto as narrativas culturais clássicas constroem «acontecimentos», dão significado a acontecimentos ou experiências? Ou seja, até que ponto eles produzem o que entendemos por evento ou história de uma experiência”? (Good, 1999, p. 213). Os acontecimentos se organizam seguindo os parametros culturais da tradição oral que numa literatura que nos oferece as ferramentas analíticas para olharmos os problemas sob uma nova luz da antropologia.

A posição do narrator

O autor da narração se propõe de explicar a sua vida para nós, e, assim, se manifesta a conexão entre aquilo que conta e os dados que a pesquisa do antropologo poderia ter descoberto. Quem conta só nos está contando uma parte da história, ele proprio selecionou aquilo que convinha e ignorou o que era desagradável, embora de grande interesse para nós.

Na história de vida contada há uma boa dose de imaginação e fantasia mas somente manifesta o que nos interessa quando saberemos despir dos nossos interesses para deixar falar a nossa amostra sem interferir. Em termos técnicos esta disposição chama-se fazer-se um com o nosso interlocutor, sem interferir. O investigador deve abandonar seus interesses e deixar falar até que se estabelece uma empatia tal que lhe permite por algumas perguntas. Não nos devemos dedicar mais às nossas propostas do que às do autor, o nosso interesse é de um relato fiel da experiência e somos levados a deixar de lado a interpretação por parte do sujeito do mundo no qual vive. Mas a regra numero um é assumir o ponto de vista de quem fala como base interpretativa da realidade. “O sociólogo que colecta uma história de vida cumpre etapas para garantir que ela abranja tudo o que quer conhecer, que nenhum fato ou acontecimento importante seja desconsiderado, que o que parece real se ajuste a outras evidências disponíveis e que a interpretação do sujeito seja apresentada honestamente” (Becker, 1993, p. 102). O investigador deve manter o sujeito orientado para os temas que interessam sua investigação, questiona-o sobre acontecimentos que exigem aprofundamento, tenta fazer com que a história contada acompanhe os assuntos e os materiais fornecidos dos quais ainda não se possui claramente um conhecimento adeguado.

História de vida como dado da pesquisa

Assim procedendo, assume no trabalho a própria perspectiva, da pessoa que enfatiza o valor do seu ponto de vista. O antropólogo atribui uma importância maior às interpretações que as pessoas fazem de sua própria experiência como base para poder explicar um comportamento, ou um facto social. Para dar-se razão do porque alguém tem um dado comportamento, é preciso compreender a ideia que anima o interlocutor, as razões que o motivam, as alternativas que se abrem para determinadas escolhas;  os efeitos que se propõem obter, enfim só será possível explicar o comportamento alheio, quando o investigador encara o ponto de vista dos actores e o assume cono medida para sua compreensão.

Selecionar os informantes

Nos primeiros dias da pesquisa de história de vida, os antropólogos tentaram selecionar um indivíduo que fosse um tanto típico, mediano ou representativo. No entanto, não é possível encontrar uma pessoa que seja representativa de toda uma cultura em um sentido científico. Hoje em dia, os antropólogos procuram indivíduos que ocupam nichos sociais especialmente interessantes. Por exemplo, Gananath Obevesekere  analisou as histórias de vida de quatro cingaleses, três mulheres e um homem (1981). Todos haviam se tornado devotos e ascetas hindus, que se distinguiam por seus cabelos densamente emaranhados, retorcidos em espirais como uma cobra, permanentemente e impossíveis de pentear. Se tentassem desemaranhá-lo, não teriam sucesso porque uma divindade está presente em seus cabelos. Obevesekere sugere que todas as quatro pessoas sofreram profundos danos psicológicos durante a vida, incluindo ansiedade sexual. As suas greiias simbolizam o seu sofrimento e conferem-lhes uma condição sagrada especial, razão pela qual estão além das normas da vida conjugal e das relações sexuais conjugais.

Estudos de uso do tempo

Um estudo de uso do tempo é um método quantitativo que coleta dados sobre como as pessoas gastam seu tempo diário em atividades específicas. Este método é baseado na formação de uma matriz de unidades de tempo padrão e rotulando e codificando as atividades que ocorrem dentro dos intervalos de tempo (Gross 1984). Os códigos de actividade devem ser adaptados aos contextos locais. Por exemplo, os códigos de atividade para vários tipos de trabalho não devem ser úteis em um trabalho de uso do tempo que ocorre em uma casa de repouso. Os dados podem ser coletados por observação contínua ou em intervalos fixos (por exemplo, a cada 48 horas) ou também aleatoriamente. A observação contínua envolve um longo período de tempo e um número limitado de pessoas observadas. Observações ocasionais ajudam a aumentar o número, mas podem perder atividades importantes. Outra opção de coleta de dados é perguntar às pessoas que têm jornais ou agendas.

As histórias de vida são um método antigo de coleta de dados na antropologia cultural. Marjorie Shostak entrevista Nisa durante seu trabalho de campo com Ju / Wasi em 1975. Esta mulher do Sri Lanka cuja história de vida foi analisada por Gananath Obeyesekere. ela é uma sacerdotisa de uma divindade. Ele posa no capilar de sua casa, mostrando seu cabelo emaranhado como cobras.

O que se diria a um antropólogo sobre sua história de vida?

Textos Muitos antropólogos culturais coletam e analisam material textual, uma categoria que engloba narrativas orais ou escritas, mitos, performances teatrais, ditos discursos, piadas, transcrições das conversas cotidianas das pessoas, matérias na internet e redes sociais.

No início do século XX, Franz Boas coletou milhares de páginas de textos de grupos nativos americanos na costa noroeste do Canadá com mitos, canções, discursos e relatos de como seus rituais são realizados. Essas compilações adicionam um valioso registro de culturas que mudaram desde os dias de seu trabalho de campo.

Depois de seu trabalho de campo. Os membros sobreviventes das tribos o consultaram para recuperar aspectos esquecidos de sua própria cultura.

Boas teria se interessado pelos novos estudos de antropologia cultural que analisam o significado social das páginas da web na Internet. Essa rede de redes tem sido rotulada de Caixa de Pandora moderna porque disponibiliza ao público parte ou a totalidade dos conhecimentos e opiniões, corretos ou errados, baseados em evidências ou não. Anna Kata, estudante de antropologia da Universidade McMaster, Canadá, analisou o discurso social, ou compartilhou temas, sobre os perigos da vacinação em vários sites da Internet (2010). Como pano de fundo, ele consultou dados publicados sobre a porcentagem de pessoas nos Estados Unidos (74%) e Canadá (72%) que estão online. Entre eles, entre 75 e 80 por cento pesquisaram informações sobre saúde e 70 por cento deles afirmaram que as informações acessadas influenciaram as decisões que tomaram sobre seu tratamento médico, razão pela qual a Internet desempenha um papel importante na tomada de decisões médicas. Usando o Google como ferramenta de busca, Kata aplicou vários critérios e marcou algumas páginas como antivacinação. Ela visitou um total de oito páginas americanas e canadenses para analisar seu conteúdo. Os temas mais proeminentes que surgiram foram: segurança (vacinas são venenosas), eficácia (vacinas não são eficazes), medicina alternativa favorece um “retorno à natureza” em vez de vacinas, liberdades civis (direitos paternos), teorias conspirações (acusações de ocultar outros interesses ), religião (usufruir do sistema imunológico que Deus tem para nós), desinformação sobre os estudos que são feitos sobre vacinas e chamadas emocionais (testemunhos pessoais). Kata conclui que combater as perspectivas antivacinação com educação é necessário, mas não suficiente. A análise do discurso social na Internet pode ajudar a identificar áreas que precisam de um estudo mais aprofundado.

Fontes históricas e de arquivo Muitos antropólogos culturais que trabalham com culturas com história escrita obtêm informações valiosas sobre o presente a partir de registros do passado preservados nos arquivos de instituições como bibliotecas, igrejas ou museus. Ann Stoler foi pioneira no uso de fontes documentais para entender o presente em seu estudo sobre o colonialismo holandês em Java (1985, 1989). Sua pesquisa trouxe à luz detalhes da política colonial e das relações com a população indígena javanesa.

Os arquivos nacionais de Londres, Paris ou Amsterdã, para citar apenas alguns, contêm registros de contatos e relações coloniais. Arquivos regionais e locais contêm informações sobre propriedade de terras, produção agrícola, práticas religiosas e atividades políticas. As igrejas paroquiais em toda a Europa preservam histórias familiares detalhadas que datam de centenas de anos atrás.

Informações importantes sobre o passado também podem ser obtidas no trabalho de campo com pessoas vivas, por meio de uma abordagem chamada antropologia da memória. Os antropólogos colectam informações sobre as memórias das pessoas, bem como sobre historias de vida.

Vários métodos de pesquisa e projetos de equipe A maioria dos antropólogos culturais usa uma combinação de métodos diferentes. Por exemplo, pense na vasta extensão e quantidade de informações que as entrevistas com 100 pessoas em suas casas podem fornecer e, em seguida, adicione histórias de vida coletadas de um subconjunto de cinco homens e cinco mulheres que fornecerão profundidade, bem como uma longa observação participante.

Os antropólogos, com suas visões aprofundadas sobre as pessoas de carne e osso e a vida real, estão cada vez mais participando de projetos de pesquisa multidisciplinares, especialmente com orientação aplicada. Essas equipes de trabalho enriquecem a investigação adicionando mais métodos e perspectivas. A combinação de dados de entrevistas em grupo face a face, observação participante e desenho de mapas fornece uma riqueza de informações, por exemplo, sobre nomes de lugares Inuit e conhecimento ambiental.

Bibliografia

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Hannoum, Abdelmajid. 2018. “The (Re)Turn of the Native: Ethnography, Anthropology, and Nativism.” Ensaios Para Gananath Obeyesekere 423–44.

 

10ª Lição 24 de Janeiro 2024: Antropologia da arte

 

O QUE É ARTE?

Visão geral!

Em todos os lugares, as pessoas associam uma experiência estética - um senso de beleza, de apreciação, de harmonia, de prazer  para certos sons, motivos, objetos e eventos. As artes são  parte integrante de uma cultura e os julgamentos estéticos refletem a formação cultural. A experiência da arte envolve os sentidos, à inspiração, mas também a apreciação da forma. As artes, às vezes chamadas de cultura expressiva, incluem as artes visuais, a literatura, a música e as artes teatrais. Estudiosos de arte não ocidentais têm sido criticados por ignorar a individualidade dos artistas e se concentrar demais na questão.

O clima da arte e da produção artística coletiva, quando, em vez disso, muitas sociedades não ocidentais apreciam o trabalho de artistas individuais. Os termos arte popular, música e folclore se referiam à cultura expressiva das pessoas comuns. Mitos, lendas, contos de fadas e a arte dos contadores de histórias desempenham um papel importante na transmissão da cultura. As artes continuam a mudar, embora algumas formas de arte sejam super-cultivadas por milhares de anos. No mundo de hoje, uma enorme indústria de 'artes e lazer' conecta as formas de arte Ocidentais e não ocidentais em uma rede internacional com Dimensões estéticas e comerciais.

Termos e conceitos

O termo genérico de artes inclui música, artes teatrais, artes visuais, arte de contar histórias e literatura (escrita e oral), manifestações da criatividade humana que às vezes levam o nome de cultura expressiva. Os povos se expressam por meio da dança, música, canto, pintura, escultura, arte em cerâmica, roupas, narração de histórias, versos, prosa, drama e humor. Muitas culturas não possuem termos que podem ser facilmente traduzidos como 'arte' ou

'artes' e ainda, apesar dessa lacuna terminológica, as pessoas em todos os lugares associam uma experiência estética - uma sensação de beleza, apreciação, harmonia, prazer - com sons, motivos, objetos e eventos que têm certas características. O povo Banana do Mali usa um termo (semelhante a 'arte') para significar algo que atrai a atenção e orienta os pensamentos (Ezra 1986).

Cosmologia

Houve muitos tentativos de rencostruir uma cosmologia-mãe teórica que fundamenta a religião antiga segundo Griaule esta cosmologia-mãe forneceu as origens conceituais da linguagem escrita Usa técnicas de cosmologia comparativa para sincronizar as tradições de criação dos Dogon, dos antigos egípcios e dos antigos budistas. Aplicam-se os elementos característicos desta cosmologia-mãe para explorar e interpretar a tradição de criação de uma tribo atual tibetana/chinesa chamada Na-Khi - os guardiões da última linguagem hieroglífica sobrevivente do mundo. Grandes pensadores e pesquisadores como Carl Jung reconheceram as muitas semelhanças amplas que existem entre os mitos e símbolos de culturas antigas. Uma explicação amplamente inexplorada para essas semelhanças reside na possibilidade de que todos esses sistemas de mitos tenham descendido de um plano cosmológico comum. Delineando os aspectos mais significativos da cosmologia encontrados entre os Dogon, os antigos egípcios e os antigos budistas, incluindo os impressionantes paralelos físicos e cosmológicos entre o celeiro Dogon e a estupa budista, Laird Scranton identifica os atributos característicos de uma cosmologia teórica antiga - uma cosmologia planejada sistema de ensino que pode muito bem ter gerado essas grandes tradições da criação antiga. Examinando a natureza esotérica da própria cosmologia, Scranton mostra como esta cosmologia parental abrangia tanto um plano para a instrução civilizada da humanidade como também as origens conceituais da linguagem. As formas recorrentes em todas as religiões antigas foram elementos-chave deste plano, concebido para dar manifestação física ao sagrado e fornecer os meios para conceituar e comparar as dimensões terrenas com as dos céus. Como aplicação prática do plano, Scranton explora os mitos e a linguagem de uma obscura tribo sacerdotal chinesa conhecida como Na-Khi, os guardiões da última linguagem hieroglífica sobrevivente do mundo. Sugerindo que a cosmologia pode ter gerado a civilização e não o contrário, Scranton revela como este plano da cosmologia fornece o elo perdido entre o nosso universo macroscópico e o mundo microscópico dos átomos. Em A Ciência do Dogon, Laird Scranton demonstrou que a estrutura cosmológica descrita nos mitos e desenhos dos Dogon corre paralelamente à ciência moderna - teoria atômica, teoria quântica e teoria das cordas - seus desenhos muitas vezes assumindo a mesma forma que diagramas científicos precisos que se relacionam com a formação da matéria. Scranton também apontou para a grande semelhança entre as palavras-chave e os elementos componentes da cosmologia Dogon e os do antigo Egito, e a implicação de que a cosmologia antiga também pode ser sobre a ciência real.

 

Símbolos Sagrados dos Dogon usa esses paralelos como ponto de partida para uma nova interpretação da linguagem hieroglífica egípcia. Ao substituir os desenhos cosmológicos Dogon por formas de glifos equivalentes em palavras egípcias, surge uma nova maneira de ler e interpretar os hieróglifos egípcios. Scranton mostra como cada hieróglifo constitui um conceito completo e que seus significados são de natureza científica. Usando os símbolos Dogon como uma “pedra de Roseta”, ele revela referências dentro da antiga língua egípcia que definem toda a gama de componentes científicos da matéria: desde ondas sem massa até o átomo completo, sugerindo até correlações diretas com uma teoria de campo unificado totalmente realizada.

Entre os iorubás da Nigéria, a palavra para 'arte', otiti, indica os desenhos feitos sobre objetos, os mesmos objetos de arte e a profissão exercida por quem cria esses desenhos e obras. O sufixo -ona, que aparece nos nomes de duas linhagens iorubás de trabalhadores do couro, os Otunisona e os Osiisona, indica arte (Adepegba 1991 ).

O dicionário define arte como 'qualidade, produção, expressão ou abrangência do que é belo ou portadora de um sentido que vai além do comum; classe de objetos que atendem a critérios estéticos ”(The Random House College Dictionary 1982, p. 76). No mesmo dicionário, o termo estética indica 'as qualidades percebidas nas obras de arte ... o ... humor e emoções relacionadas à sensação de beleza '(p. 22). Pode ser, porém, que uma obra de arte atraia nossa atenção, oriente nossos pensamentos e tenha um significado que vai além do comum, sem ser julgada bela pela maioria das pessoas que a utilizam. Por exemplo, a obra de Pablo Picasso Guernica, célebre pintura relativa à Guerra Civil Espanhola, traz à mente uma imagem que, embora não seja bela, é indiscutivelmente comovente e por isso é uma obra de arte.

George Mills (1971) observa que em muitas culturas o papel do amante da arte não é definido, já que a arte não é considerada uma atividade por si só, embora isso não impeça os indivíduos de serem atingidos por sons, motivos, objetos e eventos de uma forma que chamaríamos de estética. Nossa sociedade oferece uma função bastante precisa para o apreciador de arte, bem como para os lugares - salas de concerto, teatros, museus - onde se pode ir experimentar prazer estético e ser afetado emocionalmente por objetos e espetáculos.

A cultura ocidental tende a ver a arte como algo estranho à vida cotidiana e à cultura comum. Isso reflete uma separação moderna mais geral de instituições como o governo e a economia do resto da sociedade; campos tidos como distintos e que contam com especialistas académicos próprios. Nas sociedades não ocidentais, a produção e a apreciação da arte fazem parte da vida cotidiana, assim como a cultura popular em nossa sociedade. Quando representada em museus ocidentais, a arte não ocidental é frequentemente tratada da mesma forma que as belas-artes - e, portanto, separada de seu contexto sociocultural original.

O objectivo desta lição não é fornecer uma visão geral sistemática de todas as artes, ou mesmo de suas principais subdivisões, mas examinar os tópicos e problemas relacionados à cultura expressiva em geral. O termo arte será usado para se referir a todas as artes, incluindo as partes narrativas de romances e filmes, e não apenas às artes visuais; em outras palavras, as observações que faremos sobre a arte 'pretendem ser aplicáveis ​​à música, teatro, cinema, televisão, livros, histórias, folclore, bem como pintura e escultura.

Esta lição não tentará fazer um levantamento sistemático de todas as artes, ou mesmo das principais subdivisões. Em vez disso, a abordagem geral será examinar tópicos e problemas em referência à cultura expressiva de uma maneira geral. O termo 'arte' será usado para se referir a todas as artes, incluindo a impressa e a ficção cinematográfica, não apenas as visuais. Em outras palavras, as observações feitas sobre a arte 'significam  tendências que referem-se à música, teatro, filmes, televisão, livros, histórias, tradições, bem como pintura e escultura. Nesta senda, algumas artes e mídia inevitavelmente receberão mais atenção do que outras. É importante ter em mente, no entanto, que a cultura expressiva abrange muito mais do que apenas as artes visuais. Também incluídos nesta categoria estão piadas, narração de histórias, teatro, dança, peças infantis, jogos, festivais e antropólogos escreveram sobre todas essas artes.

O que desperta o prazer estético é percebido pelos sentidos. Normalmente, quando pensamos em arte, temos algo em mente que pode ser visto ou ouvido, embora alguns definam arte de forma mais ampla para incluir o que pode ser cheirado (perfumes, fragrâncias), saboreado (alimentos) ou tocado (os tecidos). Quanto tempo deve durar a arte? Obras visuais e escritas, incluindo composições musicais, podem durar séculos. Mas pode um único evento digno de nota, como uma festa, que de forma alguma é eterna, exceto na memória, ser uma obra de arte?

Arte e religião

Algumas das observações feitas para a religião também se aplicam à arte. Ambas as definições de arte e religião citam as expressões 'além o comum 'ou o' extraordinário ': assim como os estudiosos religiosos distinguem entre sagrado (religioso) e profano (secular), os estudiosos da arte distinguem entre artístico e comum.

Se ao nos encontrarmos diante de um objeto sagrado adotamos uma determinada atitude ou uma determinada conduta, diante de uma obra de arte fazemos algo semelhante? Segundo o antropólogo Jacques Maquet (1986), obra de arte é aquilo que estimula e fortalece a contemplação, suscitando atenção e reflexão. Quanto ao que gera tal contemplação artística, Maquet enfatiza a importância da forma do objeto, enquanto outros estudiosos das sensações e significados que agregam à forma: a experiência da arte envolve sensação, como por exemplo o fato de ser atingido, bem como a valorização da forma, como equilíbrio ou harmonia.

Essa atitude artística pode ser associada a uma atitude religiosa e utilizada para fortalecê-la: muita arte, de fato, foi produzida ao mesmo tempo que a religião. Muitas das obras-primas da arte e da música ocidentais foram inspiradas pela religião, ou foram feitas para fins religiosos, como é fácil de ver quando se visita uma igreja ou um grande museu. Bach e Handel são tão famosos por sua música sacra quanto Michelangelo por suas pinturas e esculturas religiosas. Os edifícios (igrejas e catedrais) em que a música religiosa é tocada e as artes visuais são exibidas podem ser obras de arte: algumas das obras-primas arquitectónicas da arte ocidental são estruturas religiosas, como as catedrais de Amiens, Chartres e Notre Dame na França .

A arte pode ser criada, representada ou exibida em ambientes externos públicos ou em ambientes internos específicos, como teatros, salas de concerto ou museus. Como as igrejas demarcam a religião, museus e teatros separam a arte do mundo comum, tornando-a especial e convidando os espectadores a entrar. Os edifícios dedicados à arte ajudam a criar a atmosfera artística: a arquitetura pode ajudar a denotar melhor um local onde as obras de arte são apresentadas.

Os locais de rituais e cerimónias - e de arte - podem ser temporários ou permanentes. As sociedades estatais têm estruturas religiosas permanentes, igrejas e templos, bem como edifícios e estruturas dedicadas às artes. As sociedades não estatais, por outro lado, tendem a não ter tais lugares, permanentemente demarcados: tanto a arte quanto a religião são mais 'externas' à sociedade. Ainda assim, em gangues e tribos, ambientes religiosos podem ser criados sem igrejas, assim como uma atmosfera artística pode ser criada sem museus. Em determinados períodos do ano espaço da vida cotidiana pode ser reservado para uma exposição de artes visuais e uma representação musical, ocasiões especiais em conjunto com cerimónias religiosas: de fato, em representações tribais, arte e religião muitas vezes se misturam. Por exemplo, atores mascarados e fantasiados imitam espíritos. Os ritos de passagem frequentemente envolvem música especial, danças, canções, adornos corporais e outras manifestações da cultura expressiva.

Em todas as sociedades, a arte é produzida por seu valor estético, bem como para fins religiosos. De acordo com Schildkrout e Keim (1990), é geralmente - mas erroneamente - assumido que a arte não ocidental está de alguma forma conectada ao ritual: na realidade, a arte não ocidental pode estar - mas nem sempre - ligada à religião. Os ocidentais lutam para aceitar a ideia de que as sociedades não ocidentais têm uma arte para a arte, assim como as sociedades ocidentais. Tem havido uma tendência por parte dos ocidentais de ignorar a individualidade dos artistas não ocidentais e seu interesse pela expressão criativa. De acordo com Isidore Okpewho (1977), que se especializou em literatura oral, os estudiosos tendem a ver a religião em todas as artes tradicionais africanas. Mas mesmo quando se faz arte a serviço da religião, há espaço para a expressão criativa individual. Nas artes orais, por exemplo, o público está muito mais interessado na mensagem e na interpretação do artista do que no deus particular em cujo nome o artista está falando.

Identificar arte

Se uma das maneiras de distinguir a arte é reconhecer seu valor estético, outra é considerar sua localização: os lugares específicos onde encontramos arte são museus, salas de concerto, teatros. Se algo é exposto em um museu, ou em outro ambiente que a sociedade reconhece como artístico, é natural pensar que é arte. Embora as sociedades tribais geralmente não tenham museus, elas podem ter áreas específicas onde a expressão artística ocorre.

Se vemos arte, reconhecemos que é arte? Definimos arte como algo que diz respeito ao belo e portador de um sentido que vai além do comum. Mas a beleza não está nos olhos de quem vê? As reações em relação à arte não mudam de espectador para espectador? E, uma vez que pode haver ritos profanos, também pode haver arte comum? As fronteiras entre o que é arte e o que não é não estão claramente definidas: Andy Warhol é famoso por transformar latas de sopa Campbell em arte, embalagens de lata detergentes Brillo e em imagens de Marilyn Monroe.

Se algo é produzido em massa ou modificado industrialmente, pode ser uma obra de arte? As reproduções impressas pertencentes a uma série podem certamente ser consideradas arte. Até as esculturas, nascidas em barro e depois queimadas em uma fundição com metal fundido, como o bronze, são arte. Mas como saber se um filme é arte? É Star Wars Art? E o quarto estado? Quando um livro ganha um prémio literário nacional, é imediatamente elevado ao status de arte? Que prémios a arte faz? Objetos nunca considerados arte, como uma máquina de escrever Olivetti, podem ser transformados em arte ao colocá-los em um museu como o Museum of Modem Art de Nova York. Jacques Maquet (1986) faz uma distinção entre esta 'arte por transformação' e arte por destino ', ou seja, a arte criada e que se pretende arte.

Nas empresas estatais recorremos a críticos, conhecedores e especialistas para saber o que é arte e o que não é. Uma peça intitulada Arte encena a diatribe que surge entre três amigos quando um deles adquire uma pintura totalmente branca: eles discordam - como muitas vezes acontece - sobre a definição e o valor de uma obra de arte. Essas discrepâncias na apreciação da arte são particularmente comuns na sociedade contemporânea, que possui artistas e críticos profissionais, mas também uma grande diversidade cultural. Por essa razão, esperaríamos encontrar padrões mais uniformes e maior concordância em sociedades menos heterogéneas e menos estratificadas.

Em nome do relativismo cultural, devemos evitar aplicar nossos padrões artísticos aos produtos de outras culturas. Escultura não é necessariamente arte.

Anteriormente, desafiamos a teoria de que a arte não ocidental sempre tem uma certa conexão com a religião: o caso do Kalahari que vamos discutir ilustrará o oposto, ou seja, que a escultura religiosa nem sempre é arte.

No Kalahari, no sul da Nigéria, as esculturas em madeira não são criadas por razões estéticas, mas para servir de 'lar' para espíritos (Horton 1963): são usadas para controlar os espíritos da religião Kalahari. Eles colocam essas esculturas de madeira - e assim localizam um espírito - em um local de adoração onde o espírito é convidado. Neste caso, a escultura não é produzida por uma questão de arte, mas como um meio de enganar as forças espirituais. Embora o Kalahari tenha padrões para esculpir tais esculturas, a beleza não é contemplada entre elas: uma escultura, de fato, deve ser completa o suficiente para representar seu espírito, de modo que aquelas consideradas grosseiras demais são rejeitadas pelos membros do culto. Além disso, o escultor, ao realizar as suas obras, deve seguir os modelos do passado: de facto, dado que certos espíritos estão associados a certas figuras, considera-se perigoso produzir uma escultura que se afaste muito de uma representação anterior do espírito. , ou que se assemelha a outro espírito, pois os espíritos ofendidos podem retaliar. Na medida em que os escultores observam esses padrões de imitação e aderência aos modelos, eles são livres para se expressar. No entanto, essas obras são consideradas repugnantes em vez de belas e não são produzidas por motivos artísticos, mas por motivos religiosos.

Arte e individualidade

Estudiosos de arte não ocidentais têm sido criticados por se concentrarem demais na natureza social da arte e no contexto em que ela é produzida. Quando objetos de arte da África ou de Papua Nova Guiné são exibidos em museus, geralmente é feita menção ao nome da tribo e do doador ocidental, e não ao do artista individual, como se em sociedades não ocidentais não houvesse artistas especializados existia. A impressão resultante é que a arte é produzida coletivamente, o que às vezes - mas nem sempre - é verdade.

De certa forma, nas sociedades não ocidentais, há realmente uma produção coletiva de arte maior do que nos países europeus e norte-americanos. Segundo Hackett (1996), geralmente são as comunidades ou grupos, e não os indivíduos, que apreciam, criticam e usam as obras de arte africanas (figuras esculpidas, tecidos, pinturas ou vasos). Durante o processo criativo, o artista tem uma resposta maior do que a que recebe [o artista individual em nossa sociedade, onde esse feedback muitas vezes chega tarde demais, quando a obra está concluída, ao invés de durante a criação, quando ainda há a possibilidade de alterar.

Paul Bohannan (1971), durante seu trabalho de campo no Tiv da Nigéria, chegou à conclusão de que um estudo apropriado da arte daquele lugar precisava focar menos nos artistas e mais nos críticos de arte e produtos. Havia poucos artistas especializados entre os Tivs que evitavam produzir sua arte em público. Apenas artistas medíocres trabalhavam em público e, como de costume, recebiam comentários dos telespectadores (críticos). Com base em suas sugestões, o artista frequentemente modifica uma obra, como uma escultura em madeira, durante a construção. Havia também outra maneira pela qual os artistas de tiv trabalhavam na sociedade em vez de individualmente: às vezes, quando um artista deixava seu trabalho de lado, outra pessoa o pegava e trabalhava nele. Claramente, os Tivs não reconheceram nosso mesmo tipo de conexão entre

indivíduos e suas obras de arte. De acordo com Bohannan, cada Tiv era livre para saber o que quisesse e tentar produzir, se pudesse. Caso contrário, um ou alguns de seus companheiros poderiam ajudá-lo.

Nas sociedades ocidentais, alguns artistas de vários tipos (por exemplo, escritores, pintores, escultores, atores, músicos clássicos e de rock) são considerados iconoclastas e anti-sociais. A aceitação social, entretanto, pode ser de maior importância no caso das sociedades que os antropólogos costumam estudar. Mesmo em sociedades não ocidentais, existem artistas individuais muito famosos, reconhecidos como tal por outros membros da comunidade, bem como por observadores externos, cujas obras podem até ser selecionadas para exposições e performances especiais, incluindo cerimônias ou artes e eventos palacianos.

Até que ponto uma obra de arte pode ter uma vida distinta da do artista que a criou? Filósofos da arte geralmente vêem as obras de arte como entidades autónomas, independentes de quem as criou (Haapala 1998). Haapala argumenta o contrário, ou seja, que os artistas e suas obras não podem ser separados: 'Uma pessoa cria sua própria identidade artística criando obras de arte. Ele se cria, no verdadeiro sentido da palavra, em sua arte. Existe nas obras que ele criou. ' De acordo com essa perspectiva, Picasso teria criado muitos Picassos, e ele existe nessas e por meio dessas obras de arte.

Às vezes, pouco se sabe, ou pouco se reconhece, sobre o artista individual que produziu uma obra de arte que dura no tempo. Das canções das quais mais nos lembramos, e talvez até cantamos, é mais provável que saibamos o nome do artista que as canta, em vez do nome da pessoa que as escreveu. Às vezes deixamos de reconhecer a arte individualmente porque a obra de arte foi criada coletivamente. A quem devemos atribuir uma pirâmide ou uma catedral? Deve ser o arquiteto, o soberano ou a autoridade que o encomendou, ou o mestre de obras que implementou o projeto? Uma coisa linda pode trazer prazer para sempre, mesmo quando não sabemos quem a criou.

O trabalho do artista

Alguns consideram a arte uma forma de liberdade expressiva, uma forma de dar rédea solta à imaginação e à necessidade humana de criar ou de ser ativo. Mas se pensarmos na origem da palavra ópera (plural de opus, termo latino que indica uma obra) entendemos que para o artista a arte é uma obra, mesmo que seja uma obra criativa. Em sociedades não estatais, os artistas às vezes precisam caçar, colectar alimentos, pastorear rebanhos, pescar ou cultivar para comer, mas também encontram tempo para trabalhar em sua arte. Nas empresas estatais, os artistas são definidos como especialistas, ou seja, profissionais que optaram pela carreira de artista, músico, escritor ou ator e que, se puderem se sustentar com sua arte, poderão praticá-la em tempo integral. Caso contrário, eles fazem isso em tempo parcial, ganhando a vida com outro negócio. Às vezes, os artistas se reúnem em grupos profissionais, como guildas medievais ou associações de artistas atuais. O New York Actors Equity Syndicate é uma empresa moderna criada para proteger os interesses dos artistas participantes.

Mas quanto trabalho é necessário para criar uma obra de arte? Nos primeiros dias do impressionismo francês, muitos especialistas consideravam as pinturas de Claude Monet e seus colegas muito rudes e espontâneas para serem uma verdadeira arte, já que artistas e críticos consagrados estavam acostumados a estilos de pintura mais formais e clássicos. Os impressionistas franceses derivam o nome do estilo de suas obras, aparentemente inacabadas - portanto consideradas simples impressões - com paisagens naturais e vislumbres da vida social; aproveitaram algumas inovações da técnica - em especial a disponibilidade de tintas a óleo em tubos - para trazer paletas, cavaletes e telas no local, onde capturaram as variações de luz e cores que hoje estão expostas em diversos museus e reconhecida como uma arte de pleno direito. No entanto, antes que o impressionismo se tornasse uma 'escola' de arte oficialmente reconhecida, as obras dos impressionistas foram acusadas pelos críticos de serem esboçadas e incompletas: em termos de padrões comunitários, elas foram difamadas da mesma forma que as estátuas de madeira muito aproximadas e incompletas de os espíritos do Kalahari, discutidos nos parágrafos anteriores em que medida o artista - ou a sociedade - decide sobre a integralidade das obras de arte? Para gêneros que nos são familiares, como pintura ou música, as sociedades tendem a ter padrões pelos quais julgam se uma obra de arte está totalmente concluída ou não: por exemplo, a maioria das pessoas duvidaria que um branco completo possa ser uma obra de arte. Os padrões podem ser mantidos informalmente dentro da empresa ou formalizados por especialistas, como críticos de arte. Embora seja improvável que artistas heterodoxos ou rebeldes inovem, no final - como aconteceu com os impressionistas - eles podem. Algumas sociedades tendem a recompensar o conformismo, que é a capacidade de um artista que se apega a modelos e técnicas tradicionais; outros, por outro lado, estimulam a ruptura com o passado, ou seja, a inovação.

ARTE, SOCIEDADE E CULTURA

Há mais de 70.000 anos, alguns dos primeiros artistas do mundo ocuparam a Caverna Biombos, localizada em um alto penhasco de frente para o Oceano Índico, na orla do que hoje é a África do Sul. Esses antigos africanos, que caçavam animais e se alimentavam dos peixes que pescavam nas águas abaixo, eram humanos anatomicamente modernos em termos fisionômicos e tamanho do cérebro. Eles foram capazes de transformar ossos de animais em ferramentas e pontas de armas finamente trabalhadas. Eles também esculpiram artefactos com signos simbólicos, manifestações de pensamento abstrato e criativo e, presumivelmente, de comunicação por meio da linguagem.

Um grupo de estudiosos liderado pelo sul-africano Christopher Henshilwood analisou 28 ferramentas de osso e outros artefactos da Caverna dos Biombos, bem como o mineral ocre que pode ter sido usado para pintar o corpo. As ferramentas de osso mais extraordinárias são ferramentas de três pontas: parece que os ossos foram primeiro trabalhados com sílex e depois acabados em uma forma simétrica e polidos por horas. De acordo com Henshilwood, 'Pontos de lançamento não precisam ser feitos com tanto cuidado, o que sugere que é uma expressão de pensamento simbólico. As pessoas diziam 'vamos criar um objeto realmente lindo ...'.

O pensamento simbólico significa que as pessoas usam algo para dizer outra coisa. As ferramentas não devem ter apenas um propósito prático. E o ocre poderia ser usado para decorar seus equipamentos, talvez por eles próprios.

Na Europa, a arte remonta a mais de 30.000 anos, possivelmente ao período Paleolítico Superior na Europa Ocidental (ver Conkey et al. 1997). O instrumento musical mais antigo, o 'fife of Divje babe', foi criado há mais de 43.000 anos. As pinturas rupestres, os exemplos mais conhecidos da arte do Paleolítico Superior, foram separadas da vida comum e do espaço social cotidiano.

São figuras pintadas em cavernas reais, localizadas nas entranhas da Terra, provavelmente pintadas no contexto de uma espécie de rito de passagem que envolvia o afastamento da sociedade. Também objetos de arte portáteis esculpidos em osso e marfim, bem como flautas e flautas, confirmam a existência de expressão artística no Paleolítico Superior.

A arte é geralmente mais pública do que as pinturas rupestres e é exibida, valorizada, representada e apreciada na sociedade. Ele tem espectadores ou público: o artista não cria arte só para si.

Etnomusicologia

Etnomusicologia é o estudo comparativo da world music e da música como um aspecto da cultura e da sociedade. O campo de estudo da etno-musicologia, portanto, combina música e antropologia: o aspecto musical implica o estudo e a análise da própria música e dos instrumentos usados ​​para criá-la; o aspecto antropológico consiste em considerar a música como uma forma de explorar uma cultura, de determinar o papel - histórico e atual - que a música desempenha na sociedade e as especificidades sociais e culturais que influenciam a forma como a música é criada e executada.

A etnomusicologia estuda a música não ocidental, tradicional e folclórica, e mesmo a música pop contemporânea, de uma perspectiva cultural. Por esta razão, requer um trabalho de campo, ou seja, o estudo direto de formas particulares de música, suas funções sociais e seus significados culturais, dentro de sociedades específicas. Os etnomusicólogos conversam com músicos locais, fazem gravações de campo e reúnem informações sobre o papel dos instrumentos musicais, performances e intérpretes em uma determinada sociedade (Kirman 1997). Hoje, dada a globalização, diferentes culturas e estilos musicais se encontram e se misturam! facilmente: a música que atinge uma ampla gama de instrumentos e estilos culturais leva o nome de world fusion, world beat ou world music, outro campo de estudo da etnomusicologia actual.

Visto que a música é um universal cultural, e dado que as habilidades musicais parecem ser transmitidas dentro das famílias, argumentou-se que a predisposição para a música pode ter uma base genética (Crenson 2000). Poderia um 'gene musical', que apareceu dezenas ou centenas de milhares de anos atrás, ter conferido uma vantagem evolutiva aos humanos primitivos que o possuíam? O facto de a música existir em todas as culturas conhecidas sugere que nasceu no alvorecer da história da humanidade: é o que demonstra a descoberta, numa caverna da Eslovénia, de um pífano de osso esculpido, o «pífano de Divje», o mais antigo instrumento musical conhecido no mundo, com mais de 43.000 anos.

Sandra Trehub (2001), explorando as prováveis ​​raízes biológicas da música, nota semelhanças marcantes na forma como mães de várias partes do mundo cantam para seus filhos, com tons agudos, um andamento lento e uma melodia distinta. Todas as culturas têm canções de ninar que se assemelham tanto que não podem ser confundidas com qualquer outra coisa (Crenson 2000). Trehub especula que a música pode tendo exercido função adaptativa no decorrer da evolução humana devido ao fato de mães cantoras terem menos dificuldade em acalmar seus filhos. Crianças pacíficas, que adormecem facilmente e raramente têm acessos de raiva, teriam uma chance melhor de sobrevivência na vida adulta: não teriam atraído predadores com seus gritos, teriam - junto com suas mães - descansado e uma chance menor de sendo maltratado. Se um gene para proezas musicais aparecesse no alvorecer da evolução humana, conferindo uma vantagem seletiva, os adultos inclinados para a música o passariam para seus filhos.

Parece que a música é uma das artes mais funcionais para a socialização, pois costuma unir os indivíduos em grupos: não é por acaso que a música tem sempre a ver com grupos, como coros, orquestras, conjuntos e bandas. Será que humanos primitivos com uma inclinação biológica para a música eram capazes de viver com mais eficiência em grupos sociais, outra provável vantagem adaptativa? Frequentemente, até mesmo os mestres pianistas e violinistas são acompanhados por orquestras ou cantores. Alan Merriam (1971) descreve como o povo Basongye da região congolesa de Kasai usa três características para distinguir a música de outros sons classificados como 'ruído'. Em primeiro lugar, a música sempre interessa aos seres humanos, portanto os sons emitidos por criaturas não humanas, como pássaros e animais, não são música; além disso, os sons musicais devem ser organizados: uma única batida de tambor não é música, mas várias pessoas tocando bateria juntas seguindo uma melodia fazem música; enfim, a música deve ser contínua: mesmo que várias pessoas toquem bateria simultaneamente, elas não produzem música, pois, para isso, devem tocar continuamente, criando um padrão sonoro. Para Basongye, portanto, a música é por sua própria natureza um fato cultural (puramente humano) e social (ligado à cooperação).

Os termos arte popular, música e folclore, originalmente cunhados em referência aos camponeses europeus, referem-se à cultura expressiva das pessoas comuns, em oposição à arte 'cortês' ou 'clássica' das elites europeias. Quando a música folclórica europeia é executada, a combinação de trajes, música e muitas vezes canto e dança diz algo sobre a cultura e tradição local. Os turistas e outros observadores externos frequentemente percebem a vida rural e popular principalmente em termos de tais representações; os próprios residentes da comunidade costumam recorrer a esses programas para mostrar e expor sua cultura e tradições locais na frente de observadores externos.

Em Planinica, uma vila muçulmana na Bósnia (a do pré-guerra), Yvonne Lockwood (1983) estudou canções folclóricas que podiam ser ouvidas durante o dia ou à noite. Os cantores mais ativos eram mulheres solteiras com idades entre 16 e 26 anos (virgens). Os primeiros cantores, que habitualmente abriam e fechavam as canções, tinham vozes fortes, cheias e nítidas, de tom agudo. Alguns deles, assim como suas contrapartes na América do Norte moderna (embora de uma maneira muito mais branda), se comportaram de maneira não convencional: um foi acusado de ser sem vergonha por causa de suas letras picantes, outro fumou (geralmente um hábito masculino ) e adorava usar calças masculinas. No entanto, além das críticas dos moradores, eles foram considerados espirituosos e capazes de improvisar canções melhor do que os outros.

A transição social de menina para virgem (mulher que pode se casar) foi assinalada pela participação ativa em cantos e danças públicas: os adolescentes eram estimulados, por mulheres e virgens que cantavam, a participarem dela, como parte de um ritual de passagem pela que uma menina (dite) se tornou virgem (curii). Em vez disso, como o casamento, para a maioria das mulheres, marcava a transição da esfera pública para a privada, nessa ocasião elas pararam de cantar em público, para fazê-lo apenas em casa ou entre outras mulheres; apenas de vez em quando mulheres casadas se associavam com virgens durante as canções públicas e, de qualquer forma, nunca chamavam atenção para si mesmas no papel de cantoras principais. Depois dos 50 anos, as mulheres casadas tendiam a parar de cantar, mesmo em privado.

Para as mulheres, portanto, o canto marcou a transição de uma fase etária para outra: de menina para virgem (cantar em público), de virgem para esposa (cantar em privado) e de esposa para idosa (ausência de canto).

Lockwood descreve como uma mulher recém-casada fez sua primeira visita ritual após o casamento com sua família de origem (a residência pós-marital era patrilocal): quando ela partiu para retornar à aldeia de seu marido, 'em nome dos velhos tempos', ela liderou as virgens da aldeia cantando, usando seu status de filha para se comportar como uma virgem pela última vez. Segundo Lockwood, para quem compareceu, essa apresentação foi nostálgica e comovente.

Cantar e dançar eram comuns durante os preios em que participavam homens e mulheres: em Planinica, a palavra servo-croata preio, que geralmente indica um 'encontro de fiação', era usada para referir-se a qualquer ocasião de visita. Prelos eram particularmente frequentes durante o inverno; no verão, porém, enquanto os aldeões trabalhavam longas horas, as oportunidades de prelos diminuíam. O prémio ofereceu um contexto de diversão, relaxamento, canto e dança. Todas as reuniões de virgens, especialmente prelos, eram ocasiões para cantar: as mulheres casadas as encorajavam a fazê-lo, muitas vezes sugerindo canções específicas. Se os homens também estivessem presentes, foi criado um dueto de cantores em que virgens e jovens se provocavam. O sucesso do prémio foi medido pelo número de pessoas que participaram e pela quantidade de canções e danças realizadas. anteriormente, segundo o qual as artes das sociedades não industrializadas costumam ter uma ligação com a religião. A mensagem (geralmente indesejada) é que os povos não ocidentais passam muito tempo vestindo roupas coloridas, cantando, dançando e praticando ritos religiosos, imagens que, levadas ao extremo, retratam a cultura como algo recreativo e, em última análise, não muito sério. do que algo que as pessoas comuns vivenciam diariamente, não apenas por ocasião dos feriados.

Arte e comunicação

Entre os muçulmanos da Bósnia antes da guerra, cantar em público também era tradicionalmente praticado em muitos outros contextos. Por exemplo, depois de um dia cortando feno nas encostas das montanhas, equipes de homens da aldeia se reuniram em um local específico no caminho de subida da aldeia. Eles se alinharam de acordo com suas habilidades de canto, com os bons cantores pici na frente e os menos bons atrás, e caminharam juntos - cantando - em direção à aldeia, até chegarem ao centro onde se separaram. De acordo com Lockwood, sempre que uma atividade de negócios ou lazer reunia um grupo de virgens ou jovens, raramente terminava sem canto público. Não seria estranho atribuir a inspiração de algumas partes de Biancaneve ou Shrek (os filmes) às paisagens rurais europeias.

As representações de arte e cultura

A arte pode representar tradição mesmo quando a arte tradicional é removida de seu contexto original (rural). Como veremos na parte final desta lição, os produtos e imagens criativas das culturas populares, rurais e não ocidentais estão cada vez mais difundidos - e comercializados - pelos meios de comunicação de massa e por! turismo; consequentemente, muitos ocidentais passaram a pensar na 'cultura' em termos de trajes coloridos, música, danças e ornamentos (roupas, joias e estilos de cabelo).

Na mídia, e mesmo em muitos filmes antropológicos, percebe-se uma propensão para as artes e a religião, ao invés de tópicos económicos e sociais mais mundanos e menos fotogênicos. Muitos filmes etnográficos começam com música, geralmente batidas de tambor: 'Bonga, bonga, bonga, bonga. Aqui em (nome do lugar) as pessoas são muito religiosas. ' Neste tipo de apresentação, encontramos um exemplo do pressuposto, crítica

Na sociedade, a arte também atua como uma forma de comunicação entre o artista e a comunidade (ou o público). Às vezes, porém, há intermediários entre o artista e o público: atores, por exemplo, são artistas que traduzem as obras e ideias de outros artistas (escritores e diretores) em representações que o público vê e aprecia. Os músicos, assim como a música que compuseram, tocam e cantam composições de outros; os coreógrafos, usando a música criada por outros, projetam e dirigem as coreografias das danças, que os dançarinos então executam para o público.

Como a arte se comunica? É preciso saber o que o artista pretende comunicar e qual é a reação do público. Frequentemente, o público se comunica diretamente com o artista: performers ao vivo, por exemplo, têm feedback imediato, assim como escritores e diretores quando vêem uma representação de seu trabalho. Os artistas esperam que a obra seja recebida de uma maneira pelo menos variada: nas sociedades contemporâneas, de fato, onde o público se torna cada vez mais heterogéneo, é raro que as reações sejam uniformes. Os artistas contemporâneos, assim como os empresários, sabem muito bem que têm um público-alvo e que alguns segmentos da população têm maior probabilidade de desfrutar de algumas formas de arte do que de outras.

A arte pode transmitir diferentes tipos de mensagens: pode dar uma lição moral ou contar uma história moralizante; pode ensinar as lições que o artista ou a sociedade desejam ouvir. Como os ritos que induzem à inquietação e depois a afugentam, a tensão e a resolução do trabalho dramático podem induzir uma catarse na plateia, ou seja, um intenso alívio emocional. A arte pode nos excitar, nos fazer rir, chorar, pode nos alegrar ou, ao contrário, nos entristecer. Além das emoções, a arte apela ao intelecto: você pode sentir prazer em uma obra de arte bem construída, equilibrada e bem trabalhada.

Frequentemente, a arte é solicitada a comemorar, a perdurar e a transmitir uma mensagem duradoura ao longo do tempo. A arte, assim como as cerimónias, pode ter uma função mnemônica, ou seja, fazer com que se lembrem de pessoas ou acontecimentos, como aconteceu, por exemplo, com a epidemia de AIDS que foi tão letal em muitas áreas do país. Mundo, ou pela tragédia de 1 Setembro de 2001.

Arte e política

Qual é o papel social da arte? Até que ponto a arte deve servir à sociedade? A arte pode ser conscientemente pró-social: pode ser usada para expressar ou desafiar o pensamento e os padrões da comunidade. Desse modo, a arte entra na arena política. As decisões sobre o que pode ser considerado uma obra de arte ou como exibi-las podem ser políticas e controversas. Os museus devem equilibrar o desejo de viver de acordo com os padrões da comunidade com o de ser tão criativos e inovadores quanto os artistas que exibem.

Muito da arte que é considerada valiosa hoje foi recebida negativamente na época em que foi produzida. O Brooklyn Museum of Arts de Nova York é um exemplo de como a arte que choca ou

ofende quando é novo, é aceito e adquire valor com o tempo. As crianças foram proibidas de ver as pinturas de Matisse, Braque e Picasso quando foram exibidas pela primeira vez em Nova York no Armory Show de 1913; o New York Times chamou aquele Armory Show de 'patológico'. Quase um século depois, a cidade de Nova York e o então prefeito Rudolph Giuliani levaram o Museu do Brooklyn a tribunal, devido à exposição 'Sensation' de 1999-2000. Após o protesto de alguns grupos religiosos contra a Santa Virgem Maria de Chris Ofili, uma colagem feita também com esterco de elefante, Giuliani considerou a obra um sacrílego. O processo que se seguiu levou grupos anticensura e defensores da arte a decidirem contra as ações do prefeito; o museu ganhou o processo, mas o trabalho de Ofili foi novamente atacado quando um homem colocou tinta furtivamente na exposição do Brooklyn e tentou manchar a Virgem. De acordo com o professor de arte Michael Davis, a colagem de Ofili é 'chocante' na medida em que provoca deliberadamente e visa lançar aqueles que a observam em um quadro de referência ampliado. As reações do prefeito provavelmente se basearam na definição estrita de que a arte deve ser bela e em uma iconografia da Virgem Maria limitada à das pinturas renascentistas italianas (Mount Holyoke College, 1999).

Transmissão cultural das artes

Uma vez que a arte faz parte da cultura, sua apreciação depende da formação cultural. Pense, por exemplo, nos turistas japoneses em um museu de arte ocidental tentando interpretar o que vêem; pelo contrário, a forma e o significado de uma cerimónia do chá japonesa, ou uma demonstração de origami (a arte japonesa de criar objetos dobrando folhas de papel), serão estranhos para um observador estrangeiro. É preciso aprender a apreciar a arte em um processo que faz parte da inculturação, assim como de uma educação mais formal. Robert Layton (1981) sugere que, embora existam princípios universais de expressão artística, diferentes culturas os colocaram em prática de muitas maneiras.

O que traz prazer estético depende de algumas maneiras da cultura: se certos tons e certos ritmos são familiares para alguns, mas não para outros, a música irá deliciar aqueles enquanto alienará os outros. McAllester (1954), em um estudo da música Navajo, descobriu que ela refletia a cultura geral da época de três maneiras principais. Em primeiro lugar, o individualismo é um valor cultural fundamental do que fazer com sua propriedade, seja ela física, conhecimento, ideias ou canções. Além disso, dos estudos de McAllester emergiu que a tendência genérica dos Navajo para o conservadorismo também se estendia à música: eles, de fato, consideravam a música estrangeira perigosa e a rejeitavam como estranha à sua cultura (este segundo ponto não se aplica mais, como atualmente há algumas bandas de rock Navajo). Finalmente, ao fazer música, os navajos enfatizaram que era formalmente apropriado; ou seja, de acordo com suas crenças, havia uma maneira correta de cantar cada tipo de música Os homens aprendem a ouvir certos tipos de música e a apreciar determinadas formas de arte, da mesma forma que aprendem a ouvir e decifrar uma língua estrangeira. Os parisienses, ao contrário dos londrinos e nova-iorquinos, não se aglomeram em apresentações musicais: mesmo o musical Os miseráveis, apesar de suas origens francesas, tem sido um sucesso retumbante em Londres, Nova York e dezenas de cidades ao redor do mundo. Paris. Mesmo o humorismo, uma forma de arte verbal, depende da formação e do contexto cultural: o que diverte em uma cultura pode não agradar em outra.

Em um nível cultural inferior, algumas tradições artísticas podem ser transmitidas dentro das famílias. Em Bali, por exemplo, existem famílias de entalhadores, músicos, dançarinos e fabricantes de máscaras. Entre os iorubás da Nigéria, a duas linhagens de trabalhadores em couro são confiados os mais importantes bordados de contas, como a coroa do rei e os sacos e pulseiras sacerdotais. As artes, como outras profissões, muitas vezes 'fluem' para as famílias. A Bach, por exemplo, pertenceu não apenas Johann Sebastian, mas muitos outros compositores e músicos famosos.

Já apontamos a diferença entre a abordagem antropológica das artes e o interesse das humanidades tradicionais pelas 'belas-artes' e pelas expressões artísticas da elite. A antropologia estendeu a definição de culto para muito além do significado de arte e cultura 'corteses' que as elites lhe atribuem: para os antropólogos, cada um adquire cultura por meio do processo de inculturação. No mundo académico, a crescente aceitação da definição antropológica de cultura tem contribuído para ampliar o campo de estudo das disciplinas clássicas, que não incluem mais apenas belas artes e arte de elite, mas também arte popular e folclórica e as expressões criativas das massas. e de várias culturas.

Em muitas sociedades, mitos, lendas, contos de fadas e a arte dos contadores de histórias desempenham um papel importante na transmissão da cultura e na manutenção da tradição. Na ausência de escrita, as tradições orais preservam os detalhes da história e da genealogia, como é o caso em muitas partes da África Ocidental. As formas de arte costumam andar juntas: por exemplo, a música e a arte dos contadores de histórias podem se combinar para dar drama e ênfase.

A  carreira artística

Em sociedades não industrializadas, os artistas tendem a ser especialistas em tempo integral, enquanto nas sociedades estatais eles têm uma chance maior de praticar sua arte em tempo integral. O número de empregos em “artes e lazer” cresceu rapidamente nas sociedades contemporâneas. Muitas sociedades não ocidentais também oferecem carreiras nas artes: por exemplo, uma criança nascida em uma família ou linhagem específica pode encontrar-se destinada a uma carreira na arte do couro ou tecido. Algumas sociedades são conhecidas por artes específicas, como dança, escultura em madeira ou tecelagem.

Uma carreira artística, entretanto, também pode envolver uma certa vocação: os indivíduos podem descobrir que possuem um talento específico e encontrar um ambiente no qual ele seja cultivado. Caminhos voltados para carreiras artísticas distintas geralmente envolvem práticas e treinamentos específicos. Eles são, no entanto, mais prováveis ​​em uma sociedade complexa, onde existem muitas carreiras distintas, do que em sociedades organizadas em bandos ou tribos, onde a cultura expressiva é menos formalmente separada da vida cotidiana.

Os artistas precisam de apoio se quiserem se dedicar em tempo integral à atividade criativa. Eles o encontram em suas famílias ou linhagens, na presença de uma especialização nas artes que afeta grupos de parentesco. As sociedades estaduais costumam ter patronos, geralmente membros das classes de elite, que oferecem vários tipos de apoio a artistas talentosos, como pintores, músicos ou escultores de cortes e palácios. Em alguns casos, uma carreira artística pode significar que uma vida inteira é dedicada à arte religiosa.

Goodale e Koss (1971) descrevem a fabricação de postes funerários ornamentais nos Tiwis, no norte da Austrália. O afastamento temporário e o afastamento de outros papéis sociais permitiram aos artistas que produziram postes funerários se dedicarem integralmente ao trabalho. Por ocasião de uma morte, eles receberam a tarefa com um cerimonial, por meio do qual foram temporariamente liberados da tarefa de ter que prover o suprimento de alimentos. Outros membros da comunidade se prestaram para serem seus patronos, fornecendo o precioso material necessário para o seu trabalho. Os fabricantes de postes funerários foram segregados em uma área de trabalho perto do túmulo, sujeito a tabus para o resto da sociedade. As artes geralmente são definidas como algo nem prático nem comum. Eles se aproveitam do talento, que é individual, mas que deve ser canalizado e moldado em direções aceitas pela sociedade. Inevitavelmente, o talento e a produção artística removem o artista da necessidade prática de encontrar um meio de vida. Frequentemente, surge o problema de como apoiar os artistas e as artes: todos já devem ter ouvido a expressão 'artista que está lutando para ter sucesso'. Mas como a sociedade pode fazer isso? Se o apoio vem do estado ou da religião, normalmente o artista tem que dar algo em troca: neste caso, a expressão 'livre' é limitada. O mecenato e o patrocínio também podem significar que as obras de arte criadas são retiradas do uso público: muitas vezes, a arte encomendada pela elite é exibida apenas na casa do cliente e, às vezes, exibida em museus após sua morte. A arte encomendada pela Igreja pode estar mais perto das pessoas. Da expressão artistica-estética da cultura popular voltada para a fruição!  por parte do público, vc melhor quem: da elite, vamos conversar mais adiante.

Continuidade e mudança

As artes continuam a mudar, embora algumas formas de arte tenham sobrevivido por milhares de anos. A arte rupestre do Paleolítico Superior, que sobreviveu por mais de 30.000 anos, também foi uma manifestação altamente desenvolvida da criatividade e do simbolismo humanos, com uma longa história evolutiva sem dúvida. A arquitetura monumental, junto com a escultura, os relevos, a cerâmica ornamental, bem como a música, a literatura e o teatro, sobreviveram desde as primeiras civilizações.

Países e culturas são conhecidos por suas contribuições particulares, incluindo a arte. Os balineses são famosos pela dança; o Navajo para pinturas de areia, joias e tecidos; os franceses por fazerem da culinária uma forma de arte. Na escola ainda lemos tragédias e comédias gregas, assim como Shakespeare e Milton, e admiramos as obras de Michelangelo.

O teatro grego está entre as artes mais duradouras: as palavras de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, imortalizadas na palavra escrita, continuam vivas. Mas quem sabe quantas outras grandes criações e representações pré-literárias se perderam! O teatro clássico grego sobrevive em todo o mundo: é lido na escola, torna-se tema de cinema e é representado em palcos de Atenas a Nova York. Hoje em dia, as artes dramáticas fazem parte de uma enorme indústria de 'artes e lazer', ligando as formas de arte ocidentais e não ocidentais em uma rede internacional com dimensões estéticas e comerciais. da escrita, isto é, daquela revolucionária 'tecnologia da palavra' que deu origem ao nascimento das sociedades históricas, permitindo o nascimento e o desenvolvimento daquele pensamento analítico que é a base epistêmica da metafísica ocidental. Como a profunda revisão historiográfica realizada pelos Anuales amplamente demonstrou, hoje não é mais possível reduzir a história aos acontecimentos políticos, econômicos, artísticos e seus protagonistas individuais, deixando em segundo plano o estudo da persistência mítica duradoura, a antropológica. status das religiões, o papel das classes mais baixas; e, neste contexto, como um dado indispensável, em alguns aspectos até mesmo preparatório para qualquer investigação posterior, os estatutos de significar e comunicar não podem deixar de assumir um peso de primeira magnitude - como especialmente antiquistas e medievalistas bem entenderam precisamente no que diz respeito ao oral /. escrita - a partir da sua forma e funcionamento lógico-médio ou, como dizemos hoje, mediática. Além disso, as divisões de época mais clássicas, com uma consciência que permaneceu paradoxalmente quase impensável pela historiografia tradicional, situam as fronteiras históricas convencionais em eventos de extrema relevância mediológica. Para que a fronteira entre a história e a pré-história coincida com a formação e disseminação das primeiras formas de escrita, o fim da antiguidade clássica com o advento de uma Idade Média 'escura' bárbara e analfabeta, o surgimento da modernidade com a redescoberta humanística do humanae litterae e, acima de tudo, com a invenção relacionada da impressão; enfim, a chamada pós-modernidade, ou o que quisermos chamar de nossa experiência histórica atual, marcada por uma revolução inédita e de certa forma perturbadora produzida pela afirmação e multiplicação de meios tecnológicos muito poderosos que atacam, como agora é mais do que evidente, centralidade da escrita; uma revolução, esta última, que não se limita a fornecer ferramentas adicionais e extraordinariamente poderosas para a comunicação, mas como agora sentimos com crescente consciência, ela questiona, em uma escala agora global, os próprios fundamentos do pensamento e das culturas de todo planeta, começando com o nosso. Para um aparente paradoxo da história, de fato, o surgimento e a afirmação dos meios tecnológicos de expressão e comunicação como o cinema, o rádio e a televisão coincidiram de fato com um recuo gradual do peso e da autoridade do livro, ou seja, o instrumento por excelência sobre o qual o Ocidente criou, com a primazia conectada do logos - a razão que se torna linguagem - as próprias condições de sua afirmação cultural, tecnológica e científica. À (relativa) inocência da escrita que, subtraindo a palavra da efemeridade e da volatilidade do tempo, da presença da voz e da expressão

corpo do locutor, os meios tecnológicos responderam de fato com um gesto igual e oposto, ou seja, com a reconstituição de uma profundidade semiótica que entrelaça diferentes códigos em vários níveis, de modo a induzir os observadores mais alertas, no resquício de autores como o já citado McLuhan (mas é impossível não lembrar pelo menos de Walter Ong, Eric Havelock, Paul Zumthor) [4] para falar de uma 'oralidade de retorno' sem precedentes, ambígua e perturbadora, mas também fascinante e surpreendente, porém destinada a produzir mudanças radicais na forma de pensar e comunicar em nossa modernidade tardia. Onde o advento da escrita havia transferido a palavra do ouvido ao olho - isolando-a para sempre, na superfície estática e incorruptível da folha, da voz, dos gestos, de todos os traços circunstanciais - o rádio, o cinema e a televisão fizeram um igual e gesto oposto devolvendo-lhe a sonoridade, a mímica, a gesticulação, enfim, aquela profundidade semiótica que é constitutiva da expressão oral integral. Com o ! mil consequências - que aqui é impossível discutir - produzidas pela mediação dos meios tecnológicos de 1 comunicação, portanto, tudo menos 'primários' e ligados às línguas naturais. Por fim - por último mas não menos importante - uma referência à rede, que não só consegue condensar num único instrumento diferentes suportes (rádio, cinema, televisão, jornal, fotografia, telefone, etc.) que podem ser concebidos e utilizados isoladamente ou com vista à convergência cross-media, mas que, permitindo a interactividade (não só homem / máquina, mas, através da máquina, utilizador / utilizador), revoluciona a relação clássica da comunicação broadcast (de um para muitos) ao introduzir o princípio de uma democracia discursiva que permite a cada usuário ser fonte e / ou destinatário de uma comunicação social inédita, que já está produzindo os primeiros efeitos extraordinários, principalmente por meio das redes sociais, que na Europa e na América, sem falar em países árabes como o Egito e Tunísia, formaram um ponto crucial de encontro virtual, debate e finalmente de organização concreta para os temas inspiradores das recentes revoluções democráticas, liderados por movimentos em grande parte espontâneos que pegaram absolutamente todos os analistas de surpresa. Quaisquer que sejam os resultados finais dessas revoluções, o que ocorreu nos leva mais uma vez a considerar o modo de operação desse meio interativo específico, a perceber que é sua estrutura íntima de funcionamento, seu próprio dispositivo de semiose e interação comunicativa, para induzir necessariamente quem o faz para a função dialética, isto é, para a propensão para escutar, mas também para a resposta ativa, no quadro de um processo que ao exaltar cada individualidade coloca as condições las, que nos traz de volta aos traços constitutivos da organização social em culturas de expressão oral primária, com pleno reconhecimento, entretanto, do papel de indivíduos únicos e criativos. Nas palavras de um grande professor, Edgard Morin: 'O interessante é que hoje com a internet o planeta tem um sistema nervoso cerebral artificial. Exatamente como um cérebro [...] um novo dispositivo, que não existia antes, que pode dar uma importante contribuição para o nascimento de uma consciência planetária, de uma terra / pátria, de uma cidadania comum.

Futebol na perspectiva da antropologia

Há um consenso de que o futebol constitui, em termos antropológicos, um fato social total, um acontecimento que sintetiza e catalisa dinâmicas econômicas, políticas, rituais, religiosas, identitárias e mesmo raciais, tanto que em alguns países em desenvolvimento, como O Brasil, pode ser considerado um sincretismo eficaz da hibridização que os distingue. Como facto social total, é portanto um espelho emblemático da sociedade e das suas contradições, evidenciadas pelos escândalos, pela corrupção, pela compra e venda irregular de jogos que surgiram nos últimos anos, mas também pela violência nos estádios, que no interior do jogo abre espaço para a explosão de formas de mal-estar social, exclusão, mal-estar urbano.

Ao mesmo tempo, o torcedor, aquele que participa da paixão pelo futebol, é atingido como por uma doença epidêmica (que potencializa o aspecto de compartilhar e compartilhar) da qual não pode escapar, sendo obrigado a se submeter a um pathos invasivo que o permeia. a existência e permeia a identidade muito além dos limites do evento futebolístico.

Os jogos com bola podem ser encontrados em todas as latitudes e em todos os momentos: os principais poemas gregos, como a Ilíada e a Odisséia, contêm referências à esferomaquia praticada pelos povos gregos; em Roma o jogo tomava o nome de Harpastrum e era disputado no Campo Marzio, nos banhos públicos e nas esferas.

O termo 'oralidade de retorno', agora em uso comum, é de W. Ong, que o usa em vários lugares, incluindo o fundamental Onilily and Literacy, Methuen, Londres, 1977. O conceito, entretanto, está presente, no sentido de muito semelhante nos outros autores citados.

steri de vilas privadas. Embora os primeiros Jogos Olímpicos italianos, em 1886, não incluíssem o futebol, foi a Federação de Ginástica que primeiro organizou as competições de futebol na Itália, até a separação da própria Federação (1907), com a qual o futebol assumiu um caminho autônomo, ampliando os contatos com os britânicos e com outros especialistas estrangeiros. Durante o fascismo foi incentivado porque Mussolini compreendeu plenamente a sua função de coesão social e nivelamento de pessoas de diferentes origens, bem como de desvio para os jovens da atratividade dos partidos políticos, e assim valorizou os aspectos nacionalistas e o espírito competitivo interno, mais do que internacional. O futebol continua sendo um dos esportes mais polares da Itália e do mundo, profundamente lubrificado na história social do país, ao mesmo tempo fruto e espelho de suas transformações.

Origens e transformações

A interpretação antropológica do evento futebolístico como um rito no qual veiculam, de forma híbrida, significados, valores e símbolos de diferentes naturezas, com funções e repercussões muito além do evento esportivo, é efetivamente exemplificada pelo caso dos torcedores napolitanos. nos anos de Maradona.

O torcedor napolitano se configurou desde o início, na tradição do futebol da cidade, como um torcedor destacado, animado e participativo, mesmo nas temporadas alternadas que caracterizaram as modalidades. A equipe Napoli surgiu na era fascista da fusão de duas equipes anteriores, Nápoles e Internazionale. Nesta primeira fase o jogo de futebol e sua comitiva têm uma conotação elitista e aristocrática, jornalistas, notáveis ​​e intelectuais praticam este esporte, reúnem adeptos e encontram torcedores em sua própria comitiva (o capitão de Nápoles é professor de geometria projetiva na Universidade de Nápoles).

Nos anos trinta do século passado, com a chegada ao time de Átila Sallustro, o campeão paraguaio filho de um farmacêutico emigrado napolitano, a cidade tem seu primeiro ídolo do futebol: jovem, bonito, capaz de competir com o atacante ambrosiano - Inter de Milão Giuseppe Meazza, ele representa o primeiro passo para a transformação da competição de futebol em um confronto personalista de campeões: a torcida da cidade é tudo para ele e por sua capacidade de conduzir a equipe a vitórias brilhantes. Em 1929, ao retornar da partida vitoriosa contra o Modena, 10.000 torcedores o aguardam na estação central: o futebol assim ultrapassou o limiar do evento esportivo e se tornou festival completo da cidade (na cidade e na cidade).

Nos anos cinquenta, o dono e presidente da equipa Achille Lauro (eleito prefeito em 1952 e depois novamente em 1956) cunhou o slogan 'Uma grande Nápoles para uma grande Nápoles', transmitindo em linguagem simples a hostilidade para com o norte e para com Roma, indiferente às necessidades do Sul: entretanto o desemprego é muito elevado, a cidade vive a crise económica e o profundo atraso de desenvolvimento que a distingue das cidades do Norte. A torcida reflete o estado de coisas: no estádio Vomero, na década de 1950, ocorreram três invasões de campo, graves acidentes e eventuais guerras urbanas, caracterizadas por cargas policiais montadas.

No final dos anos 60, pode-se dizer que a temporada política e futebolística de Lauro acabou: o clube esportivo, em sérias dificuldades econômicas, passa para as mãos do empresário Roberto Fiore, que com a compra de Sivori e Altafini leva o Napoli à excelência colocações nacionais.: nos anos de boom econômico, a equipe também floresce. Nos últimos anos, os torcedores napolitanos alcançam uma extensão e participação incomparáveis ​​no resto da Itália: o estádio San Paolo, construído por Lauro em 1962, registra público e bilheteria entre os times da Série A; para a temporada de futebol de 1975-1976, a coleção do Napoli é a maior de todos os tempos na história do futebol italiano.

A cidade e seu campeão: o tifo por Maradona

Diego Armando Maradona, o pibe de oro, campeão argentino e capitão do time de futebol Napoli de 1984 a 1991, é o verdadeiro ícone de uma cidade que 'adota' um campeão exógeno, que transmite a subordinação histórica, mas também a recuperação da cidade , a nível nacional e internacional, através das duas vitórias da equipa napolitana no campeonato nacional (os 'scudetti' 1986-1987 e 1989-1990) e a vitória internacional do troféu da taça UEFA (1988-1989).

Maradona constituía, portanto, um símbolo, não só para os adeptos do futebol mas para toda a cidade, até elevado ao nível do sagrado, como demonstram os hinos ao Sangennarmatido daqueles anos: a síntese, cunhada pelos napolitanos, entre o nome de San Gennaro , padroeiro da cidade, e Diego Armando, nome do campeão argentino, testemunham a mistura entre o sagrado e o profano, a transposição do campeão para o mito, e reforçam a ideia difundida entre os estudiosos de que o fenômeno do futebol, com seu ritual complexo e simbólico, quase constitui um exemplo de uma nova religião

laicismo da contemporaneidade, capaz de suscitar continuação, paixão, fé, de incutir valores e traçar um plano meta-histórico, como só as grandes religiões pareciam capazes de fazer até recentemente.

No dia 5 de julho de 1984, às seis da tarde, Maradona é esperado no estádio São Paulo, já lotado duas horas antes: a chegada do campeão, a festa que o recebe já se constrói como um evento periodizador, já tem a conotação de um divisor de águas destinado a abrir uma nova era, do futebol e da cidade, segundo uma associação nada linear. O clube de futebol está em condições difíceis, a busca do capital necessário para a compra do campeão argentino exige, por parte do então presidente Feriaino, delicadas negociações com os bancos, que não deixam de ter relação com as intervenções de expoentes políticos do Os democratas-cristãos da época. Maradona é o destinatário de uma expectativa quase messiânica. Feriaino, o arquitecto de um acontecimento 'milagroso' cujo poder taumatúrgico, como se verá, terá um forte impacto não só no futebol mas na própria representação da cidade.

Nestes anos (1984-1991) os adeptos do futebol napolitano darão provas e mostras a nível nacional, não só pelo material original e imaginativo e pela produção simbólica que acompanha os eventos desportivos e o seu protagonista, mas também porque tentará operar, a alguns versos sucessivos, cansativo resgate, no plano simbólico, de uma cidade carente, ineficiente e atrasada, justamente pela encenação operada, não só nacionalmente, por seus torcedores. O protagonista principal é uma associação de torcedores nascida em um bairro histórico degradado do centro urbano, a Rione Sanità; a associação nasceu nos anos setenta, mas nos anos de Maradona assume um papel de destaque entre os adeptos da cidade: é o Comando Ultrà de Vico Limoncelli, que encontra a sua localização no estádio. na curva B. Nos anos oitenta o original a associação já se tornou uma rede e, também na esteira dos sucessos da equipe e do agora temido campeão a nível nacional, conta com cerca de 34 seções em todas as regiões italianas, além de duas seções estrangeiras na Inglaterra e na Nova Zelândia. A associação disponibiliza ainda uma informação mensal intitulada 'Ultranapolissimo' e uma emissão televisiva de uma hora ('Uma hora na curva B'), transmitido por uma emissora local.

A história do Comando Ultrà é, no entanto, inseparável da de seu presidente e líder carismático, chamado Palummella, natural de Rione Sanità e co-proprietário de uma pequena relojoaria, cujo sentido organizacional e empreendedor transformou os torcedores napolitanos em ouro fase de sucesso. da equipe, em real capital simbólico para passar na cidade e fora dela. O próprio termo ultrà indica uma categoria particular de torcedores, aqueles que, para além do simples apoio, fazem da pertença à equipa um empenho apaixonado e constante, uma verdadeira forma de vida. O Comando Ultrà é o responsável pela invenção de coreografias no estádio, que fazem sentido não só porque são vistas pela equipa (e portanto com função de apoio), mas ainda mais porque são vistas pelos restantes adeptos da mesma equipa. (Teste Matte, Vecchia Guardia, Blue Lions, Fedayn), pelas equipas adversárias e, através dos meios de comunicação, por todos os que acompanham os acontecimentos futebolísticos, tanto na Itália como no estrangeiro. O contraste entre o grupo interno e o externo é duplo, já que a competição é disputada com outros grupos de torcedores locais e com torcedores adversários, e a vitória é sancionada no nível do espetáculo e na habilidade da encenação. Como argumenta Bromberger, os fãs são transformados de espectadores vedetes em vedetes, resgatando assim o anonimato que os caracteriza na sociedade. No show dominical as pessoas trabalham a semana inteira preparando banners, inventando frases, estudando coreografias, compondo canções e slogans. Estas características assumem particular relevância se pensarmos que os jovens do Comando Ultrà são oriundos dos bairros mais pobres e “de risco” da cidade e que, por isso, encontram nas associações de adeptos não só um lugar efetivo de agregação mas também um forma mais ampla de resgate, do estereótipo inferior que atinge toda a cidade, em escala nacional, e dentro dela alguns bairros, inclusive o de origem do grupo histórico da Associação (a Saúde). A este respeito,

O próprio Maradona, o menino das favelas que fez fortuna, efetivamente se presta a se tornar um símbolo de tantos jovens napolitanos que buscam um possível horizonte de redenção no futebol e por meio dele.

Na esteira do efeito impulsionador do campeão Maradona, o líder da torcida Pallunimella, justamente nos anos em que episódios de violência e confrontos entre torcedores adversários (especialmente no Norte) se alastram, torna a ética da não violência um fundamento e um traço distintivo dos adeptos napolitanos, a ponto de obter da Federação Internacional de Futebol, em 1987, o prémio para os adeptos mais civilizados da Europa. O resultado mais visível da nova ética do torcedor napolitano ocorre na primeira festa do Scudetto, em 10 de julho de 1987, quando o Napoli sela sua primeira vitória nacional. A cidade explode em uma profusão de caos e cores, prédios inteiros são cobertos com bandeiras azuis produzidas especialmente por pequenas fábricas montadas para a ocasião, os monumentos são cobertos com fitas azuis, a festa dos torcedores é a festa da cidade, e são esses para ditar as regras: nenhum acidente, nenhum ato de violência, nenhum dano a coisas ou pessoas. O espaço e o tempo da festa voltam no dia seguinte para dar lugar ao tempo do dia a dia, sem atrapalhar e nem atrapalhar a sua regular recuperação.Futebol, torcida e a cidade

A época de Maradona pode, com razão, ser considerada uma época em que, em termos antropológicos, encontrou espaço o florescimento de processos novos e inesperados na própria experiência dos apoiantes locais

Arte, mídia e desporte

Cali e a cidade. Esses aspectos certamente não devem nos fazer esquecer que mais uma vez o sucesso do futebol está enxertado nos males atávicos de uma cidade, que a própria) nos anos oitenta vê a eliminação de Bagnoli e as demissões de milhares de trabalhadores. A própria sombra da Camorra sempre pairou sobre o futebol e seus investimentos, inclusive aquele que permitiu a compra do campeão argentino, assim como a imprensa da época não deixou de notar. Da mesma forma, os eventos mais recentes de escândalos econômicos e procedimentos ilegais não pouparam a seleção do Napoli, como os principais clubes nacionais. O que se deve destacar é o caráter do fenômeno futebol napolitano profundamente 'enraizado' na história da cidade, em sua complexa dinâmica econômica e social, da qual o futebol contribuiu para ser o motor e ao mesmo tempo sido um espelho, não sem contradições.

Porém, na fase áurea que representou Maradona com seus sucessos, não é a simples lógica do resgate simbólico de uma cidade problemática que consegue dar conta de um fenômeno complexo, o futebol e sua torcida; antes, do ponto de vista antropológico, segundo a tese de Signorelli, ocorre uma curiosa inversão da dimensão local e global, e essa subversão é facilitada e garantida justamente por um passaporte como o de Maradona: em termos antropológicos, é o pleno. participação da cidade em um circuito global como o futebol, sua visibilidade na mídia e de sua visibilidade midiática e sua ressonância mundial, para redefinir o pertencimento a uma localidade e a uma cidade, e para impulsionar novas formas de identificação local e de valorização da cidadania. Isso é tanto mais verdadeiro quanto a filiação e a cidadania em Nápoles são historicamente fracas e problemáticas.

Conclusão

1 Povos em todo o mundo, mesmo que não tenham uma palavra que corresponda a 'arte', associam uma experiência estética a objetos e acontecimentos que possuem determinadas características. As artes, que às vezes levam o nome de cultura expressiva, incluem as artes visuais, a literatura (escrita e oral), a música, as artes teatrais. Algumas das observações feitas em relação à religião também se aplicam à arte: se adotamos uma determinada atitude ou conduta diante de um objeto sagrado, fazemos algo semelhante diante de uma obra de arte? Muita arte foi produzida em conjunto com a religião. Nas representações tribais, as artes e a religião costumam se misturar, mas a arte não ocidental nem sempre está ligada à religião.

2 Os locais específicos onde encontramos arte são museus, salas de concerto, óperas e teatros. No entanto, as fronteiras entre o que é arte e o que não é não estão claramente definidas. Discrepâncias na apreciação da arte são particularmente comuns na sociedade contemporânea, que possui artistas profissionais

e críticas, mas também uma grande diversidade cultural.

3 Estudiosos da arte não ocidental têm sido criticados por ignorar a individualidade dos artistas e por se concentrarem demais no contexto social da arte e da produção artística coletiva. Em empresas estatais, alguns conseguem se sustentar dedicando-se em tempo integral à arte, enquanto em sociedades não estatais os artistas costumam se dedicar à arte em tempo parcial. Os padrões da comunidade julgam a habilidade e integridade de uma obra de arte. Normalmente as artes são exibidas, valorizadas, representadas e apreciadas na sociedade. A música, muitas vezes executada em grupos, é uma das artes mais funcionais para a socialização. Os termos arte popular, música e folclore referem-se à cultura expressiva das pessoas comuns, geralmente rurais.

4 A arte pode representar tradição, mesmo quando a arte tradicional é removida de seu contexto original. A arte pode ser a expressão da maneira de pensar de uma comunidade, ter objetivos políticos e ser usada para

chamar a atenção para os problemas sociais. Muitas vezes, a arte é feita para comemorar e para durar ao longo do tempo. No mundo acadêmico

uma maior aceitação da definição antropológica de cultura levou as humanidades a se interessarem não apenas pelas artes plásticas, artes de elite e arte ocidental, mas também pelas expressões criativas das massas e de diferentes culturas. Freqüentemente, mitos, lendas, contos de fadas e a arte dos contadores de histórias desempenham um papel importante na transmissão da cultura. Muitas empresas têm carreiras nas artes; uma criança nascida de uma determinada família ou linhagem pode encontrar-se destinada a uma carreira na arte do processamento de couro ou têxtil.

5 As artes continuam a mudar, embora algumas formas de arte tenham sobrevivido por milhares de anos. Países e culturas são conhecidos por suas contribuições particulares. Hoje em dia, uma enorme indústria de 'artes e lazer' conecta formas de arte ocidentais e não ocidentais em uma rede internacional com dimensões estéticas e comerciais.

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11ª Lição 4 de Março 2024: Antropologia da religião

Antropologia da religião

Seria razoável, então, supor que o estudo antropológico da religião - que, afinal, é apenas uma pequena subdivisão da cultura - deveria ser limitado e gerenciável.

Bem, não é. Talvez seja porque os valores, suposições, percepções e atividades que compõem a religião servem de base ou ponto de partida para praticamente tudo o que os humanos fazem ou pensam: relações sociais, escolha de ações, compreensão da causa e efeito, conclusões sobre propósito e significado. A religião tem dimensões políticas e de género; a religião é frequentemente expressa em violência, mas também é uma fonte de tranquilidade e esperança; a religião pode ser o suporte da tradição e da continuidade e - às vezes ao mesmo tempo - a fonte de fortes mudanças. 

Crenças e práticas religiosas

Os pesquisadores de campo de todos os cantos do globo tentaram documentar ou pelo menos relatar as diversas crenças e práticas religiosas que encontraram nas suas pesquisas de Trabalho de campo. A maioria dos antropólogos não são religiosos ou aderem firmemente aos sistemas de crenças ocidentais, que fornecem pouco espaço para a simpatia pelas crenças questionáveis ​​dos “outros”. Pode ser que o contínuo e interminável, interesse antropológico pela religião reflete as tensões dos valores e crenças em conflito com as de outros lugares e épocas.

História da antropologia religiosa

A tensão aparentemente inevitável entre as crenças dos antropólogos e àquelas das pessoas que eles estudam foi expressa ao longo dos anos de várias maneiras. 

Como pode ser traçada uma linha entre sistemas de crenças supostamente 'civilizados' (como, presumivelmente, cristianismo, judaísmo, budismo, islamismo, hinduísmo ) e os outros sistemas de crenças que podem ser encontrados entre povos de todo o mundo ?

Evans-Pritchard

É possível que a afirmação clássica de Evans-Pritchard (de que a antropologia se preocupa ou deva se preocupar apenas com religiões primitivas) reflita pelo menos em parte uma suposição de que os antropólogos aderiram a uma religião ocidental, como o cristianismo ou o judaísmo - ou não se inscreveram em nenhum sistema de crenças mas aderiram àquele da ciência (E. E. Evans-Pritchard 1991: 1). Se o primeiro, o antropólogo provavelmente ao estudar  a religião de outras culturas a consideraria como sendo cheia de erros, superstições, práticas tolas ou obscenas e tão claramente 'primitivas' quando comparada ao sistema de crenças do antropólogo. E se por último o antropólogo considerasse todas as religiões sem sentido - então talvez seria melhor seguí-lo com cuidado. De qualquer forma, sempre houve perigo para os não-crentes ou não-conformistas de provocar a ira da autoridade eclesiástica, de tal forma que Michael Servetus foi queimado na fogueira e Spinoza foi excomungado e Galileu foi forçado a retratar. Os tempos mudaram - talvez - já que os estudiosos, pelo menos na Europa, temiam represálias por suas crenças ou interpretações, mas alguns ainda acham que é melhor evitar precipitar ofensas:

Podemos observar de passagem que, quando falamos de religiões tradicionais africanas, é implícito em qualquer momento se referir ao sobrenatural. No entanto, a sociedade ocidental, é frequentemente considerada com uma marca de ateísmo militante quando se refere as religiões que acreditam no sobrenatural.

As sociedades humanas diferem de inúmeras maneiras em tecnologia, relações sociais, valores, crenças e, de facto, tudo e todos os esforços para organizar as sociedades segundo os moldes do evolucionismo, partindo do 'primitivo' para chegar ao 'civilizado', caíram de forma ignominiosa. Não podemos considerar “todas as sociedades como iguais” ou formular “juízos de valor sobre as culturas”; No passado muitos estudiosos e antropólogos emitiram juízos de valor sobre as pessoas pertencentes a outras culturas emitindo apresamento como tolos, repulsivos ou admiráveis. O problema para os antropólogos e para a antropologia contemporânea é que todos esses julgamentos são inevitavelmente subjetivos, pessoais e arbitrários.

Edward Burnett Tylor

 Edward B. Tylor, considerado por muitos como o pai da antropologia moderna, concluiu que a religião emergiu dos interrogativos iniciais dos seres humanos no início da inteligência humana, enquanto buscavam respostas para explicar o aparecimento dos mortos em sonhos e o desaparecimento, de tempos em tempos, de animais de caça ou água (Tylor 1871).

Sir James Jorge Frazer

Se Tylor viu a religião emergir da busca inicial de respostas para ocorrências aparentemente inexplicáveis, James G. Frazer (1922), considerado por muitos como o pai do estudo antropológico da religião, concluiu que a religião era simplesmente um passo na progressão dos esforços para controlar o meio ambiente e o desenrolar dos acontecimentos. Em outras palavras, a princípio os humanos acreditavam que podiam fazer cair a chuva ou capturar os animais forçando a natureza (ou os espíritos invisíveis que administravam a natureza) e reduzindo-a à sua vontade: isso, disse Frazer, era o começo da magia.

Então, como Frazer viu, os humanos começaram a perceber como seus esforços realmente alcançavam pouco em termos de resultados, embora (como Frazer demonstra), a crença e a prática da magia continuem até os dias de hoje. Contudo, ao que parece, o questionamento da eficácia da magia levou alguns observadores antigos a concluir que os seres que controlavam o universo eram claramente mais poderosos que os humanos - e, que portanto, eles só podiam propiciar tais divindades com orações e ofertas, já que não podiam forçá-los ou controlá-los. - e isso (para Frazer) foi o começo da religião.

Finalmente, Frazer admite que veio a ciência, permitindo a reflexão e o entendimento de que o universo é governado por leis e os seres humanos que entendem como funcionam as forças brutas do universo, não passíveis de coerção ou propiciação, tornaram-se capazes de manipulá-las. Explicações como as de Tylor e Frazer pareciam razoáveis ​​para seus contemporâneos, na maioria das vezes eles que propunham tais teorias nunca tinham encontrado um 'primitivo' por serem antropólogos de mesa.  É um fato notável que nenhum dos antropólogos cujas teorias sobre religião primitiva foram mais influentes jamais esteve perto de um povo primitivo (Evans-Pritchard 1965: 6). Evans-Pritchard continua criticando contra a literatura usada por esses antropólogos de mesa que ficam em casa: «Grande parte dela era falsa e quase toda não era confiável e, pelos padrões modernos de pesquisa profissional, era casual, superficial, fora de perspectiva e fora de contexto».

O QUE É RELIGIÃO?

O antropólogo Anthony F.C. Wallace chamou a religião de 'uma fé e um ritual voltado para seres, poderes e forças sobrenaturais' (1966, p. 5). O sobrenatural é uma dimensão extraordinária fora do mundo observável mas inexplicável e imaterial, deve ser aceito 'pela fé' sobre Seres sobrenaturais - deuses, deusas, espíritos e almas - que não pertencem ao mundo material e nem mesmo são forças sobrenaturais (que podem ser exercidas por seres vivos). Outras forças sagradas são impessoais e simplesmente existem. Em muitas sociedades, as pessoas sentem que podem se beneficiar, absorver ou manipular forças sobrenaturais (Bowie 2006; Crapo 2003).

Outra definição de religião enfatiza a multidão de pessoas que se reúnem regularmente para atividades de adoração; esses fiéis ou seguidores subscrevem e interiorizam um sistema comum de espiritualidade:  aceitam aderem ou acreditam numa série de doutrinas que envolvem a relação entre o indivíduo e a divindade, o sobrenatural ou o que quer que seja considerado a expressão máxima da verdade.

Durkheim

Os antropólogos destacaram a natureza coletiva e compartilhada da religião, as emoções que ela gera e o significado que corporifica as sociedades constituídas em igrejas. Émile Durkheim (1912/1963), um dos primeiros estudiosos da religião, destacava a efervescência religiosa, o fervilhar de uma intensidade emocional colectiva gerada pelo culto. Victor Turner (1969/1972) atualizou as noções de Durkheim usando o termo communitas, um intenso espírito de comunidade, um sentimento de grande solidariedade social, igualdade e fraternidade. A palavra religião vem do latim religere, 'ligar, manter unido', mas não é necessário que todos os membros de uma religião se reúnam como um único grupo.

As Igrejas

Os subgrupos se reúnem regularmente nas igrejas das congregações locais e podem ocasionalmente participar de reuniões prolongadas com outros fiéis ou mesmo formar uma comunidade imaginária, com pessoas do mesmo credo, que abrange o mundo inteiro.

Assim como a etnia e o idioma, a religião também está associada a divisões sociais dentro e entre sociedades e nações, como em países onde o Islã se espalhou. A religião pode unir e pode dividir: a participação em ritos comuns pode afirmar e, portanto, manter a solidariedade social entre os seguidores e, ao mesmo tempo, como aprendemos com as notícias diárias, as diferenças religiosas podem estar associadas a ódio intenso.

Ao estudar religião em diferentes culturas, os antropólogos se concentram em sua natureza e papel social, bem como na natureza, conteúdo e significado que as doutrinas religiosas, ações rituais, eventos, ambientes, celebrantes e organizações têm para com as pessoas. Também são consideradas as manifestações verbais da fé religiosa, como orações, canções, mitos, textos e declarações sobre ética e moral. A religião, de acordo com uma ou a outra das definições oferecidas aqui, existe em todas as sociedades humanas: é um universal cultural. No entanto, veremos que nem sempre é fácil distinguir o sobrenatural do natural e que diferentes sociedades conceituam divindade, entidades sobrenaturais e as verdades mais elevadas de maneiras muito diferentes.

ORIGENS, FUNÇÕES E EXPRESSÕES DA RELIGIÃO

Ninguém sabe ao certo quando nasceu a religião. Existem marcas religiosas em túmulos da era Neandertal e nas paredes das cavernas europeias onde são pintadas figuras estilizadas que poderiam representar os xamãs, e os primeiros praticantes da religião. No entanto, qualquer afirmação sobre quando, onde, por que e como a religião cresceu, ou qualquer descrição de sua natureza original, pode ser especulativa. Algumas especulações não levam a lugar nenhum, muitas outras revelaram funções e efeitos importantes do comportamento religioso.

Evolucionismo social

Antes de examinar várias teorias desenvolvidas pelas escolas antropológicas, é bom nos determos no contexto histórico em que a religião nasceu, indicativo interesse pelas religiões. Em 1843, a Sociedade Etnológica de Londres foi fundada na Inglaterra. É um momento histórico em que a Europa estava em pleno desenvolvimento industrial e a Inglaterra a nação mais avançada. A palavra-chave desse período foi progresso e a ciência foi o instrumento capaz de garantir o progresso da humanidade. Como a Inglaterra vitoriana estava no auge de seu estágio evolutivo, a chave do estudo antropológico teve que ser buscada no passado: pensava-se que, com base na evolução que havia afetado a sociedade anglo-saxônica, era previsível que o mesmo mecanismo haviam distinguido sociedades do passado, levando-as de um estágio inferior para um estágio superior. A vida dos habitantes primitivos da Europa poderia, portanto, ser comparada à dos 'primitivos' contemporâneos, identificados nas populações nativas das colônias, que representavam a etapa mais remota do desenvolvimento cultural. Quanto aos estudos de arqueologia pré-histórica e filologia comparada, que buscavam formas originais de arte e linguagem nos 'primitivos' contemporâneos, também para a antropologia o foco de interesse era representado pelas origens da religião. O ponto central da questão era como as crenças se originaram e se havia tribos tão 'primitivas' que não possuíam uma religião. Veremos, portanto, como as diferentes correntes antropológicas têm lidado com a questão (Fabietti 2000).

Ciência, magia e religião

Ciência, magia e religião são todas as formas de entender e influenciar o mundo natural. Magia e religião diferem da ciência, pois o que não é explicado pela ciência no mundo natural é explicado na magia e na religião pelo recurso ao conceito de sobrenatural. Magia e ciência são semelhantes, pois os objetivos de ambos são específicos e baseiam-se na crença de que se alguém executar um conjunto de ações específicas, obterá o resultado desejado. Magia e ciência diferem no facto de serem baseadas em diferentes teorias do conhecimento. A magia (que faz parte da religião) baseia-se na crença de que, se os feitiços ou rituais forem realizados corretamente, o sobrenatural atuará de tal maneira que o fim desejado dentro do mundo natural resultará. A magia é baseada na ideia

que existe um elo entre o mundo sobrenatural e o mundo natural, de modo que o mundo natural pode ser compelido a agir da maneira desejada se a mágia for executada como deveria. A Ciência, por outro lado, baseia-se em conexões lógicas empiricamente determinadas entre os aspectos do mundo natural que resultará regularmente em resultados previsíveis. As Hipóteses sobre essas conexões lógicas estão sujeitas a alterações se novos dados empíricos sugerirem melhores hipóteses. A Ciência baseia-se no conhecimento empírico obtido através dos cinco sentidos, enquanto que a definição característica da religião é o sobrenatural, uma crença em uma realidade que “transcende a realidade passível dos cinco sentidos ”(Lett 1997: 104).

A competição entre explicações religiosas e questões científicas

As explicações que descrevemos acima continuam presentes hoje. A magia difere de outros aspectos da religião, pois as pessoas tentam manipular o sobrenatural através de intervenção direta. Se a fórmula mágica correta for usada, o sucesso é inevitável porque a magia é vista como capaz de dobrar o sobrenatural à vontade do praticante. As práticas religiosas, por outro lado, não são tão específicas em seus objetivos. Os ritos religiosos enfatizam o grau de impotência dos seres humanos e não impele resultados diretos da maneira que a magia faz. Os ritos religiosos envolvem pessoas fazendo apelos aos deuses, que podem ou não ser concedidos. A magia é, portanto, manipuladora e a religião é suplicante. O conhecimento mágico manipula em nome dos indivíduos, enquanto a religião é o sistema de crenças e a prática ritual de uma comunidade.

Definição de religião

A religião é tradicionalmente definida pelos antropólogos como o meio cultural pelo qual os humanos lidam com o sobrenatural, mas muitos humanos também acreditam que o inverso é verdadeiro - que o sobrenatural lida com os humanos. Nesta interação, o sobrenatural é geralmente visto como poderoso e os seres humanos como fracos. Em outra abordagem, Saler (1993) define religião em termos de um conjunto de elementos que tendem a se agrupar. Eles acrescentam uma crença em Deus, ou deuses ou 'seres espirituais' com quem os humanos podem ter contacto espiritual;  a esta espiritualidade se une um código moral que se acredita ter sido emanado por fontes extra-humanas; se pratica a crença na capacidade humana de ir além do sofrimento; e celebram-se rituais que envolvem os humanos com o extra-humano (Saler 1993: 219). Os “seres espirituais” e o extrahumano na definição de Saler podem ser equiparados ao que chamamos “o sobrenatural”. Klass (1995) argumenta que a definição da religião em termos do sobrenatural reflete a concepção platónica da separação entre corpo e espírito, e define a religião como «o processo instituído de interação entre os membros duma sociedade - com o universo, como eles o imaginam e o criam, atribuindo-lhe um significado, coerência, dependência, unidade, devoção e um certo grau de controle sobre os eventos que eles percebem como possíveis» (1999: 38).

Sistema de crenças

Todas as culturas humanas possuem um sistema de crença religiosa e, portanto, é geralmente reconhecido como um universal cultural que engloba crenças e práticas, que variam e regulam relacionamentos entre comunidades e praticantes. A existência deste sistema levou os estudiosos a questionar em que maneira o sobrenatural influi e condiciona a vida natural, o que é que motiva os seres humanos a propor que o mundo seja governado por forças além daquelas que as suas observações empíricas estabelecem. Muitos sociólogos ao longo dos anos tentaram de responder a essa pergunta. Max Weber (1930) argumentou que desde que a vida é feita de dor e sofrimento, os seres humanos desenvolveram a religião para explicar o motivo pelo qual eles devem aturar o sofrimento. São Paulo constantemente perguntou a Deus o porque devia estar aflito com um 'espinho na carne’. Sigmund Freud (1928) afirma que as instituições religiosas representam a maneira da sociedade de lidar com as necessidades infantis de dependência por parte dos seus membros. O que de outra forma seria um traço neurótico, encontra expressão na forma de deuses e divindades todo-poderosos que controlam o destino de um indivíduo. Melford Spiro (1966) sugere três tipos de necessidades que a religião cumpre: a primeira é chamada de necessidade cognitiva, isto é, a necessidade de entender; esta é a necessidade de receber  explicações e significados. A segunda é a necessidade substantiva de trazer metas específicas, como chuva, boas colheitas e saúde, através da realização de atos religiosos. A terceira é a necessidade psicológica de reduzir o medo e a ansiedade nas situações em que estas são provocadas. Emile Durkheim (1915) e outros que seguiram a sua abordagem viam a religião como o meio pelo qual a sociedade inculca valores e sentimentos necessários para promover a solidariedade social e a sobrevivência final da sociedade.

O Sobrenatural

 

Muitos acreditam na existência de uma realidade espiritual que vai além do universo observável, ou seja no sobrenatural.

Explicações recentes abordaram a tal dita ciência cognitiva da religião. Essa abordagem examina fenómenos religiosos como resultado da evolução do cérebro humano que no tempo, processa e categoriza as informações. Boyer (2001) afirma que o simbolismo e as representações religiosas são limitados cognitivamente pelas propriedades universais da mente-cérebro: “Os conceitos religiosos são provavelmente influenciados pela maneira como os sistemas de inferência do cérebro produzem explicações sem que estejamos conscientes disso ”(2001: 18). Ele caracteriza expressões religiosas como 'ontologias contra-intuitivas' (2001: 65). Por exemplo, a água benta não é quimicamente diferente da água da torneira; no entanto, os crentes atribuem à agua benta propriedades especiais, e isso é contra-intuitivo. Os rituais representam comportamentos separados da vida cotidiana e representações religiosas “violam” o que as pessoas consideram fenómenos naturais. Ele sugere que a universalidade da experiência religiosa seja melhor compreendida ao questionar-se «o que torna a mente humana tão seletiva no que diz respeito ao sobrenatural» (2001: 31). Outros estudiosos da religião e cognição estão investigando manifestações neurofisiológicas e neurobiológicas dos fenómenos religioso, como transe e meditação; Alguns citam o papel desempenhado pelo lobo temporal do cérebro nessas expressões de idéias, emoções e práticas religiosas. A partir dessas diferentes considerações sobre por que a religião existe e que explicações foram oferecidas para a universalidade dos fenômenos religiosos, podemos sugerir algumas respostas provisórias para as perguntas que colocamos. Os seres humanos fazem parte de um mundo social e também de um mundo natural. Eles dependem das ações de outros seres humanos, bem como das forças da natureza. Algumas dessas ações e forças podem ser controladas através de seu próprio comportamento. No entanto, eles são impotentes diante de ações e forças «sobrenaturais». Os seres humanos tentam entender e pelo menos influenciar ou controlar através de uma crença no sobrenatural o que de outra forma é incontrolável e inexplicável. Ao fazer isso, eles aliviam suas ansiedades em relação ao desamparo na situação, embora Boyer ressalte que muitas ideologias religiosas geram ansiedade e 'criam não tranquilidade mas uma espessa camada de melancolia' (2001: 20). A organização do mundo sobrenatural que é construído pelos seres humanos reflete a sociedade em que vivem. Os sentimentos e emoções geradas pelo sobrenatural são uma força importante no aprimoramento da solidariedade social.

CONCEPÇÕES DO SUPERNATURAL: animismo

As ideias sobre fantasmas e espíritos fazem parte de uma categoria maior de crenças sobre as contrapartes espirituais ou não corporais dos seres humanos. Tylor (1871), o evolucionista do século XIX, chamou a esse fenômeno  animismo. Ele teorizou que o animismo era a semente da qual todas as formas de religião cresceram. Ele levantou a hipótese do que ele chamava de 'povo primitivo' via todos os seres vivos, incluindo as forças da natureza, compostas de uma forma corporal ou corporal, e um aspecto espiritual. Essa foi uma extensão da ideia de que cada pessoa tem um corpo e um outro eu ou alma separável. Esse outro eu era visto na sombra da pessoa, ou no reflexo de uma lagoa, e viajava muito nos sonhos da pessoa. As idéias sobre animismo foram a pedra angular do desenvolvimento de uma história evolutiva da religião por Tylor, na qual o animismo evoluiu para um panteão de divindades (politeísmo) e, finalmente, para o monoteísmo. A maioria dos estudiosos contemporâneos, que encontram em todos os sistemas religiosos do passado e presente a coexistência de entidades e divindades sobrenaturais, questionam essa estrutura evolutiva. As pessoas que acreditam em qualquer religião veem o mundo sobrenatural como habitado por uma variedade de criaturas, agentes e forças sobre-humanas cujas ações trarão boa sorte ou infortúnio, chuva ou seca, fome ou fertilidade, saúde ou doença e assim por diante. O mundo natural serve de modelo, embora não exato, para as conceituações das pessoas sobre o sobrenatural. Seria muito simplista dizer que o mundo sobrenatural é simplesmente uma imagem espelhada da vida das pessoas na Terra. No entanto, existe uma relação entre a estrutura social de uma sociedade e a maneira como em que seu mundo sobrenatural está organizado. Da mesma forma, as relações de poder no mundo sobrenatural estão relacionadas ao tipo de organização política encontrada na sociedade.

Os tipos de espíritos, o termo geral para aqueles que povoam o reino sobrenatural, podem ser agrupados em tipos para descrevê-los. Isso é visto por alguns estudiosos como a imposição de conceitos da língua ocidental em categorias indígenas não ocidentais. Portanto, esses termos representam uma tradução e não um equivalente exato. Os espíritos dos mortos podem ser categorizados cronologicamente em relação aos vivos, como fantasmas dos mortos recentes, Espíritos ancestrais de gerações remotas e espíritos ancestrais do passado antigo, que eram grupos de Fundadores em tempos mitológicos. Nas sociedades com clãs totêmicos, como os Kwakiutl, os ancestrais fundadores podem ser representados como animais. Essa crença em não-humanos como ancestrais vincula diretamente a identidade de grupos humanos a animais específicos e geralmente é acompanhada pelas proibições de matar e comer o animal totêmico pelos membros do grupo. Alguns acreditam que todas as espécies animais e vegetais têm componentes físicos e espirituais. O mundo natural é então visto como tendo sua contrapartida espiritual. Forças inanimadas, como chuva, Trovões, raios, vento e maré também podem ser vistos como espíritos, ou motivados por Seres espirituais, ou controlados por divindades ou deuses. Se o espírito é diretamente percebido como possuindo

Características, bem como poder sobrenatural, então é referido como um deus ou divindade; A população de deuses e divindades reconhecidos por uma sociedade é um panteão. As relações entre os deuses de um panteão são frequentemente concebidas em termos humanos. Os deuses mostram ciúmes, têm relações sexuais, brigas e vivem como seres humanos. Características humanas deste tipo também são atribuídas aos fantasmas e espíritos ancestrais em muitas sociedades.

As origens e atividades dos seres sobrenaturais são retratadas em mitos. Qualquer combinação particular de diferentes tipos de entidades espirituais pode ser encontrada em uma dada sociedade. O Mundo sobrenatural está de acordo com sua própria lógica. Muitas vezes, as pessoas se identificam com um sistema ideológico Judaísmo, cristianismo e hinduísmo, e ainda mantém crenças em fantasmas, bruxas e Espíritos da natureza como sistemas paralelos.

Animismo

O fundador da antropologia da religião foi o inglês Edward Burnett Tylor (1871). A religião surgiu, de acordo com Tylor, quando os indivíduos tentaram compreender as condições e eventos que não conseguiam explicar usando as experiências cotidianas. De acordo com Tylor, o animismo representou um universal em todas as religiões. Mas como se forma a ideia de animismo e de que é feito? De acordo com Tylor, dois elementos estavam na origem da teoria do animismo: a alma e o espírito. Tylor também observou que em várias culturas não europeias havia frequentemente uma correlação entre termos como sombra, vida, respiração, vento e a ideia de alma e espírito. Em tais sociedades, animais, plantas e objetos inanimados eram frequentemente dotados de almas. Um exemplo diz respeito ao culto do sol, das árvores, da água, das rochas. De acordo com Tylor, foi a ideia da alma que representou o ponto de partida de todas as crenças religiosas. O animismo, portanto, poderia ser entendido como a crença nas almas que, em um estágio posterior, evoluiriam para seres espirituais, aos quais os eventos naturais estavam associados. Esses seres espirituais podiam controlar e influenciar os eventos do mundo material e a própria vida dos indivíduos. Ao mesmo tempo, eles eram capazes de interagir com eles: eles se alegravam ou ficavam com raiva dependendo de como os seres humanos agiam no mundo terreno. Consequentemente, para que os seres espirituais não prejudiquem os seres humanos, eles devem ser devidamente respeitados e propiciados.

De acordo com Tylor, a próxima fase do desenvolvimento religioso consistia na evolução dos espíritos em deuses que tinham a habilidade de controlar as ações humanas. Sua crença seria traduzida em politeísmo (existência de várias divindades) e, em um estágio superior da civilização, em monoteísmo, no qual o poder e os atributos de muitas divindades estariam concentrados em uma (Tylor 1871/2008, Fabietti 2000).

As elaborações de Tylor sobre o animismo, embora sujeitas a extensas revisões críticas (começando, por exemplo, com Durkheim), ainda permanecem extensivamente investigadas. Falar em animismo hoje significa refletir sobre categorias como alma e espírito, a pessoa em si, as relações entre o ser humano e as outras espécies, o conceito de morte e a centralidade dos ritos funerários e do sacrifício. Duas das mais recentes perspectivas teóricas sobre o animismo são representadas por Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro. O primeira afirma que o animismo é uma modalidade fundamental no pensamento e na ação humana e que atribui atributos sociais e disposições humanas aos seres naturais. A segunda define o animismo como uma ontologia que postula o caráter social das relações entre os seres humanos e outras espécies (Descola 2021, Viveiros de Castro 1998 ).

Como a religião nasceu para explicar coisas que não eram compreendidas, Tylor achava que perderia importância quando a ciência pudesse oferecer explicações melhores. De certa forma, ele estava certo. Agora temos explicações científicas para muitas coisas uma vez decifradas pela religião, no entanto, como a religião persiste, deve haver algo diferente para explicar o mistério. A religião deve, e é assim, ter outras funções e outros significados.

Totemismo

Os rituais têm a função social de criar uma solidariedade temporária ou permanente entre as pessoas, formando uma comunidade social. Também podemos ver isso em práticas conhecidas como totemismo. O totemismo era importante nas religiões nativas australianas. O totem pode ser constituído por animais, plantas ou pontos geográficos ou ambientais particulares. Em cada tribo, grupos de pessoas têm totens específicos e os membros de cada grupo totêmico acreditam que são descendentes de seus totens. Tradicionalmente, o animal totem não era normalmente morto e não odiado, mas esse tabu era abolido uma vez por ano, quando as pessoas se reuniam para cerimónias dedicadas ao totem. Acreditava-se que esses ritos anuais eram necessários para a sobrevivência e reprodução do totem.

O totemismo usa a natureza como modelo para a sociedade; totens geralmente são animais ou plantas, que fazem parte da natureza. As pessoas se relacionam com a natureza por meio de sua associação totêmica com as espécies naturais. Uma vez que cada grupo tem um pólo totêmico diferente, as diferenças sociais refletem contrastes naturais, e aqui a diversidade na ordem natural torna-se um modelo para a diversidade na ordem social. No entanto, embora as plantas e os animais totêmicos ocupem nichos diferentes na natureza, eles estão unidos em outro nível, pois todos fazem parte da natureza. A harmonia da ordem social humana é potencializada pela associação simbólica com a ordem natural e sua imitação (Durkheim 1912/1963; Lévi-Strauss 1962/1964; Radcliffe-Brovvn 1952/1968).

O totemismo é uma forma de cosmologia - um sistema, neste caso religioso, para imaginar e compreender o universo. Um dos horizontes  deste tema concentra-se no trabalho e na vida de uma das figuras-chave da antropologia da religião (especialmente mitos, folclore, totemismo e cosmologia), Claude Lévi-Strauss. Também descrito é o Musée du Quai Branly, agora um destino turístico permanente em Paris, que é uma homenagem às artes, crenças e cosmologia de pessoas não ocidentais (consulte Para saber mais, Uma celebração parisiense e uma parada fixa

Em ritos totêmicos, as pessoas reúnem presentes para seu próprio totem por meio de rituais para manter a unidade social que o totem representa.

Mesmo nas nações contemporâneas, os totens continuam a identificar grupos, como estados e universidades (por exemplo, Badgers, Buckeyes e Wolverines), equipes profissionais (Leões, Tigres e Ursos) e partidos políticos (burros e elefantes). Embora o contexto moderno seja mais profano, ainda se pode observar, nas intensas rivalidades entre times universitários de futebol, alguma efervescência que Durkheim havia encontrado na religião totêmica australiana.

Mana e tabu

Além do animismo - e às vezes em coexistência com ele na mesma sociedade - há uma visão do sobrenatural como um lugar, ou força, de um poder impessoal bruto, que sob certas condições as pessoas são capazes de controlar (como em Star Wars ) Essa visão é particularmente importante na Melanésia, a área no Pacífico Sul que inclui Papua Nova Guiné e ilhas adjacentes. Os melanésios acreditavam em mana, uma força impessoal sagrada que faz parte do universo. Mana pode residir em pessoas, animais, plantas e objetos.

O mana dos melanésios era semelhante à nossa noção de boa sorte. Os melanésios atribuíam sucesso ao mana que a pessoa poderia adquirir ou manipular de diferentes maneiras, por exemplo, por meio de magia. Objetos investidos com mana podem mudar a vida de alguém; por exemplo, um talismã ou amuleto que pertencia a um caçador bem-sucedido poderia transmitir o mana do caçador à pessoa que o possuía ou usava. Uma mulher pode colocar uma pedra em seu jardim.

Diversidade e criatividade cultural

vê uma melhora repentina em sua colheita e atribui a mudança à força contida na pedra.

A crença em forças como o mana é generalizada, embora as características das doutrinas religiosas variem. Pense no contraste entre o mana na Melanésia e na Polinésia (as ilhas na área entre o Havaí ao norte, a Ilha de Páscoa a leste e a Nova Zelândia a sudoeste). Na Melanésia, poderia-se obter mana por acaso ou trabalhando duro para obtê-lo; na Polinésia, por outro lado, o mana geralmente não estava disponível para todos, mas era associado a cargos políticos: líderes e nobres tinham mais mana do que as pessoas comuns.

Os chefes principais estavam tão carregados de mana que o contato com eles se tornou arriscado. O mana pode escapar de seus corpos e infectar o solo, tornando perigoso pisar, e também pode contaminar recipientes e utensílios usados ​​para comer. No contato entre o líder e as pessoas comuns, o mana pode ter o efeito de um choque elétrico. Devido à quantidade de mana com que os grandes líderes foram investidos, seus corpos e quais eram suas propriedades tornaram-se tabus (sagrados, ou melhor, fora dos limites para as pessoas comuns) e o contacto com as pessoas comuns foi proibido. Se indivíduos comuns fossem acidentalmente expostos a tal força emanada, os ritos de purificação se tornariam necessários.

Um dos papéis da religião é fornecer explicações. A crença nas almas explica o que acontece no sono, na transe e na morte. O mana melanésio explica os diferentes resultados que as pessoas não conseguem entender em termos comuns. Se os indivíduos fracassam na caça, na guerra ou no cultivo, não é porque sejam preguiçosos, estúpidos ou sem noção, mas porque o sucesso vem - ou não vem - do mundo sobrenatural.

As crenças em seres espirituais (por exemplo, animismo) e forças sobrenaturais (mana) concordam com a definição de religião dada no início deste capítulo. A maioria das religiões inclui espíritos e forças impessoais e, da mesma forma, as crenças sobrenaturais dos americanos contemporâneos incluem seres (deuses, santos, almas, demônios) e forças (amuletos, talismãs, cristais e objetos sagrados).

Magia e religião

Por magia, queremos dizer técnicas sobrenaturais que visam atingir propósitos específicos; tais técnicas incluem feitiços, fórmulas e feitiços usados ​​com divindades ou forças impessoais.

Os Nganga usam magia imitativa para produzir o efeito desejado imitando-a: se os nganga desejam ferir ou matar alguém, eles podem imitar esse efeito em uma imagem da vítima. Pregar pregos no ’nkisi a nkonde’ é um exemplo. Com a magia contagiosa, acredita-se que qualquer coisa feita a um objeto afecta a pessoa que o possuiu. Às vezes, quem pratica magia contagiosa usa algo do corpo de qualquer vítima - por exemplo, unhas e cabelos - pensando que o feitiço acabará por atingir a pessoa e produzir o efeito desejado.

Encontramos magia em culturas Ovimbundu, bakongo e akwakimbundu com diferentes crenças religiosas. Magia pode ser ligada à

Ansiedade, controle e alívio

Religião e magia não se destinam apenas a fornecer explicações e ajudar as pessoas a alcançar objetivos: elas também entram no reino dos sentimentos humanos. Em outras palavras, estão a serviço de necessidades emocionais e cognitivas (como as explicativas). Por exemplo, a fé e as práticas sobrenaturais podem ajudar a reduzir a ansiedade, as técnicas mágicas podem dissolver as dúvidas que surgem quando as situações estão além do controle humano e a religião ajuda os homens a enfrentar a morte e as situações de crise.

Embora todas as sociedades tenham técnicas para lidar com os problemas cotidianos, elas não têm controle sobre alguns aspectos da vida, então, quando as pessoas se deparam com a incerteza e o perigo, de acordo com Malinowski, elas recorrem à magia.

«Embora a ciência e mais informações ajudem o homem a conseguir o que deseja, eles são incapazes de controlar completamente o destino, eliminar acidentes, prever a direção inesperada de eventos naturais ou garantir que o trabalho humano seja confiável e adequado para todas as necessidades práticas» (Malinowski 1931 / 1978, p. 39).

Malinowski viu que os habitantes das ilhas Trobriand usavam magia quando navegavam, um negócio arriscado. Ele sugeriu que tais ilhéus, incapazes de controlar variáveis ​​como vento, clima. Os habitantes das Ilhas Trobiand preparam uma canoa tradicional usada para o kula, um sistema de comércio cerimonial envolvendo uma grande área do Pacífico ocidental. A cesta da mulher contém moedas de troca, enquanto os homens preparam a grande canoa para a navegação. A magia costuma estar tão associada à incerteza quanto ao navegar em águas imprevisíveis pode ser perigoso.  As pessoas podem recorrer à magia quando têm uma lacuna em seus conhecimentos ou não têm o poder para um controle efetivo, mas ainda precisam realizar uma atividade (Malinowski 1931/1978).

Malinowski observou que foi apenas quando confrontados com situações além de seu controle que os habitantes de Trobriand, sob estresse psicológico, mudaram da tecnologia para a magia. A magia persiste nas sociedades contemporâneas porque, apesar dos avanços nas habilidades técnicas, ainda não se consegue controlar todos os resultados. A magia é especialmente evidente no basebol; George Gmelch (1978, 2001) descreve uma série de rituais, tabus e objetos sagrados. Como a navegação trobriandense mágica, esses comportamentos servem para reduzir o estresse psicológico, criando a ilusão de controle mágico quando o controle real está faltando. Até o melhor arremessador pode ter dias ruins ou azar e exemplos de magia, que encontramos entre os arremessadores, são jogar o chapéu entre os arremessos, tocar a casca após cada lance ruim e falar com a bola. As conclusões de Gmelch confirmam as de Malinowski de que a magia prevalece em situações de risco e incerteza. Todos os tipos de comportamento mágico envolvem o arremesso e rebatidas, onde a incerteza domina, mas existem poucos rituais no jogo de campo, pegar a bola e jogá-la de volta, onde os jogadores têm muito mais controle, ou colocar nkisi nas balizas para impedir o golo.

Segundo Malinowski, a magia serve para estabelecer o controle, mas a religião 'nasce ... das verdadeiras tragédias da vida humana' (1931/1978, p. 45). A religião oferece conforto emocional, especialmente quando as pessoas enfrentam uma crise. Malinowski observou que as religiões tribais se preocupavam principalmente em organizar, comemorar e ajudar as pessoas a lidar com eventos da vida, como nascimento, puberdade, casamento e morte.

Mito

Em muitos contextos religiosos, existem contos que são parcialmente reais e parcialmente fantásticos sobre a origem, cosmogonia e, mais geralmente, a ordem da realidade e da existência: mitos. Muitas vezes os mitos estão ligados aos ritos, pois estes se referem a histórias do passado e têm por objetivo representar os fundamentos da vida real. O conto mítico tem a capacidade de 'ordenar' entre elementos aparentemente irreconciliáveis ​​ou simplesmente distantes, relativos a mundos diferentes (por exemplo, o mundo natural e o sobrenatural). Ao fazer isso, o mito é favorecido pelo fato de ignorar as dimensões normais do espaço-tempo e de permitir a antropomorfização dos elementos naturais em um contexto original comunitário entre todos os seres vivos. Historiadores de religiões e antropólogos sempre foram atraídos pelo estudo dos mitos como uma produção cultural privilegiada de muitas culturas e como um lugar preferencial para compreender as ideias, valores e elementos fundadores de um sistema cultural. Alguns antropólogos, na esteira das análises de Malinowski, acreditam que o mito tem a função de justificar a ordem social existente. O mito, com sua capacidade de 'trazer ordem', fornece as bases sobrenaturais e cosmogônicas que podem ser rastreadas até a época das origens da organização social na qual os indivíduos são obrigados a viver no presente. Para o antropólogo francês Lévi-Strauss, o conto mítico não se relaciona de maneira simplista com o mundo real do presente e não tem a justificativa de uma ordem social como razão de sua existência. Para Lévi-Strauss, o mito deve ser estudado em si mesmo, como expressão de uma forma de pensamento que não é imediatamente funcional, mas pode ser remontada a uma elaboração filosófica capaz de resolver contradições e expressar a coerência estrutural que pode ser rastreada até o binário. lógica universalmente rastreável nas estruturas profundas das diferentes culturas.

Ritos e rituais

É fato que o ritual permeia nossas ações sociais. Tentar dar uma definição inequívoca e compartilhada do que são ritos e rituais, no entanto, parece bastante complexo: ritos e rituais, como a cultura, são entidades procedimentais, eles mudam com o tempo, adaptando-se aos contextos sociais de referência. Por esse motivo, a maioria dos autores que trataram do rito deu uma definição a partir de seu próprio campo de pesquisa: Malinowski, por exemplo, destacou sua função psicológica (1931). Outros estudiosos como Robertson-Smith (1998), Durkhéim (1912/2003) e, posteriormente, Geertz (1973/1998), afirmaram que o rito representa uma legitimação dos valores coletivos. Nesse sentido, o rito fortalece e regula os laços entre os indivíduos. Outros antropólogos, em vez disso, enfocaram a eficácia dos ritos como meio de resolver conflitos coletivos (Gluckman 1962, Isambert 1979). Por fim, foram investigados os aspectos linguísticos, semânticos e simbólicos (Turner 1967/1976, Leach 1966, Tambiah 1979).

Se a definição e função dos ritos ainda está sendo investigada hoje, a maioria dos autores

concorda que os ritos são culturais universais e que toda cultura elabora sistemas rituais que têm um significado preciso e que mudam de acordo com o tempo e o contexto social.

A relação entre rito e ritual também é objeto de controvérsia. Martine Segalen afirma, por exemplo, que existem várias maneiras de entender o rito e o ritual. Um deles é o adjetivo do termo ritual, para o qual ritual se refere a atos que ocorrem durante as cerimônias e que as caracterizam como tais: podemos, portanto, falar de comportamentos rituais, refeições rituais. O ritual, no entanto, também se refere a outra coisa e é aplicado a uma série de encontros sociais, individuais ou coletivos, expressos por meio de formas particulares de comportamento, portanto, segundo Segalen 2002, rito e ritual são equivalentes.

Ao traçar um quadro geral do rito ou ritual, apesar das dificuldades em delinear suas características, alguns traços comuns podem ser identificados: o rito é um conjunto de atos formalizados e seu valor evidencia sua dimensão coletiva. O rito produz sentido para quem nele participa e se caracteriza por ações simbólicas que se manifestam por meio de expressões sensíveis, materiais e corporais. Essas ações simbólicas, geralmente atos corporais repetitivos, são codificadas e compreendidas tanto por aqueles que realizam um rito quanto por aqueles que o frequentam. Os rituais, precisamente em virtude de sua natureza repetitiva, traduzem mensagens, valores e sentimentos permanentes em ações (Segalen 2002).

 Ritos de passagem

Magia e religião, como observou Malinowski, podem reduzir a ansiedade e aliviar os medos, mas as crenças e os rituais também podem criar um estado de ansiedade e uma sensação de insegurança e perigo (Radcliffe-Brown 1952/1968). A ansiedade pode surgir porque existe um ritual, participar de um ritual coletivo pode gerar estresse, e reduzi-lo a uma situação coletiva, por meio do cumprimento do ritual, aumenta a solidariedade entre os participantes.

Ritos de passagem, como a circuncisão coletiva de adolescentes, por exemplo, podem ser eventos muito estressantes. A busca de visão tradicional entre os nativos americanos, e particularmente os índios das planícies, ilustra os ritos de passagem (práticas associadas à transição de uma fase da vida para outra) encontrados em todo o mundo. Entre os índios das planícies, na transição da adolescência para a idade adulta, o jovem é temporariamente separado de sua comunidade. Após um período de isolamento em locais isolados fora das áreas habitadas frequentemente em estado de jejum e uso de drogas, o jovem deve ter uma visão que se transformará em seu espírito guardião. Ele então retornará para sua comunidade como um adulto.

Os ritos de passagem das culturas contemporâneas incluem a confirmação, o batismo, o bar e o bat mitzvah e os ritos de afiliação à fraternidade. Os ritos de passagem envolvem mudanças no status social, como da adolescência para a idade adulta e de não ser para membro de uma fraternidade. Existem rituais e rituais em nossa vida profissional e corporativa, por exemplo, promoções e festas de aposentadoria. De maneira mais geral, um rito de passagem pode marcar qualquer mudança de status, condição, posição social ou idade.

Todos os ritos de passagem têm três fases: separação, marginalidade, reagregação. Na primeira fase, os participantes se retiram de um grupo e começam a transição de uma condição ou status para outro. Na terceira fase, aqueles que realizaram a passagem entram novamente na sociedade, tendo concluído o rito. A fase de marginalidade (liminaridade) é a mais interessante: é o período entre estágios, o limbo durante o qual os participantes deixaram uma condição ou status, mas ainda não se tornaram parte do próximo (Turner 1969/1972).

A liminaridade sempre tem algumas características: os indivíduos liminais ocupam posições sociais ambíguas; eles existem independentemente das expectativas e distinções normais, vivendo em uma época fora do tempo; eles são excluídos dos contactos sociais normais. Muitos contrastes podem diferenciar o período de liminaridade da vida social regular. Por exemplo, entre os Ndembu da Zâmbia, um líder deve passar por um rito de passagem antes de receber uma designação. Durante o período liminar, suas posições passadas e futuras na sociedade são ignoradas ou mesmo derrubadas: ele é objeto de insultos, ordens e humilhações.

Os ritos de passagem são frequentemente coletivos: vários indivíduos - meninos circuncidados, pessoas iniciadas em irmandades, soldados no centro de treinamento, recrutas, jogadores de futebol nos retiros de verão, noviços em conventos - realizam os ritos em grupo. Pessoas que vivenciam a liminaridade juntas formam uma comunidade de pares, as distinções sociais que existiam antes ou que existirão mais tarde são temporariamente esquecidas e todas recebem o mesmo tratamento, as mesmas condições e devem agir da mesma maneira. Liminalidade pode ser ritualmente e simbolicamente marcada por uma reversão do comportamento normal. Por exemplo, os tabus sexuais podem ser intensificados ou, inversamente, os excessos sexuais podem ser encorajados.

Os ritos de passagem são frequentemente coletivos. Um grupo - como os meninos do Togo ou da Marinha dos Estados Unidos nas fotos - realiza os rituais como uma unidade. Essas pessoas em transição experimentam o mesmo tratamento e condições e devem agir da mesma maneira. Eles desenvolvem a communitas, um intenso espírito de comunidade e um sentimento de grande solidariedade social ou fraternidade.

A liminaridade é um aspecto fundamental de qualquer rito de passagem. Além disso, em algumas sociedades, incluindo a nossa, os símbolos de transição podem ser usados ​​para fazer um grupo (religioso) se destacar sobre outro ou sobre a sociedade como um todo. Esses 'grupos permanentemente liminar' (por exemplo, seitas, irmandades e cultos) são geralmente encontrados em sociedades complexas: nações ou estados. Alguns elementos de liminaridade, como humildade, pobreza, igualdade, obediência, abstinência sexual e silêncio, podem ser exigidos de todos os membros de seitas ou cultos. Aqueles que se juntam a esses grupos concordam em cumprir suas regras. Como se você estivesse em um rito de passagem - mas neste caso um rito que nunca termina - você pode se livrar de seus pertences e abandonar os laços sociais anteriores, inclusive com familiares.

CONTROLE SOCIAL

A religião faz sentido para as pessoas: ajuda homens e mulheres a lidar com adversidades e tragédias e oferece esperança de que as coisas vão melhorar. A vida pode ser transformada por meio de cura espiritual ou renascimento, pecadores podem se arrepender e ser salvos ou podem pecar e ser condenados. Se os fiéis realmente internalizarem um sistema de punições e recompensas religiosas, a religião se tornará um meio poderoso de controlar suas crenças, comportamentos e o que ensinam às crianças.

Muitas pessoas se envolvem em atividades religiosas porque parece funcionar: aqueles que oram obtêm respostas, os curandeiros curam; às vezes, não leva muito tempo para convencer o crente de que as ações religiosas são eficazes. Muitos índios americanos no sudoeste de Oklahoma contam com curandeiros, gastando uma fortuna, não apenas para se sentir melhor em relação às incertezas, mas porque vêem que funciona. Massas de brasileiros visitam uma igreja todos os anos. Nosso Senhor do Bomfim, em Salvador da Bahia, e fazem votos de retribuir 'Nosso Senhor' caso a cura ocorra. Para demonstrar que os votos funcionam, e são cumpridos, existem milhares de ex-votos, pegadas de plástico de todas as partes possíveis do corpo, que adornam a igreja junto com fotos das pessoas que foram tratadas.

A religião pode funcionar penetrando nas pessoas e mobilizando suas emoções: alegria, raiva e honestidade. Vimos como o conhecido sociólogo francês Émile Durkheim (1912/1963) descreveu a 'exuberância' coletiva que pode se desenvolver em contextos religiosos. Uma emoção intensa irrompe, as pessoas compartilham um profundo sentimento de alegria, significado, experiência, comunhão, pertencimento e envolvimento com sua religião.

O poder da religião influencia as ações. Quando as religiões se encontram, elas podem coexistir pacificamente ou suas diferenças podem ser a base para hostilidade, desarmonia e até mesmo confronto. O fervor religioso inspirou cruzadas cristãs contra os infiéis e levou os muçulmanos a travar guerras santas contra as populações não islâmicas. Ao longo da história, os líderes políticos usaram a religião para promover e justificar seus objetivos e políticas.

No final de setembro de 1996, o movimento Talibã impôs uma forma extrema de controle social em nome da religião ao Afeganistão e sua população. Liderado por clérigos muçulmanos, o Talibã tentou criar sua própria versão de uma sociedade islâmica baseada no ensino do Alcorão (Burns, 1997). Várias medidas repressivas foram instituídas. O Talibã excluiu mulheres do trabalho e meninas da escola; depois da puberdade, as mulheres eram proibidas de falar com homens que não fossem parentes e deveriam ter um motivo válido e aprovado, como comprar comida, para sair de casa. Até mesmo os homens, que tiveram que deixar crescer uma barba espessa

 

RELIGIÃO, CIÊNCIA E EVOLUÇÃO INTELIGENTE

 

Muitos aspectos do mundo natural que antes eram explicados pela ideologia religiosa são agora explicados por meio da ciência. No século XVII, a Igreja insistia que a terra estava no centro do sistema solar e perseguiu Galileu a causa da sua pesquisa científica, porque demonstrou que a conclusão anterior de Copérnico estava correcta: que o sol, não a terra, estava no centro do nosso sistema solar. Apesar das evidências conclusivas que apoiavam essa visão científica do sistema solar, a Igreja levou centenas de anos para aceitar oficialmente esta explicação científica. Para muitas pessoas, a distinção entre sistemas religiosos e científicos de conhecimento e explicação não é facilmente aparente. Respostas recentes ao ensino da teoria da evolução nas escolas públicas são um exemplo dos debates contemporâneos sobre conflitos entre religiões.

E explicação científica dada em base ao livro de Gênesis, no Antigo Testamento, confirmou a crença judaico-cristã que afirma que Deus criou o universo, a terra, os seres humanos e todas as espécies de vida na terra. O clérigo do século XVII, bispo Ussher, estabeleceu para os cristãos que a criação ocorreu no ano 4004 aC. Até o final do século XIX, essa era a crença aceite sobre a criação no mundo ocidental. Em meados do século XIX, Darwin propôs sua teoria da evolução das espécies com base em evidências empíricas de anatomia comparada, geologia, botânica e paleontologia. Esta teoria científica propôs uma explicação alternativa para o desenvolvimento de todas as espécies do mundo e a aparência da vida humana. Por um tempo, explicações religiosas e científicas da criação competiram entre si. Hoje, muitas pessoas aceitam a teoria académica e científica da evolução. No entanto, numa pesquisa efectuada em 2002 aproximadamente metade  expressou a crença na abordagem criacionista das origens humanas, amplamente generalizada como a crença de que cada uma das espécies na terra foi criada e colocada aqui por Deus como é explicitado no livro da Gênesis. Na realidade, existem várias versões dos sistemas de crenças criacionistas, entre elas o geocentrismo, o criacionismo e o criacionismo progressivo, os quais hipotizam modelos de espécies e diversidade geológica baseados em interpretações diferentes baseadas  nas fontes bíblicas e científicas (Scott 1999). Os criacionistas dos Estados Unidos desafiaram o ensino exclusivo da evolução científica darwiniana nas escolas públicas, e argumentaram, em tribunais, conselhos escolares e legislaturas estaduais, que tanto o criacionismo quanto a ciência evolucionista deveriam ser ensinados aos alunos das escolas públicas como teorias alternativas para as origens da vida na Terra. No início dos anos 80, as legislaturas aprovaram leis dizendo que, quando a ciência da evolução era ensinada nas escolas públicas, o criacionismo também precisava ser ensinado como uma teoria alternativa com o argumento de que a resposta inteligente à questão das origens do homem não é somente a ciência e não se pode desvincula-la de seus antecedentes criacionistas e, portanto, religiosos. Para aqueles que aceitam a teoria da evolução de Darwin, a religião não deixou de ser importante. No entanto, essas decisões judiciais estabeleceram que as teorias do criacionismo e da evolução inteligente são paradigmas religiosos que não podem ser usados ​​para explicar como os humanos passaram a existir na Terra nas salas de aula de escolas públicas.

 

 

 

Pergunta de partida

Que tipo de sistemas são as religiões? Uma primeira resposta espontânea poderia ser que elas são 'sistemas de crenças'. Quaisquer que sejam os fundamentos sobre os quais se baseia uma visão religiosa específica do mundo, seja na concepção de uma ou mais divindades personalizadas, no reconhecimento de uma multiplicidade de espíritos e poderes da natureza, na veneração dos ancestrais da família ou do grupo descendente , na percepção de um poder '

Sistemas religiosos

'As concepções religiosas são expressas em símbolos, mitos, formas rituais e representações artísticas que formam sistemas gerais de orientação do pensamento e explicação do mundo, de valores ideais e modelos de referência.

Nesse sentido, um 'sistema de crenças' acaba se identificando com a dimensão ideológica da cultura como um todo, com o conhecimento das coisas que se acredita existir no mundo, suas propriedades e as regras subjacentes à sua ordenação e manipulação. A religião é a 'epistemologia' de uma sociedade, seu sistema particular de explicação do universo e seus componentes (Black 1973: 509). No entanto, o termo 'crença' envolve uma série de problemas, cuidadosamente analisados ​​e discutidos por Rodney Needham (1962), que tornam problemática sua aplicação na descrição e interpretação antropológicas. O conceito de 'crer', por exemplo, envolve uma implicação emocional mais ou menos precisa e uma adesão de fé ('eu acredito em' alguma coisa), uma conotação que na história das relações entre religião e sociedade em Africa teve e continua apesar de tantos anos de marxismo ateu, seu papel e sua importância, mas que é difícil transferir em contextos culturais completamente diferentes. Esse 'sentimento' ou emoção que estaria relacionado à noção de crença é na verdade uma concepção 'Esse' sentimento 'ou emoção que estaria relacionado à noção de crença é na verdade uma noção ilusória e empiricamente improvável (Needham 1962: 94). Além disso, da maneira como o termo 'crença' é geralmente usado, geralmente são outros que têm sistemas de crenças. 'É o' sistema de conhecimento 'de um povo exótico que o antropólogo descreve como' crenças '. Assim, ele relega todo o conhecimento no contexto da crença, de modo a incluir a idéia de um conhecimento que contradiz a sua idéia  (Black, 1973: 511). As crenças dos outros são reveladas como declarações sobre o mundo que não são apoiadas por evidências empíricas adequadas e, portanto, são compartilhadas pelos membros de um grupo social específico, mas não pelo observador: 'nós sabemos', mas 'eles acreditam'. No entanto, parece evidente que certas manifestações e critérios são perfeitamente ingénuos e inadequados para fornecer uma explicação teológica do mundo pois parece simplesmente baseada em fundamentos empíricos adequados ou não: apesar duma certa cientificidade que domina o panorama do estudioso, o ambiente sociocultural oferece outras lógicas e outros motivos sabiamente usados pelos operadores do campo religioso. Ma nesta sede é necessário ter parâmetros científicos para estabelecer o conhecimento científico que tenha valor epistemológico para fundar a antropologia da religião, enquanto todas as outras formas de explicação da realidade pertencem à categoria de 'crenças', incluindo também teorias científicas desatualizadas inclusive certas teorias completamente desatualizadas.

O âmbito da 'crença' é, portanto, identificado com um mundo onde cada membro cria o seu universo de significados pois sabe de pertencer a uma sociedade que ‘sabe’ ou 'conhece' ou «manipula» um universo de significados cujas estruturas significativas que o compõem são partilhadas e criam convicções, hábitos e formas éticas alem de próprias 'competências culturais', que entram dentro de um universo linguistico, pois cada Igreja cultiva sua própria linguagem. É nesta senda que se pode definir a religião como um 'sistema de conhecimento', o sistema religioso de facto constitui na sociedade actual angolana uma componente cultural de grande envergadura.  Sem duvida que a religião constitui um sistema dentro do mais amplo complexo cultural e social ao qual pertence: como tal, pode ser interpretada de acordo com duas interpretações diferentes. Por um lado, pode ser entendida como uma manifestação de estruturas profundas particulares que regulam e organizam a formação e a articulação da própria vida individual, doutro lado constitui um mundo onde a componente doutrinal, catequética, vigiada segundo parâmetro estabelecidos pela ortodoxia, revelam que de facto a componente sistemática gramatical da estrutura e pesa na abordagem do mundo religioso. Sem duvida é um sistema dentro de outro sistema, que se encaixa dentro das relações e instituições sociais (que evidentemente condicionam a política de um Estado). Esse último modelo é o desenvolvido pela escola de Durkheim e amplamente utilizado pelos antropólogos britânicos, mas também é a base da pesquisa de Georges Dumézil sobre ideologia e mitologia indo-européia; o primeiro, ao contrário, é um modelo de inspiração linguística aplicado por Lévi-Strauss em sua pesquisa sobre as mitologias dos povos indígenas das Américas, mas que encontra algumas semelhanças na análise de sistemas simbólicos empreendida pelo historiador das religiões Mircea Eliade . Ambas as perspectivas que destacamos têm o mérito de ter contribuído para o estudo dos fenómenos religiosos de um ponto de vista sistêmico, mas também mostram os limites de tal abordagem ao mesmo tempo: uma tendência à simplificação excessiva, para interpretar a dimensão sistêmica como compacta, rígido, homogêneo, estático e impermeável às mudanças e à fluidez da história.

Complexidade do sistema religioso

Os sistemas religiosos são complexos e apresentam uma composição múltipla e diferenciada, com inúmeras diferenças internas. Compartilhar e aderir a 'crenças' está longe de ser homogêneo e mecânico: todo sistema religioso contém espaços para incerteza, descrença, dúvida (Goody 1996) ou, pelo menos, indiferença, adesão puramente formal e superficial. A religião parte duma experiência de estado nativo onde o adepto é tocado por uma experiência total e portanto age e pensa segundo os moldes que a experiência religiosa totalizante lhe inspira: como Evans-Pritchard observou sobre a realização dos rituais de sacrifício entre os Nuer do Sudão, os o nível de atenção e o envolvimento emocional dos participantes variam enormemente de uma pessoa para outra; Pois algumas pessoas são sérias e outras levadas a participar em grupo, outras são distraídas, outras são indiferentes 'ou pelo menos devido à indiferença, adesão puramente formal e superficial. Muito depende dos problemas existenciais que pesam na condução da vida. Não é raro ver pessoas a chorar a frente das estatuas dos santos nas igrejas. A condução das atividades religiosas, da mesma forma, mostra uma ampla gama de reações e envolvimentos por parte dos crentes que delas participam. Cada religião, sobretudo em África, influencia e determina toda uma série de estruturas gerais que levam o crente a ordenar e interpretar a realidade, dentro de categorias religiosas que ordenam seu mundo, das quais o comportamento se move e que fundam as escolhas e as estratégias com as quais se imposta a vida. Uma religião, portanto, inclui uma 'visão de mundo', um 'sistema de crenças mais difundidas, especialmente as que são transmitidas pela tradição' (Smart 1986: 4), um conjunto de 'concepções gerais de existência' (C. Geertz 1966: 4), que fornece os quadros mais amplos para a interpretação da realidade e para dar sentido ao mundo e à vida humana.

Naturalmente, as formulações gerais sobre o mundo e a existência que as religiões fornecem permitem que os homens ajam na realidade e no mundo de acordo com orientações e estratégias determinadas. Como afirma, um 'provérbio kikongo:' Muna nzo yina ku lekanga ko kulendi zaya kima kitatikanga ko’. Na casa onde não dormiste não podes saber o que pica. A abordagem ao estudo moderno da religião consiste em ir ao encontro da alteridade religiosa sem preconceitos que afastam e não permitem de conhecer o outro (Smart 1986: 4). Para muitos autores, isso significa que devemos abandonar a dimensão abstrata demais e muitas vezes confundida com representações, sistemas de idéias e complexos simbólicos, para se voltar, sobretudo, à prática religiosa, aos modos concretos em que é realizada através de gestos, atividades, atitudes que definem um determinado modelo de interação social.

A idéia não é nova, Robertson Smith já havia insistido na prevalência da dimensão prática e ritual da religião sobre seus aspectos doutrinários e teológicos . De facto a religião toma corpo com ideias não conceptuais e verbais mas se exprime essencialmente em práticas litúrgicas e em celebrações comunitárias que ultimamente enchem até os estádios de football. Quase todos os sábados a cidadela desportiva de Luanda se enche de fieis que participam a manifestações religiosas que não iriam caber nas igrejas.  Mais recentemente, essa abordagem foi re-proposta no estudo antropológico das religiões, principalmente devido à influência das reflexões de Pierre Bourdieu (1972) sobre a' teoria da prática ', como uma ferramenta para destacar as múltiplas interconexões entre religião e outros domínios. da vida social: economia, padrões de casamento, política, organização de grupos e território.  Portanto, a aquisição do trabalho de Pierre Bourdieu dos conceitos de 'campo religioso', de 'especialistas e operadores do sagrado', de 'bens sagrados' para definir crenças e práticas religiosas e aquelas em termos ocidentais definíveis 'Magica’, propõe uma nova dimensão interpretativa do fenômeno da crença religiosa.

Na prática, trata-se de um projeto muito amplo, no qual é necessário encontrar uma maneira que considere todos os sistemas econômicos, sociais, culturais e políticos que as populações africanas, incluindo os Bakongo, até agora adotaram, começando, de suas situações atuais, sem tentar importar os sistemas das democracias ocidentais para o campo angolano. Essa hipótese pode parecer uma quimera difícil de alcançar em um mundo globalizado. No entanto, apenas uma instância elaborada pelo contexto político-social africano poderá resolver o atual problema demográfico, cultural e religioso das populações angolanas. Uma prática religiosa específica pode influenciar a vida social de uma comunidade específica de várias maneiras, ou revelar a presença de divisões internas na sociedade, como no caso do consumo de alimentos (carne de porco) ou pela separação nas cerimonias entre homens e mulheres, ou na proibição de praticar transfusões de sangue nos Testemunhas de Geova. Além disso, a atenção à prática nos permite observar com mais precisão situações religiosas complexas e entrelaçadas, como no caso de Luanda: apesar da tentativa de ordenar por parte do Estado durante Angola continua sendo atravessada por múltiplas correntes religiosas e a idéia da exclusividade da verdade religiosa por uma única doutrina é substancialmente estranha ao pensamento angolano. A colocação da religião na vida pública e a definição de significado da religião continuam sendo tópicos de amplo debate. O que está claro é que em Angola as distinções entre uma tradição religiosa e outra são muitas vezes indistintas e que o angolano na prática religiosa frequentemente não se preocupa muito em cruzar a linha entre uma doutrina e outra, uma vez que o comportamento concreto não se define em termos de adesão exclusiva a uma tradição ou denominação religiosa. Há portanto um certo ecletismo que domina no campo religioso.

Com argumentos muito mais complexos e nem sempre fáceis de entender, Csordas (2004) utilizou o conceito de 'incorporação' para elaborar uma teoria sobre as origens do fenômeno religioso, inspirada nas reflexões do filósofo francês Jacques Derrida. A noção de incorporação, que se estabeleceu na antropologia graças às obras e reflexões de Thomas Csordas (1990; 1994), baseia-se no pressuposto de que a experiência do mundo do homem é filtrada pelo corpo, e as representações da realidade são formuladas a partir desta experiência primária.   E nas celebrações das diferentes igrejas a corporeidade triunfa, sobretudo nas expressões da dança. Desde os gestos mais simples, como sentar, andar, saudar, até os mais complexos, como o uso de paramentos, técnicas de trabalho, habilidades manuais, técnicas de meditação, maneiras de entrar em estado de xinguilamento ou alcançar no êxtase místico, os Akwakimbundu seguem modelos e programas elaborados pela sua cultura os Ovimbundu também, com base nessas culturas, constroem-se uma própria experiência do corpo e da realidade. 'A experiência da corporeidae é, por sua vez, a base de várias formas de representação do corpo humano, suas características e propriedades, seus componentes e suas funções. Segundo Csordas (2002), o pensamento religioso surge com base em um sentido fundamental da 'alteridade corpórea’. O sentido de alteridade nasce na própria experiência de incorporação, a partir do sentido do sobrenatural que se sente em relação a certos aspectos de si: nessas experiências, o corpo se torna ao mesmo tempo familiar e alheio, íntimo e alheio. A religião surge, assim, do processo de incorporação do sobrenatural, desse núcleo de ulterior alteridade no próprio eu '. 'Em alguns aspectos, até um pouco esticado; no entanto, enfatiza a importância dos fenômenos relacionados à prática e à maneira pela qual muitos aspectos da vida religiosa assumem as características de 'hábitos incorporados', virtudes e modalidades éticas e formas operativas na realidade que derivam de um tipo particular de condicionamento cultural. Como também apontado por Talal Asad (1993: 36), 'o discurso que está implicado nas práticas não é o mesmo que está envolvido em falar sobre as práticas. É uma idéia moderna que um praticante não pode saber viver religiosamente sem poder articular esse conhecimento. Sem viver não vale rezar, sem praticar aquilo que se escuta na Igreja a vida torna-se incoerente e farisaica. Existe uma dimensão da religião, portanto, que diz respeito ao aprendizado de regras práticas e métodos de conduta que são adquiridos não tanto por meio de instruções verbais e referências a doutrinas, mas por agir e interagir em um contexto de relações inter-individuais onde a comunidade sustenta, apoia e encoraja.

Essas considerações são abordadas pela abordagem de atividades religiosas que privilegia a dimensão ritual como uma atividade 'performativa’, ou seja cria-se um modelo de acção que se torna procedimento estandardizado de viver e testemunhar. De acordo com essa perspectiva, os rituais são ações codificadas e repetitivas que revelam certo tipo de eficácia: tratar um feiticeiro, iniciar um catecúmeno, enterrar um falecido, criar ou fortalecer relações sociais, manter ou reverter a ordem da sociedade, comemorando acontecimentos e celebrando a memória histórica, propiciar divindades ou exorcizar demônios. Segundo Victor W. Turner, os antropólogos preferem evitar definições formais de religião e se concentrar no comportamento religioso: rituais e organização religiosa. Essa escolha pragmática nos permite focar a atenção não tanto nas raízes profundas nas quais a fé de um indivíduo ou de uma comunidade se baseia, mas no modo como essa fé é sustentada por formas simbólicas e dispositivos sociais '.

A expressão religiosa que se manifesta no ritual concentra sua atenção, mais como uma realidade simbólica que transforma a vida (performance) na plena gratuidade e não como um conjunto de habilidades, fruto de experiência e de estruturas cognitivas abstratas.

Como as teorias examinadas brevemente podem parecer interessantes e sugestivas, os limites e ambiguidades de uma abordagem baseada na prática devem ser enfatizados: de fato, por um lado, o campo do ritual, entendido de maneira relativamente ampla, vai além de seu próprio âmbito de fenômenos religiosos e pode ser aplicada a setores bastante distintos do universo social (football, política, família); por outro, o conceito de 'performance' usado por Turner (1987) e outros autores tem fenômenos muito diferentes: de cerimônias praticadas pelo nganga a shows com intenções puramente de entretenimento ou de teatralidade. De facto, o ritual não é simplesmente um tipo de ação que serve para 'fazer alguma coisa' mas é uma ação constituída por uma vasta gama de variações que dependem essencialmente do contexto e da função em que a prática litúrgica é operada. 'Se o objetivo da performance é realizar uma transformação, curar, apaziguar ou apelar para a alteridade transcendente (deuses, ancestrais, reis divinos etc.) - para obter 'resultados' - então as qualidades listadas sob a é mais provável que a 'eficácia' prevaleça e sejam absolutamente necessários os efeitos. Tudo se realiza dentro de um sistema de referências simbólicas, de valores, de interpretações da realidade e do mundo partilhadas, que fornecem, por exemplo, a presença de 'alteridade transcendente' e a possibilidade orar; sem essas referências, não seria possível dizer nada sobre os 'objetivos' ou 'funções' do ritual.

Os sistemas religiosos devem, portanto, ser considerados complexos, incluindo pelo menos duas dimensões interconectadas: um sistema de práticas e atividades individuais e sociais conectadas a um sistema de referências e explicações simbólicas do mundo. Uma conclusão semelhante é oferecida por Clifford Geertz (1998), que argumenta que a religião, como um 'sistema cultural', é ao mesmo tempo composta de um conjunto de concepções sobre a ordem do mundo e um conjunto de 'estados'. de espírito e motivações »orientadas por ideais morais. Geertz condensa essa dupla conexão com os termos 'visão de mundo', isto é, as concepções e idéias sobre a forma como o universo é constituído, e de 'ethos', que são as inclinações comportamentais que estabelecem as formas pelas quais os homens e as mulheres devem agir em diferentes situações. Deve-se acrescentar que o sistema de significados e o sistema de práticas não são rígidos e homogêneos, mas são extremamente diversificados e mais ou menos flexíveis '. 'Isso está sujeito ao inevitável dinamismo imposto pela passagem do tempo que produz mudanças contínuas. Assim, se provavelmente em todos os sistemas religiosos é possível encontrar os dois casos extremos de práticas sem sentido (gestos estereotipados, hábitos passivamente seguidos, atitudes não refletidas) e de significados não relacionados às atividades diárias (especulações filosóficas e cosmológicas, teologias, ontologias), a maioria das atividades religiosas da humanidade consiste em um conjunto diversificado e diferentemente de práticas e significados associados a elas. O peso relativo de ambos os componentes depende naturalmente de um grande número de fatores. Antes de tudo, pode haver tendências culturais gerais que enfatizem mais o aspecto prático e empírico ou o especulativo das atividades religiosas: por exemplo, na área das planícies da América do Norte, os Comanches foram considerados desde os testemunhos mais antigos um povo de 'céticos'. , interessada essencialmente em eficácia e resultados empíricos (Gelo, 1993), enquanto os Lakota têm sido freqüentemente chamados de sociedade particularmente predisposta à especulação teológica e filosófica (Wissler 1934: 110). Variações individuais devem então ser levadas em conta: há dois tipos de personalidade um 'homem prático' e outro 'pensador'. Em todas as sociedades existem maneiras profundamente diferentes pelas quais diferentes indivíduos abordam as práticas religiosas: o que para uma pessoa pode ser um momento solene e uma lembrança interior; para outra, pode ser experimentado como uma obrigação social irritante ou como um detalhe que não merecia atenção particular. Finalmente, as mudanças históricas contribuem para mudar a relação entre a dimensão prática e a dimensão especulativa do universo religioso, recorrendo a meios empíricos para obter certos resultados ou responder a certas necessidades, ou permitindo uma reflexão mais pacífica e exploração intelectual dos mistérios. existência.

Essas últimas considerações levam a desviar a atenção da relação entre práticas e significados, ou entre a visão de mundo e os modelos comportamentais, para a relação que surge entre a experiência individual, por um lado, e a tradição coletiva, por outro. Muitos autores enfatizaram que a dimensão religiosa não pode ser compreendida se a experiência do indivíduo religioso não for levada em consideração seriamente, na sua variabilidade, contradição, incongruência, ineficácia: o estudo do homem religioso, em muitos aspectos, significa tentar entender a alteridade religioso-cultural. Por outro lado, como a antropologia esclareceu suficientemente inúmeras obras, a dimensão religiosa não pode ser separada de sua imersão no tecido das relações e instituições sociais, de suas relações e conexões com toda a gama de atividades culturais, da política à economia, da arte à divisão por género, da vida sexual aos conflitos e violência.

Os países africanos mantiveram-se durante várias décadas num processo de dependência no qual estiveram todos submetidos. Passada a euforia da independência, estes países percorreram um iter diverso daquele prefigurado pelos grandes lideres que a animavam. Apesar de se tornarem politicamente independentes as nações africanas ainda não se libertaram da submissão, sobretudo económica, a que desde o primeiro momento estiveram sujeitas (Samir Amin 1973).

Persistem ainda na nossa abordagem às sociedades simples “tradicionais” formas de comparatismos que não dignificam a cultura africana e angolana, quase fossemos obrigados a depender de modelos de desenvolvimento que espelham sobrevivências evolucionistas de matriz colonial e exógenas, apesar da nova abordagem operada pelo particularismo histórico e o relativismo cultural.

O êxito desta maneira de pensar ignora que o contexto pós-colonial em Angola e no resto do mundo, registou, no período sucessivo à independência, extraordinárias mudanças socioculturais. Tais mudanças impulsionaram o rejeito do paternalismo colonial, e o afastamento do etnocentrismo que desprezava tudo aquilo que era autóctone, autárquico e ligado à tradição africana.

A teoria do desenvolvimento fortemente presente em meados do século XIX até o início do século XX, marcou também as intenções dos ideólogos pós-coloniais e o “povo simples” angolano mal sujeitou-se a sistemas culturais exógenos.

As culturas angolanas representavam para o evolucionismo e a teoria desenvolmentista colonial um espelho do seu passado, ou seja, grupos distintos que estavam percorrendo uma escala evolutiva para se tornarem desenvolvidos num processo de assimilação forçada.

A prática aculturante do evolucionismo marxista na sua catequese ideológica perspectivava o desenvolvimento a partir do obscurantismo até ao socialismo. Depois de tantos anos herdamos o resultado destas mudanças nem sempre pacificamente concluídas: a unidade ideológica que deveria levar ao conceito de nação conviveu com “sobrevivências” de um mundo ancestral que ainda condiciona mentalidades e comportamentos refuncionalizando uma «tradição» fruto mais de inventivas sem respeito da sonhada «identidade cultural». O lado positivo da evolução cultural ascendente, entre indivíduos e grupos, pode ser observado na viravolta económica operada nas últimas décadas. Mas criou-se uma espécie de oligópolis global cujas regras organizacionais respeitam moldes e parâmetros provenientes mais duma globalização capitalista traduzida em liberalismo que do socialismo utópico idealizado. Tudo isto cria um mal-estar entre aqueles que ainda sonham autenticidade, liberdade, autarquia e participação.

A alteridade cultural angolana vive ainda numa grande diferenciação social entre o centro e a periferia, entre a aldeia e a cidade: formas contrapostas de vida e de cultura. A preocupação de uniformizar a administração civil colocando funcionários competentes choca com o exercício de autarquias locais existentes desde tempos imémores que reivindicam reconhecimento e participação na gestão política do país. Dois mundos, duas culturas, duas economias.

É, portanto, fora de discussão que seja do ponto de vista histórico como também teórico o evolucionismo decaiu, mas não na mentalidade, na forma expressiva e na maneira de agir de muitos. Há a necessidade de focar acerca destes resíduos coloniais para tomar consciência que a alteridade cultural angolana não pode ser valorizada se persistem formas etnocêntricas de julgar e manipular a realidade na qual vivemos em termos ideológicos desenvolmentistas.

Nas últimas décadas da nossa história o amálgama social modificou com transmigrações e pluriculturas e com as diferentes etapas sócio-económicas implementadas surgiram novos processos identitários originando novas camadas sociais. É necessário interpretar o caminho percorrido, a cultura definida e as novas identidades fruto duma «tradição» refuncionalizada: é preciso também um olhar critico, antropológico, sociológico e histórico tomando a devida distancia dos processos homologados e homologantes que nivelam todo o tipo de especificidade cultural angolana e correm o risco de criar ravinas sociais.

Os Pressupostos HISTÓRICO-SOCIAIS DAS CULTURAS Immateriais E MATERIAIS

È conhecido desde então que os homens, em comparação com outros animais, têm uma melhor capacidade de elaborar, reelaborar e manejar símbolos para se comunicarem; as diferentes linguagens, inclusive as gestuais, podem ser encontradas em todos os povos e suas culturas. De facto, a língua é o elemento caracterizador de um povo, pois sintetiza sua identidade. Por exemplo, na cultura semítica, as línguas foram miticamente destacadas na famosa história bíblica da 'Torre de Babel', onde as diferenças étnico-culturais são definidas e distinguidas precisamente através das distinções das línguas. Além disso, no nível biológico-funcional, a distinção entre humanos e outros primatas (ou seja, os diferentes tipos de macacos) surge pela habilidade particular dos homens que têm com o uso das mãos, graças à qual a adução é possível. O dedo indicador com o polegar, eles conseguem segurar um alicate com o qual o trabalho manual é realizado e, portanto, são produzidos instrumentos e artefactos. Em ambos os níveis de processamento, o da produção de símbolos e o da criação de artefactos, são obviamente decisivas as habilidades racionais com as quais os sistemas lógicos relacionados são estruturados, documentáveis ​​e transferíveis como memória tanto no presente quanto no futuro. tanto que confiam os produtos às gerações vindouras. Daí o desenvolvimento e implementação de diferentes culturas e tradições, diferentes em diferentes contextos geográficos, ambientais e históricos; de facto, a partir dessas diferentes elaborações foram definidas as diferentes identidades socioculturais, para serem entendidas como entidades dinâmicas, pois são adaptáveis ​​às modificações produzidas no devir histórico-social. De facto, deve-se especificar que, nesse processo de elaboração e realização, os homens obtêm com seu trabalho produtos culturais intangíveis e materiais que constituem, no plano histórico, resultados complexos que caracterizam as peculiaridades tradicionais do grupo social que os criou. Na subdivisão social do trabalho, como se sabe, formam-se as distinções e diferenças de especializações produtivas, a partir das quais se estabelecem distinções e diferenças de papéis e funções sociais pelos homens de uma dada comunidade. De facto, dessas distinções surgem as diferenças entre a cultura das classes sociais hegemónicas e as culturas das classes populacionais; além disso, a partir dessa situação social se formam as diferenças económico-culturais, na medida em que as classes hegemónicas estruturam e ao mesmo tempo legitimam a ordem religiosa e estatal comunitária, definindo assim sua própria hegemonia econômica e político-institucional. Esse processo forma o contexto em que as classes hegemónicas elaboram produtos culturais de elite adequados ao seu status social e válidos para confirmar seu status hegemónico; daqui as normas, os princípios religiosos, éticos, jurídicos dos quais deriva uma grande quantidade de materiais ideológicos, definíveis como produtos culturais intangíveis, nos quais, de facto, as diferentes formas de literatura que historicamente passaram da condição oral para a escrita situam-se, definindo melhor a instituição estatal das comunidades que, assim, expandiram territorialmente seu poder fundando nacionalidades. Nesse complexo processo histórico de formação de diferentes nacionalidades, caracterizado por identidades culturais específicas, as classes sociais populares também estiveram fortemente envolvidas, em diferentes formas e dimensões, na medida em que, na divisão social do trabalho, lhes foram atribuídos papéis subalternos. e tarefas, com produtos obviamente adequados à sua condição de subordinação. Os líderes, soberanos e grupos de poder da antiga as instituições democráticas sempre envolveram as populações para legitimar seu poder em diferentes formas e condições; no passado, isso era derivado e, portanto, legitimado pelo poder divino; a legitimação secular do poder, como é conhecido, na cultura europeia, situa-se historicamente no século XVIII com a Revolução Francesa. É fato objetivo, em todos os casos, que em cada região se formaram comunidades que elaboraram e produziram seu próprio património cultural, fruto de um encontro-embate entre as classes hegemónicas e as subalternas ou populares. Aqui seria excessivo entrar nos detalhes históricos desse encontro-embate, pois é sabido que ele também pode ser definido como uma luta de classes. Nesta rápida análise, o interessante é perceber como nos processos de produção, nos diferentes contextos geográfico-culturais, historicamente se criaram produtos materiais da cultura como, por exemplo, ferramentas de produção particulares, definíveis tão constantes quanto idênticas. ou similar para função operacional; por exemplo, uma ferramenta útil para cortar, feita com uma lasca de pedra ou com um metal, é uma resposta cultural funcional que pode ser encontrada em todos os contextos ambientais e culturais. O mesmo resultado pode ser visto para uma ferramenta como a enxada usada para lavrar o solo a ser cultivado. Além disso, por exemplo, as técnicas adoptadas, em todos os contextos, para criar, domar e treinar animais para utilizá-los como colaboradores no trabalho e para explorar os produtos apresentam-se como constantes. Nota-se também que outros factores constantes, presentes em todos os contextos culturais, além da linguagem, são as canções e a música (em todas as culturas os homens cantam e tocam instrumentos), executadas em diferentes formas e melodias de acordo com as diferentes culturas onde foram processadas . Como se sabe, a música, os cantos e as danças afins são claramente colocados entre os produtos intangíveis da cultura que caracterizam a identidade das comunidades individuais. Das considerações resumidas até agora, chegamos a conclusões que há algum tempo vêm sendo especificadas na antropologia por análises teórico-metodológicas específicas. Tanto os produtos materiais da cultura quanto os intangíveis, ou seja, toda a cultura de um determinado grupo social, como consequência da dialéctica de classe que, de fato, caracteriza as relações sociais e a gestão da produção e do trabalho relacionado, como já foi mencionado, constituem de um lado a cultura hegemónica e de outro as culturas subordinadas ou populares que historicamente, no século XIX, foram definidas como 'tradições populares', como legados de um processo evolutivo complexo que se iniciaria, segundo interpretações evolutivas, de um passado considerado indefinido e por vezes colocado numa dimensão mítica. Sem subestimar a importância da cultura produzida pelas classes hegemónicas, onde historicamente grupos que podem ser definidos genericamente aristocratas e depois burgueses, que assumiram com a Revolução Francesa, no mundo ocidental de matriz europeia, sempre viveram, vivem e trabalham uma grande quantidade de classes populares que produziram e ainda produzem determinados produtos intangíveis e materiais elaborados de acordo com diferentes necessidades, criando assim um património cultural específico com caráter identitário. A partir do início dos anos 70 do século passado, os grupos folclóricos angolanos estão interessados ​​em documentar o património de bens culturais intangíveis e materiais; Canções, músicas, danças, roupas e preciosos ornamentos populares da tradição das diferentes comunidades das regiões angolanas foram interpretados e refuncionalizados pelos grupos, através de espetáculos propostos no teatro ou em palcos montados nas praças urbanas, por ocasião de eventos e festas populares. Daí a função documental e interpretativa moderna desempenhada para além desta função, cumprem também uma importante tarefa educativa ao propor, com representações de cantos, músicas e danças das respetivas culturas populares, o vasto património que caracteriza a identidade das comunidades individuais a que pertencem. Para concluir e estabelecer concretamente “o que fazer”, portanto, neste momento convém reflectir para restabelecer e assim dar continuidade às funções desempenhadas até agora pelos estudantes da UAN adaptando-os, no entanto, às novas necessidades determinadas pelo desenvolvimento tecnológico e sobretudo pelos gostos e interesses das gerações mais jovens; portanto, o interesse dos grupos pelas culturas populares deve ser projectado para o futuro.

O sistema das situações violentas

Neste aula, tento teorizar a existência social do número crescente de pessoas em todo o mundo que lutam para sobreviver a guerras prolongadas e deslocamentos. A guerra é um dos sinais tragicamente omnipresentes do nosso tempo. Pouco depois da virada do milênio, estima-se que mais de quarenta e cinco conflitos armados significativos estejam ocorrendo em todo o mundo, com 40% deles ocorrendo apenas no continente africano. Muitos conflitos recentes ou ainda em curso persistiram por duas, três, ou mesmo quatro décadas ou mais, abrangendo toda a vida de várias gerações e moldando fundamentalmente as realidades sociais de muitas dezenas de milhões de habitantes do continente.

No número crescente de lugares em que conflitos armados e deslocamentos persistem por décadas, há a necessidade de abordar a guerra como algo mais do que uma forma violenta de luta política. Somente em toda a África, conflitos armados prolongados ou cronicamente ressurgentes serviram como pano de fundo primário para a existência social de gerações inteiras em mais de uma dúzia de países nas últimas quatro ou cinco décadas. Para os habitantes de tais lugares, a guerra não foi um “evento” que suspende os processos sociais “normais”, mas se tornou o contexto normal – no sentido de “esperado” – para o desdobramento da vida social. Ao invés de tratar a guerra como um “evento” que suspende os processos sociais, os antropólogos estudam a realização e transformação das relações sociais e práticas culturais ao longo do conflito, investigando a guerra como uma condição social transformadora e não simplesmente como uma luta política conduzida por meio da violência organizada.

Segundo esta abordagem da guerra como uma “condição social”, haveria a necessidade de estudar o conflito russo-ucraino, através de um estudo etno-histórico da sobrevivência e mudança social em Angola, um país em que vinte anos de luta anticolonial armada (1961-75) foi quase imediatamente seguida por uma das guerras civis mais longas e brutais da África (1975-2002). Embora a guerra civil angolana tenha sido inicialmente um movimento altamente localizado gerado por regimes vizinhos hostis com a intenção de desestabilizar o país recém-independente, acabou se transformando em uma conflagração nacional devastadora que durou uma década e meia, matando meio milhão de pessoas e levando quase quatro milhões de pessoas de suas casas. Quando uma paz duradoura foi negociada no final de 2002, a infraestrutura do país estava em ruínas, com 60% das escolas primárias do país e mais de 40% de suas clínicas de saúde destruídas.

Meu ponto específico de partida etnográfica é Jamba, na província do Kwando Kubango, sul de Angola. Sendo uma base estrategicamente decisiva para a maior parte da guerra civil de Angola, Jamba foi um dos primeiros palcos para a União Nacional pela Independência Total de Angola, UNITA, e para as campanhas de contra-insurgência do Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA, o partido que assumiu o poder após o fim do domínio colonial português. Testemunhas da guerra civil desde o início, os habitantes do Kwando Kubango sofreram com o conflito por muito mais tempo do que a maioria do resto do país. Ao longo da guerra de trinta anos, milhares de habitantes morreram e, segundo algumas estimativas, mais de 70% da população fugiu da província. O controlo desta vasta e relativamente remota província rural permaneceu dividida entre a UNITA e o MPLA durante a guerra. Mesmo quando cheguei no início de 1984 alguns lugares eram apenas levemente acessíveis ao governo e às ONGs internacionais (MSF).

Optei por escolher o trabalho de campo nos Território Livre de Angola devido à minha captura em 27 de Outubro de 1984. Meu plano forçosamente organizado era investigar como a antropologia poderia contribuir para a análise sócio-antropológica da migração durante a guerra na Namíbia e no Zambia e do retorno pós-conflito. Em Angola, como na maioria dos países contemporâneos devastados pela guerra, a migração foi uma das formas mais importantes e comuns das pessoas lidarem com a violência e seus efeitos – e o Kwando Kubango estava entre as províncias do país com maior incidência migratória no tempo de guerra. Na verdade, independentemente de terem deixada a província, virtualmente todos os habitantes dos Territórios Livres de Angola mudaram muitas vezes de destinação várias vezes - durante a guerra. Aqueles que permaneceram na Jamba, Likuwa, Mavinga, Lwangundo, Kakutchi, Kapakala, Kweyo, Lwenge ou permaneceram nas aldeias cokwe e vanganguela fortemente fortificadas e militarizadas controladas pelo UNITA ou procuraram refúgio no vasto e remoto interior rural da província. Outros contribuíram para a explosão urbana de Huambo, Lwena, Saurimo, Lumbala Nguimbo em tempos de guerra, deslocando-se para as capitais provinciais mais próximas, Benguela, Lobito, Lubango ou para outros centros urbanos satélites, do Kwanza Sul e Luanda. Um grande número de habitantes da província acabou fugindo através das fronteiras internacionais da faixa de Caprivi e do Cunene: no final da guerra, mais de trinta mil estavam em campos de refugiados na Zambia, enquanto um número incontável se estabeleceu “informalmente” nas comunidades rurais vizinhas dos campos. Milhares de outros encontraram refúgio ainda mais longe, nas vilas periurbanas nos arredores de Oshakati, na Namibia, Shangombo Mongo no Zambia.

Cheguei em Angola pela primeira vez em 1983, quando a guerra era em pleno desenvolvimento. Conduzi o trabalho de campo no Kwando Kubango de forma continua ao longo da década que se seguiu. Durante este período, milhares de  angolanos regressaram às suas casas devastadas pela guerra e lutaram para reconstruir as suas comunidades locais. Embora muitos angolanos que estavam nas matas estivessem voltando, descobri que muitos outros estavam relutantes em fazê-lo, temerosos de que a paz não durasse e incertos das condições que encontrariam em seus antigos lares.

Assim, embora meu trabalho de campo tenha começado no Kwando Kubango, deixei em 1991 as zonas de guerra e delimitar geograficamente o meu “campo”, em Makela do Zombo e mais tarde em Mbanza Kongo – encontrando nestas comunidades e mesmo nas famílias muitos provenientes do “mundo social” da UNITA que dispersaram-se no tempo do após guerra. Portanto a minha experiência de trabalho de campo abrange três áreas dentro da província do Kwando Kubango, na capital provisória da Jamba, e mais tarde nos municípios de Makela do Zombo, no Uije e Mbanza Kongo no Zaire. De forma continua convivi com Vanganguela, Kwangari, Bazombo, Exikongo nas áreas do rio Kanga, Lwengue, Lwangundo do Kwando Kubango; na Serra de Kanda do Zaire e Kwilo Futa do Uije.

Observei em “extremidades múltiplas” o fluxo de deslocamento das populações tanto na migração em tempo de guerra quanto no retorno pós-conflito, analisando a migração forçada como consequência da guerra e buscando destinos de migração depois da guerra. A migração de refugiados em tempo de guerra tem sido tipicamente teorizada em termos que a diferenciam fortemente e não exploram possíveis conexões com outras formas de migração. A maioria que se desloca em tempo de guerra é teorizada como sendo muito diferente de outras formas de migração. Embora a migração laboral seja considerada “voluntária”, a migração em tempo de guerra é tipicamente descrita como “forçada” ou “involuntária”. Enquanto os estudos da migração laboral procuram apurar quais os factores que influenciam os vários aspectos do processo de tomada de decisão sobre a migração (para onde, quando e com quem ir, durante quanto tempo e, mais importante, se deve ir), a migração de refugiados é muitas vezes vista como amplamente desprovida de cálculo estratégico, na verdade como virtualmente uma “indecisão” impulsionada por um instinto reflexivo de sobrevivência. Consequentemente, enquanto os estudiosos da migração laboral investigam como as relações sociais específicas do contexto, os entendimentos culturais e as condições económicas e políticas convergem para estruturar oportunidades e moldar as percepções que informam o exercício da volição, o status de refugiados é mais frequentemente tomado simplesmente como um dado adquirido, expresso em termos universalmente generalizados ​​e altamente reducionistas. É universalmente aceite que as condições de tempo de guerra reduzem os indivíduos a agir com base no que é frequentemente descrito como “urgência” e, por implicação, necessidades social e culturalmente indiferenciadas. De fato, no auge da guerra, muitas vezes se presume que as pessoas não têm outras motivações além da simples sobrevivência.

Embora muitos antropólogos tenham criticado esses enquadramentos reducionistas da migração de refugiados, explorando como os migrantes em tempos de guerra negociam os muitos efeitos do deslocamento como actores socialmente posicionados e culturalmente incorporados, tem havido muito poucas investigações sobre como movimento de refugiados molda a organização social e a dinâmica do próprio processo de migração. Meu objectivo original era, portanto, verificar até que ponto o movimento em tempo de guerra pode ser influenciado por um conjunto complexo de projetos de vida ideologicamente manipulados e interesses sociais não muito diferentes daqueles que moldaram a migração laboral antes da guerra e as conexões entre a migração laboral e o movimento de refugiados. .

No entanto, ao longo de meu trabalho de campo e em suas consequências, meu enfoque evoluiu de uma simples “demografia antropológica” da migração em tempo de guerra para um esforço para abordar um conjunto muito mais amplo de questões sobre como antropólogos e outros cientistas sociais passam a entender e retratar a existência social dos habitantes da paisagem de guerra. Gradualmente, percebi que a demissão dos refugiados, enquanto actores sociais, na análise da migração em tempo de guerra estava, em última análise, enraizada em suposições e entendimentos ainda mais profundos sobre os processos que produzem refugiados em primeiro lugar. O meu objectivo ao fazer em descrever como os moradores dos Territórios Livres usaram da migração durante do longo e difícil conflito de Angola e em seu resultado foi, portanto, transformado em algo mais amplo e finalizado. Meu objectivo agora é interrogar criticamente – e reteorizar – como conceituamos e analisamos a própria guerra, o comportamento dos que participam da paisagem de guerra e os efeitos da guerra no processo social e cultural. Embora o processo demográfico da migração continue sendo uma questão-chave, além de um dos pontos principais de recolha de dados etno-históricos na experiência vivida na Jamba, agora me concentro principalmente na mobilidade em tempo de guerra como um local estratégico para explorar e teorizar a condição social na guerra.

O status de Refugiados: Além de ser “consequência natural da guerra”

As imagens e os entendimentos dos refugiados são constituídos com referência a uma série de perdas – de cultura, identidade, lugar, segurança, meios materiais e poder. Criticando o discurso humanitário, é necessário analisar pormenorizadamente como os refugiados são tipicamente retratados: “despojados da própria  cultura específica, do lugar e da história – (e, portanto) dishumanizados no sentido elementar mais básico. Os refugiados são, assim, apresentados como “vítimas exemplares” – pessoas a quem as coisas acontecem e vão subindo acarretando as consequências de situações que eles não geraram, em vez de ser protagonistas que realizam e dominam os acontecimentos por meio de suas ações. Observando o que se passou nos campos de refugiados de Kimpese (RDC) podemos afirmar que os deslocados demonstram um grau de auto-iniciativa que contradiz o seu suposto “desamparo”, eles geralmente descobrem que a autenticidade do status de “refugiado” é posto em dúvida. Em suma, acaba por ser o rótulo a moldar a realidade de refugiados do que as realidades de refugiados a definir o rótulo.

O movimento através das fronteiras internacionais com a perda de identidade, cultura e protagonismo:

Se as pessoas territorialmente “desenraizadas” são tão facilmente vistas como “separadas de sua cultura” Isso ocorre apenas porque a própria cultura é profundamente localizada historicamente e geograficamente ( inserida num sistema ecológico e até ideológico).

Como uma natureza que fixa as pessoas em lugares nativos e pontos de origem, o desenraizamento torna-se profundamente antinatural e talvez a última das tragédias humanas.

No entanto, mesmo que a assistência da UNHCR desempenhasse um papel poderoso em tornar os refugiados como “as pessoas mais básicas”, uma leitura rapida mais abrangente do discurso humanitário e político teria manifestado que não são apenas aqueles que cruzam as fronteiras internacionais que são retratados como vítimas paradigmáticas e “humanidade despojada”, mas na verdade todos os habitantes da paisagem de guerra. Assim, por exemplo, a categoria maior de deslocados internos (ou deslocados internos, como são convencionalmente designados em círculos humanitários profissionais) que buscam refúgio em seus próprios países de origem são frequentemente descritos nos mesmos termos dos refugiados que cruzam fronteiras internacionais. .

INTRODUÇÃO ÀS RELIGIÕES TRADICIONAIS  E  AOS VALORES UNIVERSAIS DO PENSAMENTO AFRICANO

 

 

INTRODUÇÃO

 

         Antes de entrarmos nas questões deste capítulo, parece-nos importante colocarmo-nos primeiro a questão de saber a que África nos referimos aqui? E se se pode falar de religião(ões) nessa África?

Depois, porquê caracterizá-la(s) como tradicional(is)? Finalmente, é óbvio colocar a terceira questão: porque é que ainda hoje é importante estudá-la(s)?

A primeira questão pode ser respondida dizendo que a África de que estamos a falar é a chamada África subsariana (ou seja, a zona central entre o deserto do Sara e a África do Sul), devido à sua suposta e defendida unidade cultural por dois pioneiros

 Cheikh Anta Diop e Théophile Obenga . Falando de religião ou religiões, até agora os africanos e os próprios africanistas não estão de acordo nas suas respostas. Recentemente, tem havido um debate sobre o nome da religião, se é singular ou plural.

 E. B. Idowu    representa aqueles que querem o uso do singular, enquanto

 J. S. Mbiti é para o plural. Ambos os campos têm argumentos fortes e válidos.

Mas antes de dar a resposta, é necessário definir: O que é, afinal, uma religião? As definições abundam e as próprias etimologias divergem, consoante, com Cícero, derivemos religio de relegere ("recolher", "cumprir escrupulosamente", por exemplo, os ritos) ou, com Lactâncio, voltemos a religare ("ligar", no caso do homem aos poderes do outro mundo).

De facto, se definirmos isto como uma relação com Deus, ou com o Divino, ou com uma Transcendência absoluta, podemos no máximo afirmar que o culto dos antepassados nada tem de religioso, mas que é um conjunto de práticas puramente sociais e familiares. Por outro lado, se virmos na religião uma relação com o "sagrado", com o "numineux" (no mundo latino, a raiz div- da qual Deus- que é o correspondente do grego the- e igualmente a palavra numen, nume, têm sempre uma conotação e um uso pessoal), com um "outro mundo" e "invisível", com uma transcendência que só pode ser relativa, estamos em pleno modo "religioso". Eis o que C. Riviere:

«Para os viajantes, ao longo dos séculos de exploração do mundo, a religião foi entendida como o conjunto de cultos e crenças, de atitudes mentais e gestuais, devocionais e orientadas por concepções de uma vida após a morte. Para o estranho a um sistema, é primeiro pela sua expressão que as religiões se distinguem, isto é, pelo seu culto, conjunto de condutas altamente simbólicas para a comunidade e conjunto de relações que unem o homem a uma realidade que ele considera superior e transcendente. Mas não deixa de estar lá, uma forma aproximada de falar, mal indicando a incessante procura humana de um inacessível que só é objetivado pela fé» (Rivière , 2008, p. 26).

 

Para os defensores da religião no plural, um dos argumentos é o seguinte: fala-se de"religiões tradicionais" quando se quer sublinhar o que é específico de cada área ou terra, ou seja, porque é que África é um continente tão vasto, multiétnico e multicultural. O que se vive no Senegal, enquanto práticas religiosas, é diferente do que se vive em Moçambique ou mesmo no Congo-Brazzaville. Por outro lado, para aqueles que defendem o conceito de religião no singular, falar-se-ia de"religião tradicional", quando se pensa em realçar o seu denominador comum, o "núcleo ético-mítico".

 

«(este denominador comum articula-se essencialmente em torno do conjunto fundamental de crenças ou visões do africano sobre o mundo invisível, o cosmos, o homem nas suas relações com o mundo invisível, a vida e a morte, ou seja, o que ele tem de realizar na terra e o que pode esperar)» (Idohu, 1973, p. 105).

que está subjacente a todas elas e que se pode opor aos fundamentos das religiões com pretensões universalistas: cristianismo, islamismo, budismo, etc. Isto porque o universo africano é um só. O célebre historiador africano Cheikh Anta Diop afirma que a divisão de África em duas só remonta a cerca de 7000 a.C., quando se deu a desertificação do Sara. Além disso, diz que os negros constituem a maioria do continente e que, apesar da sua diversidade, têm traços do gémeo (Diop , 2014, pag. 61).

Ao propor a noção de tradição no sentido de transmissão, evita-se qualquer arqueologismo, porque se trata de processos eminentemente vivos, chamados a adaptar-se aos desafios de cada época. De facto, a tradição é, antes de mais, para os africanos, a experiência do agrupamento humano. Constitui a soma total das aquisições que as gerações sucessivas acumularam desde o início dos tempos, nos domínios do espírito e da vida prática. É a soma total da sabedoria detida por uma sociedade num dado momento da sua existência. E se admitirmos que o grupo dos antepassados não forma uma comunidade fechada, mas se apresenta como uma assembleia em constante crescimento e evolução, a força é reconhecer que a tradição também não tem nada de estático. (D. Zahan , Religion, 1974, p.80) Tradicional não significa aqui "passado", "velho", "ultrapassado" (anti-moderno), "congelado", "imutável": se existe uma referência essencial a uma herança do passado, isso não exclui uma reestruturação constante de acordo com as relações e as circunstâncias da história Uma vez que a religião africana é contemporânea do homem africano moderno, ela"constitui um lugar privilegiado, um elemento real e central da cultura africana"[9]. Na sua carta aos Presidentes das Conferências Episcopais da Ásia, América e Oceânia sobre a "Atenção Pastoral às Religiões Tradicionais", o Cardeal Francis Arinze explicou o termo "Religiões Tradicionais" com estas palavras:"Por religiões tradicionais entendem-se aquelas religiões que, ao contrário das religiões mundiais que se difundiram em muitos países e culturas, permaneceram dentro do seu próprio contexto sócio-cultural. A palavra 'tradicional' não se refere a algo estático ou imutável, mas refere-se a esta matriz localizada.

            Não existe consenso quanto a um termo único a utilizar para designar estas religiões. Alguns dos nomes (por exemplo, paganismo, fetichismo) têm um significado negativo e, para além disso, não descrevem verdadeiramente o seu conteúdo. [Enquanto em África estas religiões são geralmente designadas por "Religião Tradicional Africana", na Ásia são designadas por "Religiões Populares", na América por "Religiões Nativas e Religiões Afro-Americanas" e na Oceânia por "Religiões Indígenas” (Osservatore Romano).

         Ao estudar esta religião tradicional, qualquer investigador depara-se com estas duas dificuldades metodológicas:

1. o campo religioso tradicional africano (Bourdieu ), objeto do nosso estudo, apresenta a qualquer estudioso que o aborde uma grande complexidade que advém da diversidade do próprio facto religioso, das abordagens teóricas que o rodeiam e o tentam explicar, e do vasto espaço social (diferentes grupos étnicos e sua interação com ambientes físicos específicos) onde se explica e dos interesses históricos e culturais em jogo que suscita.

2) A importância do ambiente físico na religião tradicional africana não deve, no entanto, ser minimizada e constitui a segunda dificuldade metodológica. A religião africana é mais experimental do que filosófica. O seu vocabulário teológico é retirado da vida vivida num determinado contexto geográfico. As florestas, os lagos, as rochas, as montanhas assumem uma importância mística. Eles e a sua flora e fauna não são meras imagens pictóricas de valor e experiência religiosa, mas são considerados como verdadeiras ligações à realidade invisível. Todas estas coisas são os componentes de um universo orgânico. Um sistema que funciona em estreito contacto com a geografia de um determinado território.

 

 

Por conseguinte, o estudioso da religião tradicional africana (com estes elementos de base:

mitos,

rituais

leis)

deve familiarizar-se com os nomes e os hábitos das aves, dos animais e dos insectos, com as utilizações dos arbustos, das plantas e das árvores, e com os ciclos do clima e da agricultura. Sem este conhecimento, é impossível compreender o significado dos cantos, das fórmulas rituais, dos próprios rituais, ou mesmo da visão do homem. A complexidade do simbolismo é extrema, por exemplo na caça e imolação das vítimas sacrificiais, no seu desmembramento, cozedura e consumo ritual pelos fiéis [De Heusch , 1985]. O estudo desta religião exige uma grande atenção a todos estes pormenores para compreender as suas instituições.

Apesar da diversidade das expressões religiosas das diferentes tribos da África negra, um facto é certo: esta diversidade não altera a unidade da África negra. Este facto é demonstrado pela investigação de eminentes académicos como: Cheikh Anta Diop , V. Mulago, J. Mbiti , E. Mveng, A.T. Sanon, Bimwenyi, L.-V. Thomas, J. Jahn, G. Guthrie, Hampate Ba , D. Zahan, etc. Por conseguinte, o nosso esforço não será o de vos apresentar um mosaico de visões do mundo, de Deus e do homem, mas sim uma visão holistica.

Para compreender mais profundamente a religião de um povo, é necessário situá-la no contexto da visão geral do mundo que ele tem e que pode determinar profundamente. É o que constatam as recentes escolas fenomenológicas e históricas, por exemplo, a escola francesa inspirada por Marcel Griaule e os seus discípulos, e outros africanistas bem conhecidos como Louis Vincent Thomas e Dominique Zahan, com académicos de várias disciplinas. Peter Berger , sociólogo, sublinhou a importância da relação entre o "cosmos em geral" ou a mundividência ordenada e o "cosmos sagrado" em cada cultura.

Estas dificuldades metodológicas acima mencionadas são uma das razões que explicam a dificuldade que um estrangeiro que se aproxima pela primeira vez de uma terra negro-africana encontra para compreender o seu campo religioso tradicional, e explica também esta reação que, na época das grandes explorações, alguns acharam por bem afirmar que os povos que visitavam não mostravam vestígios ou preocupações de crenças religiosas [Basil Davidson , 1997]. Os estrangeiros, exploradores ou missionários, no primeiro contacto com os africanos, quando não negavam a existência de qualquer manifestação religiosa, minimizavam-na ou ridicularizavam-na. Três exemplos ajudam a compreender como é difícil julgar uma religião a partir do exterior.

Sir Samuel Baker, no regresso de uma viagem à região do Alto Nilo, em 1866, afirmou: «nenhuma das raças da bacia do Nilo, sem exceção, possui a crença num ser supremo, nem qualquer forma de culto idolátrico; a escuridão do seu espírito não é sequer iluminada por um raio de superstição. O seu espírito é tão estagnado como os pântanos que aterram o seu mundo estreito»[Baker , ].

Para Richard Burton, «a religião dos africanos é sempre interessante para aqueles que possuem uma fé mais elaborada, da mesma forma que observar as crianças é um prazer para os homens maduros» [Burton].

É significativa a impressão de um missionário sobre as festividades de iniciação numa aldeia da África Ocidental: "Poucos dias depois da nossa chegada, teve lugar na aldeia uma grande festa pagã: era a receção triunfal dos jovens iniciados após sete meses de prisão. Desfilaram perante uma multidão delirante, em duas alas, desfilando com as suas insígnias, os seus torsos marcados pelas linhas elegantes das riscas que permanecerão com eles como a marca indelével das garras do demónio a que se dedicaram. Os feiticeiros mascarados, personificação deste demónio, vêm frequentemente à noite para realizar cerimónias com os seus protegidos, acompanhadas de música infernal. Em suma, é uma verdadeira orgia de feitiçaria: o demónio quer provar-nos que reina supremo e que não nos será fácil"[17].

         Porquê estas afirmações? Ao contrário das religiões monoteístas históricas abraâmicas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, onde se podem facilmente traçar os objectivos, as características e as modalidades do encontro com Deus, tal como foram estabelecidos por um ou outro fundador, para as religiões tradicionais sem fundadores, a maioria das quais não dispõe de estruturas cúlticas claras e estáveis nem de livros sagrados, é difícil destacar aspectos doutrinais e determinar conteúdos.

         Há na experiência religiosa uma profundidade que não é redutível ao "baixo" do positivismo psicanalítico freudiano, nem ao puramente social: a religião manifesta uma profundidade psíquica, elevada e nobre, irredutível, e um envolvimento pessoal que vai muito para além do puro nível de socialização.

         Estes exemplos citados anteriormente são hoje espantosos. Não esqueçamos que a mentalidade evoluiu muito. Estudos sérios realizados por etnólogos, antropólogos, historiadores das religiões, teólogos africanos e ocidentais levaram a um melhor conhecimento e compreensão do passado e do presente de África. Assim, no colóquio internacional realizado em Abidjan (Costa do Marfim) em 1961 sobre "Religiões Africanas", todos os participantes consideraram que a terminologia mais adequada para designar a experiência religiosa nas sociedades multiformes da África tradicional não é a de animismo, mas a de "Religião Tradicional Africana" como uma religião autêntica, porque "implicam a ideia de um Deus pessoal e a ideia de mediação entre o homem e os diferentes seres. A vida faz com que a unidade destas religiões se situe num todo que forma uma civilização rica em elementos positivos ou valores do humanismo em diferentes domínios"[18].

         Para concluir, é preciso dizer que cada religião, como a africana, possui um pensamento filosófico-metafísico teológico, antropológico e cosmológico, em parte implícito e em parte explícito. Os vários campos do espírito são, no entanto, separáveis apenas até ao ponto em que a estrutura da religião em questão é afetada; mas isto ficará mais claro mais tarde.

         Para fazer um levantamento do pensamento religioso africano, parecem estar disponíveis atualmente investigações relativas, nomeadamente, aos seguintes aspectos

(a) a relação entre as ideias gerais do pensamento africano que dão unidade de sentido à conceção geral do seu cosmos e as do cosmos religioso que lhe é correlativo e mais ou menos identificado com ele. Por exemplo, no mundo ocidental, o "ser", o "valor", a "matéria" e o "espírito", a "energia" e a "massa física" foram progressivamente estabelecidos como categorias dominantes, enquanto noutras culturas podem prevalecer as ideias de "vida", "força vital", "participação cósmica", "ciclo cósmico" ou, como no caso dos Nuer, a ideia de "espírito";

b) a explicação dada sobre a fundação e o destino do cosmos em relação ao divino (especialmente os mitos de origem do mundo);

c) a relação entre a conceção do homem e a do divino (mitos de criação, a distinguir dos mitos de origem). Tomando de empréstimo o termo ocidental de pessoa, de certo modo indispensável por ser "existencial e global", importa examinar como é concebida nas várias religiões. Nalgumas, talvez só se possa falar de "sujeito humano".

d) O tipo de tradição: por exemplo, em populações sem escrita, como as de África, a "oralidade", a "palavra", a tradição oral - por isso se diz "tradicional" - têm uma importância dificilmente imaginável pelo homem de culturas fundadas sobretudo na escrita generalizada.

e) O tipo de espiritualidade: para D. ZAHAN (Religion, spiritualité...), por exemplo, a unidade da "religião africana", deve ser procurada "através do lugar que o indivíduo sente que ocupa na esfera da criação, e através do sentimento que tem de pertencer ao universo. Ou seja, para nós, a essência da espiritualidade africana consiste no sentimento do ser humano de se considerar simultaneamente imagem, modelo e parte integrante do mundo, na vida cíclica da qual se sente profunda e necessariamente implicado (engagé)". No final do volume, conclui que "o africano, considerado como indivíduo, é profundamente místico... aspira... a uma espécie de intimidade e de união com o Invisível", construída mais sobre o amor do que sobre "uma espécie de aliança baseada na confiança e no abandono"[19]. Jeoffrey Parrinder também relaciona a unidade da religião africana com uma particular "atitude do homem em relação ao Invisível" e Thomas diz ainda: "na África negra, sem ser tudo, a religião penetra tudo e o Negro pode ser definido como o ser incuravelmente religioso: tradicionalmente, de facto, ele vive em estreita comunicação com o Invisível e o sagrado" e conclui que, mesmo que a ancestralidade ceda ao Islão e ao Cristianismo, o ateísmo "não tem qualquer hipótese de sucesso"[20].

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12ª Lição 12 de Março 2024: Antropologia da religião

Antropologia da religião

Seria razoável, então, supor que o estudo antropológico da religião - que, afinal, é apenas uma pequena subdivisão da cultura - deveria ser limitado e gerenciável.

Bem, não é. Talvez seja porque os valores, suposições, percepções e atividades que compõem a religião servem de base ou ponto de partida para praticamente tudo o que os humanos fazem ou pensam: relações sociais, escolha de ações, compreensão da causa e efeito, conclusões sobre propósito e significado. A religião tem dimensões políticas e de género; a religião é frequentemente expressa em violência, mas também é uma fonte de tranquilidade e esperança; a religião pode ser o suporte da tradição e da continuidade e - às vezes ao mesmo tempo - a fonte de fortes mudanças. 

Crenças e práticas religiosas

Os pesquisadores de campo de todos os cantos do globo tentaram documentar ou pelo menos relatar as diversas crenças e práticas religiosas que encontraram nas suas pesquisas de Trabalho de campo. A maioria dos antropólogos não são religiosos ou aderem firmemente aos sistemas de crenças ocidentais, que fornecem pouco espaço para a simpatia pelas crenças questionáveis ​​dos “outros”. Pode ser que o contínuo e interminável, interesse antropológico pela religião reflete as tensões dos valores e crenças em conflito com as de outros lugares e épocas.

História da antropologia religiosa

A tensão aparentemente inevitável entre as crenças dos antropólogos e àquelas das pessoas que eles estudam foi expressa ao longo dos anos de várias maneiras. 

Como pode ser traçada uma linha entre sistemas de crenças supostamente 'civilizados' (como, presumivelmente, cristianismo, judaísmo, budismo, islamismo, hinduísmo ) e os outros sistemas de crenças que podem ser encontrados entre povos de todo o mundo ?

Edward Evans-Pritchard

É possível que a afirmação clássica de Evans-Pritchard (de que a antropologia se preocupa ou deva se preocupar apenas com religiões primitivas) reflita pelo menos em parte uma suposição de que os antropólogos aderiram a uma religião ocidental, como o cristianismo ou o judaísmo - ou não se inscreveram em nenhum sistema de crenças mas aderiram àquele da ciência (E. E. Evans-Pritchard 1991: 1). Se o primeiro, o antropólogo provavelmente ao estudar  a religião de outras culturas a consideraria como sendo cheia de erros, superstições, práticas tolas ou obscenas e tão claramente 'primitivas' quando comparada ao sistema de crenças do antropólogo. E se por último o antropólogo considerasse todas as religiões sem sentido - então talvez seria melhor seguí-lo com cuidado. De qualquer forma, sempre houve perigo para os não-crentes ou não-conformistas de provocar a ira da autoridade eclesiástica, de tal forma que Michael Servetus foi queimado na fogueira e Spinoza foi excomungado e Galileu foi forçado a retratar. Os tempos mudaram - talvez - já que os estudiosos, pelo menos na Europa, temiam represálias por suas crenças ou interpretações, mas alguns ainda acham que é melhor evitar precipitar ofensas:

Podemos observar de passagem que, quando falamos de religiões tradicionais africanas, é implícito em qualquer momento se referir ao sobrenatural. No entanto, a sociedade ocidental, é frequentemente considerada com uma marca de ateísmo militante quando se refere as religiões que acreditam no sobrenatural.

As sociedades humanas diferem de inúmeras maneiras em tecnologia, relações sociais, valores, crenças e, de facto, tudo e todos os esforços para organizar as sociedades segundo os moldes do evolucionismo, partindo do 'primitivo' para chegar ao 'civilizado', caíram de forma ignominiosa. Não podemos considerar “todas as sociedades como iguais” ou formular “juízos de valor sobre as culturas”; No passado muitos estudiosos e antropólogos emitiram juízos de valor sobre as pessoas pertencentes a outras culturas emitindo apresamento como tolos, repulsivos ou admiráveis. O problema para os antropólogos e para a antropologia contemporânea é que todos esses julgamentos são inevitavelmente subjetivos, pessoais e arbitrários.

Edward Burnett Tylor

 Edward B. Tylor, considerado por muitos como o pai da antropologia moderna, concluiu que a religião emergiu dos interrogativos iniciais dos seres humanos no início da inteligência humana, enquanto buscavam respostas para explicar o aparecimento dos mortos em sonhos e o desaparecimento, de tempos em tempos, de animais de caça ou água (Tylor 1871).

Sir James Jorge Frazer

Se Tylor viu a religião emergir da busca inicial de respostas para ocorrências aparentemente inexplicáveis, James G. Frazer (1922), considerado por muitos como o pai do estudo antropológico da religião, concluiu que a religião era simplesmente um passo na progressão dos esforços para controlar o meio ambiente e o desenrolar dos acontecimentos. Em outras palavras, a princípio os humanos acreditavam que podiam fazer cair a chuva ou capturar os animais forçando a natureza (ou os espíritos invisíveis que administravam a natureza) e reduzindo-a à sua vontade: isso, disse Frazer, era o começo da magia.

Então, como Frazer viu, os humanos começaram a perceber como seus esforços realmente alcançavam pouco em termos de resultados, embora (como Frazer demonstra), a crença e a prática da magia continuem até os dias de hoje. Contudo, ao que parece, o questionamento da eficácia da magia levou alguns observadores antigos a concluir que os seres que controlavam o universo eram claramente mais poderosos que os humanos - e, que portanto, eles só podiam propiciar tais divindades com orações e ofertas, já que não podiam forçá-los ou controlá-los. - e isso (para Frazer) foi o começo da religião.

Finalmente, Frazer admite que veio a ciência, permitindo a reflexão e o entendimento de que o universo é governado por leis e os seres humanos que entendem como funcionam as forças brutas do universo, não passíveis de coerção ou propiciação, tornaram-se capazes de manipulá-las. Explicações como as de Tylor e Frazer pareciam razoáveis ​​para seus contemporâneos, na maioria das vezes eles que propunham tais teorias nunca tinham encontrado um 'primitivo' por serem antropólogos de mesa.  É um fato notável que nenhum dos antropólogos cujas teorias sobre religião primitiva foram mais influentes jamais esteve perto de um povo primitivo (Evans-Pritchard 1965: 6). Evans-Pritchard continua criticando contra a literatura usada por esses antropólogos de mesa que ficam em casa: «Grande parte dela era falsa e quase toda não era confiável e, pelos padrões modernos de pesquisa profissional, era casual, superficial, fora de perspectiva e fora de contexto».

O QUE É RELIGIÃO?

O antropólogo Anthony F.C. Wallace chamou a religião de 'uma fé e um ritual voltado para seres, poderes e forças sobrenaturais' (1966, p. 5). O sobrenatural é uma dimensão extraordinária fora do mundo observável mas inexplicável e imaterial, deve ser aceito 'pela fé' sobre Seres sobrenaturais - deuses, deusas, espíritos e almas - que não pertencem ao mundo material e nem mesmo são forças sobrenaturais (que podem ser exercidas por seres vivos). Outras forças sagradas são impessoais e simplesmente existem. Em muitas sociedades, as pessoas sentem que podem se beneficiar, absorver ou manipular forças sobrenaturais (Bowie 2006; Crapo 2003).

Outra definição de religião enfatiza a multidão de pessoas que se reúnem regularmente para atividades de adoração; esses fiéis ou seguidores subscrevem e interiorizam um sistema comum de espiritualidade:  aceitam aderem ou acreditam numa série de doutrinas que envolvem a relação entre o indivíduo e a divindade, o sobrenatural ou o que quer que seja considerado a expressão máxima da verdade.

Durkheim

Os antropólogos destacaram a natureza coletiva e compartilhada da religião, as emoções que ela gera e o significado que corporifica as sociedades constituídas em igrejas. Émile Durkheim (1912/1963), um dos primeiros estudiosos da religião, destacava a efervescência religiosa, o fervilhar de uma intensidade emocional colectiva gerada pelo culto. Victor Turner (1969/1972) atualizou as noções de Durkheim usando o termo communitas, um intenso espírito de comunidade, um sentimento de grande solidariedade social, igualdade e fraternidade. A palavra religião vem do latim religere, 'ligar, manter unido', mas não é necessário que todos os membros de uma religião se reúnam como um único grupo.

As Igrejas

Os subgrupos se reúnem regularmente nas igrejas das congregações locais e podem ocasionalmente participar de reuniões prolongadas com outros fiéis ou mesmo formar uma comunidade imaginária, com pessoas do mesmo credo, que abrange o mundo inteiro.

Assim como a etnia e o idioma, a religião também está associada a divisões sociais dentro e entre sociedades e nações, como em países onde o Islã se espalhou. A religião pode unir e pode dividir: a participação em ritos comuns pode afirmar e, portanto, manter a solidariedade social entre os seguidores e, ao mesmo tempo, como aprendemos com as notícias diárias, as diferenças religiosas podem estar associadas a ódio intenso.

Ao estudar religião em diferentes culturas, os antropólogos se concentram em sua natureza e papel social, bem como na natureza, conteúdo e significado que as doutrinas religiosas, ações rituais, eventos, ambientes, celebrantes e organizações têm para com as pessoas. Também são consideradas as manifestações verbais da fé religiosa, como orações, canções, mitos, textos e declarações sobre ética e moral. A religião, de acordo com uma ou a outra das definições oferecidas aqui, existe em todas as sociedades humanas: é um universal cultural. No entanto, veremos que nem sempre é fácil distinguir o sobrenatural do natural e que diferentes sociedades conceituam divindade, entidades sobrenaturais e as verdades mais elevadas de maneiras muito diferentes.

ORIGENS, FUNÇÕES E EXPRESSÕES DA RELIGIÃO

Ninguém sabe ao certo quando nasceu a religião. Existem marcas religiosas em túmulos da era Neandertal e nas paredes das cavernas europeias onde são pintadas figuras estilizadas que poderiam representar os xamãs, e os primeiros praticantes da religião. No entanto, qualquer afirmação sobre quando, onde, por que e como a religião cresceu, ou qualquer descrição de sua natureza original, pode ser especulativa. Algumas especulações não levam a lugar nenhum, muitas outras revelaram funções e efeitos importantes do comportamento religioso.

Evolucionismo social

Antes de examinar várias teorias desenvolvidas pelas escolas antropológicas, é bom nos determos no contexto histórico em que a religião nasceu, indicativo interesse pelas religiões. Em 1843, a Sociedade Etnológica de Londres foi fundada na Inglaterra. É um momento histórico em que a Europa estava em pleno desenvolvimento industrial e a Inglaterra a nação mais avançada. A palavra-chave desse período foi progresso e a ciência foi o instrumento capaz de garantir o progresso da humanidade. Como a Inglaterra vitoriana estava no auge de seu estágio evolutivo, a chave do estudo antropológico teve que ser buscada no passado: pensava-se que, com base na evolução que havia afetado a sociedade anglo-saxônica, era previsível que o mesmo mecanismo haviam distinguido sociedades do passado, levando-as de um estágio inferior para um estágio superior. A vida dos habitantes primitivos da Europa poderia, portanto, ser comparada à dos 'primitivos' contemporâneos, identificados nas populações nativas das colônias, que representavam a etapa mais remota do desenvolvimento cultural. Quanto aos estudos de arqueologia pré-histórica e filologia comparada, que buscavam formas originais de arte e linguagem nos 'primitivos' contemporâneos, também para a antropologia o foco de interesse era representado pelas origens da religião. O ponto central da questão era como as crenças se originaram e se havia tribos tão 'primitivas' que não possuíam uma religião. Veremos, portanto, como as diferentes correntes antropológicas têm lidado com a questão (Fabietti 2000).

Ciência, magia e religião

Ciência, magia e religião são todas as formas de entender e influenciar o mundo natural. Magia e religião diferem da ciência, pois o que não é explicado pela ciência no mundo natural é explicado na magia e na religião pelo recurso ao conceito de sobrenatural. Magia e ciência são semelhantes, pois os objetivos de ambos são específicos e baseiam-se na crença de que se alguém executar um conjunto de ações específicas, obterá o resultado desejado. Magia e ciência diferem no facto de serem baseadas em diferentes teorias do conhecimento. A magia (que faz parte da religião) baseia-se na crença de que, se os feitiços ou rituais forem realizados corretamente, o sobrenatural atuará de tal maneira que o fim desejado dentro do mundo natural resultará. A magia é baseada na ideia

que existe um elo entre o mundo sobrenatural e o mundo natural, de modo que o mundo natural pode ser compelido a agir da maneira desejada se a mágia for executada como deveria. A Ciência, por outro lado, baseia-se em conexões lógicas empiricamente determinadas entre os aspectos do mundo natural que resultará regularmente em resultados previsíveis. As Hipóteses sobre essas conexões lógicas estão sujeitas a alterações se novos dados empíricos sugerirem melhores hipóteses. A Ciência baseia-se no conhecimento empírico obtido através dos cinco sentidos, enquanto que a definição característica da religião é o sobrenatural, uma crença em uma realidade que “transcende a realidade passível dos cinco sentidos ”(Lett 1997: 104).

A competição entre explicações religiosas e questões científicas

As explicações que descrevemos acima continuam presentes hoje. A magia difere de outros aspectos da religião, pois as pessoas tentam manipular o sobrenatural através de intervenção direta. Se a fórmula mágica correta for usada, o sucesso é inevitável porque a magia é vista como capaz de dobrar o sobrenatural à vontade do praticante. As práticas religiosas, por outro lado, não são tão específicas em seus objetivos. Os ritos religiosos enfatizam o grau de impotência dos seres humanos e não impele resultados diretos da maneira que a magia faz. Os ritos religiosos envolvem pessoas fazendo apelos aos deuses, que podem ou não ser concedidos. A magia é, portanto, manipuladora e a religião é suplicante. O conhecimento mágico manipula em nome dos indivíduos, enquanto a religião é o sistema de crenças e a prática ritual de uma comunidade.

Definição de religião

A religião é tradicionalmente definida pelos antropólogos como o meio cultural pelo qual os humanos lidam com o sobrenatural, mas muitos humanos também acreditam que o inverso é verdadeiro - que o sobrenatural lida com os humanos. Nesta interação, o sobrenatural é geralmente visto como poderoso e os seres humanos como fracos. Em outra abordagem, Saler (1993) define religião em termos de um conjunto de elementos que tendem a se agrupar. Eles acrescentam uma crença em Deus, ou deuses ou 'seres espirituais' com quem os humanos podem ter contacto espiritual;  a esta espiritualidade se une um código moral que se acredita ter sido emanado por fontes extra-humanas; se pratica a crença na capacidade humana de ir além do sofrimento; e celebram-se rituais que envolvem os humanos com o extra-humano (Saler 1993: 219). Os “seres espirituais” e o extrahumano na definição de Saler podem ser equiparados ao que chamamos “o sobrenatural”. Klass (1995) argumenta que a definição da religião em termos do sobrenatural reflete a concepção platónica da separação entre corpo e espírito, e define a religião como «o processo instituído de interação entre os membros duma sociedade - com o universo, como eles o imaginam e o criam, atribuindo-lhe um significado, coerência, dependência, unidade, devoção e um certo grau de controle sobre os eventos que eles percebem como possíveis» (1999: 38).

Sistema de crenças

Todas as culturas humanas possuem um sistema de crença religiosa e, portanto, é geralmente reconhecido como um universal cultural que engloba crenças e práticas, que variam e regulam relacionamentos entre comunidades e praticantes. A existência deste sistema levou os estudiosos a questionar em que maneira o sobrenatural influi e condiciona a vida natural, o que é que motiva os seres humanos a propor que o mundo seja governado por forças além daquelas que as suas observações empíricas estabelecem. Muitos sociólogos ao longo dos anos tentaram de responder a essa pergunta. Max Weber (1930) argumentou que desde que a vida é feita de dor e sofrimento, os seres humanos desenvolveram a religião para explicar o motivo pelo qual eles devem aturar o sofrimento. São Paulo constantemente perguntou a Deus o porque devia estar aflito com um 'espinho na carne’. Sigmund Freud (1928) afirma que as instituições religiosas representam a maneira da sociedade de lidar com as necessidades infantis de dependência por parte dos seus membros. O que de outra forma seria um traço neurótico, encontra expressão na forma de deuses e divindades todo-poderosos que controlam o destino de um indivíduo. Melford Spiro (1966) sugere três tipos de necessidades que a religião cumpre: a primeira é chamada de necessidade cognitiva, isto é, a necessidade de entender; esta é a necessidade de receber  explicações e significados. A segunda é a necessidade substantiva de trazer metas específicas, como chuva, boas colheitas e saúde, através da realização de atos religiosos. A terceira é a necessidade psicológica de reduzir o medo e a ansiedade nas situações em que estas são provocadas. Emile Durkheim (1915) e outros que seguiram a sua abordagem viam a religião como o meio pelo qual a sociedade inculca valores e sentimentos necessários para promover a solidariedade social e a sobrevivência final da sociedade.

O Sobrenatural

 

Muitos acreditam na existência de uma realidade espiritual que vai além do universo observável, ou seja no sobrenatural.

Explicações recentes abordaram a tal dita ciência cognitiva da religião. Essa abordagem examina fenómenos religiosos como resultado da evolução do cérebro humano que no tempo, processa e categoriza as informações. Boyer (2001) afirma que o simbolismo e as representações religiosas são limitados cognitivamente pelas propriedades universais da mente-cérebro: “Os conceitos religiosos são provavelmente influenciados pela maneira como os sistemas de inferência do cérebro produzem explicações sem que estejamos conscientes disso ”(2001: 18). Ele caracteriza expressões religiosas como 'ontologias contra-intuitivas' (2001: 65). Por exemplo, a água benta não é quimicamente diferente da água da torneira; no entanto, os crentes atribuem à agua benta propriedades especiais, e isso é contra-intuitivo. Os rituais representam comportamentos separados da vida cotidiana e representações religiosas “violam” o que as pessoas consideram fenómenos naturais. Ele sugere que a universalidade da experiência religiosa seja melhor compreendida ao questionar-se «o que torna a mente humana tão seletiva no que diz respeito ao sobrenatural» (2001: 31). Outros estudiosos da religião e cognição estão investigando manifestações neurofisiológicas e neurobiológicas dos fenómenos religioso, como transe e meditação; Alguns citam o papel desempenhado pelo lobo temporal do cérebro nessas expressões de idéias, emoções e práticas religiosas. A partir dessas diferentes considerações sobre por que a religião existe e que explicações foram oferecidas para a universalidade dos fenômenos religiosos, podemos sugerir algumas respostas provisórias para as perguntas que colocamos. Os seres humanos fazem parte de um mundo social e também de um mundo natural. Eles dependem das ações de outros seres humanos, bem como das forças da natureza. Algumas dessas ações e forças podem ser controladas através de seu próprio comportamento. No entanto, eles são impotentes diante de ações e forças «sobrenaturais». Os seres humanos tentam entender e pelo menos influenciar ou controlar através de uma crença no sobrenatural o que de outra forma é incontrolável e inexplicável. Ao fazer isso, eles aliviam suas ansiedades em relação ao desamparo na situação, embora Boyer ressalte que muitas ideologias religiosas geram ansiedade e 'criam não tranquilidade mas uma espessa camada de melancolia' (2001: 20). A organização do mundo sobrenatural que é construído pelos seres humanos reflete a sociedade em que vivem. Os sentimentos e emoções geradas pelo sobrenatural são uma força importante no aprimoramento da solidariedade social.

CONCEPÇÕES DO SUPERNATURAL: animismo

As ideias sobre fantasmas e espíritos fazem parte de uma categoria maior de crenças sobre as contrapartes espirituais ou não corporais dos seres humanos. Tylor (1871), o evolucionista do século XIX, chamou a esse fenômeno  animismo. Ele teorizou que o animismo era a semente da qual todas as formas de religião cresceram. Ele levantou a hipótese do que ele chamava de 'povo primitivo' via todos os seres vivos, incluindo as forças da natureza, compostas de uma forma corporal ou corporal, e um aspecto espiritual. Essa foi uma extensão da ideia de que cada pessoa tem um corpo e um outro eu ou alma separável. Esse outro eu era visto na sombra da pessoa, ou no reflexo de uma lagoa, e viajava muito nos sonhos da pessoa. As idéias sobre animismo foram a pedra angular do desenvolvimento de uma história evolutiva da religião por Tylor, na qual o animismo evoluiu para um panteão de divindades (politeísmo) e, finalmente, para o monoteísmo. A maioria dos estudiosos contemporâneos, que encontram em todos os sistemas religiosos do passado e presente a coexistência de entidades e divindades sobrenaturais, questionam essa estrutura evolutiva. As pessoas que acreditam em qualquer religião veem o mundo sobrenatural como habitado por uma variedade de criaturas, agentes e forças sobre-humanas cujas ações trarão boa sorte ou infortúnio, chuva ou seca, fome ou fertilidade, saúde ou doença e assim por diante. O mundo natural serve de modelo, embora não exato, para as conceituações das pessoas sobre o sobrenatural. Seria muito simplista dizer que o mundo sobrenatural é simplesmente uma imagem espelhada da vida das pessoas na Terra. No entanto, existe uma relação entre a estrutura social de uma sociedade e a maneira como em que seu mundo sobrenatural está organizado. Da mesma forma, as relações de poder no mundo sobrenatural estão relacionadas ao tipo de organização política encontrada na sociedade.

Os tipos de espíritos, o termo geral para aqueles que povoam o reino sobrenatural, podem ser agrupados em tipos para descrevê-los. Isso é visto por alguns estudiosos como a imposição de conceitos da língua ocidental em categorias indígenas não ocidentais. Portanto, esses termos representam uma tradução e não um equivalente exato. Os espíritos dos mortos podem ser categorizados cronologicamente em relação aos vivos, como fantasmas dos mortos recentes, Espíritos ancestrais de gerações remotas e espíritos ancestrais do passado antigo, que eram grupos de Fundadores em tempos mitológicos. Nas sociedades com clãs totêmicos, como os Kwakiutl, os ancestrais fundadores podem ser representados como animais. Essa crença em não-humanos como ancestrais vincula diretamente a identidade de grupos humanos a animais específicos e geralmente é acompanhada pelas proibições de matar e comer o animal totêmico pelos membros do grupo. Alguns acreditam que todas as espécies animais e vegetais têm componentes físicos e espirituais. O mundo natural é então visto como tendo sua contrapartida espiritual. Forças inanimadas, como chuva, Trovões, raios, vento e maré também podem ser vistos como espíritos, ou motivados por Seres espirituais, ou controlados por divindades ou deuses. Se o espírito é diretamente percebido como possuindo

Características, bem como poder sobrenatural, então é referido como um deus ou divindade; A população de deuses e divindades reconhecidos por uma sociedade é um panteão. As relações entre os deuses de um panteão são frequentemente concebidas em termos humanos. Os deuses mostram ciúmes, têm relações sexuais, brigas e vivem como seres humanos. Características humanas deste tipo também são atribuídas aos fantasmas e espíritos ancestrais em muitas sociedades.

As origens e atividades dos seres sobrenaturais são retratadas em mitos. Qualquer combinação particular de diferentes tipos de entidades espirituais pode ser encontrada em uma dada sociedade. O Mundo sobrenatural está de acordo com sua própria lógica. Muitas vezes, as pessoas se identificam com um sistema ideológico Judaísmo, cristianismo e hinduísmo, e ainda mantém crenças em fantasmas, bruxas e Espíritos da natureza como sistemas paralelos.

Animismo

O fundador da antropologia da religião foi o inglês Edward Burnett Tylor (1871). A religião surgiu, de acordo com Tylor, quando os indivíduos tentaram compreender as condições e eventos que não conseguiam explicar usando as experiências cotidianas. De acordo com Tylor, o animismo representou um universal em todas as religiões. Mas como se forma a ideia de animismo e de que é feito? De acordo com Tylor, dois elementos estavam na origem da teoria do animismo: a alma e o espírito. Tylor também observou que em várias culturas não europeias havia frequentemente uma correlação entre termos como sombra, vida, respiração, vento e a ideia de alma e espírito. Em tais sociedades, animais, plantas e objetos inanimados eram frequentemente dotados de almas. Um exemplo diz respeito ao culto do sol, das árvores, da água, das rochas. De acordo com Tylor, foi a ideia da alma que representou o ponto de partida de todas as crenças religiosas. O animismo, portanto, poderia ser entendido como a crença nas almas que, em um estágio posterior, evoluiriam para seres espirituais, aos quais os eventos naturais estavam associados. Esses seres espirituais podiam controlar e influenciar os eventos do mundo material e a própria vida dos indivíduos. Ao mesmo tempo, eles eram capazes de interagir com eles: eles se alegravam ou ficavam com raiva dependendo de como os seres humanos agiam no mundo terreno. Consequentemente, para que os seres espirituais não prejudiquem os seres humanos, eles devem ser devidamente respeitados e propiciados.

De acordo com Tylor, a próxima fase do desenvolvimento religioso consistia na evolução dos espíritos em deuses que tinham a habilidade de controlar as ações humanas. Sua crença seria traduzida em politeísmo (existência de várias divindades) e, em um estágio superior da civilização, em monoteísmo, no qual o poder e os atributos de muitas divindades estariam concentrados em uma (Tylor 1871/2008, Fabietti 2000).

As elaborações de Tylor sobre o animismo, embora sujeitas a extensas revisões críticas (começando, por exemplo, com Durkheim), ainda permanecem extensivamente investigadas. Falar em animismo hoje significa refletir sobre categorias como alma e espírito, a pessoa em si, as relações entre o ser humano e as outras espécies, o conceito de morte e a centralidade dos ritos funerários e do sacrifício. Duas das mais recentes perspectivas teóricas sobre o animismo são representadas por Philippe Descola e Eduardo Viveiros de Castro. O primeira afirma que o animismo é uma modalidade fundamental no pensamento e na ação humana e que atribui atributos sociais e disposições humanas aos seres naturais. A segunda define o animismo como uma ontologia que postula o caráter social das relações entre os seres humanos e outras espécies (Descola 2021, Viveiros de Castro 1998 ).

Como a religião nasceu para explicar coisas que não eram compreendidas, Tylor achava que perderia importância quando a ciência pudesse oferecer explicações melhores. De certa forma, ele estava certo. Agora temos explicações científicas para muitas coisas uma vez decifradas pela religião, no entanto, como a religião persiste, deve haver algo diferente para explicar o mistério. A religião deve, e é assim, ter outras funções e outros significados.

Totemismo

Os rituais têm a função social de criar uma solidariedade temporária ou permanente entre as pessoas, formando uma comunidade social. Também podemos ver isso em práticas conhecidas como totemismo. O totemismo era importante nas religiões nativas australianas. O totem pode ser constituído por animais, plantas ou pontos geográficos ou ambientais particulares. Em cada tribo, grupos de pessoas têm totens específicos e os membros de cada grupo totêmico acreditam que são descendentes de seus totens. Tradicionalmente, o animal totem não era normalmente morto e não odiado, mas esse tabu era abolido uma vez por ano, quando as pessoas se reuniam para cerimónias dedicadas ao totem. Acreditava-se que esses ritos anuais eram necessários para a sobrevivência e reprodução do totem.

O totemismo usa a natureza como modelo para a sociedade; totens geralmente são animais ou plantas, que fazem parte da natureza. As pessoas se relacionam com a natureza por meio de sua associação totêmica com as espécies naturais. Uma vez que cada grupo tem um pólo totêmico diferente, as diferenças sociais refletem contrastes naturais, e aqui a diversidade na ordem natural torna-se um modelo para a diversidade na ordem social. No entanto, embora as plantas e os animais totêmicos ocupem nichos diferentes na natureza, eles estão unidos em outro nível, pois todos fazem parte da natureza. A harmonia da ordem social humana é potencializada pela associação simbólica com a ordem natural e sua imitação (Durkheim 1912/1963; Lévi-Strauss 1962/1964; Radcliffe-Brovvn 1952/1968).

O totemismo é uma forma de cosmologia - um sistema, neste caso religioso, para imaginar e compreender o universo. Um dos horizontes  deste tema concentra-se no trabalho e na vida de uma das figuras-chave da antropologia da religião (especialmente mitos, folclore, totemismo e cosmologia), Claude Lévi-Strauss. Também descrito é o Musée du Quai Branly, agora um destino turístico permanente em Paris, que é uma homenagem às artes, crenças e cosmologia de pessoas não ocidentais (consulte Para saber mais, Uma celebração parisiense e uma parada fixa

Em ritos totémicos, as pessoas reúnem presentes para seu próprio totem por meio de rituais para manter a unidade social que o totem representa.

Mesmo nas nações contemporâneas, os totens continuam a identificar grupos, como estados e universidades (por exemplo, Badgers, Buckeyes e Wolverines), equipes profissionais (Leões, Tigres e Ursos) e partidos políticos (burros e elefantes). Embora o contexto moderno seja mais profano, ainda se pode observar, nas intensas rivalidades entre times universitários de futebol, alguma efervescência que Durkheim havia encontrado na religião totémica australiana.

Mana e tabu

Além do animismo - e às vezes em coexistência com ele na mesma sociedade - há uma visão do sobrenatural como um lugar, ou força, de um poder impessoal bruto, que sob certas condições as pessoas são capazes de controlar (como em Star Wars ) Essa visão é particularmente importante na Melanésia, a área no Pacífico Sul que inclui Papua Nova Guiné e ilhas adjacentes. Os melanésios acreditavam em mana, uma força impessoal sagrada que faz parte do universo. Mana pode residir em pessoas, animais, plantas e objectos.

O mana dos melanésios era semelhante à nossa noção de boa sorte. Os melanésios atribuíam sucesso ao mana que a pessoa poderia adquirir ou manipular de diferentes maneiras, por exemplo, por meio de magia. Objetos investidos com mana podem mudar a vida de alguém; por exemplo, um talismã ou amuleto que pertencia a um caçador bem-sucedido poderia transmitir o mana do caçador à pessoa que o possuía ou usava. Uma mulher pode colocar uma pedra em seu jardim.

Diversidade e criatividade cultural

vê uma melhora repentina em sua colheita e atribui a mudança à força contida na pedra.

A crença em forças como o mana é generalizada, embora as características das doutrinas religiosas variem. Pense no contraste entre o mana na Melanésia e na Polinésia (as ilhas na área entre o Havaí ao norte, a Ilha de Páscoa a leste e a Nova Zelândia a sudoeste). Na Melanésia, poderia-se obter mana por acaso ou trabalhando duro para obtê-lo; na Polinésia, por outro lado, o mana geralmente não estava disponível para todos, mas era associado a cargos políticos: líderes e nobres tinham mais mana do que as pessoas comuns.

Os chefes principais estavam tão carregados de mana que o contato com eles se tornou arriscado. O mana pode escapar de seus corpos e infectar o solo, tornando perigoso pisar, e também pode contaminar recipientes e utensílios usados ​​para comer. No contato entre o líder e as pessoas comuns, o mana pode ter o efeito de um choque elétrico. Devido à quantidade de mana com que os grandes líderes foram investidos, seus corpos e quais eram suas propriedades tornaram-se tabus (sagrados, ou melhor, fora dos limites para as pessoas comuns) e o contacto com as pessoas comuns foi proibido. Se indivíduos comuns fossem acidentalmente expostos a tal força emanada, os ritos de purificação se tornariam necessários.

Um dos papéis da religião é fornecer explicações. A crença nas almas explica o que acontece no sono, na transe e na morte. O mana melanésio explica os diferentes resultados que as pessoas não conseguem entender em termos comuns. Se os indivíduos fracassam na caça, na guerra ou no cultivo, não é porque sejam preguiçosos, estúpidos ou sem noção, mas porque o sucesso vem - ou não vem - do mundo sobrenatural.

As crenças em seres espirituais (por exemplo, animismo) e forças sobrenaturais (mana) concordam com a definição de religião dada no início deste capítulo. A maioria das religiões inclui espíritos e forças impessoais e, da mesma forma, as crenças sobrenaturais dos americanos contemporâneos incluem seres (deuses, santos, almas, demónios) e forças (amuletos, talismãs, cristais e objetos sagrados).

Magia e religião

Por magia, queremos dizer técnicas sobrenaturais que visam atingir propósitos específicos; tais técnicas incluem feitiços, fórmulas e feitiços usados ​​com divindades ou forças impessoais.

Os Nganga usam magia imitativa para produzir o efeito desejado imitando-a: se os nganga desejam ferir ou matar alguém, eles podem imitar esse efeito em uma imagem da vítima. Pregar pregos no ’nkisi a nkonde’ é um exemplo. Com a magia contagiosa, acredita-se que qualquer coisa feita a um objeto afecta a pessoa que o possuiu. Às vezes, quem pratica magia contagiosa usa algo do corpo de qualquer vítima - por exemplo, unhas e cabelos - pensando que o feitiço acabará por atingir a pessoa e produzir o efeito desejado.

Encontramos magia em culturas umbundu, kongo e kimbundu com diferentes crenças religiosas. Magia pode ser ligada à

Ansiedade, controle e alívio

Religião e magia não se destinam apenas a fornecer explicações e ajudar as pessoas a alcançar objetivos: elas também entram no reino dos sentimentos humanos. Em outras palavras, estão a serviço de necessidades emocionais e cognitivas (como as explicativas). Por exemplo, a fé e as práticas sobrenaturais podem ajudar a reduzir a ansiedade, as técnicas mágicas podem dissolver as dúvidas que surgem quando as situações estão além do controle humano e a religião ajuda os homens a enfrentar a morte e as situações de crise.

Embora todas as sociedades tenham técnicas para lidar com os problemas cotidianos, elas não têm controle sobre alguns aspectos da vida, então, quando as pessoas se deparam com a incerteza e o perigo, de acordo com Malinowski, elas recorrem à magia.

«Embora a ciência e mais informações ajudem o homem a conseguir o que deseja, eles são incapazes de controlar completamente o destino, eliminar acidentes, prever a direção inesperada de eventos naturais ou garantir que o trabalho humano seja confiável e adequado para todas as necessidades práticas» (Malinowski 1931 / 1978, p. 39).

Malinowski viu que os habitantes das ilhas Trobriand usavam magia quando navegavam, um negócio arriscado. Ele sugeriu que tais ilhéus, incapazes de controlar variáveis ​​como vento, clima. Os habitantes das Ilhas Trobiand preparam uma canoa tradicional usada para o kula, um sistema de comércio cerimonial envolvendo uma grande área do Pacífico ocidental. A cesta da mulher contém moedas de troca, enquanto os homens preparam a grande canoa para a navegação. A magia costuma estar tão associada à incerteza quanto ao navegar em águas imprevisíveis pode ser perigoso.  As pessoas podem recorrer à magia quando têm uma lacuna em seus conhecimentos ou não têm o poder para um controle efetivo, mas ainda precisam realizar uma atividade (Malinowski 1931/1978).

Malinowski observou que foi apenas quando confrontados com situações além de seu controle que os habitantes de Trobriand, sob estresse psicológico, mudaram da tecnologia para a magia. A magia persiste nas sociedades contemporâneas porque, apesar dos avanços nas habilidades técnicas, ainda não se consegue controlar todos os resultados. A magia é especialmente evidente no basebol; George Gmelch (1978, 2001) descreve uma série de rituais, tabus e objetos sagrados. Como a navegação trobriandense mágica, esses comportamentos servem para reduzir o estresse psicológico, criando a ilusão de controle mágico quando o controle real está faltando. Até o melhor arremessador pode ter dias ruins ou azar e exemplos de magia, que encontramos entre os arremessadores, são jogar o chapéu entre os arremessos, tocar a casca após cada lance ruim e falar com a bola. As conclusões de Gmelch confirmam as de Malinowski de que a magia prevalece em situações de risco e incerteza. Todos os tipos de comportamento mágico envolvem o arremesso e rebatidas, onde a incerteza domina, mas existem poucos rituais no jogo de campo, pegar a bola e jogá-la de volta, onde os jogadores têm muito mais controle, ou colocar nkisi nas balizas para impedir o golo.

Segundo Malinowski, a magia serve para estabelecer o controle, mas a religião 'nasce ... das verdadeiras tragédias da vida humana' (1931/1978, p. 45). A religião oferece conforto emocional, especialmente quando as pessoas enfrentam uma crise. Malinowski observou que as religiões tribais se preocupavam principalmente em organizar, comemorar e ajudar as pessoas a lidar com eventos da vida, como nascimento, puberdade, casamento e morte.

Mito

Em muitos contextos religiosos, existem contos que são parcialmente reais e parcialmente fantásticos sobre a origem, cosmogonia e, mais geralmente, a ordem da realidade e da existência: mitos. Muitas vezes os mitos estão ligados aos ritos, pois estes se referem a histórias do passado e têm por objetivo representar os fundamentos da vida real. O conto mítico tem a capacidade de 'ordenar' entre elementos aparentemente irreconciliáveis ​​ou simplesmente distantes, relativos a mundos diferentes (por exemplo, o mundo natural e o sobrenatural). Ao fazer isso, o mito é favorecido pelo fato de ignorar as dimensões normais do espaço-tempo e de permitir a antropomorfização dos elementos naturais em um contexto original comunitário entre todos os seres vivos. Historiadores de religiões e antropólogos sempre foram atraídos pelo estudo dos mitos como uma produção cultural privilegiada de muitas culturas e como um lugar preferencial para compreender as ideias, valores e elementos fundadores de um sistema cultural. Alguns antropólogos, na esteira das análises de Malinowski, acreditam que o mito tem a função de justificar a ordem social existente. O mito, com sua capacidade de 'trazer ordem', fornece as bases sobrenaturais e cosmogônicas que podem ser rastreadas até a época das origens da organização social na qual os indivíduos são obrigados a viver no presente. Para o antropólogo francês Lévi-Strauss , o conto mítico não se relaciona de maneira simplista com o mundo real do presente e não tem a justificativa de uma ordem social como razão de sua existência. Para Lévi-Strauss, o mito deve ser estudado em si mesmo, como expressão de uma forma de pensamento que não é imediatamente funcional, mas pode ser remontada a uma elaboração filosófica capaz de resolver contradições e expressar a coerência estrutural que pode ser rastreada até o binário. lógica universalmente rastreável nas estruturas profundas das diferentes culturas.

Ritos e rituais

É fato que o ritual permeia nossas ações sociais. Tentar dar uma definição inequívoca e compartilhada do que são ritos e rituais, no entanto, parece bastante complexo: ritos e rituais, como a cultura, são entidades procedimentais, eles mudam com o tempo, adaptando-se aos contextos sociais de referência. Por esse motivo, a maioria dos autores que trataram do rito deu uma definição a partir de seu próprio campo de pesquisa: Malinowski, por exemplo, destacou sua função psicológica (1931). Outros estudiosos como Robertson-Smith (1998), Durkhéim (1912/2003) e, posteriormente, Geertz (1973/1998), afirmaram que o rito representa uma legitimação dos valores coletivos. Nesse sentido, o rito fortalece e regula os laços entre os indivíduos. Outros antropólogos, em vez disso, enfocaram a eficácia dos ritos como meio de resolver conflitos coletivos (Gluckman 1962, Isambert 1979 ). Por fim, foram investigados os aspectos linguísticos, semânticos e simbólicos (Turner 1967/1976, Leach 1966, Tambiah 1979).

Se a definição e função dos ritos ainda está sendo investigada hoje, a maioria dos autores concorda que os ritos são culturais universais e que toda cultura elabora sistemas rituais que têm um significado preciso e que mudam de acordo com o tempo e o contexto social.

A relação entre rito e ritual também é objeto de controvérsia. Martine Segalen afirma, por exemplo, que existem várias maneiras de entender o rito e o ritual. Um deles é o adjectivo do termo ritual, para o qual ritual se refere a actos que ocorrem durante as cerimónias e que as caracterizam como tais: podemos, portanto, falar de comportamentos rituais, refeições rituais. O ritual, no entanto, também se refere a outra coisa e é aplicado a uma série de encontros sociais, individuais ou coletivos, expressos por meio de formas particulares de comportamento, portanto, segundo Segalen 2002, rito e ritual são equivalentes.

Ao traçar um quadro geral do rito ou ritual, apesar das dificuldades em delinear suas características, alguns traços comuns podem ser identificados: o rito é um conjunto de atos formalizados e seu valor evidencia sua dimensão coletiva. O rito produz sentido para quem nele participa e se caracteriza por ações simbólicas que se manifestam por meio de expressões sensíveis, materiais e corporais. Essas ações simbólicas, geralmente atos corporais repetitivos, são codificadas e compreendidas tanto por aqueles que realizam um rito quanto por aqueles que o frequentam. Os rituais, precisamente em virtude de sua natureza repetitiva, traduzem mensagens, valores e sentimentos permanentes em ações (Segalen 2002).

 Ritos de passagem

Magia e religião, como observou Malinowski, podem reduzir a ansiedade e aliviar os medos, mas as crenças e os rituais também podem criar um estado de ansiedade e uma sensação de insegurança e perigo (Radcliffe-Brown 1952/1968). A ansiedade pode surgir porque existe um ritual, participar de um ritual coletivo pode gerar estresse, e reduzi-lo a uma situação coletiva, por meio do cumprimento do ritual, aumenta a solidariedade entre os participantes.

Ritos de passagem, como a circuncisão coletiva de adolescentes, por exemplo, podem ser eventos muito empenhativos. A busca de visão tradicional entre os nativos americanos, e particularmente os índios das planícies, ilustra os ritos de passagem (práticas associadas à transição de uma fase da vida para outra) encontrados em todo o mundo. Entre os índios das planícies, na transição da adolescência para a idade adulta, o jovem é temporariamente separado de sua comunidade. Após um período de isolamento em locais isolados fora das áreas habitadas frequentemente em estado de jejum e uso de drogas, o jovem deve ter uma visão que se transformará em seu espírito guardião. Ele então retornará para sua comunidade como um adulto.

Os ritos de passagem

Os ritos de passagem das culturas contemporâneas incluem a confirmação, o batismo, o bar e o bat mitzvah e os ritos de afiliação à fraternidade. Os ritos de passagem envolvem mudanças no status social, como da adolescência para a idade adulta e de não ser para membro de uma fraternidade. Existem rituais e rituais em nossa vida profissional e corporativa, por exemplo, promoções e festas de aposentadoria. De maneira mais geral, um rito de passagem pode marcar qualquer mudança de status, condição, posição social ou idade.

Todos os ritos de passagem têm três fases: separação, marginalidade, reagregação.

Fases dos ritos de passagem

Os ritos de passagem são frequentemente coletivos. Um grupo - como os  Khoisan realiza os rituais como uma unidade. Essas pessoas em transição experimentam o mesmo tratamento e condições e devem agir da mesma maneira. Eles desenvolvem a communitas, um intenso espírito de comunidade e um sentimento de grande solidariedade social ou fraternidade.

O controle social

A religião faz sentido para as pessoas: ajuda homens e mulheres a lidar com adversidades e tragédias e oferece esperança de que as coisas vão melhorar. A vida pode ser transformada por meio de cura espiritual ou renascimento, pecadores podem se arrepender e ser salvos ou podem pecar e ser condenados. Se os fiéis realmente interiorizam um sistema de punições e recompensas religiosas, a religião se tornará um meio poderoso de controle sobre suas crenças, comportamentos. É  e o que se ensina às crianças.

Muitas pessoas se envolvem em actividades religiosas porque parecem funcionar: aqueles que oram obtêm respostas, os curandeiros curam; às vezes, não leva muito tempo para convencer o crente de que as ações religiosas são eficazes. Muitos índios americanos no sudoeste de Oklahoma contam com curandeiros, gastando uma fortuna, não apenas para se sentir melhor em relação às incertezas, mas porque vêem que funciona. Massas de angolanos visitam Muxima todos os anos. Nossa Senhora das Vitórias, em Massangano, e fazem votos de retribuir à “Mamã  V’itória” caso fiquem curadas. Para demonstrar que os votos funcionam, e são cumpridos, existem milhares de ex-votos, corações de prata, quadros que representam momentos significativos da vida de quem recebeu a graça, que adornam a igreja junto com fotos das pessoas que foram tratadas.

A religião pode funcionar penetrando nas pessoas e mobilizando suas emoções: alegria, raiva e honestidade. Vimos como o conhecido sociólogo francês Émile Durkheim (1912/1963) descreveu a 'exuberância' coletiva que pode se desenvolver em contextos religiosos. Uma emoção intensa irrompe, as pessoas compartilham um profundo sentimento de alegria, significado, experiência, comunhão, pertença e envolvimento com sua religião.

O poder da religião influencia as ações. Quando as religiões se encontram, elas podem coexistir pacificamente ou suas diferenças podem ser a base para hostilidade, desarmonia e até mesmo confronto. O fervor religioso inspirou cruzadas cristãs contra os infiéis e levou os muçulmanos a travar guerras santas contra as populações não islâmicas. Ao longo da história, os líderes políticos usaram a religião para promover e justificar seus objetivos e políticas.

No final de setembro de 1996, o movimento Talibã impôs uma forma extrema de controle social em nome da religião ao Afeganistão e sua população. Liderado por clérigos muçulmanos, o Talibã tentou criar sua própria versão de uma sociedade islâmica baseada no ensino do Alcorão (Burns, 1997). Várias medidas repressivas foram instituídas. O Talibã excluiu mulheres do trabalho e meninas da escola; depois da puberdade, as mulheres eram proibidas de falar com homens que não fossem parentes e deveriam ter um motivo válido e aprovado, como comprar comida, para sair de casa. Até mesmo os homens, que tiveram que deixar crescer uma barba espessa

 

RELIGIÃO, CIÊNCIA E EVOLUÇÃO INTELIGENTE

 

Muitos aspectos do mundo natural que antes eram explicados pela ideologia religiosa são agora explicados por meio da ciência. No século XVII, dominava o sistema tolemaico, baseando-se sobre a Bíblia a Igreja insistia que a terra estava no centro do sistema solar e perseguiu Galileu a causa da sua pesquisa científica, porque demonstrou que a conclusão anterior de Copérnico estava correcta: que o sol, não a terra, estava no centro do nosso sistema solar. Apesar das evidências conclusivas que apoiavam essa visão científica do sistema solar, a Igreja levou centenas de anos para aceitar oficialmente esta explicação científica. Para muitas pessoas, a distinção entre sistemas religiosos e científicos de conhecimento e explicação não é facilmente aparente. Respostas recentes ao ensino da teoria da evolução nas escolas públicas são um exemplo dos debates contemporâneos sobre conflitos entre religiões.

Criacionismo

E explicação científica dada em base ao livro de Gênesis, no Antigo Testamento, confirmou a crença judaico-cristã que afirma que Deus criou o universo, a terra, os seres humanos e todas as espécies de vida na terra. O clérigo do século XVII, bispo Ussher, estabeleceu para os cristãos que a criação ocorreu no ano 4004 aC. Até o final do século XIX, essa era a crença aceite sobre a criação no mundo ocidental. Em meados do século XIX, Darwin propôs a teoria da evolução das espécies com base em evidências empíricas de anatomia comparada, geologia, botânica e paleontologia. Esta teoria científica propôs uma explicação alternativa para o desenvolvimento de todas as espécies do mundo e a aparência da vida humana. Por um tempo, explicações religiosas e científicas da criação competiram entre si. Hoje, muitas pessoas aceitam a teoria académica e científica da evolução. No entanto, numa pesquisa efectuada em 2002 aproximadamente metade  expressou a crença na abordagem criacionista das origens humanas, amplamente generalizada como a crença de que cada uma das espécies na terra foi criada e colocada aqui por Deus como é explicitado no livro da Gênesis. Na realidade, existem várias versões dos sistemas de crenças criacionistas, entre elas o geocentrismo, o criacionismo e o criacionismo progressivo, o uniformado os quais hipotizam modelos de espécies e diversidade geológica baseados em interpretações diferentes baseadas  nas fontes bíblicas e científicas (Scott 1999). Os criacionistas dos Estados Unidos desafiaram o ensino exclusivo da evolução científica darwiniana nas escolas públicas, e argumentaram, em tribunais, conselhos escolares e legislaturas estaduais, que tanto o criacionismo quanto a ciência evolucionista deveriam ser ensinados aos alunos das escolas públicas como teorias alternativas para as origens da vida na Terra. No início dos anos 80, as legislaturas aprovaram leis dizendo que, quando a ciência da evolução era ensinada nas escolas públicas, o criacionismo também precisava ser ensinado como uma teoria alternativa com o argumento de que a resposta inteligente à questão das origens do homem não é somente a ciência e não se pode desvincula-la de seus antecedentes criacionistas e, portanto, religiosos. Para aqueles que aceitam a teoria da evolução de Darwin, a religião não deixou de ser importante. No entanto, essas decisões judiciais estabeleceram que as teorias do criacionismo e da evolução inteligente são paradigmas religiosos que não podem ser usados para explicar como os humanos passaram a existir na Terra nas salas de aula de escolas públicas.

 Bibliografia

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Segalen, Martine. 2002. Riti e rituali contemporanei. Bologna: Il Mulino.

 

 

13ª Lição 26 de Março 2024: Antropologia da religião tradicional africana

 

ÀS RELIGIÕES TRADICIONAIS  E  OS VALORES UNIVERSAIS DO PENSAMENTO AFRICANO

 

 

INTRODUÇÃO

 

Antes de entrarmos nas questões desta lição, parece-nos importante colocarmo-nos primeiro a questão de saber a que África nos referimos aqui? E se se pode falar de religião(ões) nessa África?

Depois, porquê caracterizá-la(s) como tradicional(is)? Finalmente, é óbvio colocar a terceira questão: porque é que ainda hoje é importante estudá-la(s)?

Delimitação espacial

A primeira questão pode ser respondida dizendo que a África de que estamos a falar é a chamada África subsariana (ou seja, a zona central entre o deserto do Sara e a África do Sul), devido à sua suposta e defendida unidade cultural por dois pioneiros

 Cheikh Anta Diop e Théophile Obenga . Falando de religião ou religiões, até agora os africanos e os próprios africanistas não estão de acordo nas suas respostas. Recentemente, tem havido um debate sobre o nome da religião, se é singular ou plural.

 E. B. Idowu    representa aqueles que querem o uso do singular, enquanto J. S. Mbiti é para o plural. Ambos os campos têm argumentos fortes e válidos.

 

Termos e conceitos

Mas antes de dar a resposta, é necessário definir: O que é, afinal, uma religião? As definições abundam e as próprias etimologias divergem, consoante, com Cícero, derivemos religio de relegere ("recolher", "cumprir escrupulosamente", por exemplo, os ritos) ou, com Lactâncio, voltemos a religare ("ligar", no caso do homem aos poderes do outro mundo).

De facto, se definirmos isto como uma relação com Deus, ou com o Divino, ou com uma Transcendência absoluta, podemos no máximo afirmar que o culto dos antepassados nada tem de religioso, mas que é um conjunto de práticas puramente sociais e familiares. Por outro lado, se virmos na religião uma relação com o "sagrado", com o "numineux" (no mundo latino, a raiz div- da qual Deus- que é o correspondente do grego (θεός- e igualmente a palavra numen, nume, têm sempre uma conotação e um uso pessoal), com um "outro mundo" e "invisível", com uma transcendência que só pode ser relativa, estamos em pleno modo "religioso". Eis o que C. Riviere:

«Para os viajantes, ao longo dos séculos de exploração do mundo, a religião foi entendida como o conjunto de cultos e crenças, de atitudes mentais e gestuais, devocionais e orientadas por concepções de uma vida após a morte. Para o estranho a um sistema, é primeiro pela sua expressão que as religiões se distinguem, isto é, pelo seu culto, conjunto de condutas altamente simbólicas para a comunidade e conjunto de relações que unem o homem a uma realidade que ele considera superior e transcendente. Mas não deixa de estar lá, uma forma aproximada de falar, mal indicando a incessante procura humana de um inacessível que só é objetivado pela fé» (Rivière , 2008, p. 26).

 

Para os defensores da religião no plural, um dos argumentos é o seguinte: fala-se de"religiões tradicionais" quando se quer sublinhar o que é específico de cada área ou terra, ou seja, porque é que África é um continente tão vasto, multiétnico e multicultural. O que se vive no Senegal, enquanto práticas religiosas, é diferente do que se vive em Moçambique ou mesmo no Congo-Brazzaville. Por outro lado, para aqueles que defendem o conceito de religião no singular, falar-se-ia de"religião tradicional", quando se pensa em realçar o seu denominador comum, o "núcleo ético-mítico".

 

«(este denominador comum articula-se essencialmente em torno do conjunto fundamental de crenças ou visões do africano sobre o mundo invisível, o cosmos, o homem nas suas relações com o mundo invisível, a vida e a morte, ou seja, o que ele tem de realizar na terra e o que pode esperar)» (Idohu, 1973, p. 105).

que está subjacente a todas elas e que se pode opor aos fundamentos das religiões com pretensões universalistas: cristianismo, islamismo, budismo, etc. Isto porque o universo africano é um só. O célebre historiador africano Cheikh Anta Diop afirma que a divisão de África em duas só remonta a cerca de 7000 a.C., quando se deu a desertificação do Sara. Além disso, diz que os negros constituem a maioria do continente e que, apesar da sua diversidade, têm traços do gémeo (Diop , 2014, pag. 61).

Ao propor a noção de tradição no sentido de transmissão, evita-se qualquer arqueologismo, porque se trata de processos eminentemente vivos, chamados a adaptar-se aos desafios de cada época. De facto, a tradição é, antes de mais, para os africanos, a experiência do agrupamento humano. Constitui a soma total das aquisições que as gerações sucessivas acumularam desde o início dos tempos, nos domínios do espírito e da vida prática. É a soma total da sabedoria detida por uma sociedade num dado momento da sua existência. E se admitirmos que o grupo dos antepassados não forma uma comunidade fechada, mas se apresenta como uma assembleia em constante crescimento e evolução, a força é reconhecer que a tradição também não tem nada de estático. (D. Zahan , Religion, 1974, p.80) Tradicional não significa aqui "passado", "velho", "ultrapassado" (anti-moderno), "congelado", "imutável": se existe uma referência essencial a uma herança do passado, isso não exclui uma reestruturação constante de acordo com as relações e as circunstâncias da história Uma vez que a religião africana é contemporânea do homem africano moderno, ela"constitui um lugar privilegiado, um elemento real e central da cultura africana"[9]. Na sua carta aos Presidentes das Conferências Episcopais da Ásia, América e Oceânia sobre a "Atenção Pastoral às Religiões Tradicionais", o Cardeal Francis Arinze explicou o termo "Religiões Tradicionais" com estas palavras:

«Por religiões tradicionais entendem-se aquelas religiões que, ao contrário das religiões mundiais que se difundiram em muitos países e culturas, permaneceram dentro do seu próprio contexto sócio-cultural. A palavra 'tradicional' não se refere a algo estático ou imutável, mas refere-se a esta matriz localizada. Não existe consenso quanto a um termo único a utilizar para designar estas religiões. Alguns dos nomes (por exemplo, paganismo, fetichismo) têm um significado negativo e, para além disso, não descrevem verdadeiramente o seu conteúdo. [Enquanto em África estas religiões são geralmente designadas por "Religião Tradicional Africana", na Ásia são designadas por "Religiões Populares", na América por "Religiões Nativas e Religiões Afro-Americanas" e na Oceânia por "Religiões Indígenas”» (Osservatore Romano).

Metodologia

Ao estudar esta religião tradicional, qualquer investigador depara-se com estas duas dificuldades metodológicas:

1. o campo religioso tradicional africano (Bourdieu ), objeto do nosso estudo, apresenta a qualquer estudioso que o aborde uma grande complexidade que advém da diversidade do próprio facto religioso, das abordagens teóricas que o rodeiam e o tentam explicar, e do vasto espaço social (diferentes grupos étnicos e sua interação com ambientes físicos específicos) onde se explica e dos interesses históricos e culturais em jogo que suscita.

2) A importância do ambiente físico na religião tradicional africana não deve, no entanto, ser minimizada e constitui a segunda dificuldade metodológica. A religião africana é mais experimental do que filosófica. O seu vocabulário teológico é retirado da vida vivida num determinado contexto geográfico. As florestas, os lagos, as rochas, as montanhas assumem uma importância mística. Eles e a sua flora e fauna não são meras imagens pictóricas de valor e experiência religiosa, mas são considerados como verdadeiras ligações à realidade invisível. Todas estas coisas são os componentes de um universo orgânico. Um sistema que funciona em estreito contacto com a geografia de um determinado território.

 

Enquadramento antropológico

Por conseguinte, o estudioso da religião tradicional africana com estes elementos de base:

mitos,

rituais

leis

deve familiarizar-se com os nomes e os hábitos das aves, dos animais e dos insectos, com as utilizações dos arbustos, das plantas e das árvores, e com os ciclos do clima e da agricultura. Sem este conhecimento, é impossível compreender o significado dos cantos, das fórmulas rituais, dos próprios rituais, ou mesmo da visão do homem. A complexidade do simbolismo é extrema, por exemplo na caça e imolação das vítimas sacrificiais, no seu desmembramento, cozedura e consumo ritual pelos fiéis [De Heusch , 1985]. O estudo desta religião exige uma grande atenção a todos estes pormenores para compreender as suas instituições.

História dos estudos

Apesar da diversidade das expressões religiosas das diferentes tribos da África negra, um facto é certo: esta diversidade não altera a unidade da África negra. Este facto é demonstrado pela investigação de eminentes académicos como: Cheikh Anta Diop , V. Mulago, J. Mbiti , E. Mveng, A.T. Sanon, Bimwenyi, L.-V. Thomas, J. Jahn, G. Guthrie, Hampate Ba , D. Zahan , etc. Por conseguinte, o nosso esforço não será o de vos apresentar um mosaico de visões do mundo, de Deus e do homem, mas sim uma visão holistica.

Para compreender mais profundamente a religião de um povo, é necessário situá-la no contexto da visão geral do mundo que ele tem e que pode determinar profundamente. É o que constatam as recentes escolas fenomenológicas e históricas, por exemplo, a escola francesa inspirada por Marcel Griaule e os seus discípulos, e outros africanistas bem conhecidos como Louis Vincent Thomas e Dominique Zahan, com académicos de várias disciplinas. Peter Berger , sociólogo, sublinhou a importância da relação entre o "cosmos em geral" ou a mundividência ordenada e o "cosmos sagrado" em cada cultura.

Estas dificuldades metodológicas acima mencionadas são uma das razões que explicam a dificuldade que um estrangeiro que se aproxima pela primeira vez de uma terra negro-africana encontra para compreender o seu campo religioso tradicional, e explica também esta reação que, na época das grandes explorações, alguns acharam por bem afirmar que os povos que visitavam não mostravam vestígios ou preocupações de crenças religiosas [Basil Davidson , 1997]. Os estrangeiros, exploradores ou missionários, no primeiro contacto com os africanos, quando não negavam a existência de qualquer manifestação religiosa, minimizavam-na ou ridicularizavam-na. Três exemplos ajudam a compreender como é difícil julgar uma religião a partir do exterior.

Sir Samuel Baker, no regresso de uma viagem à região do Alto Nilo, em 1866, afirmou:

«nenhuma das raças da bacia do Nilo, sem exceção, possui a crença num ser supremo, nem qualquer forma de culto idolátrico; a escuridão do seu espírito não é sequer iluminada por um raio de superstição. O seu espírito é tão estagnado como os pântanos que aterram o seu mundo estreito»[Baker , 2020].

Para Richard Burton,

«a religião dos africanos é sempre interessante para aqueles que possuem uma fé mais elaborada, da mesma forma que observar as crianças é um prazer para os homens maduros» [Burton].

É significativa a impressão de um missionário sobre as festividades de iniciação numa aldeia da África Ocidental:

 

«Poucos dias depois da nossa chegada, teve lugar na aldeia uma grande festa pagã: era a receção triunfal dos jovens iniciados após sete meses de prisão. Desfilaram perante uma multidão delirante, em duas alas, desfilando com as suas insígnias, os seus torsos marcados pelas linhas elegantes das riscas que permanecerão com eles como a marca indelével das garras do demónio a que se dedicaram. Os feiticeiros mascarados, personificação deste demónio, vêm frequentemente à noite para realizar cerimónias com os seus protegidos, acompanhadas de música infernal. Em suma, é uma verdadeira orgia de feitiçaria: o demónio quer provar-nos que reina supremo e que não nos será fácil».

Porquê estas afirmações? Ao contrário das religiões monoteístas históricas abraâmicas, como o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, onde se podem facilmente traçar os objectivos, as características e as modalidades do encontro com Deus, tal como foram estabelecidos por um ou outro fundador, para as religiões tradicionais sem fundadores, a maioria das quais não dispõe de estruturas cúlticas claras e estáveis nem de livros sagrados, é difícil destacar aspectos doutrinais e determinar conteúdos.

Há na experiência religiosa uma profundidade que não é redutível ao "baixo" do positivismo psicanalítico freudiano, nem ao puramente social: a religião manifesta uma profundidade psíquica, elevada e nobre, irredutível, e um envolvimento pessoal que vai muito para além do puro nível de socialização.

Estes exemplos citados anteriormente são hoje espantosos. Não esqueçamos que a mentalidade evoluiu muito. Estudos sérios realizados por etnólogos, antropólogos, historiadores das religiões, teólogos africanos e ocidentais levaram a um melhor conhecimento e compreensão do passado e do presente de África. Assim, no colóquio internacional realizado em Abidjan (Costa do Marfim) em 1961 sobre "Religiões Africanas", todos os participantes consideraram que a terminologia mais adequada para designar a experiência religiosa nas sociedades multiformes da África tradicional não é a de animismo, mas a de "Religião Tradicional Africana" como uma religião autêntica, porque "implicam a ideia de um Deus pessoal e a ideia de mediação entre o homem e os diferentes seres. A vida faz com que a unidade destas religiões se situe num todo que forma uma civilização rica em elementos positivos ou valores do humanismo em diferentes domínios”[Thomas , 1983, pp. 302-303].

Para concluir, é preciso dizer que cada religião, como a africana, possui um pensamento filosófico-metafísico teológico, antropológico e cosmológico, em parte implícito e em parte explícito. Os vários campos do espírito são, no entanto, separáveis apenas até ao ponto em que a estrutura da religião em questão é afetada; mas isto ficará mais claro mais tarde.

Características da pesquisa

Para fazer um levantamento do pensamento religioso africano, parecem estar disponíveis atualmente investigações relativas, nomeadamente, aos seguintes aspectos

Ou seja, para nós, a essência da espiritualidade africana consiste no sentimento do ser humano de se considerar simultaneamente imagem, modelo e parte integrante do mundo, na vida cíclica da qual se sente profunda e necessariamente implicado (engagé)". No final do volume, conclui que «o africano, considerado como indivíduo, é profundamente místico... aspira... a uma espécie de intimidade e de união com o Invisível», construída mais sobre o amor do que sobre "uma espécie de aliança baseada na confiança e no abandono". Geoffrey Parrinder também relaciona a unidade da religião africana com uma particular «atitude do homem em relação ao Invisível» e Thomas diz ainda:

«na África negra, sem ser tudo, a religião penetra tudo e o Negro pode ser definido como o ser incuravelmente religioso: tradicionalmente, de facto, ele vive em estreita comunicação com o Invisível e o sagrado» e conclui que, mesmo que a ancestralidade ceda ao Islão e ao Cristianismo, o ateísmo «não tem qualquer hipótese de sucesso» (Louis.Vincent , 1985).

Pergunta de partida

Que tipo de sistemas são as religiões? Uma primeira resposta espontânea poderia ser que elas são 'sistemas de crenças'. Quaisquer que sejam os fundamentos sobre os quais se baseia uma visão religiosa específica do mundo, seja na concepção de uma ou mais divindades personalizadas, no reconhecimento de uma multiplicidade de espíritos e poderes da natureza, na veneração dos ancestrais da família ou do grupo descendente , na percepção de um poder '

Sistemas religiosos

'As concepções religiosas são expressas em símbolos, mitos, formas rituais e representações artísticas que formam sistemas gerais de orientação do pensamento e explicação do mundo, de valores ideais e modelos de referência.

Nesse sentido, um 'sistema de crenças' acaba se identificando com a dimensão ideológica da cultura como um todo, com o conhecimento das coisas que se acredita existir no mundo, suas propriedades e as regras subjacentes à sua ordenação e manipulação. A religião é a 'epistemologia' de uma sociedade, seu sistema particular de explicação do universo e seus componentes (Black 1973: 509). No entanto, o termo 'crença' envolve uma série de problemas, cuidadosamente analisados ​​e discutidos por Rodney Needham (1962), que tornam problemática sua aplicação na descrição e interpretação antropológicas. O conceito de 'crer', por exemplo, envolve uma implicação emocional mais ou menos precisa e uma adesão de fé ('eu acredito em' alguma coisa), uma conotação que na história das relações entre religião e sociedade em Africa teve e continua apesar de tantos anos de marxismo ateu, seu papel e sua importância, mas que é difícil transferir em contextos culturais completamente diferentes. Esse 'sentimento' ou emoção que estaria relacionado à noção de crença é na verdade uma concepção 'Esse' sentimento 'ou emoção que estaria relacionado à noção de crença é na verdade uma noção ilusória e empiricamente improvável (Needham 1962: 94). Além disso, da maneira como o termo 'crença' é geralmente usado, geralmente são outros que têm sistemas de crenças. 'É o' sistema de conhecimento 'de um povo exótico que o antropólogo descreve como crenças. Assim, ele relega todo o conhecimento no contexto da crença, de modo a incluir a idéia de um conhecimento que contradiz a sua idéia  (Black, 1973: 511). As crenças dos outros são reveladas como declarações sobre o mundo que não são apoiadas por evidências empíricas adequadas e, portanto, são compartilhadas pelos membros de um grupo social específico, mas não pelo observador: 'nós sabemos', mas 'eles acreditam'. No entanto, parece evidente que certas manifestações e critérios são perfeitamente ingénuos e inadequados para fornecer uma explicação teológica do mundo pois parece simplesmente baseada em fundamentos empíricos adequados ou não: apesar duma certa cientificidade que domina o panorama do estudioso, o ambiente sociocultural oferece outras lógicas e outros motivos sabiamente usados pelos operadores do campo religioso. Ma nesta sede é necessário ter parâmetros científicos para estabelecer o conhecimento científico que tenha valor epistemológico para fundar a antropologia da religião, enquanto todas as outras formas de explicação da realidade pertencem à categoria de 'crenças', incluindo também teorias científicas desatualizadas inclusive certas teorias completamente desatualizadas.

O âmbito da 'crença' é, portanto, identificado com um mundo onde cada membro cria o seu universo de significados pois sabe de pertencer a uma sociedade que ‘sabe’ ou 'conhece' ou «manipula» um universo de significados cujas estruturas significativas que o compõem são partilhadas e criam convicções, hábitos e formas éticas alem de próprias 'competências culturais', que entram dentro de um universo linguistico, pois cada Igreja cultiva sua própria linguagem. É nesta senda que se pode definir a religião como um 'sistema de conhecimento', o sistema religioso de facto constitui na sociedade actual angolana uma componente cultural de grande envergadura.  Sem duvida que a religião constitui um sistema dentro do mais amplo complexo cultural e social ao qual pertence: como tal, pode ser interpretada de acordo com duas interpretações diferentes. Por um lado, pode ser entendida como uma manifestação de estruturas profundas particulares que regulam e organizam a formação e a articulação da própria vida individual, doutro lado constitui um mundo onde a componente doutrinal, catequética, vigiada segundo parâmetro estabelecidos pela ortodoxia, revelam que de facto a componente sistemática gramatical da estrutura e pesa na abordagem do mundo religioso. Sem duvida é um sistema dentro de outro sistema, que se encaixa dentro das relações e instituições sociais (que evidentemente condicionam a política de um Estado). Esse último modelo é o desenvolvido pela escola de Durkheim e amplamente utilizado pelos antropólogos britânicos, mas também é a base da pesquisa de Georges Dumézil sobre ideologia e mitologia indo-européia; o primeiro, ao contrário, é um modelo de inspiração linguística aplicado por Lévi-Strauss em sua pesquisa sobre as mitologias dos povos indígenas das Américas, mas que encontra algumas semelhanças na análise de sistemas simbólicos empreendida pelo historiador das religiões Mircea Eliade . Ambas as perspectivas que destacamos têm o mérito de ter contribuído para o estudo dos fenómenos religiosos de um ponto de vista sistêmico, mas também mostram os limites de tal abordagem ao mesmo tempo: uma tendência à simplificação excessiva, para interpretar a dimensão sistêmica como compacta, rígido, homogêneo, estático e impermeável às mudanças e à fluidez da história.

Complexidade do sistema religioso

Os sistemas religiosos são complexos e apresentam uma composição múltipla e diferenciada, com inúmeras diferenças internas. Compartilhar e aderir a 'crenças' está longe de ser homogêneo e mecânico: todo sistema religioso contém espaços para incerteza, descrença, dúvida (Goody 1996) ou, pelo menos, indiferença, adesão puramente formal e superficial. A religião parte duma experiência de estado nativo onde o adepto é tocado por uma experiência total e portanto age e pensa segundo os moldes que a experiência religiosa totalizante lhe inspira: como Evans-Pritchard observou sobre a realização dos rituais de sacrifício entre os Nuer do Sudão, os o nível de atenção e o envolvimento emocional dos participantes variam enormemente de uma pessoa para outra; Pois algumas pessoas são sérias e outras levadas a participar em grupo, outras são distraídas, outras são indiferentes 'ou pelo menos devido à indiferença, adesão puramente formal e superficial. Muito depende dos problemas existenciais que pesam na condução da vida. Não é raro ver pessoas a chorar a frente das estatuas dos santos nas igrejas. A condução das atividades religiosas, da mesma forma, mostra uma ampla gama de reações e envolvimentos por parte dos crentes que delas participam. Cada religião, sobretudo em África, influencia e determina toda uma série de estruturas gerais que levam o crente a ordenar e interpretar a realidade, dentro de categorias religiosas que ordenam seu mundo, das quais o comportamento se move e que fundam as escolhas e as estratégias com as quais se imposta a vida. Uma religião, portanto, inclui uma 'visão de mundo', um 'sistema de crenças mais difundidas, especialmente as que são transmitidas pela tradição' (Smart 1986: 4), um conjunto de 'concepções gerais de existência' (C. Geertz 1966: 4), que fornece os quadros mais amplos para a interpretação da realidade e para dar sentido ao mundo e à vida humana.

Naturalmente, as formulações gerais sobre o mundo e a existência que as religiões fornecem permitem que os homens ajam na realidade e no mundo de acordo com orientações e estratégias determinadas. Como afirma, um 'provérbio kikongo:' Muna nzo yina ku lekanga ko kulendi zaya kima kitatikanga ko’. Na casa onde não dormiste não podes saber o que pica. A abordagem ao estudo moderno da religião consiste em ir ao encontro da alteridade religiosa sem preconceitos que afastam e não permitem de conhecer o outro (Smart 1986: 4). Para muitos autores, isso significa que devemos abandonar a dimensão abstrata demais e muitas vezes confundida com representações, sistemas de idéias e complexos simbólicos, para se voltar, sobretudo, à prática religiosa, aos modos concretos em que é realizada através de gestos, atividades, atitudes que definem um determinado modelo de interação social.

Prevalece a moral sobre a doutrina

A idéia não é nova, Robertson Smith já havia insistido na prevalência da dimensão ética e ritual da religião sobre seus aspectos doutrinários e teológicos . De facto a religião toma corpo com ideias não conceptuais e verbais mas se exprime essencialmente em práticas litúrgicas e em celebrações comunitárias que ultimamente enchem até os estádios de football. Quase todos os sábados a cidadela desportiva de Luanda se enche de fieis que participam a manifestações religiosas que não iriam caber nas igrejas.  Mais recentemente, essa abordagem foi re-proposta no estudo antropológico das religiões, principalmente devido à influência das reflexões de Pierre Bourdieu (1972) sobre a' teoria da prática ', como uma ferramenta para destacar as múltiplas interconexões entre religião e outros domínios. da vida social: economia, padrões de casamento, política, organização de grupos e território.  Portanto, a aquisição do trabalho de Pierre Bourdieu dos conceitos de 'campo religioso', de 'especialistas e operadores do sagrado', de 'bens sagrados' para definir crenças e práticas religiosas e aquelas em termos ocidentais definíveis 'Magica’, propõe uma nova dimensão interpretativa do fenômeno da crença religiosa.

Manifestações religiosas

Na prática, trata-se de um projeto muito amplo, no qual é necessário encontrar uma maneira que considere todos os sistemas econômicos, sociais, culturais e políticos que as populações africanas, incluindo os Bakongo, até agora adotaram, começando, de suas situações atuais, sem tentar importar os sistemas das democracias ocidentais para o campo angolano. Essa hipótese pode parecer uma quimera difícil de alcançar em um mundo globalizado. No entanto, apenas uma instância elaborada pelo contexto político-social africano poderá resolver o atual problema demográfico, cultural e religioso das populações angolanas. Uma prática religiosa específica pode influenciar a vida social de uma comunidade específica de várias maneiras, ou revelar a presença de divisões internas na sociedade, como no caso do consumo de alimentos (carne de porco) ou pela separação nas cerimonias entre homens e mulheres, ou na proibição de praticar transfusões de sangue nos Testemunhas de Geova. Além disso, a atenção à prática nos permite observar com mais precisão situações religiosas complexas e entrelaçadas, como no caso de Luanda: apesar da tentativa de ordenar por parte do Estado durante Angola continua sendo atravessada por múltiplas correntes religiosas e a idéia da exclusividade da verdade religiosa por uma única doutrina é substancialmente estranha ao pensamento angolano. A colocação da religião na vida pública e a definição de significado da religião continuam sendo tópicos de amplo debate. O que está claro é que em Angola as distinções entre uma tradição religiosa e outra são muitas vezes indistintas e que o angolano na prática religiosa frequentemente não se preocupa muito em cruzar a linha entre uma doutrina e outra, uma vez que o comportamento concreto não se define em termos de adesão exclusiva a uma tradição ou denominação religiosa. Há portanto um certo ecletismo que domina no campo religioso.

O conceito de incorporação

Com argumentos muito mais complexos e nem sempre fáceis de entender, Csordas (2004 ) utilizou o conceito de 'incorporação' para elaborar uma teoria sobre as origens do fenômeno religioso, inspirada nas reflexões do filósofo francês Jacques Derrida. A noção de incorporação, que se estabeleceu na antropologia graças às obras e reflexões de Thomas Csordas (1990; 1994), baseia-se no pressuposto de que a experiência do mundo do homem é filtrada pelo corpo, e as representações da realidade são formuladas a partir desta experiência primária.   E nas celebrações das diferentes igrejas a corporeidade triunfa, sobretudo nas expressões da dança. Desde os gestos mais simples, como sentar, andar, saudar, até os mais complexos, como o uso de paramentos, técnicas de trabalho, habilidades manuais, técnicas de meditação, maneiras de entrar em estado de xinguilamento ou alcançar no êxtase místico, os Akwakimbundu seguem modelos e programas elaborados pela sua cultura os Ovimbundu também, com base nessas culturas, constroem-se uma própria experiência do corpo e da realidade. 'A experiência da corporeidae é, por sua vez, a base de várias formas de representação do corpo humano, suas características e propriedades, seus componentes e suas funções. Segundo Csordas (2002), o pensamento religioso surge com base em um sentido fundamental da 'alteridade corpórea’. O sentido de alteridade nasce na própria experiência de incorporação, a partir do sentido do sobrenatural que se sente em relação a certos aspectos de si: nessas experiências, o corpo se torna ao mesmo tempo familiar e alheio, íntimo e alheio. A religião surge, assim, do processo de incorporação do sobrenatural, desse núcleo de ulterior alteridade no próprio eu '. 'Em alguns aspectos, até um pouco esticado; no entanto, enfatiza a importância dos fenômenos relacionados à prática e à maneira pela qual muitos aspectos da vida religiosa assumem as características de 'hábitos incorporados', virtudes e modalidades éticas e formas operativas na realidade que derivam de um tipo particular de condicionamento cultural.

Práticas religiosas

Como também apontado por Talal Asad (1993: 36), 'o discurso que está implicado nas práticas não é o mesmo que está envolvido em falar sobre as práticas. É uma idéia moderna que um praticante não pode saber viver religiosamente sem poder articular esse conhecimento. Sem viver não vale rezar, sem praticar aquilo que se escuta na Igreja a vida torna-se incoerente e farisaica. Existe uma dimensão da religião, portanto, que diz respeito ao aprendizado de regras práticas e métodos de conduta que são adquiridos não tanto por meio de instruções verbais e referências a doutrinas, mas por agir e interagir em um contexto de relações inter-individuais onde a comunidade sustenta, apoia e encoraja.

A dimensão ritual

Essas considerações são abordadas pela abordagem de atividades religiosas que privilegia a dimensão ritual como uma atividade 'performativa’, ou seja cria-se um modelo de acção que se torna procedimento estandardizado de viver e testemunhar. De acordo com essa perspectiva, os rituais são ações codificadas e repetitivas que revelam certo tipo de eficácia: tratar um feiticeiro, iniciar um catecúmeno, enterrar um falecido, criar ou fortalecer relações sociais, manter ou reverter a ordem da sociedade, comemorando acontecimentos e celebrando a memória histórica, propiciar divindades ou exorcizar demônios. Segundo Victor W. Turner, os antropólogos preferem evitar definições formais de religião e se concentrar no comportamento religioso: rituais e organização religiosa. Essa escolha pragmática nos permite focar a atenção não tanto nas raízes profundas nas quais a fé de um indivíduo ou de uma comunidade se baseia, mas no modo como essa fé é sustentada por formas simbólicas e dispositivos sociais '.

A expressão religiosa que se manifesta no ritual concentra sua atenção, mais como uma realidade simbólica que transforma a vida (performance) na plena gratuidade e não como um conjunto de habilidades, fruto de experiência e de estruturas cognitivas abstratas.

Como as teorias examinadas brevemente podem parecer interessantes e sugestivas, os limites e ambiguidades de uma abordagem baseada na prática devem ser enfatizados: de fato, por um lado, o campo do ritual, entendido de maneira relativamente ampla, vai além de seu próprio âmbito de fenômenos religiosos e pode ser aplicada a setores bastante distintos do universo social (football, política, família); por outro, o conceito de 'performance' usado por Turner (1987) e outros autores tem fenômenos muito diferentes: de cerimônias praticadas pelo nganga a shows com intenções puramente de entretenimento ou de teatralidade. De facto, o ritual não é simplesmente um tipo de ação que serve para 'fazer alguma coisa' mas é uma ação constituída por uma vasta gama de variações que dependem essencialmente do contexto e da função em que a prática litúrgica é operada. 'Se o objetivo da performance é realizar uma transformação, curar, apaziguar ou apelar para a alteridade transcendente (deuses, ancestrais, reis divinos etc.) - para obter 'resultados' - então as qualidades listadas sob a é mais provável que a 'eficácia' prevaleça e sejam absolutamente necessários os efeitos. Tudo se realiza dentro de um sistema de referências simbólicas, de valores, de interpretações da realidade e do mundo partilhadas, que fornecem, por exemplo, a presença de 'alteridade transcendente' e a possibilidade orar; sem essas referências, não seria possível dizer nada sobre os 'objetivos' ou 'funções' do ritual.

Sistemas complexos

Os sistemas religiosos devem, portanto, ser considerados complexos, incluindo pelo menos duas dimensões interconectadas: um sistema de práticas e atividades individuais e sociais conectadas a um sistema de referências e explicações simbólicas do mundo. Uma conclusão semelhante é oferecida por Clifford Geertz (1998), que argumenta que a religião, como um 'sistema cultural', é ao mesmo tempo composta de um conjunto de concepções sobre a ordem do mundo e um conjunto de 'estados'. de espírito e motivações »orientadas por ideais morais. Geertz condensa essa dupla conexão com os termos 'visão de mundo', isto é, as concepções e idéias sobre a forma como o universo é constituído, e de 'ethos', que são as inclinações comportamentais que estabelecem as formas pelas quais os homens e as mulheres devem agir em diferentes situações. Deve-se acrescentar que o sistema de significados e o sistema de práticas não são rígidos e homogêneos, mas são extremamente diversificados e mais ou menos flexíveis '. 'Isso está sujeito ao inevitável dinamismo imposto pela passagem do tempo que produz mudanças contínuas. Assim, se provavelmente em todos os sistemas religiosos é possível encontrar os dois casos extremos de práticas sem sentido (gestos estereotipados, hábitos passivamente seguidos, atitudes não refletidas) e de significados não relacionados às atividades diárias (especulações filosóficas e cosmológicas, teologias, ontologias), a maioria das atividades religiosas da humanidade consiste em um conjunto diversificado e diferentemente de práticas e significados associados a elas. O peso relativo de ambos os componentes depende naturalmente de um grande número de fatores. Antes de tudo, pode haver tendências culturais gerais que enfatizem mais o aspecto prático e empírico ou o especulativo das atividades religiosas: por exemplo, na área das planícies da América do Norte, os Comanches foram considerados desde os testemunhos mais antigos um povo de 'céticos'. , interessada essencialmente em eficácia e resultados empíricos (Gelo, 1993), enquanto os Lakota têm sido frequentemente chamados de sociedade particularmente predisposta à especulação teológica e filosófica (Wissler 1934: 110). Variações individuais devem então ser levadas em conta: há dois tipos de personalidade um 'homem prático' e outro 'pensador'. Em todas as sociedades existem maneiras profundamente diferentes pelas quais diferentes indivíduos abordam as práticas religiosas: o que para uma pessoa pode ser um momento solene e uma lembrança interior; para outra, pode ser experimentado como uma obrigação social irritante ou como um detalhe que não merecia atenção particular. Finalmente, as mudanças históricas contribuem para mudar a relação entre a dimensão prática e a dimensão especulativa do universo religioso, recorrendo a meios empíricos para obter certos resultados ou responder a certas necessidades, ou permitindo uma reflexão mais pacífica e exploração intelectual dos mistérios. existência.

Essas últimas considerações levam a desviar a atenção da relação entre práticas e significados, ou entre a visão de mundo e os modelos comportamentais, para a relação que surge entre a experiência individual, por um lado, e a tradição coletiva, por outro. Muitos autores enfatizaram que a dimensão religiosa não pode ser compreendida se a experiência do indivíduo religioso não for levada em consideração seriamente, na sua variabilidade, contradição, incongruência, ineficácia: o estudo do homem religioso, em muitos aspectos, significa tentar entender a alteridade religioso-cultural. Por outro lado, como a antropologia esclareceu suficientemente inúmeras obras, a dimensão religiosa não pode ser separada de sua imersão no tecido das relações e instituições sociais, de suas relações e conexões com toda a gama de atividades culturais, da política à economia, da arte à divisão por género, da vida sexual aos conflitos e violência.

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14ª Lição 2 de Abril 2024: Antropologia filosofica

 

A ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA: DEFINIÇÃO E OBJECTIVO

 

1. O que è a antropologia filosofica?

 

1.1 O termo antropologia (do grego Anqrçpo + logoj) designa o estudo do modo de vida humano através da observação positiva e da análise histórica das suas múltiplas caracterizações. O termo antropologia, no sentido de «doutrina do homem», passou a ter um uso filosófico específico na primeira metade do século XIX, com L. Feuerbach, na sequência da crítica da religião (Feuerbach 1997:17). . Foi também esta a origem da utilização do termo por K. Marx nos seus Manuscritos Económicos e Filosóficos de 1844 (Marx 2004:112). Já o termo «antropologia filosófica» é típico do século XX e remonta a M. Scheler, que sintetizou a sua conceção em O lugar do homem no cosmo (1927) (Scheler 2002 :23). Ela decorre do reconhecimento das disciplinas surgidas na segunda metade do século XIX, como a antropologia física enquanto ciência no seio da zoologia, da psicologia, da etnologia e da sociologia, e, ao mesmo tempo, da vontade de não renunciar a uma síntese e a uma reinterpretação dos conhecimentos fornecidos pelas novas ciências. No entanto, um tal desenvolvimento filosófico da antropologia não é universalmente aceite; o problema da antropologia como forma de "conhecimento" não é, de facto, fácil de formular. Devido à peculiaridade da sua questão (Quem é o homem? ), a antropologia filosófica não é verdadeiramente uma ciência nem uma espécie de metaciência. A sua tarefa não consiste em integrar os resultados da investigação científica sobre o homem, de modo a obter uma imagem «sintética » do mesmo.

«É por isso que na Antropologia encontramos o plano da sensorialidade e o da praxis, o plano semiótico-cognitivo dos estilos de pensamento e o plano ecológico do organismo, o plano da fenomenologia da vida corporal e o da antropologia cultural. Isto pode parecer demasiado, mas apenas se olharmos para os sentidos unilateralmente, ora como "janelas" cognitivas, ora como uma dimensão estético-emocional potenciada pela arte. O problema é propor uma visão de conjunto» (Russo 2008:122).

Esta síntese é, em princípio, impossível. Existem muitas antropologias regionais, e colocá-las todas num quadro global acabaria por colocá-las todas juntas, sem qualquer ligação entre si, ou por colocá-las logicamente juntas, mas deixando um grande número delas de fora. Onde é que uma síntese de elementos heterogéneos encontraria o princípio da sua própria unidade e ordem? Não se reduziria ela própria a uma antropologia particular no preciso momento em que encontrasse esse princípio? A antropologia filosófica também não pretende ser um conhecimento «sistemático», um sistema construído com base num único princípio - seja ele a alma, o espírito, o corpo ou outro - capaz de unir os inúmeros aspectos da existência humana .

«A reflexão crítica sobre o homem, como tema específico ou mesmo abrangente do conhecimento, é um facto da cultura "moderna" e, de uma forma diferente, da cultura "contemporânea". A antropologia cultural e filosófica moderna é a emergência crítica do interesse que pertence a toda a experiência do homem. O próprio termo "antropologia" começa a aparecer na modernidade como referência ao fenómeno empírico do homem. Nascem as chamadas "ciências humanas", que estudam o fenómeno do homem definindo-o segundo um perfil de investigação (biológico, etnológico, psicológico, sociológico, linguístico, estrutural, etc.)» (Brambilla 2009:18). 

 

Seja como for, a "reflexão" do homem sobre o homem, feita, por exemplo, por um Protágoras (1955:261) ou de um Sócrates, para não falar dos grandes pensadores gregos, testemunha, por um lado, que as raízes do problema antropológico, para além das discussões em torno da antropologia filosófica entendida como "ciência", remontam aos primórdios da nossa cultura ocidental; por outro lado, que a antropologia, enquanto discurso sobre o homem, é um campo específico já claramente delineado nas origens da nossa tradição cultural e acompanha, ainda que de formas mais ou menos reflectidas e muito diferentes, a história do pensamento que a caracteriza.

1.2 Podemos, portanto, chamar "antropologia filosófica" (ou filosofia do homem) a qualquer tentativa de assumir a problemática específica do homem. Tem por objetivo esclarecer, segundo uma reflexão filosófica metódica, a grande questão que o homem se coloca a si próprio: Quem sou eu? O que é que significa "ser homem"? A antropologia filosófica, por outras palavras, é a disciplina que toma o homem como objeto da sua investigação, com o objetivo de esclarecer e de alguma forma estabelecer o seu ser, ou seja, os aspectos fundamentais da sua essência ou natureza. Poderíamos também dizer que a antropologia filosófica estuda o homem do ponto de vista do homem, numa tentativa de elucidar e enunciar em que consiste o mistério desse ser a que Pascal chama um «monstro incompreensível». (Pascal, 1962: 181), partindo do facto de que todo o homem, mesmo antes de qualquer reflexão, já compreende de alguma forma, pelo menos implicitamente, o que é "ser homem": o homem é aquele que sempre se conheceu a si mesmo e de si mesmo de uma forma original e imediata, mas não sabe tudo isso de uma forma reflectida. O homem é, portanto, colocado numa ambiguidade fundamental - entre a compreensão de si e a compreensão de si - que determina a sua natureza. Esta ambiguidade é a própria condição de possibilidade do seu questionamento e torna a questão antropológica diferente de todas as outras: em vez de ser colocada pelo homem, a questão antropológica é imposta ao homem e, porque é imposta, é inescapável. Devido à peculiaridade da sua questão, a antropologia filosófica distingue-se fundamentalmente das várias ciências humanas. Com efeito, as ciências examinam o homem, antes de mais, como «objeto» (sem o confundir com as coisas). Estudam-no também de pontos de vista relativos e sectoriais: psicológico, biológico, fisiológico, político, económico, etc. A antropologia filosófica, ao contrário das outras disciplinas que levam o nome de "antropologia", estuda o homem como sujeito pessoal e na sua totalidade. Não se trata de descobrir ou fabricar uma definição exacta e definitiva do homem. «Definir» o homem seria, no fundo, situá-lo na totalidade dos seres e esclarecer o seu mistério a partir das diferentes esferas ou totalidades a que pertence (matéria, vida biológica, cultura, etc.). Neste sentido, é absolutamente problemático que o homem seja "definível": o seu mistério não pode ser plenamente apreendido através da análise da totalidade a que pertence.

 

1.3 A intenção geral que caracteriza a antropologia filosófica é suscetível de muitas abordagens, como o demonstra a história da reflexão humana neste domínio. Esquematicamente, talvez se possa reduzir as antropologias a duas abordagens diferentes. O primeiro tipo de antropologia centra-se no animal rationale. Considera o homem, antes de mais, como um ser que pertence ao mundo da matéria e da natureza e que dele emerge através da sua racionalidade. As antropologias deste tipo procuram compreender o homem a partir da vida biológica. Tomam as categorias do mundo natural e tentam utilizá-las para explicar não só as diferentes "camadas" do ser humano, mas também o seu mistério último. Esta abordagem, embora se baseie em realidades empíricas e concretas, também acessíveis ao estudo científico, tem o inconveniente de não conseguir apreender suficientemente o mistério da pessoa; arrisca-se a dividir o homem numa pirâmide de camadas sobrepostas, sem verdadeira unidade entre si. O segundo tipo de antropologia filosófica poderia ser chamado: antropologia do espírito encarnado. O homem é considerado, antes de mais, como um sujeito pessoal que se torna consciente de si no encontro com os outros e com o mundo da natureza. A reflexão sobre a condição fundamental do homem põe a descoberto as raízes corporais e encarnadas da existência:

«Uma legítima antropologia filosófica deve saber não só que existe uma raça humana, mas também povos, não só uma alma humana, mas também tipos e caracteres, não só uma vida humana, mas também idades de vida; só abarcando sistematicamente estas e as outras diferenças, só conhecendo as dinâmicas que regem no interior de cada particularidade e entre elas, e só mostrando constantemente a presença do uno no múltiplo, pode ter diante dos olhos a totalidade do homem» (Buber 1967:18).

 

As formas típicas de realização desta antropologia são a fenomenologia existencial, que surgiu como reação contra a unilateralidade do racionalismo e do empirismo e é polarizada pela ideia de «existência» ou de ser-no-mundo através de um corpo, e sobretudo o personalismo e a filosofia intersubjectiva ou filosofia dialógica. A encarnação não é vista em primeiro lugar como um estar com as coisas, mas como um estar com os outros homens no mundo, com uma abertura ao mistério transcendente do homem. Os dois tipos de antropologia têm as suas próprias possibilidades e limitações. Não se trata de duas antropologias que se excluem mutuamente, mas que se revelam complementares. A nossa opção, como veremos, é a favor da segunda abordagem, com uma ênfase particular na dimensão do «significado» ou do «sentido» da existência humana. O próprio problema antropológico mostra como a questão: Quem é o homem? é de facto inseparável da questão: Qual é o sentido da existência? O que é que se deve alcançar na existência? A própria natureza da existência humana é decisiva para o método a seguir na antropologia filosófica. Esta última pretende ser uma reflexão sobre o homem e a sua existência para, através dela, chegar não tanto a uma resposta à questão antropológica, mas antes a colocá-la na sua devida luz.

«"A esta autorreflexão, de que temos vindo a falar, tende sobretudo o homem que se sente só e que é também o mais capaz de o fazer, o homem, portanto, que, por causa do seu carácter ou do seu destino, ou de ambos ao mesmo tempo, se encontra só e com os seus próprios problemas, e que nesta solidão que lhe resta consegue confrontar-se consigo mesmo e descobrir no seu próprio eu o homem e nos seus próprios problemas os do homem» (Buber 1967:24).

Ou seja, é uma reflexão que não pretende estabelecer de uma vez por todas o que é o homem, mas iluminar, na medida do possível, essa realidade ambígua, complexa e contraditória que é a existência do homem. É uma reflexão sobretudo de ordem transcendental, no sentido kantiano do termo (Buber 1967:15-16), qque, no entanto, recorre à fenomenologia, no sentido husserliano, com o objetivo de apreender as condições de possibilidade. Ora, é evidente que uma reflexão que não pretende trazer à luz a constituição ontológica da essência do homem não é, por isso, efectuada sem uma ordem ou um ponto de partida. Este ponto de partida poderia ser os fenómenos de realização do homem sobre si mesmo, nos quais ele se experimenta e se compreende. Mas o fenómeno, como aquilo que se mostra, já é compreendido, porque se manifesta dentro de uma totalidade de sentido. Os «fenómenos», nos quais se realiza a auto-realização humana, são já em si mesmos fenómenos humanos, na medida em que se «transcendem» no seu próprio acontecer e, por isso, pressupõem uma condição de possibilidade, são fenómenos «marcados» pelo facto de neles se revelarem modos fundamentais constitutivos da existência humana: ser-para-a-morte (Heidegger)» (Heidegger, 2005:12), as «situações limites» (Jaspers, 1978: 458), a «comunicação interpessoal» ou ainda, o amor, o conhecimento, a liberdade, a cosciência ética ecc (Marcel , 1951: 49).

 

1.4 Acontece, porém, que não existe de facto um fenómeno humano privilegiado, porque existe uma multiplicidade de fenómenos, e se esse fenómeno surgir, não pode ser um ponto de partida, mas deve ser encontrado através da reflexão, dado que o fenómeno se apresenta como aquilo que se mostra, mas também como aquilo que se mostra «como fenómeno»:  (Buber 1967:39): a morte, por exemplo, não é algo que eu experimente como tal porque reflicto sobre ela, Certamente que não a experimento como tal porque reflicto sobre ela, quando muito o contrário, mas é igualmente verdade que experimento a morte como um «problema» enquanto ser capaz de reflexão».

«Tudo aqui é perspetiva, o que importa é a maneira como o homem olha para o seu fim, se terá a coragem de antecipar todo o ser da existência, que não se revela até à morte. Mas só se falarmos do comportamento do homem em relação ao seu ser, da sua atitude em relação a si mesmo, é que podemos limitar a morte ao ponto final; mas se nos referirmos ao ser objetivo, então a morte está presente no momento presente como uma força que luta com a força da vida; A situação do momento nesta luta determina toda a natureza do homem como Existência, isto é, como compreensão do ser em vista da morte, do homem como um ser que começa a morrer quando começa a viver e que não pode ter nem vida sem morte nem a força que o sustenta sem a força que o destrói e dissolve»  (Buber 1967:87-88).

 

Uma pré-compreensão do homem, como foi dito, já está sempre pressuposta como condição de qualquer explicação que compreenda o ser do homem. Mas a pré-compreensão do homem não pode ser apreendida concetualmente, porque precede sempre a apreensão concetual. Só o fenómeno pode ser concetualmente apreendido, mas isso só é possível na medida em que o fenómeno está subjacente a uma pré-compreensão não tematizada e, em última análise, não tematizável. Antes de iniciar a reflexão filosófica, o homem já viveu durante muito tempo e reflectiu sobre a sua própria existência. A filosofia não pode eliminar este conhecimento: para compreender a sua existência, não pode deixar de viver, amar, trabalhar, etc. Um ponto de partida menos exposto a este tipo de risco é talvez uma investigação histórica, que não se reduza a ser uma «História da Filosofia», mas que queira criar um "pano de fundo", um "horizonte" no qual se possam encontrar tanto o problema do homem como os conceitos ou instrumentos conceptuais com que este problema foi sendo definido ao longo dos milénios e através dos quais ainda hoje é possível colocar o problema do homem. Os próprios «fenómenos humanos» apresentam-se, em última análise, sempre dentro de um horizonte histórico específico, razão pela qual o mesmo fenómeno histórico se apresenta de forma diferente de cada vez.

«Podemos distinguir, na história do espírito humano, as épocas em que o homem tem uma casa e as épocas em que está ao ar livre, sem casa. No primeiro caso, o homem vive no mundo como na sua própria casa; no segundo, o mundo está a céu aberto e, por vezes, faltam-lhe até quatro estacas para montar uma tenda. No primeiro caso, o pensamento antropológico apresenta-se como uma parte do pensamento cosmológico; no segundo, o pensamento antropológico adquire profundidade e, com ela, independência» (Buber 1967:24-25).

Trata-se, portanto, de operar um processo de aplicação ou apropriação, ou seja, de refletir sobre o presente através da sua mediação com o passado. É por isso que o nosso método, a que chamámos reflexivo, também pode ser chamado «interpretativo» ou «hermenêutico», porque com base nele pretendemos fazer uma leitura da existência humana para apreender o seu significado fundamental. A quantidade e a variedade dos temas não permitem, em caso algum, a utilização de um único método. O procedimento terá, por vezes, consoante o assunto ou assuntos tratados, um carácter hermenêutico, fenomenológico, transcendental, etc., a par de uma investigação propriamente histórica. Muitas vezes, vários aspectos estarão presentes, quase se misturando, num único tratamento.

 

1.5 A compreensão do homem sobre si mesmo ao longo da sua história e o pensamento filosófico ocidental como ponto de partida para a nossa reflexão é o tema da segunda parte do curso. A terceira parte apresenta o nascimento e o desenvolvimento da antropologia filosófica no século XX, que considera a rutura com o instinto como o traço essencial do homem (M. Scheler, H. Plessner, 2006: 312, A. Gehlen, 1990: 159). A quarta parte evidencia as vantagens, mas também os limites, de uma tal antropologia, procurando a sua superação e fornecendo algumas indicações básicas úteis para um relançamento temático do discurso antropológico. A quinta parte retoma o desenvolvimento da antropologia ocidental, identificando o seu fio condutor na questão da relação entre espírito e corpo ou, em termos menos essenciais, entre razão e impulso. Isto conduzirá a uma reflexão sobre o "corpo", ou melhor, sobre a corporeidade, capaz de apreender a sua originalidade, pondo em evidência a ambivalência do fenómeno corporal e a relação corpo-pessoa. A sexta parte trata, finalmente, das dimensões fundamentais do ser humano - liberdade, temporalidade, sexualidade e morte - a partir da originalidade e do sentido do corpo humano no seu "estar em relação". O tema da morte, em particular, permitirá ver na ética a saída natural da antropologia.

 

2. A pergunta: quem é o homem? Não é uma pergunta como qualquer outra

 

2.1 Vimos como a antropologia filosófica assume a problemática que diz respeito especificamente ao homem e que se resume na pergunta que o homem faz a si próprio: «Quem é o homem? O que é que significa ser homem?» Agora uma pergunta tem sentido, caso contrário não é uma pergunta (Gevaert 1992:12).  Uma pergunta exprime um não-saber: faz-se uma pergunta porque não se sabe, mas a partir do momento em que se faz a pergunta, o seu objeto já está definido numa direção, caso contrário a pergunta não faria sentido. Assim, uma pergunta contém em si uma antecipação da resposta e implica, ao mesmo tempo, uma abertura a novas possibilidades. O não conhecimento, a direção do objeto, a antecipação e a abertura caracterizam assim a pergunta. Ela manifesta o não-saber e pressupõe o saber. O não-saber expresso pela pergunta é o seu aspeto negativo. A pergunta impõe-se quando algo negativo é vivido e a sua imposição diz respeito à sua inevitabilidade. A negatividade da experiência dá origem a um repensar de uma forma habitual de ver as coisas, e esse repensar só é possível dentro de um conhecimento prévio do objeto da pergunta.

 

2.2 Uma pergunta contém normalmente quatro elementos: 1) um sujeito (aquele que faz a pergunta: Quem?); 2) um objeto (o que é perguntado: O quê?); 3) um horizonte (dentro do qual o objeto é definido: Em que contexto?); 4) um destinatário (aquele a quem a pergunta é feita: A quem?). A pergunta: "Quem é o homem?" é uma pergunta diferente das outras, porque diz respeito propriamente àquele que a coloca. O que está em causa aqui não é outra coisa diferente do sujeito que questiona (o mundo físico, a realidade histórica, Deus, etc.), mas é o próprio homem: o homem é e problematiza-se a si próprio.  Os quatro elementos que constituem toda a pergunta constituem naturalmente também esta pergunta. No entanto, na pergunta (e apenas nesta pergunta): Quem é o homem? os quatro elementos - perguntador, procurado, horizonte, questionado - convergem de facto para um único elemento: o homem. De facto, em todas as outras perguntas, para além desta, o sujeito (questionador) é sempre um sujeito humano, mas não o homem. Quando, por exemplo, o biólogo pergunta, o sujeito da sua pergunta é o biólogo e, portanto, o objeto questionado é "outro" que não o sujeito questionador e o horizonte da pergunta é, consequentemente, o horizonte do objeto, não do sujeito. O biólogo não se interroga "a si próprio"; interroga-se como biólogo. Pelo contrário, o homem que faz a pergunta antropológica faz perguntas como homem. As disciplinas ou ciências humanas (por exemplo, a história ou a moral) também estão sujeitas ao que foi dito sobre qualquer outra questão que não a questão colocada pela antropologia filosófica. Pois é evidente que o objeto da pergunta do historiador são os acontecimentos humanos e o do moralista são os actos humanos, mas os acontecimentos humanos e os actos humanos ainda não são o homem. Assim, o homem é: o sujeito da pergunta: "Quem é o homem?", na medida em que é ele quem a faz; o objeto da pergunta, na medida em que se interroga a si próprio (não os seus actos ou acontecimentos de natureza biológica ou psíquica); o horizonte do objeto em virtude do qual a pergunta se torna possível (a sua existência); e, finalmente, o interrogado. Se é ele próprio que se interroga, o homem só pode interrogar-se a si próprio. Como se vê, a pergunta: «Quem é o homem?» é uma pergunta "radical", porque vai à raiz do seu objeto: o homem não só se interroga, mas interroga-se a si mesmo (o biólogo interroga-se, mas não se interroga a si mesmo): aí reside a peculiaridade da pergunta antropológica, que é, portanto, uma pergunta filosófica, na medida em que se refere ao próprio fundamento do «ser humano», à sua essência ou natureza, e não a um dos seus aspectos, por mais importante que seja.

 

 

2.3 Ao colocar-se, a pergunta: Quem é o homem? já oferece uma primeira resposta: o homem é aquele que pergunta. Pois só o homem, de todos os seres vivos, tem a prerrogativa de questionar. Ele está colocado na possibilidade (na medida em que se compreende de alguma forma mesmo antes de se interrogar) e na necessidade (na medida em que são sempre os acontecimentos «exteriores a ele» que o põem em causa) de se interrogar.   Mas o que é que leva o homem a refletir precisamente sobre si próprio? As raízes mais profundas da questão antropológica parecem encontrar-se não tanto na contemplação desapaixonada do homem sobre si mesmo, num conhecimento pelo conhecimento (embora este aspeto também esteja presente), mas antes no facto de o homem se sentir, como diz Heidegger, atirado para o mundo: ele encontra-se a viver contra a sua vontade e, apesar de tudo, quer viver (Heidegger, 2005, p. 34). Não foi tanto através da introspeção ou de um exame meticuloso e sistemático que se obtiveram as mais valiosas percepções da situação humana, mas sim através da surpresa e do choque de reveses dramáticos. A reflexão radical ocorre geralmente na onda da frustração, em momentos de crise e deceção, e só raramente após os sucessos e triunfos do homem. Perguntamo-nos quem somos para saber como devemos viver e qual é o sentido da vida, apesar do seu absurdo. Como já foi dito, a questão do homem deve ser abordada não só na sala de aula, mas também entre os prisioneiros dos campos de extermínio e em frente à nuvem de cogumelo de uma explosão nuclear. A questão: Quem é o homem? é uma questão especificamente humana, tal como os seus problemas vitais são especificamente humanos: liberdade, relações interpessoais, dor, morte, imortalidade, etc. Por outro lado, deve acrescentar-se que os acontecimentos "exteriores" ao homem, que o levam a interrogar-se, não são acontecimentos que lhe sejam estranhos. Já fazem parte do seu ser, já são eles próprios factos humanos (Fabietti 2010:26). A natureza da nossa investigação contrasta com outras investigações, porque, ao contrário de outros problemas, no problema do homem estamos pessoalmente envolvidos. Noutras análises, sujeito e objeto permanecem separados; pelo contrário, no que diz respeito ao conhecimento de mim mesmo, eu sou o que procuro conhecer, sujeito e objeto são um só. Não podemos refletir sobre a humanidade do homem e, ao mesmo tempo, mantermo-nos numa posição de total distanciamento, uma vez que ninguém pode ficar longe de si próprio.

«Antropologia é uma disciplina que exige Constância de observação, atenção, capacidade de estabelecer conexões entre coisas aparentemente não relacionadas e, acima de tudo, uma boa dose de desapego interessado» (Fabietti 2010:19)

A razão da dificuldade em conhecer e definir a natureza ou a essência do homem é que os modos de conhecimento humano referentes às coisas dotadas de qualidades "naturais", incluindo nós próprios na medida limitada em que representamos a espécie mais desenvolvida de vida orgânica, revelam-se inadequados quando perguntamos: "E quem somos nós? A razão para isto é que o ser humano nunca é puro ser: implica sempre significado, que é tão inerente à natureza humana como o espaço é às coisas. O interesse pelo sentido não é autoimposto pelo eu, é antes uma necessidade do seu ser. Para a mente que enfrenta a realidade, o problema mais importante é o ser, mas para a mente que enfrenta a questão antropológica, o problema crucial é o significado. O sentido e o ser não têm a mesma amplitude. A busca do homem pelo sentido do ser é uma busca pelo que o transcende e expressa a insuficiência do mero ser. O sentido é uma categoria primária, não redutível ao ser enquanto tal: a existência não deriva o seu sentido do domínio do ser, porque o ser em si mesmo é menos do que o ser humano. O humano não é derivado do ser. A pergunta sobre o homem que requer uma resposta diz respeito ao seu significado, e é por isso que não perguntamos: "O que é o homem?", mas "Quem é o homem?". Como coisa, o homem é explicável; como pessoa, é mistério. Como coisa, é finito; como pessoa, é inesgotável. A pergunta: "Quem é o homem?" não diz respeito ao homem em termos da sua realidade factual, como um objeto no espaço; é antes a procura de um valor, de uma posição e de uma condição na ordem dos seres (Heschel 2001:53). Não se trata apenas de saber qual é a natureza da espécie humana, o que é um ser humano, porque o homem não é apenas um ser de uma determinada espécie; trata-se também, e sobretudo, de saber o que é ser humano no ser humano, o que é ser humano, e esta questão baseia-se na premissa de que a categoria do humano não é simplesmente derivada da categoria do ser. O atributo "humano" no termo "ser humano" não é uma qualidade acidental acrescentada à essência do ser, é antes essa mesma essência. O homem não é um ser que também é humano: o homem ou é humano ou não é.

 

2.4 Se é verdade que o sujeito e o objeto da questão antropológica é o homem, então há que colocar a questão: quem é o homem que pergunta e de que homem estamos a falar? Aqui não se trata de saber "o que" é o homem, mas "quem" é o sujeito da pergunta e "quem" é o objeto da pergunta. Na verdade, é sempre o homem entendido como este homem que faz a pergunta antropológica: é sempre Pedro (ou Paulo ou João...) que se interroga ("Quem sou eu?"). Mas, desta forma, a pergunta antropológica não é uma pergunta sem resposta, pois cada resposta é sempre a resposta deste homem, que não será necessariamente a mesma resposta de outro? A pergunta feita por este homem (Pedro, Paulo, João...) nunca é realmente sobre este homem, mas sempre sobre o homem, sobre o homem enquanto tal, mesmo quando este homem reflecte sobre si próprio. No próprio facto de se colocar, a pergunta ultrapassa o eu próprio (o eu empírico) de quem a coloca, porque só assim a pergunta deste homem sobre si próprio é uma verdadeira pergunta e tem uma resposta. A pergunta: "Quem sou eu?" significa, em última análise: Qual é a minha essência (ou natureza)? Quem sou eu, para além da minha situação concreta? Qual é o significado da dor, para além da minha dor?  Ora, a essência não é um dado empírico, mas diz respeito ao universal. Pedro, que reflecte sobre si próprio, «transcende-se» a si próprio pela própria razão de fazer a pergunta. O objeto da pergunta deste homem (sujeito) é, portanto, sempre o homem. Mas um homem que reflecte sobre o homem não é, em relação a este último, «outro» homem (não é Pedro que reflecte sobre Paulo), mas é ele próprio o homem (sujeito) que se compreende a si próprio através da reflexão deste homem. Sujeito e objeto da questão antropológica, como dissemos, são a mesma coisa. Mas isto significa também que a essência do homem não é de modo algum algo abstrato, sobre o qual este homem reflecte impessoalmente, porque é ainda este homem que se interroga. Pelo contrário, significa que a essência do homem é também a essência deste homem: «Cada homem traz em si toda a forma da condição humana » escreve Montaigne (Montaigne 2012:1487). De facto, a essência implica a existência, mas a existência é sempre e apenas a existência deste homem: Pedro existe, Paulo existe... Não é possível concetualizar a existência. A «irredutibilidade» da existência e a «universalidade» da essência, na sua relação dialética, constituem a realidade pessoal do ser humano (Marcel 2011:109).

 

 Bibliografia

Pico della Mirandola, G., (2014), Discorso sulla dignità dell’uomo,  Milano, Ugo Guanda.

Feuerbach, L. (1997). L’Essenza del Cristianismo. Laterza: Bari.

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Gevaert, J. (1992). Il problema dell’uomo. Antropologia filosofica. Torino: Elle di ci.

Russo, M. (2008). Posfazione. In Plessner H., Antropologia dei sensi (pp. 103–121). Milano: Raffaello Cortina.

Brambilla, F. G. (2009). Antropologia teologica. Brescia: Queriniana.

Protagora. (1955). Le testimonianze e i frammenti. (A. Capizzi, Ed.). Firenze: Sansoni.

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Jaspers, K. (1978). Filosofia. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinese.

Marcel, G. (1951). Homo Viator. Introduction to a Metaphisic of Hope. Chicago: Henry Regnery Company.

Plessner, H. (2006). I gradi dell’organico e l’uomo. Torino: Bollati Boringhieri.

Gehlen, A. (1990). Antropologia filosofica e teoria dell’azione. Napoli: Guida.

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Fabietti, U. (2010). Elementi di antropologia culturale. Milano: Mondadori.

Heschel, A. J. (2001). L’uomo non è solo. Milano: Mondadori.

Montaigne de, M. (2012). Saggi. Milano: Bompiani.

Marcel, G. (2011). Presenza e immortalità. Milano: Bompiani.

 

15ª Lição 9 de Abril 2024: Inteligência artificial

 

A inteligência artificial

 

Numa noite de outono de 1998, na Aula Magna da Universidade de Milão, Carlo Maria Martini apresentou com entusiasmo o tema da décima Cátedra dos Não Crentes, intitulada "Horizontes e Limites da Ciência". Martini exprimiu o seu desejo de ouvir as pessoas envolvidas de várias formas na atividade científica sobre a forma como vivem as fronteiras do seu conhecimento. Procurava uma reflexão sobre os limites da ciência, um testemunho sobre o saber no limite do não saber e sobre o crer no limite do não crer. A nova edição da Martini Lecture Bicocca quer apanhar o eco dessa trepidação. Luciano Floridi , uma das vozes mais autorizadas da filosofia contemporânea, e Federico Cabitza, um dos maiores especialistas em inteligência artificial, ajudam-nos a perscrutar um horizonte que parece não ter limites, mas perante o qual nos sentimos perdidos. Ao mesmo tempo que se celebram os "magníficos destinos e progressivos" da inteligência artificial, torna-se premente uma questão: contribuirá para a construção de uma nova humanidade ou para um ecossistema em que o homem ficará à margem?

Marshall McLuhan

Desde o seu aparecimento junto do grande público, nos anos 60, as obras de McLuhan deram origem a mal-entendidos e banalizações. A própria forma de escrita - brilhante e apodítica, paradoxal e provocadora - permitiu que as análises do autor fossem condensadas em algumas frases de efeito. O

que, mais do que entre os sociólogos ou os críticos literários, se situa atualmente entre os "historiadores da civilização", como Toynbee e Riesman, Mumford e Gordon Childe, Snow e Innis, este último um mestre reconhecido de McLuhan.

Um elemento essencial da nossa civilização é, para McLuhan, os media, os meios de comunicação de massas. E não só a imprensa, a rádio, o cinema, a televisão, mas também a eletricidade, o vestuário, os automóveis, o dinheiro, os relógios, as armas, etc.; todos os meios de comunicação, isto é, que podem ser entendidos como "extensões" tecnológicas dos sentidos humanos.

McLuhan elaborou critérios originais para a compreensão destes "instrumentos de comunicação". Em particular, defendeu a necessidade de analisar a forma como cada um deles tende a organizar o seu eventual conteúdo, a impor condições particulares de fruição, a tornar-se uma metáfora de uma época e de uma sociedade. E, sobretudo, como sublinha Giovanni Cesareo na introdução desta nova edição da obra maior de McLuhan, ele soube compreender "a importância estrutural das relações de perceção e de troca no terreno do simbólico, a par da importância das relações de produção e de troca no terreno dos bens materiais".

de troca no terreno dos bens materiais". Mas também esta é uma direção de investigação que tem sido ignorada ou mal compreendida. É por isso que vale a pena reler McLuhan hoje.

Marshall McLuhan (Edmonton 1911 - Toronto 1980) é considerado um dos mais importantes estudiosos da comunicação. Entre suas obras, destacam-se: A Noiva Mecânica: O Folclore do Homem Industrial(1951), A Galáxia de Gutenberg; Nascimento do Homem Tipográfico(1962), Guerra e Paz na Aldeia Planetária(1968).

Ray Kurzweil

Está em curso um projeto grandioso, que envolve milhares de cientistas e técnicos, para compreender plenamente o melhor exemplo de um processo inteligente: o cérebro humano. É certamente o projeto mais importante da história da civilização homem-máquina. O objetivo do projeto é compreender exatamente como funciona o cérebro humano e depois utilizar os métodos descobertos para nos compreendermos melhor a nós próprios, para reparar o cérebro quando necessário e, particularmente relevante para o tema deste livro, para criar máquinas ainda mais inteligentes.

«Ray Kurzweil foi um dos primeiros a criar sistemas de inteligência artificial capazes de ler textos impressos em qualquer tipo de letra, sintetizar sons e compreender a fala. Estes sistemas foram os precursores da atual revolução da aprendizagem automática: computadores inteligentes que vencem os humanos no xadrez, ganham no Jeopardy! e conduzem automóveis. O seu novo livro é uma análise clara e convincente dos avanços (nomeadamente na aprendizagem) que tornam possível esta revolução nas tecnologias da inteligência. Oferece também ideias importantes para um futuro em que começaremos a resolver o que considero ser o maior problema da ciência e da tecnologia: como funciona o cérebro e como gera inteligência» (Kurzweil , 2015, p. 31).

Tomaso Poggio, neurocientista, diretor do Centro de Aprendizagem Biológica e Computacional do MIT. "O novo livro de Kurzweil sobre a mente é magnífico, chega na altura certa e tem uma argumentação sólida! É o melhor que ele já escreveu!"

Marvin Minsky, cientista, é cofundador do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT. como muitos lhe chamam, "pai da inteligência artificial”

A inteligência artificial, até há pouco tempo relegada para o imaginário da literatura e do cinema, entrou definitivamente nas nossas vidas. Neste ensaio já clássico, Jerry Kaplan, um dos maiores especialistas mundiais na matéria, guia-nos à descoberta de um campo de estudo que hoje, após cinquenta anos de esforços e milhares de milhões de dólares gastos, parece ter finalmente atingido todo o seu potencial. Os carros sem condutor, os robots ajudantes e os consultores financeiros automatizados podem proporcionar-nos riqueza e lazer, mas também representam uma verdadeira ameaça para nós. Não sabemos se o preço dos algoritmos cada vez mais avançados é a obsolescência humana. A mudança para a automatização do trabalho em múltiplos domínios pode ser brutal e prolongada, especialmente se não resolvermos atempadamente os principais problemas de um mercado de trabalho cada vez mais incerto e da crescente desigualdade de rendimentos. Kaplan, com The People We Don't Need , propõe soluções políticas e de mercado livre que nos podem ajudar a evitar um longo período de turbulência social, mostrando as oportunidades e os riscos da inteligência artificial de uma forma simultaneamente acessível e abrangente.

Jerri Kaplan

Dentro de pouco tempo, a inteligência artificial terá um impacto nas nossas vidas equivalente ao da revolução industrial ou ao do nascimento da Internet. As máquinas superinteligentes, capazes de aprender e de se aperfeiçoar sozinhas, poderão produzir uma enorme riqueza e crescimento nos próximos anos, correndo o risco de expulsar os seres humanos do mercado de trabalho. Mas o impacto destas novas tecnologias na sociedade não se limitará à economia: serão os sistemas capazes de mostrar (e sentir?) emoções capazes de nos ajudar e confortar, ou apenas nos afastarão dos nossos semelhantes? Neste livro, Jerry Kaplan, um dos maiores especialistas mundiais na matéria, guia-nos através dos múltiplos aspectos tecnológicos, económicos e sociais da inteligência artificial, decompondo os conceitos de robô, aprendizagem automática e trabalho automatizado, traçando cenários incríveis do nosso futuro próximo.

Francesca Rossi

A inteligência artificial está ainda numa fase de incubação. Algumas já fazem parte da nossa vida, como o navegador satelitar ou a publicidade personalizada na Internet. Outras tecnologias virão em breve mudar o nosso mundo. Por exemplo, a aprendizagem automática e o carro autónomo. Francesca Rossi, do T.J. Watson Research Center da Ibm, em Nova Iorque, ocupa-se destas tecnologias, que acabam de passar da ficção científica para a ciência. O que é que significa estar na linha da frente do progresso científico? Rossi relata, a partir do interior do laboratório, os desafios do investigador de IA e explica que, atualmente, consistem não só em melhorar as capacidades desta nova tecnologia, mas também em proporcionar o maior benefício possível à sociedade e, assim, estudar as implicações éticas desta extraordinária revolução. Quando se trata de inteligência artificial, a noção de "inteligência" não está muito longe da que utilizamos na linguagem quotidiana e indica a capacidade de tomar decisões, planear e fazer inferências.

«Para podermos confiar na ia, é importante que esta siga os mesmos princípios éticos e valores morais que nós e que compreenda perfeitamente o problema que tem de resolver. Uma vez que muitas técnicas de IA dependem fundamentalmente de grandes quantidades de dados pessoais, as empresas têm de ser responsáveis e transparentes» (Rossi , 2019, p. 13) .

Rossi, recentemente nomeado pela Comissão Europeia para dirigir a equipa de investigação que supervisiona a implantação da ia, conta a história desta revolução que marcou época e guia-nos até às descobertas mais recentes, levando-nos até ao limite do futuro, que se torna finalmente imaginável.

Remo Bodei

Dominação e subjugação são os dois termos de uma relação de poder fortemente assimétrica que atravessa a história da humanidade e que sofreu numerosas metamorfoses na civilização ocidental. Remo Bodei reconstitui esta história milenar, concentrando-se em alguns momentos exemplares, mas sempre nas teorias filosóficas que moldaram os nossos modos de pensar, sentir e agir, e nas implicações antropológicas, políticas e culturais das mudanças. Começando com a antiga tradição da escravatura, que encontra em Aristóteles a sua mais poderosa legitimação, a narrativa atravessa os séculos para se centrar na evolução das máquinas chamadas a retirar ao trabalho humano, primeiro os esforços físicos mais pesados, depois os mentais mais exigentes. Um processo que continua hoje com o desenvolvimento prodigioso de robôs e dispositivos dotados de Inteligência Artificial ou, por outras palavras, com a transferência extracorporal de faculdades humanas, como a inteligência e a vontade, e a sua instalação em dispositivos autónomos.

«Como devemos redefinir as nossas categorias de pensamento a este respeito e como devemos comportar-nos agora que profundas convulsões tecnológicas estão a abalar as nossas sociedades a partir do zero? Por exemplo, que tipo de liberdade teremos e qual será o destino da igualdade (especificando, à maneira de Amartya Sen, "igualdade/desigualdade em relação a quê?")? É, neste último caso, o valor mais ameaçado atualmente, num mundo onde as desigualdades aumentam e onde se assiste ao que se designa por "secessão dos patrícios", ou seja, a oligarquia dos detentores de grandes fortunas, uma pequena minoria que possui os recursos de metade da humanidade e que se separa dela (uma secessão, esta, que anda de mãos dadas com a dos plebeus modernos, dos rejeitados humanos privados de trabalho e de dignidade que povoam o mundo, e não apenas os seus subúrbios)» (Bodei , 2019, p. 24)

Marcus du Sautoy

Criatividade: uma das qualidades especiais do Homo sapiens, algo que nos define como espécie e como indivíduos; a capacidade, há muito considerada única, de criar obras de arte ou de encontrar soluções inovadoras para os problemas e estímulos do mundo. Graças a ela, criámos máquinas cada vez mais avançadas, capazes de nos ultrapassar em muitos domínios.

«No entanto, há ainda um domínio da experiência humana do qual pensamos que as máquinas estarão sempre afastadas: a criatividade. Temos esta extraordinária capacidade de imaginar, de inovar e de criar obras de arte que elevam, expandem e transformam o que significa ser humano. Todas estas coisas são o produto daquilo a que chamarei o "código humano". Acreditamos que este código depende do ser humano como um reflexo do que significa ser humanos» (du Sautoy , 2019, p. 14).

Mas se o sonho de reproduzir as características da mente humana é muito antigo, o desenvolvimento de uma verdadeira inteligência artificial - capaz de aprender com a experiência e de se aperfeiçoar - é um caminho muito mais recente. Agora que a inteligência artificial é uma realidade emergente, a questão que se coloca é: poderá ela revelar-se criativa? A música, as artes plásticas, a literatura, a matemática, até mesmo o desenvolvimento de uma nova língua: os avanços nestes domínios têm sido enormes, e de tal forma que podemos assumir que estamos no bom caminho para atingir objectivos que antes eram impensáveis. Será que, num futuro próximo, as máquinas poderão ajudar-nos a manter viva a nossa imaginação? Marcus du Sautoy - um académico e divulgador de renome internacional - traça neste livro os progressos feitos pela aprendizagem automática nos últimos anos, bem como examina a natureza profunda da criatividade humana e descreve os processos matemáticos envolvidos. O resultado é um volume rico e fascinante que oferece uma análise inovadora do mundo da IA e da essência daquilo a que chamamos "ser humano" .

A inteligência artificial está ainda numa fase de incubação. Algumas já fazem parte da nossa vida, como o navegador por satélite ou a publicidade personalizada na Internet. Outras tecnologias virão em breve mudar o nosso mundo. Por exemplo, a aprendizagem automática e o carro autónomo. Uma referência profissional altamente acessível e actualizada para programadores, engenheiros de software, administradores de sistemas ou gestores técnicos, este livro integra técnicas de IA de última geração em concepções de agentes inteligentes, utilizando exemplos e exercícios para conduzir o leitor de simples agentes reactivos a agentes baseados no conhecimento completo com capacidades de linguagem natural.

Stuart Russel

A Modern Approach introduz ideias básicas em inteligência artificial na perspetiva da construção de agentes inteligentes, que os autores definem como

«Um agente é tudo o que possa ser visto como um sistema que percebe seu ambiente atraves de sensores, e age sobre ele atraves de actores. Esta ideia-simples é ilustrada na Figura 2.1. Um agente humano tem olhos, ouvidos e outros órgãos como sensores e pode utilizar as mãos, pernas, boca e outras partes do corpo como actuadores. Um agente robótico pode ter câmaras e dispositivos de infravermelhos como sensores e vários motores como actuadores. Um agente de software recebe as teclas premidas, o conteúdo dos ficheiros e os pacotes de rede como sensores e pode intervir no ambiente alterando a visualização num ecrã, escrevendo ficheiros e enviando pacotes de dados.» (Russell , 2005, p.42).

Este livro está atualizado e está organizado utilizando os mais recentes princípios de boa conceção de livros didácticos. Inclui notas históricas no final de cada capítulo, exercícios, notas de margem, uma bibliografia e um índice competente. Inteligência Artificial: A Modern Approach abrange um vasto leque de matérias, incluindo lógica de primeira ordem, jogos, representação do conhecimento, planeamento e aprendizagem por reforço.

Francesco Bianchini

A inteligência artificial está também a entrar com força na sociedade italiana. É o que demonstra a primeira explosão de dispositivos ligados a esta tecnologia, cada vez mais difundidos nas nossas casas (sobretudo sob a forma de assistentes de voz para a domótica). Os especialistas concordam que haverá fortes repercussões socioeconómicas , no âmbito da quarta revolução industrial em curso, com a promessa de aumentar a produtividade, melhorar o bem-estar dos trabalhadores, mas também com o risco de aumentar as desigualdades. É certo que já está a mudar a forma como trabalhamos e que terá impactos ainda maiores no emprego no futuro. Esta transformação coloca também desafios sem precedentes à proteção da nossa privacidade e dos nossos direitos fundamentais em geral. Este livro tem como objetivo ajudar-nos a compreender a revolução que está a ocorrer e os seus desafios, para estarmos melhor preparados para as grandes mudanças esperadas no mundo do trabalho e nas nossas vidas (públicas e privadas). De uma forma informativa, mas com referências científicas precisas, é apresentado o estado da arte desta tecnologia e os seus principais impactos. São ilustrados os benefícios esperados, os riscos a enfrentar e os possíveis instrumentos éticos e jurídicos a adotar.

«A maior parte das análises históricas e teóricas da Inteligência Artificial (IA) remonta a 1956, quando a disciplina foi oficialmente baptizada durante o Seminário de verão de Dartmouth, organizado por John McCarthy, Marvin Minsky, Nat Rochester e Claude Shannon. Os dois principais resultados do seminário são ainda hoje identificados como as pedras angulares do paradigma de investigação em IA. Por um lado, encontramos as técnicas de processamento simbólico baseadas em heurísticas desenvolvidas por Newell e Simon no Logic Theorist (um programa que foi oficialmente apresentado em Dartmouth); por outro lado, o desenvolvimento de hardware e, sobretudo, de software (em particular linguagens de programação baseadas em listas, como Lisp e Ilp) que tornaram possível a implementação dessas técnicas. O resultado desta operação teórica é que a IA clássica é identificada como uma disciplina eminentemente técnica dedicada principalmente, se não exclusivamente, à simulação e à replicação de processos cognitivos modelados no paradigma do processamento simbólico» (Bianchini , 2007, p. 7)

Alice Barale

No final de 2018, a primeira venda em leilão na Christie's de uma obra de arte assistida por Inteligência Artificial do Obvious Group, que resultou em surpresa, consternação e desinformação na imprensa, revelou a complexidade da ideia de inteligência artificial para o público e para o mundo da arte. Um debate multifacetado e extremamente interessante sobre a validade da criatividade das máquinas, a identidade do verdadeiro artista e a qualidade dos resultados estéticos. Filósofos, informáticos, historiadores de arte, académicos e artistas confrontam-se com questões fundamentais: o que é a criatividade? E arte? Quem é o criador e quem é o espetador? As máquinas podem ser criativas ou a criatividade é apenas uma caraterística humana? O processo generativo de um sistema de inteligência artificial pode ser qualificado como criativo e original? Como é que julgamos as obras de arte criadas com a mediação da IA? Podemos considerar estéticos os algoritmos que discriminam milhões de "obras"? Como é que a Inteligência Artificial (IA) está a mudar o mundo da arte? Quais são as mais recentes tecnologias de IA utilizadas nos museus? Quais são as novas fronteiras da catalogação? Pode a Inteligência Artificial oferecer uma solução em termos de inclusão nos museus? Como é que é possível criar uma obra de arte com o apoio da IA?

«Alguns vêem a inteligência artificial como uma ferramenta perigosa que ameaça aniquilar os artistas; outros vêem-na como algo fora do seu alcance, destinado a nunca ter qualquer impacto na sua vida quotidiana. Alguns vêem-na como um campo de investimento promissor e outros vêem-na como uma bolha económica. Alguns vêem-no como algo que contradiz as leis da natureza, outros como o caminho lógico do desenvolvimento da espécie humana» (Barale , 2020, p. 8)

O objetivo do livro é responder a estas e muitas outras questões, oferecendo ao leitor um guia amplo e articulado para navegar nos complexos cenários da arte e da Inteligência Artificial, através de panorâmicas, estudos de caso e entrevistas recolhidas pelo autor especificamente para este volume. O livro divide-se em duas partes: a primeira é dedicada à museologia, à conservação, à classificação, à investigação, à fruição e ao mercado; a segunda convida o leitor a descobrir os Artistas de IA que são pioneiros na utilização da Inteligência Artificial na conceção e realização das suas obras, rumo a novos horizontes estéticos.

A educação, o comércio, a indústria, as viagens, o entretenimento, a saúde, a política, as relações sociais, em suma, a própria vida está a tornar-se inconcebível sem tecnologias, serviços, produtos digitais.

Luciano Floridi

Esta transformação epocal acarreta dúvidas e preocupações, mas também oportunidades extraordinárias. Precisamente porque a revolução digital está apenas a começar, temos a possibilidade de a moldar numa direção positiva, em benefício da humanidade e do planeta. Mas na condição de compreendermos melhor do que estamos a falar.

É fundamental compreender as transformações tecnológicas em curso para as conceber e gerir da melhor forma possível. Uma das passagens fundamentais hoje em dia é a da inteligência artificial, a sua natureza e os seus desafios éticos, que Luciano Floridi aborda neste livro a partir de uma perspetiva filosófica, oferecendo o seu contributo de ideias para um esforço de inteligência colectiva tão necessário.

«Pense-se, por exemplo, na diferença entre realidade virtual (dissociação) e realidade aumentada (acoplamento); na dissociação comum entre utilização e propriedade na economia de partilha; na dissociação entre autenticidade e memória graças à cadeia de blocos; ou no debate atual sobre um rendimento básico universal, que é um caso de dissociação entre salário e trabalho. Mas é altura de passar do "como" à questão do "porquê". Porque é que o digital tem este poder de clivagem6 para acoplar, dissociar e voltar a acoplar o mundo e a nossa compreensão do mesmo? Porque é que outras inovações tecnológicas parecem não ter um impacto semelhante? A resposta, suponho, reside na combinação de dois factores» (Floridi , 2023, p. 9)

O debate público sobre a inteligência artificial centra-se frequentemente em cenários futuristas, como a criação de máquinas capazes de pensar e sentir, ou um conflito do tipo Exterminador entre humanos e robots. Mas o futuro para o qual nos temos de preparar pode ser muito diferente. O problema que temos de questionar com maior urgência não é o possível aparecimento de máquinas sensíveis, mas a perda progressiva da nossa capacidade de distinguir os seres humanos das máquinas.

Simone Natale

Pondo em diálogo a informática, a sociologia, a psicologia social, a tecnologia e os estudos dos media, mas também a história da arte e as crenças religiosas, Simone Natale mostra como este futuro já está, em parte, à nossa volta. Desde as suas origens, a inteligência artificial tem estimulado a nossa tendência para projetar inteligência e humanidade em máquinas capazes de comunicar, mesmo na ausência de uma verdadeira capacidade de pensamento ou empatia. De facto, uma das características fundamentais do ser humano, recorda-nos este livro, é a sua vulnerabilidade aos jogos de ilusão e de engano. Cada interação com máquinas capazes de comunicar, como os assistentes de voz, os chatbots e os bots nas redes sociais, traz consigo a possibilidade de despertar esta caraterística, levando-nos a projetar nestas ferramentas as mesmas convenções e dinâmicas a que nos habituaram as interacções com pessoas de carne e osso. "Deceptive Machines" vira do avesso o debate sobre as tecnologias que são hoje parte integrante do nosso mundo contemporâneo, levando-nos a refletir não só sobre o funcionamento destas máquinas, mas também sobre a forma como nos relacionamos com elas.

«"O ponto de vista para contar esta história vem de uma perspetiva que é, se não inédita, pelo menos anómala no debate público sobre a IA: em vez de perguntar se as máquinas são inteligentes, é perguntar até que ponto nos parecem inteligentes. O que pretendo mostrar é esse desenvolvimento"."Até à data, o desenvolvimento da IA não tem ido tanto no sentido de emular ou ultrapassar a inteligência humana, mas sim no sentido de desenvolver sistemas que nos possam convencer a nós, humanos, de que as máquinas são inteligentes. A IA, por conseguinte, é inteligente na medida em que a consideramos assim. E o sonho de criar máquinas inteligentes tem valor na medida em que continuamos a acreditar nele"» (Natale , 2022, p. 15)

O que nos assusta mais do que a mudança é a velocidade da mudança. E, nos últimos anos, a transformação tecnológica acelerou a um ritmo que parece cada vez mais insustentável. Isto afecta todos, cidadãos, administradores públicos e empresários. Deste ponto de vista, a inteligência artificial ainda nos mete mais medo: a Ai na ponta dos dedos com o ChatGpt produziu uma proliferação de notícias e debates, muitas vezes enganadores, com o efeito de gerar ainda mais ansiedade em relação a um futuro que parece fora de controlo. Ou mesmo sob o controlo das máquinas. O que nos apercebemos é que a inteligência artificial parece ainda ser deficiente, mas que, de momento, aprendeu muito bem a comunicar. Será, sem dúvida, cada vez mais omnipresente em muitas áreas, numa lógica de eficiência e personalização.

Daniel Huttenlocher

No final de 2017, um algoritmo de inteligência artificial obteve uma série de vitórias esmagadoras no xadrez, escolhendo jogadas que a mente humana não consegue sequer assimilar ou utilizar. Alguns anos mais tarde, investigadores do Massachusetts Institute of Technology (MIT) anunciaram a descoberta de um novo antibiótico obtido com a ajuda da inteligência artificial, que tinha conseguido identificar propriedades moleculares que tinham escapado à concetualização e classificação dos cientistas. A inteligência artificial está a ganhar cada vez mais terreno na investigação, na medicina, na educação e em muitos outros domínios. Mas com que consequências? Segundo o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, o antigo diretor executivo da Google Eric Schmidt e o informático e reitor do MIT Daniel Huttenlocher, a humanidade encontrar-se-á em breve num caminho muito perigoso, uma vez que a IA está a mudar o pensamento, o conhecimento, a perceção, a realidade e, consequentemente, o curso da história. Apesar da rapidez com que avança e progride, a IA não é, de facto, regida por princípios e conceitos morais que a contenham e lhe dêem limites, pelo que a sua revolução pode tomar rumos inesperados e conduzir a resultados imprevisíveis. Questionando os próximos cenários possíveis, três dos mais autorizados e lúcidos pensadores da atualidade reflectem, assim, sobre a inteligência artificial e a forma como esta está a transformar a nossa experiência da realidade, da política e das sociedades em que vivemos. Nestas páginas, Kissinger, Schmidt e Huttenlocher explicam não só o que é a inteligência artificial, mas também o que ela representa: um campo de jogo fundamental que determinará as futuras disposições geopolíticas.

«"Como serão as inovações possibilitadas pela inteligência artificial nos domínios da saúde, da biologia, do espaço e da física quântica?

Como serão os "melhores amigos" oferecidos pela inteligência artificial, especialmente para as crianças?

Como será a guerra gerida pela inteligência artificial?

A inteligência artificial apercebe-se de aspectos da realidade que os humanos não conseguem?

Se a inteligência artificial ajudar a avaliar e a moldar a ação humana, que mudanças provocará no ser humano?

O que significará, então, ser um ser humano?» (Kissinger , 2023, p. 14).

Estamos constantemente a debater-nos com a Inteligência Artificial e as suas aplicações práticas: nas nossas casas, no escritório, na escola, no cinema, no carro, bem como na Internet. Para além dos efeitos tecnológicos, a contribuição da Inteligência Artificial para o trabalho de psicólogos, neurocientistas e biólogos, que adquiriram novas perspectivas e conhecimentos sobre a mente, o cérebro e a natureza da própria vida, é inestimável. Igualmente significativa é a influência que tem tido no campo filosófico, particularmente em tópicos controversos como a relação mente-corpo, o livre arbítrio e a consciência.

Qual será a evolução da humanidade? Será que nos espera um futuro "ciborgue", algures entre o homem e a máquina? Para onde nos levam as novas descobertas científicas e as novas tecnologias aplicadas à vida? É legítimo interrogarmo-nos sobre os limites possíveis neste domínio?

 

Neste Caderno, juntamente com académicos, especialistas e cientistas de diferentes disciplinas, tentaremos responder a estas novas questões fascinantes e marcantes. Falaremos de transhumanismo, pós-humanismo e novo humanismo, tentando explorar as inúmeras questões (luzes e sombras) que se abrem no plano ético-moral e antropológico, com repercussões cada vez mais evidentes em várias esferas, no plano concreto da vida quotidiana. Sem prejuízo da radical diferença qualitativa entre o homem e a máquina, desenvolveremos também o tema ao nível da aplicação, com exemplos concretos de boas práticas técnico-científicas. Compreenderemos melhor o que se entende por inteligência artificial, ficaremos a conhecer os robots e falaremos ainda de ciborgues, biotecnologia, edição genética e tecnologia da solidariedade.

Neste artigo, a "questão da tecnologia", que poderíamos designar como o grande tema que tem agitado o pensamento filosófico desde a segunda metade do século XX, é colocada como uma interrogação sobre o sentido - significado e direção - das transformações que as novas tecnologias da informação imprimem a algumas das nossas experiências pessoais, individuais, humanas. Vivemos numa era de domesticação tecnológica. As máquinas tornaram-se familiares para nós, seguem-nos para todo o lado, levamo-las connosco, dependemos delas cada vez mais para o nosso trabalho, os nossos lazeres e os nossos afectos. Para além das utopias e das distopias, este ensaio toma, portanto, como perspetiva a do utilizador dos novos artefactos tecnológicos e tenta investigar algumas das suas experiências. A categoria de estar noutro lugar define um dos aspectos mais relevantes e, talvez, menos investigados da nossa experiência marcada pelas relações com e através das máquinas. O ambiente digital torna presente o que está ausente, permite-nos transcender o tempo e o lugar, transforma as dimensões do poder e das relações e proporciona-nos uma experiência desencarnada cada vez mais exposta às dimensões simulativas e emulativas da inteligência artificial.

Ítalo Calvino não foi apenas um brilhante contador de histórias com uma imaginação sem limites e um comentador perspicaz da atualidade. Nem mesmo o seu envolvimento no mundo editorial e cultural, a sua dedicação política e social e a sua presença combativa no debate são suficientes para definir a magnitude e a extensão da sua influência. De facto, Calvino, em toda a sua obra, propôs um verdadeiro método - o "Método Calvino" aqui descrito - que, trabalhando sobre os opostos, a plenitude mais completa e o vazio absoluto, a leveza e o peso, a precisão e a imprecisão mais vaga, serve de passepartout capaz de decifrar toda a complexidade. O "Método Calvino", segundo Prencipe e Sideri, é também a chave adequada para compreender a época em que vivemos, também ela feita de opostos, de bem-estar generalizado e de tremendas desigualdades; de mudanças profundas e extremamente rápidas e de resistência humana às mesmas. Com O Visconde Cibernético, os autores colocam o ensinamento de Calvino à prova da tecnologia - em particular, da inteligência artificial e das suas implicações. Enriquecimento da humanidade ou risco existencial? Facilitação ou banalização do conhecimento? Ainda assim, opostos que coexistem e dos quais precisamos de ter consciência para podermos lidar, com seriedade e leveza, com o nosso próprio futuro.

O que falta no debate atual sobre a Inteligência Artificial é uma visão abrangente das implicações éticas, dos riscos e das oportunidades que esta tecnologia representa para a humanidade: das aplicações mais discutidas - como os carros autónomos ou as "armas inteligentes" - aos robôs pessoais, das realidades virtuais aos chatbots. Escrito com o objetivo de ser acessível a um vasto público, o livro analisa as funções mais promissoras, mas também as limitações e os mal-entendidos mais comuns sobre a natureza da IA, aprofundando o seu impacto nas comunidades, no trabalho e no ambiente, e propondo soluções que vão da regulamentação e da cooperação internacional à educação, à investigação e à promoção da diversidade. Fornece também ferramentas práticas que os cidadãos, as empresas e os activistas podem utilizar para avaliar as implicações éticas dessas tecnologias durante o seu ciclo de vida, ajudando a garantir a sua

O que é realmente importante para todos nós não é o grau de inteligência da Inteligência Artificial, mas os danos que pode causar às nossas almas. O que é certo é que algo não muito humano está a invadir as nossas vidas. E, para o contrariar, a melhor maneira é olhar não para o futuro, mas para o passado, com uma incursão fundamentada e bem documentada no mundo clássico. Voltar a Atenas e Roma clássicas é, segundo os dois autores deste livro corajoso e antecipador, um itinerário do espírito que tem como destino a sabedoria dos antigos. Devemos inspirar-nos nela para novos exercícios espirituais. O único verdadeiro soberanismo é o do espírito. Não precisamos de temer tanto a substituição étnica como a substituição técnica, ou seja, a subtração progressiva das faculdades e capacidades do homem a favor dos aparelhos tecnológicos, dos algoritmos e das redes neuronais. No que diz respeito à IA "de fronteira", não são as aquisições sempre provisórias que interessam, mas sim as invasões já efectivas do santuário do nosso eu interior. Só a resistência psicológica e cultural e a força dos clássicos da filosofia nos podem tornar mais fortes e capazes (esperamos) de controlar a IA.utilização segura e favorável à comunidade.

A inteligência artificial (IA) deixou de ser um assunto para os especialistas em informática. As suas aplicações estão cada vez mais difundidas e o seu carácter inerentemente mimético do comportamento humano torna difícil compreender os contornos do binómio natural-artificial, com implicações éticas evidentes. Com efeito, as aplicações de IA são tanto mais eficazes quanto mais ampla for a base de dados a que podem recorrer, dados esses que são fornecidos pelos próprios utilizadores do ecossistema digital. A compreensão da gramática da IA torna-se assim crucial e as escolas podem desempenhar um papel central na promoção de uma literacia crítica sobre os processos de automatização nas nossas sociedades. O livro oferece um quadro para o desenvolvimento de competências sobre a utilização ativa e consciente da IA e propõe percursos de literacia crítica que os professores podem implementar na sala de aula para promover uma cidadania digital consciente.

A inteligência - aquilo que nos permite compreender o mundo - continua a ser um mistério em aberto. Se só nós, humanos, temos uma linguagem, um alfabeto, uma ciência, isso não significa que detenhamos o monopólio da inteligência. Partilhamos esta existência com milhões de outras espécies, animais e vegetais, dotadas de uma tal variedade de capacidades cognitivas que compõem uma gradação quase infinita de inteligências. De repente, o seu número está a aumentar. Graças ao aparecimento conjunto de algoritmos mais sofisticados, de bases de dados oceânicas e de um enorme poder de computação, a antiga aspiração de reproduzir matematicamente a inteligência humana atingiu alturas inesperadas. Embora longe de o conseguir, um pequeno zoo de inteligências artificiais é já capaz de realizar muitas tarefas tipicamente humanas. Neste livro, um jornalista e um pioneiro da inteligência artificial falam (na voz do cientista) sobre os primórdios de uma nova tecnologia "geral" que, tal como a eletricidade ou o computador, está destinada a transformar a sociedade, a economia e a vida quotidiana, com uma carga de riscos e oportunidades. O que devemos esperar deste desenvolvimento extraordinário? O que é que vamos ganhar e o que é que vamos perder? Não há respostas certas. Mas é certamente uma oportunidade para novas e extraordinárias descobertas científicas. A começar pelos segredos da própria inteligência.

As definições

«A IA é caracterizada como 'uma das forças mais transformadoras do nosso tempo [...] destinada a mudar o tecido da sociedade» (Cabitza 2021:14).

"Em primeiro lugar, vou refletir sobre a natureza daquilo a que chamamos inteligência artificial, para compreender as suas raízes e perceber o que é melhor olhar quando quem usa esta expressão aponta para o horizonte com a mão: não é a lua, mas sim o dedo do nosso interlocutor".

"respetivamente o que podemos prejudicar mas não controlar: a dimensão natural; e o que devemos controlar para que não nos prejudique: a dimensão artificial". "é útil evitar considerar as máquinas e as ferramentas como algo ontologicamente estável e fixo, apesar da sua materialidade; ou como algo dotado de 'agência', ou seja, de uma capacidade autónoma de ação; isto porque tal poderia levar-nos ao erro de atribuir também às máquinas uma identidade e mesmo uma vontade autónoma".

“A essencia da tecnica não diz respeito a instrumentos ou processos tecnológicos , mas antes um modelo estruturado e estruturante de conhecimento, uma forma de conhecer o mundo e de mediar práticas colaborativas, permitindo ou impossibilitando certas interacções sociais: a ação é também o lugar onde os humanos entram em relação uns com os outros."

Definição de Maquina

A que chamamos "máquina" tem algo que é partilhado com a palavra "magia": máquina é todo o mecanismo, dispositivo e modalidade que nos capacita e nos permite fazer coisas que de outra forma não poderíamos fazer, e ter um efeito no ambiente para o transformar e torná-lo o nosso "mundo", o nosso "nicho".

"Aristóteles, na Mecânica, diz que uma máquina é qualquer coisa que nos permite produzir um efeito "para além" das nossas capacidades naturais "através" da técnica e para o nosso "benefício": além disso, diz-se que é máquina aquela parte da nossa capacidade que nos permite ultrapassar as dificuldades"

"O fazer humano (ou 'fabricar') é a atividade em que se exprime o homo faber de que nos fala Hannah Arendt (1998); ele é o ‘constroi o mundo', portanto ao mesmo tempo também o 'destruidor da natureza' (ibid.), sobretudo quando se ilude de que o meio em que vive pode absorver toda a ação de exploração indiscriminada".

Tecnologias computacionais

"As tecnologias da escrita digital são, assim, mecanismos computacionais, regulados por técnicas e codificados em 'algoritmos', com os quais os seres humanos escrevem e reescrevem incessantemente os seus textos, registos e documentos, deixando assim vestígios e modificando marcas incessantemente em suportes em constante mutação e interligados por redes densas, cujos meandros nenhum ser humano pode sequer imaginar. Esta tecnologia é como um organismo composto por inúmeras máquinas, tanto técnicas como sociais - as estruturas em que vivemos e que nos abrigam, tanto no sentido físico como psicológico".

Attori sociali e sinergia homem-maquina

"actores" como Bruno Latour os define, associações de pessoas que colaboram, comunicam e interagem porque estão intimamente, mas também poderíamos dizer inextricavelmente, ligadas às (e pelas) suas ferramentas digitais e aos seus protocolos de interação; quase conjuntos de híbridos humano-tecnológicos, aquilo a que chamam redes humano-máquinas ou como cybork, ou seja, organismos sociais em que o trabalho (work) e o fazer são possibilitados por esta interação profunda e quase sinergética entre os humanos e as suas máquinas."

Definição de Inteligencia artificial

"Podemos então pensar na inteligência artificial, como uma pequena manifestação particular desta tecnologia distribuída e difundida a nível planetário, cuja principal caraterística é o facto de se impor, cada vez mais claramente, como uma forma de tecnologia dotada do poder"

"Vamos agora definir a inteligência artificial a IA é um conjunto de máquinas cujo comportamento pode ser associado à ideia de inteligência  algumas são tão complexas que ninguém, nem mesmo entre os seus projectistas, compreende a sua lógica interna ou porque são tão eficazes na identificação de determinadas características presentes nos dados. Neste caso, estamos a falar de modelos matemáticos gerados pela execução de processos computacionais É por isso que proponho considerar a IA como uma forma de "automação": a execução automática de tarefas que normalmente requerem alguma inteligência para serem realizadas por seres humanos (KURZWEIL, 1990).

o Parlamento Europeu sobre a inteligência artificial define sistemas capazes de, obter um determinado conjunto de objectivos definidos pelo homem [ou seja, tarefas atribuídas pelo homem], gerar [ou seja, escrever] resultados como conteúdos, previsões, recomendações”. "decisões que [consideradas verdadeiras, correctas e exactas] influenciam o ambiente com o qual o sistema interage [incluindo, os seus utilizadores], tanto numa dimensão física como numa dimensão digital [uma vez que, como dissemos acima, as duas dimensões estão ligadas precisamente pelo ato de 'escrever'].

 

  Se considerarmos a IA como uma forma de automatismo, algo que pode ser rastreado até às simples operações de leitura e escrita de símbolos, limpamos o campo de vários mal-entendidos e espectros, tais como os da identidade, consciência e autonomia. Ao fazê-lo, apenas veríamos nele a mão do homem, a sua vontade e capacidade de delegar o trabalho e a ação em algo que não ele próprio; por outras palavras, a utilização humana dos seres humanos (e de outros seres). O homem está constantemente a delegar o fazer e a ação: quando usamos uma alavanca para mover uma carga demasiado pesada; quando atamos uma canga ao pescoço de um boi".

Bibliografia

 

Floridi, Luciano, e Federico Cabitza. 2021. Intelligenza artificiale l’uso delle nuove macchine. Milano: Bompiani.

Kurzweil, Ray. 2015. Como Criar uma Mente - Os segredos do pensamento humano. São Paulo: Aleph.

Kaplan, Jerry. 2015. Humans need not Apply. A Guide to Wealth and Work in the Age of Artificial Intelligence. Michigan: Yale University Press.

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